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justo e injusto

Jorge Barbosa

Devemos, então,
conceber o justo
conforme à lei, ou
conceber a lei con-
forme ao justo?

uma noção de justo


e de injusto, base-
ada em convenções,
só poderá valer o
que valham essas
mesmas conven-
ções.

O justo, se existe,
é sem dúvida mais
universal e mais
constante do que o
útil.

A Justiça Será Uma Convenção?

Quando Antígona1 comparece diante de Creonte, seu tio recém-nomeado governante de


Tebas, nem lhe passa pela cabeça negar os factos de que é acusada. Ela reconhece
mesmo encontrar-se fora da lei, tendo em conta as regras estabelecidas na Cidade. Em
contrapartida, nega convictamente que seja moralmente culpada e reivindica insistente-
mente a legitimidade da sua acção, colocando-se, assim, acima da lei dos homens.
Creonte, por seu turno, julgando Antígona culpada e condenando-a à morte, identifica
implicitamente os seus próprios decretos com a norma acerca do justo e do injusto, e a

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Depois de ter acompanhado o pai, Édipo, no exílio até à sua morte, Antígona regressa a Tebas, onde os seus dois irmão lutavam pelo
trono. Como a guerra, chamada do “sete contra Tebas” não deu em nada, os dois irmãos decidem disputar o trono em combate singular.
Morrem ambos nesse combate, e Creonte, tio deles, herda o trono. Sepultou, então, com todas as honras um dos irmãos, Etéocles, e
deixou o outro, Polinice, no sítio onde caiu morto, proibindo que quem quer que fosse o enterrasse. Antígona, indignada, tenta conven-
cer o novo rei a enterrá-lo, pois, quem morresse sem os rituais fúnebres, seria condenado a vagar cem anos nas margens do rio que
levava ao mundo dos mortos, sem poder ir para o outro lado. Como o rei, seu tio, não lhe fez a vontade, Antígona enterrou Polinice
com as próprias mãos e foi presa enquanto o fazia. Creonte mandou que ela fosse enterrada viva.

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sua autoridade de tirano como o próprio fundamento do direito. Ora, serão o justo e o
injusto simples convenções? Ou será que Antígona tem razão ao invocar, como ela o
faz, “leis não escritas, essas, mais intangíveis” que não seriam “nem de hoje, nem de on-
tem, mas em vigor desde a origem e que ninguém terá visto nascer”?
O problema não é, evidentemente, só o de saber se, de facto (isto é: na realidade soci-
al, política, histórica), o justo e o injusto só podem ser definidos e distinguidos por con-
venção, como uma simples questão de facto. O problema é sobretudo o de saber se eles
podem e devem ser o que são por direito, isto é, por essência ou por princípio. Esta
questão de direito ou de princípio é, no fundo, a única que interessa aqui, a única que é
filosoficamente pertinente Com efeito, em qualquer caso, uma noção de justo e de injus-
to, baseada em convenções, só poderá valer o que valham essas mesmas convenções.
Devemos, então, conceber o justo conforme à lei, ou conceber a lei conforme ao justo?
Que valor poderia ter a lei se se reduzisse a uma simples convenção? Só haverá leis po-
sitivas? O justo e o injusto não passarão de valores “institucionalizados”?
Este tipo de questões confronta-nos com o que parece ser um dilema. Será que podemos,
a propósito do justo e do injusto, falar de convenções, de instituições, de valores sim-
plesmente estabelecidos pelos homens, sem cair no arbitrário e no relativismo? Mas será
que, pelo contrário, podemos falar de “leis não escritas”, como faz Antígona, sem ter de
recorrer a uma religião, isto é, a uma fé irracional; ou então a um saber racional, filosó-
fico, mas de essência metafísica, com tudo o que isso comporta de incerto e de arrisca-
do, problemático e até mesmo quimérico?
Não será, então, o justo simplesmente um valor “instituído”? Que devemos pensar a res-
peito das convenções compreendidas como usos e costumes, como instituições? Justo se-
ria, então, o que é considerado justo e recebido como tal no seio das sociedades; seria
injusto o que é proibido pela lei dos homens (pela lei positiva) ou o que transgride as
regras. Quais são as consequências de uma posição como esta? A resposta é clara e
imediata. Esta concepção convencionalista, portanto relativista, do justo e do injusto
constitui um duplo problemas para a razão:
1. Por um lado, é moralmente ilegítima;
2. Por outro lado, é um absurdo lógico.
Vejamos, em primeiro lugar, em que consiste essa ausência radical de legitimidade. O
reino dos costumes é o reino do arbitrário e da contingência, em que a norma do direito
é simplesmente retirada dos factos, isto é, das tradições e dos costumes em vigor. Seria
um reino, onde a lei, desprovida de toda a necessidade intrínseca ou mesmo extrínseca,
segue futilmente “as fantasias e os caprichos de Persas e Alemães”, como diz Pascal.
Universalmente diverso e sempre inconstante, o direito positivo tem “as suas épocas”. O
aborto já foi considerado um crime punido com a pena de morte; actualmente a pena de
morte foi abolida num grande número de países e o aborto legalizado. O direito positi-
vo tem, portanto, a sua história - e também a sua geografia: um nada, um meridiano, um
curso de água, uma fronteira desenhada no mapa bastam para limitar a autoridade da

