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Quarta-feira

A garrafinha

O grande alerta sobre a frágil condição humana não está nos satélites artificiais que circundam o planeta.
Nem só no sabichão Doutor Google, que nos conta do passado e do presente. As extravagâncias da
modernidade nos chegam em velhos hábitos, como a garrafa lançada ao mar na costa africana em fevereiro
de 2013 e encontrada dias atrás na praia do Cassino, em Rio Grande.

Durante cinco anos, nela se ocultou a inquietação do viver e uma declaração de amor do jovem alemão
Martin. Quando os gaúchos Camila e Renan a encontraram, tudo na garrafa seguia intacto. As tempestades
e a intermitência de sol e mar nada alteraram das cartas em alemão e inglês. Só o amor de Martin não era
mais o do bilhete que cruzou o oceano, dirigido à namorada de 2013.

A alma de Martin havia mudado, não a garrafa. Aí está o alerta maior, que amedronta e faz indagar: em
que oceanos andarão as ondas radioativas das explosões do tsunami de março de 2011, que derreteram
os reatores da usina nuclear de Fukushima, à beira-mar no Japão?

A radioatividade jamais se apaga. Dura milhões de anos e se propaga rápido em águas, terra ou ar, sem
que se veja ou se sinta, sem odor, volume ou cor. Não ocupa espaço. Age como constante assassino
sorrateiro. Mata aos poucos, sem que se perceba.

Há sete anos se mistura às ondas do mar. Aqui, entra por Santa Vitória e Cassino, ao sul, ou por Capão
e Torres, ao norte, refrescando o verão?

A alma de Martin havia mudado, não a garrafa. Aí está o alerta maior, que amedronta e faz indagar: em
que oceanos andarão as ondas radioativas das explosões do tsunami de março de 2011, que derreteram
os reatores da usina nuclear de Fukushima, à beira-mar no Japão?

A radioatividade jamais se apaga. Dura milhões de anos e se propaga rápido em águas, terra ou ar, sem
que se veja ou se sinta, sem odor, volume ou cor. Não ocupa espaço. Age como constante assassino
sorrateiro. Mata aos poucos, sem que se perceba.

Há sete anos se mistura às ondas do mar. Aqui, entra por Santa Vitória e Cassino, ao sul, ou por Capão
e Torres, ao norte, refrescando o verão?

***

No caudal de morte e violência das gangues do narcotráfico no Rio de Janeiro, faltou uma garrafinha que
chegasse a Copacabana, alertando para o que as autoridades e a população não viram durante anos.
Reprovavam a barbárie sem agir.

Agora, "in extremis", o governo estadual (herdeiro do assalto gigantesco perpetrado pelo ex-governador
Sérgio Cabral e sua quadrilha do PMDB) apelou a Brasília e Temer fez o Exército intervir. Nunca um governo
ou sociedade havia confessado a própria falência. Nem um presidente usara o caos para maquiar a inércia.

A intervenção dá sensação de segurança, mas só paralisa o crime sem cortar a raiz da organização
criminosa. Tudo é violento nas periferias urbanas. A escola saiu da sala de aula e se aninha no crack e na
falsa música de berros e pornografia. Ou nos grotescos programas, filmes ou propaganda da TV. Ou em
falsas igrejas vendendo milagres. Tudo educa para o horror.

Sem garrafas chegando à praia, vigiam só as consequências do crime, não as causas ou o lugar de
nascença.

Quinta-feira

Nós os equilibristas

O que eu imaginava ser a maravilhosa liberdade de ser adulto revelou-se uma série de escolhas

Quem nunca tentou ou ficou mesmo se equilibrando em cima de um muro estreito, e alto, ou até num arame
emocional, mental, econômico ou físico? Dificilmente, alguém escapou disso, ainda que em curto período
da vida, um momento que fosse.
Quando menina, na minha amada escola (o Colégio Mauá, em Santa Cruz), os exercícios físicos na hora
da então chamada ginástica eram, às vezes, arriscados. Caminhar sobre uma trave, eventualmente
colocada beeeem alto, por exemplo, era quase impossível para quem, como eu, sem ninguém saber, tinha
nascido com um problema que lhe dificultava um equilíbrio mais preciso.

