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A lingüística e o não-marxismo de Gramsci

Depois de mais de meio século de debates gramscianos e quase trinta anos depois da edição crítica dos Cadernos do
cárcere, uma questão filológica ainda espera resposta dos estudiosos do pensamento de Gramsci e, sobretudo, dos
estudiosos do Gramsci teórico original da política e do trabalho intelectual. A questão é simples: uma multiplicidade de
indícios convergentes (testemunhos autobiográficos, anotações de contemporâneos, organização dos temas nos
Cadernos, etc.) induz a formular a hipótese de que Gramsci amadureceu a teoria dos intelectuais, da hegemonia, da
sociedade civil, etc., no curso dos seus interesses profissionais pela linguagem. Portanto, a matriz primitiva da sua
filosofia não deveria ser buscada em Marx, em Lenin ou em qualquer outro marxista, mas na ciência da linguagem.

Entre os muitos textos possíveis, só citaremos alguns. Dois deles são muitíssimo conhecidos e citados, mas, apesar da
notoriedade, os estudiosos do pensamento político gramsciano parecem ter dificuldades em transformar as inequívocas
informações neles contidas em partes orgânicas das suas interpretações.

Três testemunhos diretos

(i) Comecemos com a famosíssima carta a Tania de 17 de novembro de 1930. Transcrevemo-la quase inteiramente,
porque é todo o contexto que faz ressaltar melhor a ausência, na literatura crítica gramsciológica, da informação
autobiográfica fornecida sem sombra de equívoco por Gramsci:

Detive-me em três ou quatro temas principais, um dos quais é a função cosmopolita que tiveram os intelectuais italianos
até o século XVIII, que por sua vez se divide em várias partes: o Renascimento e Maquiavel, etc. Se tivesse a
possibilidade de consultar o material necessário, acredito que daria para fazer um livro realmente interessante e que
ainda não existe [...]. Enquanto isso, escrevo notas, até porque a leitura do relativamente pouco que tenho me faz
lembrar as velhas leituras do passado. Por outro lado, a coisa não é completamente nova para mim, porque há dez anos
escrevi um ensaio sobre a questão da língua segundo Manzoni, o que requereu uma certa investigação sobre a
organização da cultura italiana, desde quando a língua escrita (o chamado latim medieval, isto é, o latim escrito entre
400 d.C. até 1300) se separou completamente da língua falada do povo, que, terminada a centralização romana, se
fragmentou em infinitos dialetos. A este latim medieval sucedeu a língua vulgar, que foi novamente submergida pelo
latim humanista, dando origem a uma língua douta, vulgar em termos de léxico, mas não em termos de fonologia e
muito menos de sintaxe, que foi reproduzida do latim: assim, continuou a existir uma dupla língua, a popular ou dialetal
e a douta, ou seja, a língua dos intelectuais e das classes cultas. O próprio Manzoni, ao reescrever Os noivos e em seus
estudos sobre a língua italiana, só levou em conta, na realidade, um aspecto da língua, o léxico, e não a sintaxe, que,
afinal, é a parte essencial de qualquer língua, tanto é verdade que o inglês, embora tenha mais de 60% de palavras
latinas ou neolatinas, é língua germânica, enquanto o romeno, embora tenha mais de 60% de palavras eslavas, é língua
neolatina, etc. Como vê, tenho tanto interesse pela questão que a mão correu livre no papel (Cartas do cárcere. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, v. 1, p. 452-3).
O texto é importante, não só porque nele se declara explicitamente que as primeiras reflexões sistemáticas “sobre a
organização da cultura italiana” surgiram por ocasião da redação de “um ensaio sobre a questão da língua segundo
Manzoni”, mas também por causa do modo pelo qual o tema é desenvolvido. O tema é “a função cosmopolita que
tiveram os intelectuais italianos até o século XVIII”, mas por toda a carta o autor se mostra envolvido por um só aspecto
do problema, a língua, até o ponto de deixar “a mão correr livre no papel”. Sobre o resto não diz palavra alguma.