Eu treinava em casa, no pátio, nas beiradinhas de alguns canteiros do jardim ou da horta, muretinhas muito
baixas, que me deixavam mais confiante, mas não mais bem-sucedida. Mais tarde, eu aprenderia que na
vida também andamos em círculos, ou às tontas, ou afundando, ou voando, ou, mais vezes, precisando
achar equilíbrio: amo ou detesto? Cumpro ou desobedeço (minha opção preferida quando jovenzinha)?
Finjo por cortesia ou sou realista? Sigo meu sonho e fico olhando as nuvens deitada na grama ou vou para
o quarto fazer o tema? Obedeço à mãe e apago a luz do abajur ou boto um casaco diante da fresta da porta
e fico com meus amigos livros até o sono de verdade vencer... quando já se escutavam na rua os cascos
dos cavalos da carrocinha do verdureiro, do leiteiro, ou, mais cedo ainda, o incrivelmente consolador canto
dos primeiros galos – e eu seguia, mentalmente, os lugares de onde um chamava, outro respondia, mais
outro...

Tenho pensado nessas opções, que se tornariam muito mais graves e difíceis com o correr do tempo: o
que eu imaginava ser a maravilhosa liberdade de ser adulto revelou-se uma série de escolhas, crescer era
assumir mais responsabilidades. Mais ou menos me adaptei, e aos trancos e barrancos vim até onde estou
hoje, filhos criados, netos amados, nascimentos felizes e mortes difíceis, mais livros escritos do que seria
aconselhável, algumas telas pintadas, viagens, experiências, amizades maravilhosas, decepções agudas,
calmarias fugazes, enfim, tudo o que cabe numa vida humana.

E quando reviso na memória ainda muito eficiente alguns momentos desse percurso, vejo quantas vezes
precisei, com ou sem sucesso, andar em cima daquela trave dos tempos de escola, ou até de um espantoso
arame emocional, daqueles de circo sem rede embaixo.

Muitas vezes, fracassei: em algumas, consegui. E hoje, nestes dias todos, nós, o país inteiro, seja de que
lado for – se é que ainda sobrevivem esses conceitos maniqueístas bastante burros (na minha opinião de
mera ficcionista) –, estamos numa altíssima mureta, quase um arame ou cabo: um pouco de sensatez vai
fazer bem. Bastante humildade, idem. Algum realismo, melhor ainda. Desejo de paz, acima de tudo, para
que se possa começar a construir, em vez de querer escapar para outras terras onde sempre seremos
estrangeiros.

Meu amor pela minha pátria perdurou e cresceu desde quando, menina do interior, eu me emocionava às
lágrimas nos feriados cívicos, cantando o Hino Nacional, cheia de confiança e fé: salve lindo pendão da
esperança.

Sexta-feira

Assédio, que cansaço

Um raivoso movimento de mulheres brandindo dedos, braços, documentos e acusações afirma que os homens,
em princípio, não prestam
Periodicamente, surgem os temas do momento, da moda ou da neura, as obsessões ou as catarses. Às vezes,
movimentos mais do que justos.
Nestas semanas, fala-se obsessivamente de assédio: aqui, na Europa, nos Estados Unidos sobretudo, numa
erupção vulcânica, às vezes cheirando a enxofre, de acusações justas, invenções cruéis, atitudes ridículas.
Moralismo é farisaísmo e hipocrisia numa bela mistura. Prefiro falar em decência natural, e respeito óbvio.
Na Inglaterra, a senhora jornalista de meia-idade de repente lembra: "O ministro tal botou a mão no meu joelho há
trinta anos". Vai a público, denuncia. Imediatamente, o ministro, importantíssimo aliás, declara que, sim, vagamente
recorda, é culpado, e... se demite. Nos Estados Unidos, mais fanáticos nesses assuntos, um já idoso figurão do
cinema e da televisão é acusado por uma das candidatas a emprego, que aceitou entrar com ele no quarto de
hotel, e ficou revoltadíssima quando a digna figura lhe exigiu carinhos em troca de aumento ou emprego, ou seja
o que for. Somos mesmo tão ingênuas assim, neste mundo, nesse meio? Não duvido da veracidade de muitas
dessas acusações. Nem todas: dificilmente, uma mocinha linda imagina que encontrar-se a sós com um possível
chefe – nesse meio – seja um piquenique com Coca-Cola zero e sanduíche de atum. O que, evidentemente, não
justifica a suinice do troglodita.
No caso, o big boss era um suíno rematado, parece que dezenas, centenas de mocinhas tinham passado por isso,
mas só então, numa abertura de comportas da memória, aos magotes, o crivaram de acusações parecidas. Coisas
de cinco, dez, vinte anos atrás. Ninguém tinha presenciado, mas era tudo verdade. Pelo jeito, ele merecia tudo
isso e mais.
Num instante, uma quantidade surpreendente de figuras conhecidas na política ou no entretenimento,
celebridades em geral, foi objeto de acusações de assédio. Isso sem termos ainda definido bem o que seja
assédio: grosseria, ofensa, forçação de barra, estupro? Lembrem que mão no joelho ainda não é considerado,
que eu saiba, estupro. Logo, logo, será.
Um raivoso movimento de mulheres brandindo dedos, braços, documentos e acusações afirma que os homens,
em princípio, não prestam. Então, nada mais de paqueras, elogios, beijinho na face na hora do encontro, gentilezas
no jantar, elogio simpático no elevador. Nada de nada. Psiquiatra só pode atender as pacientes com um guarda
ao lado. Não há mais falas às vezes difíceis, talvez doloridas, entre médico e paciente no consultório dele, antes
ou depois dos exames. Nada de confiança. Professor ou professora a sós com criança ou adolescente, nem
pensar. Portas abertas, e olhe lá. E os tios? Os primos crescidos? O dentista, imagine só?
Enfim, tudo isso mistura o trágico, o real, e o idiota: não confiamos em mais ninguém, esquecendo que assédio
real não ocorre só contra meninas ou mocinhas, mas meninos e rapazes. Quem sabe adultos, belos, em cujo
pescoço suspeitas virgens se atiram?
Não me crucifiquem, não interpretem mal, aliás nem me interpretem: sou contra qualquer violência, física ou verbal,
e não só de homens contra mulheres. Também sou contra mal-entendidos irresponsáveis que podem ter
consequências graves. Tenho medo de movimentos nem sempre lúcidos e limpos, reivindicando aos berros uma
reforma vaga ou absurda, exigindo um acusado, um tribunal, ou, como disse Oprah, vendo com entusiasmo "uma
luz surgindo no horizonte". Todo mundo alerta: a desconfiança se espalha feito chikungunya ou dengue.