(ii) Outro texto ainda mais citado e mais famoso do que o primeiro. Em 19 de março de 1927, Gramsci comunica a
Tania estar “atormentado [...] por esta idéia: de que é preciso fazer algo für ewig”. Os temas que se propõe estudar são
quatro:

1) uma pesquisa sobre a formação do espírito público na Itália no século passado; em outras palavras, uma pesquisa
sobre os intelectuais italianos, suas origens, seus agrupamentos segundo as correntes culturais, seus diversos modos de
pensar [...]. 2) Um estudo de lingüística comparada! Nada menos que isto. Mas o que poderia ser mais “desinteressado”
e für ewig do que esse tema? Tratar-se-ia, naturalmente, de examinar apenas a parte metodológica e puramente teórica
do assunto, que jamais foi tratado de modo completo e sistemático do novo ponto de vista dos neolingüistas contra os
neogramáticos. (Querida Tania, esta minha carta vai horrorizá-la!) Um dos maiores “remorsos” intelectuais de minha
vida é a profunda dor que causei a meu bom professor Bartoli, da Universidade de Turim, o qual estava convencido de
que eu era o arcanjo destinado a derrotar definitivamente os “neogramáticos”, uma vez que ele, da mesma geração e
ligado por milhões de fios acadêmicos a esta choldra de homens infames, não queria ir, em seus enunciados, além de um
certo limite estabelecido pelas conveniências e pela deferência aos velhos monumentos funerários da erudição. 3) Um
estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre a transformação do gosto teatral italiano que Pirandello representou e
contribuiu para determinar. [...]. 4) Um ensaio sobre os romances de folhetim e o gosto popular na literatura. [...] O que
é que você acha disso? No fundo, para quem observar bem, entre esses quatro temas existe homogeneidade: o espírito
popular criador, em suas diversas fases e graus de desenvolvimento, está na base deles em igual medida (Ib., v. 1, p.
128-9).

Também aqui a lingüística, vista precisamente nos seus aspectos abstratamente metodológicos, fica em primeiro plano e
é considerada como um tema de estudo afim àqueles que versam sobre os intelectuais, Pirandello e o romance de
folhetim: “No fundo, para quem observar bem, entre esses quatro temas existe homogeneidade”. Tentamos dar uma
explicação desta proclamada homogeneidade num livro de 1979 [Lingua intellettuali egemonia in Gramsci (Roma-Bari:
Laterza)]. Talvez sejam possíveis outras explicações. Os estudiosos do Gramsci teórico dos intelectuais não podem se
eximir de dar alguma.

(iii) Em 19 de novembro de 1933, Gramsci é transferido do cárcere de Turi para a enfermaria do cárcere de
Civitavecchia e, em 7 de dezembro, para uma clínica de Formia. A partir deste momento, o controle da censura se
atenua, e os Cadernos não trazem mais o carimbo das autoridades carcerárias. Em 25 de outubro do ano seguinte, obtém
a liberdade condicional. Nestas condições de semiliberdade, escreve o que seria o último caderno de notas, com a data
de 1935, e o dedica não a temas imediatamente políticos, mas ao conceito de gramática.
Até o final, a linguagem continua a estar no centro da sua atividade intelectual. Um sinal de que na linguagem se
encontra a chave da sua filosofia política? A pergunta merece uma resposta, alguma resposta, por parte dos estudiosos
da teoria política gramsciana. De todo modo, resta o fato de que o fundador do Partido Comunista Italiano e teórico dos
aparelhos culturais e do conceito de hegemonia começa intelectualmente como lingüista (“aluno do bom professor
Bartoli”, como universitário, mas, ainda no Avanti! de 26 de janeiro e 7 de fevereiro de 1918, é chamado de “emérito
estudioso de glotologia” e “jovem companheiro, filósofo e glotólogo”) e conclui sua atividade teórica como autor de um
breve, mas denso, estudo da língua. Este dado biográfico, à parte a meritória tentativa de Carnevali [“Teoria del
linguaggio e teoria politica (Gramsci e l’egemonia)”. Teoria politica, ano 5, n. 1, 1989], ainda não faz parte das
reconstruções e das pesquisas teóricas gramsciológicas.

Estes e outros indícios filológicos nos fazem pensar que a lingüística gramsciana não pode interessar só aos lingüistas e
filósofos da linguagem, mas é pertinente (deveria ser) seja aos teóricos da política, que buscam ou buscaram inspiração
nas páginas de Gramsci, seja àqueles que se interessam em fornecer uma explicação da especificidade não-leninista, e
talvez amarxista, da proposta filosófica gramsciana.