Sábado

Medo e preconceito
Um dos remédios para essa ferida social talvez consista em sermos mais educados, mais amorosos, mais
humildes e muito mais informados
O preconceito tem raiz no medo. Não – ou nem sempre – um receio explícito, mas alguma inquietação – o medo
do diferente. Acredito muito nessa carga genética, psíquica, ancestral: qualquer animal diferente podia ser o
predador, então a gente arrepiava os pelos, curvava o lombo, botava pra trás as orelhas e, qualquer coisa, atacava
ou se defendia. Isso no tempo da Pedra Lascada.
No mundo atual, em que ser magro é ideal inalcançável da maioria, os gordinhos são objeto de apelidos, gracinhas
sem graça, às vezes ofensas. Aos poucos, parece que as mulheres começam a se libertar, não sendo felizes com
200 quilos mortais, mas aceitando-se e gostando de si (portanto, sendo gostadas) estando acima do "ideal".
Claro que aqui escreve uma não ideal. Quando pré-adolescente, antes da interminável série de dietas ou
reeducações alimentares, fui chamada de gorda, e de baleia. Em grupos de meninos e meninas "brasileiros", como
se consideravam, eu e vários de sobrenomes alemães éramos brindados com "alemão batata/come queijo com
barata", o que certa vez, ainda criança, me arrancou lágrimas por não conseguir explicar que, primeiro, eu era
brasileira há várias gerações e, segundo, não comíamos baratas em casa. Xingamentos como "nazista" não eram
incomuns na hora de uma briga, não importava se meu pai tinha ajudado inúmeros refugiados judeus a serem
acolhidos e respeitados em nossa cidade.
Já escrevi que tenho na minha família gente de sangue negro, pessoas muito próximas e queridas, e disso falei
há alguns anos num seminário sobre "multiculturalidade" em Berlim, quando fui interpelada por alguém da plateia
(todos respeitados sociólogos, antropólogos etc) dizendo que eu não podia falar, pois afinal era "uma europeia".
Expus minha realidade brasileira e acho que pensaram que eu estava mentindo. Para "me fazer de interessante",
diria minha mãe.
O preconceito difundido não atinge só os gordos, os negros, talvez árabes e libaneses chamados "turcos" como
se isso não fosse honroso, os muito altos e baixinhos, mas também os menos inteligentes ou hábeis, com alguma
lesão mental ou física. Entra em cena aí a (inconsciente?) crueldade de crianças e adolescentes, que não medem
o quanto é funda a dor que causam.
Inclusão, por outro lado, é difícil de realizar. Criança autista ou Down em classes de "normais"? Fácil, difícil,
complicado e para quem? Não há receita, mas a própria criança pode sofrer. Conheci uma mãe que, contrariando
a própria família, passou sua filhinha Down, já adolescente, de uma escola "normal" para uma especial: a menina
floresceu, ficou feliz onde ninguém a tratava como diferente nem dela esperava o impossível, o difícil demais. Cada
ser humano é especialíssimo, também nas questões de gênero, em que gays, lésbicas e transgêneros ainda
sofrem, aqui e no mundo, de uma abordagem obtusa, ignorante e cruel.
O avesso disso é o protecionismo: não podermos chamar alguém segundo sua origem ou raça estimula o
preconceito, e é humilhante: exagero de eufemismos aumenta a exclusão. Um dos remédios para essa ferida
social talvez consista em sermos mais educados, mais amorosos, mais humildes e – por favor – muito mais
informados.

Domingo

Direitos de todos, e todas


O mundo precisa remover essa nódoa medieval e grosseira da nossa cultura, que ainda atinge tantas mulheres
Já inventaram – inventam demais sobre a gente – que escrevo sobre mulheres, que falo para as mulheres... Só
ainda não vi dizerem que escrevo como mulher. Mas há muitos anos, querendo me elogiar, um crítico de renome
escreveu que, "embora sendo mulher, Lya Luft escreve com mão de homem". Naquela época, ainda ficava
aborrecida por um dia ou dois com essas eventuais bizarrices. Hoje, nem cinco minutos. (Nem tudo piora com o
tempo...). Afinal, o que seria escrever com mão de homem? A alternativa seria: ou com coração de mulher? Um
mais grosseiro, outra mais delicada? Um mais lógico, outra em devaneios? Um sobre temas importantes, outra
sobre amenidades? Assisti a palestras e seminários sobre o tema, aqui e em outros lugares do mundo, e não vi
chegarem a nenhuma conclusão razoável.
Mas, nessa gangorra natural nas coisas da moda, umas sérias, outras fúteis, a questão (grave) da mulher retorna
sempre. Devo dizer – concordando com o que escreveu outro dia uma amiga – que em minha casa, talvez sendo
meu pai um intelectual liberal, nunca senti minha mãe inferiorizada, ignorada, ao contrário: ali havia respeito e
parceria. Nem eu, na escola, na universidade ou na profissão, me senti submetida a algum patriarca. Talvez eu
fosse demais distraída, ou simplesmente o fantasma saiba a quem aparece. Nunca trabalhei como funcionária de
uma empresa: por estes dias, diante da minha curiosidade meio incrédula, dois amigos empresários me afirmaram
que, sim, no início da carreira, muitas vezes a mulher ganha menos do que o homem, mas depois, "conforme
mostra suas qualidades, ela ganha o mesmo".
Quase não acreditei: ah, então, quando a inferior mostra serviço, ganha o mesmo que o mancebo, que, segundo
essa afirmação, não passa por essa fase de experiência? Que mundo absurdo, atrasado. Que mentalidade
diminuta. Que heroínas temos de ser nós, mulheres, se a sociedade do trabalho ainda pensa assim. Para não falar
das grosserias eventuais com colegas, com amigas, com namoradas, com familiares, que se permitem isso, alguns
trogloditas se achando o máximo. Apoio as atrizes que apareceram com camisetas iguais "Mexeu com uma,
mexeu com todas" após incidente infeliz recentemente, numa grande empresa de comunicação, e apoiadas por
ela.
Há muito pelo que lutar, porque às vezes aparecem manifestações patéticas de quem se diz "feminista": "sou
gostosa, tenho a boca vermelha, uso biquíni, mas sou capaz". Tenho de ser gostosa? Usar batom cereja ou
morango... ou não serei feminina?
O tema é sério e complexo, apesar das bizarrices e folclores que eventualmente se constroem em torno dele: o
mundo precisa remover essa nódoa medieval e grosseira da nossa cultura, que ainda atinge tantas mulheres.
Para que o bom combate possa se concentrar em dignidade e oportunidades para todos: velhos, crianças,
homens, mulheres, de todas as etnias, orientações sexuais e classes sociais.
Com tanta coisa dramática nos convocando em tantos lugares e com tantas pessoas, violências indizíveis e brutais
injustiças, ainda teremos que exigir e provar que, mesmo sendo "diferentes", nós, mulheres, deficientes, negros,
brancos, amarelos, gays ou outros, temos direito igual a manifestação, crescimento, oportunidade, realização e,
sim, felicidade?