Gramsci não é um dos muitos filósofos marxistas dos quais é possível circunscrever, ao lado de outros fragmentos de
teorias, também uma teoria da linguagem. O caso Gramsci é radicalmente diferente. A reflexão sobre a linguagem e a
sua cultura lingüística foram o mecanismo gerador da sua originalidade e das características que o tornam radicalmente
diferente dos outros marxistas. Isto, naturalmente, não significa que outras experiências, inclusive o marxismo soviético,
não tenham contribuído para a formação daquele pensamento.

A questão é outra. Aquelas experiências tiveram resultados teóricos originais porque se inseriram num tronco
predisposto a fazer com que amadurecessem na direção da teoria dos intelectuais e da hegemonia, ou então, graças à
genialidade do seu autor, amadureceriam de qualquer maneira no sentido dos mesmos resultados teóricos? A pergunta
poderia ser reformulada de outro modo. Se a teoria dos intelectuais e da hegemonia tivesse uma origem leniniana,
genericamente soviética ou genericamente marxista, por que Togliatti não produziu nada semelhante, ele que passou por
uma imersão mais longa e absorvente no marxismo, soviético e não soviético? O recurso à maior genialidade e
inventividade de Gramsci é uma explicação que pode nos satisfazer?

A nação-povo e a língua

Nos Cadernos, encontram-se diversos livros: sobre a teoria e história dos intelectuais, o Partido-Príncipe como agente
de transformação, o Risorgimento, o folclore, a filosofia de Benedetto Croce, a democracia industrial americana, a
sociologia e a história da literatura, a língua e talvez ainda outros mais. Togliatti assumiu a responsabilidade de dividi-
los, e provavelmente não se podia fazer melhor. Gramsci argumentou em várias ocasiões que havia profunda
homogeneidade entre os temas por ele tratados. Os estudiosos muitas vezes esqueceram a indicação gramsciana, e cada
qual recortou seu próprio Gramsci para uso e consumo no próprio âmbito disciplinar, não se preocupando
excessivamente com a coerência do seu Gramsci em relação ao Gramsci dos colegas.
O que unifica as mais de duas mil páginas dos Cadernos? Uma única e só questão: o estudo teórico e histórico das
condições que permitem atuar “sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar sua vontade coletiva”
(Caderno 13, § 1), em particular aquela vontade coletiva que Gramsci chama de nação-povo. A revolução socialista é só
um dos modos (ainda que, para Gramsci, naturalmente o mais importante) pelos quais o problema da formação de
organismos nacional-populares coesos pode se apresentar na história. A partir da noção de nação-povo, todos os
conceitos teóricos e as análises históricas se deixam referir docilmente a um sistema ordenado e coerente: hegemonia,
sociedade civil, Partido-Príncipe, folclore, cosmopolitismo dos intelectuais italianos, cidade-campo, fracasso do
Risorgimento, jacobinismo, reforma intelectual e moral, gramática, etc.

Em relação à formação de unitárias e coesas vontades coletivas nacional-populares, a linguagem funciona


simultaneamente como: (A) microcosmo e laboratório em que atuam mecanismos e procedimentos que, sob forma mais
complexa, operam no plano macrossocial; (B) inevitável fator constitutivo de vontades coletivas complexas, tais como,
exatamente, as nações-povo. Examinemos os dois pontos separadamente.

(A) Gramsci estudou os mecanismos que presidem a formação de uma língua comum a toda uma nação-povo desde os
anos iniciais dos seus estudos universitários na escola glotológica de Matteo Bartoli. Foi neste contexto de estudos
especializados que entrou precocemente em contato com a mais penetrante análise oitocentista do papel dos intelectuais
e dos aparelhos culturais na formação de uma língua nacional: o “Proêmio”, que Graziadio Isaia Ascoli escreveu para o
primeiro número do Archivio Glottologico Italiano (1873). O caráter não popular da língua italiana era aqui relacionado
seja com a “escassa densidade da cultura” ou o “saber concentrado em poucos”, na Itália moderna, seja com o
cosmopolitismo dos intelectuais italianos. O ensaio de Ascoli continua ausente na biblioteca dos estudiosos de Gramsci,
e no entanto sua semelhança com muitas análises gramscianas é simplesmente surpreendente.