Segunda-feira

Educação e utopia
Nada justifica que não se coloque a educação em primeiro lugar em qualquer orçamento
Já escrevi, e repito, que sou de uma família de professores: meu pai, o pai dos filhos, agora um filho, eu mesma
ex-professora de linguística, até descobrir que aquela não era minha vocação. Me dava alegria o contato com os
alunos, me fazia sofrer toda sorte de regras, por mais justas que fossem. O tema educação me é muito próximo,
muito querido, é mesmo fundamental, e começa com aquela educação em casa, onde as crianças aprendem
limites e possibilidades, voos e raízes, compostura, gentileza, firmeza, discernimento – mesmo os menorzinhos.
Aprendem por osmose (sem diálogos solenes) questões de respeito e afeto. Quando forem à escola, não serão
os pequenos selvagens que os pais entregam para que os mestres os transformem em civilizados.
O professor deveria ser, na pirâmide geral, um dos funcionários mais bem pagos, porque dele dependem futuro,
postura, preparo, eficiência e humanidade de jovens e crianças – e, não é metáfora, do país. O mestre deveria ter
excelentes condições de trabalho, para continuar a se preparar, para acompanhar os alunos, dialogar, escutar,
reconhecer como pessoas, não importa se têm quatro ou dezoito anos. (E para que nos intervalos professoras
não tenham de vender docinhos ou lingerie às colegas, e os professores fora do horário na escola não tenham de
fazer bicos a fim de dar de comer aos filhos.)
Acredito, de maneira quase feroz, na necessidade de despertar, não só entre os responsáveis mas no povo em
geral, a noção clara de que na educação devemos buscar excelência, o que não tem a ver com elitismo – todos
temos direito ao melhor, que não significa dinheiro. Que a escola possa dar o melhor ambiente (basta que seja
decente, sem ser um palácio), com os melhores professores, para que os alunos possam também descobrir, e
cultivar, o melhor de si. Não é justo achar genial que se deve aprender brincando – não falo em criancinhas de
maternal –, reproduzindo o hábito de muitas famílias em que não se pode dizer não ou dar um leve castigo (uma
hora sem tablet já assusta) porque a criança, o adolescente, ficaria traumatizado. E assim os tratamos como
pequenos ou grandes imbecis. Fazemos muita cerimônia com esse assunto: numa palestra, um professor me
perguntou que motivo dar aos alunos para que estudassem. Minha resposta foi totalmente espontânea: "Para que
não fiquem burros". Risada geral, aplausos, e até eu fiquei refletindo nisso: deixar de ser ignorante é, mais do que
um dever, um direito de todos.
E não me digam que os governos estão falidos. Talvez estejam falidos o ânimo e a vontade geral, começando
pelas autoridades, contagiando famílias, os próprios jovens e – por que não? – as crianças. Nada justifica que,
mesmo empobrecidos e assustados, iludidos por cada vez mais novos projetos e comissões palavrosos e
ineficazes, não se coloque a educação em primeiro lugar em qualquer orçamento. Gente preparada vai colaborar
nas condições de vida, saúde, economia, na melhoria da existência de indivíduos, no progresso geral, e na
administração decente da tão maltratada coisa pública.
De modo que, se consertarmos um pouco que seja nossas nada brilhantes cabeças, talvez a educação deixe de
ser uma utopia.
Terça-feira