O estudo da linguagem remete o jovem Gramsci à história e sociologia dos intelectuais até mesmo sob um outro aspecto
ainda mais teórico. Nos anos em que se prepara para seguir a carreira de glotólogo, alguns lingüistas europeus
(Gilliéron, Meillet, “o bom professor Bartoli”) esforçam-se para explicar a difusão de uma língua além dos seus
originais limites geográficos e sociais, mediante o recurso aos centros geográficos e aos grupos sociais capazes de
irradiar prestígio cultural. Uma língua se difunde não com a força dos exércitos ou com a coerção estatal — é a tese
sociocultural da neolingüística italiana e da escola sociológica francesa —, mas porque os falantes aloglotas dão um
consenso espontâneo ao idioma de grupos a cujo prestígio cultural se submetem. Citemos só um artigo que Meillet
publica em 1911 na revista Scientia:

É inevitável que, entre os idiomas em uso, haja aqueles pertencentes a grupos mais poderosos ou superiores por
civilização, dotados de um prestígio superior por uma razão qualquer. Estes idiomas servem como modelos para os
outros: existe a aspiração de se aproximar deles, quando não de falá-los exatamente, nas relações entre grupos. É o
início da evolução que leva a criar uma língua comum com base num dos idiomas do grupo e a eliminar parcial ou
inteiramente as inovações estritamente locais.

Tentamos documentar as semelhanças entre o conceito de hegemonia e o conceito lingüístico de prestígio. Nos anos em
que o termo hegemonia não aparece ou aparece na acepção banal de “supremacia”, Gramsci refere-se ao “governo
espiritual que sabe produzir consenso espontâneo” com o termo aprendido na escola glotológica de Bartoli: “irradiação
de prestígio”. Para dar só um exemplo, citemos um artigo de 27 de dezembro de 1919:

O Partido Socialista, com seu programa revolucionário, subtrai ao aparelho de Estado burguês sua base democrática no
consenso dos governados. [...] É assim que o Partido vai se identificando com a consciência histórica das massas
populares e governa o seu movimento espontâneo, irresistível: este governo é incorpóreo, funciona através de milhões e
milhões de laços espirituais, é uma irradiação de prestígio, que só em momentos culminantes pode se tornar um governo
efetivo [...]. O Partido exerce a mais eficaz das ditaduras, aquela que nasce do prestígio, que é aceitação consciente e
espontânea de uma autoridade reconhecida como indispensável para o bom êxito da empreitada ( Estudos políticos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, p. 309).

Se for verdade que o conceito de hegemonia recebe o selo original na oficina teórica da lingüística, devem ser
radicalmente rediscutidos leninismo e/ou marxismo da filosofia gramsciana.

(B) Uma vontade coletiva também é unificada por uma língua comum. Gramsci insiste com obsessiva freqüência neste
aspecto do problema. Citemos só uma longa nota metodológica do Caderno 10 e uma rápida anotação do Caderno 13:

A linguagem, a língua, o senso comum. Posta a filosofia como concepção do mundo — e o trabalho filosófico sendo
concebido não mais apenas como elaboração “individual” de conceitos sistematicamente coerentes, mas além disso, e
sobretudo, como luta cultural para transformar a “mentalidade” popular e difundir as inovações filosóficas que se
revelem “historicamente verdadeiras” na medida em que se tornem concretamente, isto é, histórica e socialmente,
universais —, a questão da linguagem e das línguas deve ser “tecnicamente” colocada em primeiro plano. [...]

Parece que se possa dizer que “linguagem” é essencialmente um nome coletivo, que não pressupõe uma coisa “única”
nem no tempo nem no espaço. Linguagem significa também cultura e filosofia (ainda que no nível do senso comum) e,
portanto, o fato “linguagem” é, na realidade, uma multiplicidade de fatos mais ou menos organicamente coerentes e
coordenados: no limite, pode-se dizer que todo ser falante tem uma linguagem pessoal e própria, isto é, um modo
pessoal de pensar e de sentir. A cultura, em seus vários níveis, unifica uma maior ou menor quantidade de indivíduos em
estratos numerosos, mais ou menos em contato expressivo, que se entendem entre si em diversos graus, etc. [...]