O humano e o desumano
O que fizeram e estão fazendo conosco, enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto humanidade, enquanto
habitantes deste pobre país?
Não, eu não costumo sofrer do chamado "bloqueio de escritor". Exceto num período muito sombrio da minha vida,
em que fiquei alguns anos sem escrever, só traduzindo, em geral a página em branco, ou melhor, a tela, é minha
amiga. Talvez porque eu também não a aborreça demais. Se nada tenho a dizer, nada digo. Não complico, não
sofro: o que há para escrever é meu, vem de mim, está lá dentro, e quando for hora há de aparecer. Vou ler, pintar,
ver tevê, ligar para uma amiga. Fazer alongamentos no terraço.
De repente me dou conta de que tenho esta coluna por escrever: já? De novo? Sim, o tempo corre, tempus fugit,
diziam os antigos. E eu, que gosto de escrever e tanto me divirto com isso, por que tardei? Acho que ando sem
palavras diante do que acontece no mundo. Nestes dias, especificamente, aqui no meu país.
A chacina de Manaus em que se jogaram pedaços de corpos, e cabeças, sobre os muros de uma prisão, causando
horror no país e uma torrente de discursos, promessas, projetos de parte das autoridades (não acredito em quase
nada), nesta sexta foi acrescida pela chacina de Roraima: quase quarenta presos assassinados da mesma forma,
decapitados, esquartejados, e um detalhe a mais: pelo menos três tiveram o coração arrancado. Sim, arrancado.
Jogaram fora? Lançaram com um chute por cima do muro? Vão fazer um assadinho e devorar?
Não me espantaria. Pois eu, velha leitora de romances criminais e fã de Criminal Minds e outras séries, demorei a
engolir esta grande pedra ainda por ser moída no meu coração e no estômago: ali, em Manaus e Roraima, não
foram tenebrosos assassinos em série que cometeram os pavorosos crimes, nojentos. Foram pessoas. Foram
colegas de prisão. Foram vários homens, bandos de homens, que têm pai, filho, namorada, irmão. Foram seres
humanos, essas são coisas humanas?
Aqui mesmo nesta cidade minha, tão amada, que adotei e me adotou há tantas décadas, está quase normal
encontrar cabeças num bairro e corpos em outro. Se assalta, se mata, quase naturalmente. Outro dia, tiroteio aqui
do outro lado da rua. Muita coisa acontece em shoppings e restaurantes que não é noticiada: não podemos
provocar pânico, e assim autoridades do país dizem que chacinas são acidente, ninguém se responsabiliza, há
muito tempo se subestimam o poder do tráfico, a desordem generalizada, a falta de pulso firme, as fronteiras
abandonadas, a grosseira irresponsabilidade geral.
Eu devia escrever aqui, como me pediram e eu prefiro, sobre coisas humanas. Então escrevo de família, encontros
e desencontros, faço lá minhas filosofias pessoais. Mas hoje, de verdade, tenho de falar, bradar, gritar, escrever
aos quatro ventos: o que fizeram e estão fazendo conosco, enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto
humanidade, enquanto habitantes deste pobre país? Depois da derrocada econômica causada pela
irresponsabilidade e roubalheira geral, que tanto nos empobreceram, agora a derrocada moral, nós correndo pelas
ruas, escondidos atrás de nossas cercas, com medo de abrir a porta, o jornal e a televisão, porque a sensação de
apocalipse se avoluma como essas nuvens de tempestade em cada fim de tarde.
Sinto muito: hoje escrevo sobre coisas desumanas. E que Deus nos ajude.

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