Disto se deduz a importância que tem o “momento cultural” também na atividade prática (coletiva): todo ato histórico
não pode deixar de ser realizado pelo “homem coletivo”, isto é, pressupõe a conquista de uma unidade “cultural-social”
pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, solda-se conjuntamente na busca de um
mesmo fim, com base numa idêntica e comum concepção do mundo (geral e particular, transitoriamente operante — por
meio da emoção — ou permanente, de modo que a base intelectual esteja tão enraizada, assimilada e vivida que possa se
transformar em paixão). Já que assim ocorre, revela-se a importância da questão lingüística geral, isto é, da conquista
coletiva de um mesmo “clima” cultural (Caderno 10, § 30).

Quando é possível dizer que existem as condições para que se possa criar e se desenvolver uma vontade coletiva
nacional-popular? [...] Por que não se teve a monarquia absoluta na Itália na época de Maquiavel? É necessário
remontar ao Império Romano (questão da língua, dos intelectuais, etc.) (Caderno 13, § 2).
Por causa da sua predisposição natural a formar “uma unidade cultural-social” ou “vontade coletiva nacional-popular” a
partir de “uma multiplicidade de vontades desagregadas”, a língua é o lugar no qual se podem ler sucessos e fracassos
de hegemonias e de processos de formação de nações-povo. Este é o tema ao qual é dedicado o último Caderno, de
título só aparentemente estranho (“Língua nacional e gramática”), e que, no entanto, deve ser lido por aquilo que é: uma
pequena e densa investigação sobre os processos de formação e as condições de sucesso das hegemonias capazes de
unificar e agregar organismos complexos, tais como as nações-povo. Algumas passagens do Caderno 29 são
conhecidíssimas dos lingüistas italianos. Propomo-las à atenção dos leitores não lingüistas. Mas todo o Caderno deve
ser lido como núcleo central da teoria gramsciana do poder:

Poder-se-ia esboçar um quadro da “gramática normativa” que opera espontaneamente em toda sociedade determinada,
na medida em que esta tende a unificar-se seja como território, seja como cultura, isto é, na medida em que existe nesta
sociedade uma camada dirigente cuja função é reconhecida e seguida.

O número das “gramáticas espontâneas ou imanentes” é incalculável e, teoricamente, pode-se dizer que cada pessoa tem
sua própria gramática. Todavia, ao lado desta “desagregação” de fato, devem-se sublinhar os movimentos unificadores,
de maior ou menor amplitude, seja como área territorial, seja como “volume lingüístico”. As “gramáticas normativas”
escritas tendem a abarcar todo um território nacional e todo o “volume lingüístico”, a fim de criar um conformismo
lingüístico nacional unitário, o qual, de resto, põe num plano mais elevado o “individualismo” expressivo, já que cria
um esqueleto mais robusto e homogêneo para o organismo lingüístico nacional, do qual cada indivíduo é o reflexo e o
intérprete (Caderno 29, § 3).

Sempre que aflora, de um modo ou de outro, a questão da língua, isto significa que uma série de outros problemas está
se impondo: a formação e a ampliação da classe dirigente, a necessidade de estabelecer relações mais íntimas e seguras
entre os grupos dirigentes e a massa popular-nacional, isto é, de reorganizar a hegemonia cultural (Caderno 29, § 5).

O fracasso do Risorgimento e a incapacidade demonstrada pela burguesia italiana oitocentista de exercer a hegemonia
(direção cultural difusa) sobre toda a nação-povo são processos históricos isomórficos em relação ao caráter não popular
da língua italiana, à vitalidade das culturas folclóricas e dos dialetos. E como se lê numa das muitas páginas em que se
trata o tema: “Também a questão da língua, proposta por Manzoni, reflete o problema da unidade intelectual e moral da
nação e do Estado, buscado na unidade da língua” (Caderno 21, § 19).

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Franco Lo Piparo é professor de Filosofia da Linguagem da Universidade de Palermo. Este texto foi originalmente
publicado em Filosofia, lingua, politica. Saggi sulla tradizione linguistica italiana (Roma: Bonnano, 2004), com o
título de “Raízes lingüísticas do não-marxismo de Gramsci”. Traduzido para o português, sem finalidades comerciais,
por Josimar Teixeira.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

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