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lei, alterando, por isso, a concepção de justo e de injusto. “Engraçada justiça limitada
por um rio! Verdade para cá dos Pirinéus; erro para lá”, ironizou Pascal2.
As convenções humanas têm, seguramente, uma origem, fontes múltiplas e até incomen-
suráveis, mas não têm nenhum fundamento verdadeiro. Ou melhor: não têm nenhum
fundamento para além delas mesmas e da sua própria duração no tempo que, pouco a
pouco, as confirma e consagra. É o tempo que lhes confere a respeitabilidade de uma
tradição ancestral. Sem o tempo, as convenções não seriam mais do que uma moda pas-
sageira… Se não tivermos algum cuidado, legalidade passaria a rimar com frivolidade.
Mas esta relatividade rima também com absurdo, absurdo lógico: a inconstância, a con-
tingência, o arbitrário, fontes de ilegitimidade, são também princípios de confusão lógi-
ca, de auto-contradição. Com efeito, o justo por convenção é basicamente paradoxal -
como uma contradição nos termos. Na verdade, conceber o justo como pura convenção
é confessar o seu carácter “factício” ou fictício, e, por essa via, negá-lo como justo. Os
particularismos culturais, os “idiotismos” jurídicos e morais não só se justapõem, também
se opõem, contariam, combatem e neutralizam. A sua contradição é tão possível quanto
real, actual, efectiva e também multiforme, variada, e tão infinitamente diversa quanto o
panorama geral dos usos e costumes humanos.
Afirmar que o justo e o injusto são simples convenções é o mesmo que dizer que o Justo
não é um valor, mas um facto; ou este valor é uma ilusão, quimera pura ou pura ficção,
ou então a distinção entre justo e injusto é, no fundo, impossível, não nos sendo possível
julgar em função deles. Por esta via, chegamos ao cinismo moral ou ao niilismo.
Será que poderíamos dar a este valor “instituído”, que mais parece um pseudo-valor, al-
guma racionalidade - fazendo-o portanto menos arbitrário e mais legítimo - se o baseás-
semos numa convenção útil, assimilando o justo ao útil e o injusto ao prejudicial? Descar-
temos, desde já, a ideia de que o útil possa ser puramente subjectivo, pessoal, individu-
al, isto é, que se identifique com o objecto de um interesse particular, o que o identifica-
ria com o desejável, e, deste modo, de novo com o irracional, tão contingente como um
erro ou um capricho, ou como o “que nos dá prazer”, princípio que motivava os éditos
dos monarcas absolutos. Neste caso, o justo útil mereceria exactamente as mesmas críti-
cas que foram feitas ao justo convencionado, a partir dos costumes.
Poderíamos, no entanto, pensar que seria possível tornar as convenções úteis mais racio-
nais, e portanto mais legítimas, baseando-as em contratos (outra forma de dizer conven-
ção) visando o interesse comum dos contratantes. Hipótese sedutora, esta, mas não to-
talmente convincente. Pois reduzir o justo ao útil, seja ele comum, seria, por um lado re-
lativizá-lo segundo os interesses próprios das comunidades ou dos Estados particulares -
isto é, seria negar a sua universalidade. Por este andar, uma sociedade de assassinos
poderia construir uma noção própria de justo e de injusto. Por outro lado, estaríamos a
validar o sacrifício dos direitos do indivíduo aos interesses do grupo. Seria uma apologia

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Numa das suas numerosas facetas, a de teólogo e escritor, Pascal pode ser considerado um mestre tanto do racionalismo como do
irracionalismo modernos, e a sua obra, neste domínio, influenciou os ingleses Charles e John Wesley, fundadores da Igreja Cristã Me-
todista.

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da “Razão do Estado”. Como disse Alain, a moral social seria o conjunto “das más ac-
ções que a Saúde Pública ou a Razão de Estado nos pode mandar cumprir.”
Ora, precisamente é esta a razão - o bem de Tebas - invocada por Creonte para tomar a
grave e penosa decisão de condenar Antígona à morte.
O utilitarismo jurídico não parece mais satisfatório do que o positivismo jurídico, pois de-
semboca na mesma inevitável consequência: o relativismo dos valores. O justo, se existe,
é sem dúvida mais universal e mais constante do que o útil. Para além do mais, legalida-
de nem sempre rima com legitimidade: alguns regimes institucionais, na realidade, não
são mais do que desordens institucionalmente estabelecidas. Ora, se há leis positivas que
podem ser legitimamente denunciadas como injustas, esta possibilidade moral carece de
melhor fundamento. Daí a busca incessante de um princípio universal e constante, de
uma norma intangível e absoluta.
Há quem conceba o Justo como um universal objectivo e transcendente, isto é, transcen-
dente à Cidade. Mas será que podemos fundamentar a distinção do justo e do injusto
numa ordem de valores pré-existente à Cidade, anterior e superior à vontade e às insti-
tuições dos homens?
São possíveis duas hipóteses: Um tal fundamento pode ser (1) de ordem natural ou (2)
de ordem sobrenatural - uma fundamentação a partir da natureza ou uma fundamenta-
ção divina. Por outras palavras, se existem leis “não escritas”, elas ou são leis divinas
(mandamentos religiosos, sobrenaturais como pensa Antígona) ou são leis naturais (prin-
cípios de ordem cósmica objectiva e substancial).
Examinemos em primeiro lugar a tese de um fundamento teológico da distinção do justo
e do injusto, a ideia de uma legislação divina. Descartemos também qualquer hipótese
de racionalidade nesta lei divina. Se esta lei divina se submeter ao jugo da razão, con-
fundir-se-á com a lei natural, isto é, com uma lei imanente à natureza, qualquer que seja
o conceito que tenhamos desta natureza. Inversamente, admitir normas transcendentes,
divinas, sobrenaturais, renunciar à lei natural, é renunciar à razão, renunciar a compre-
ender os valores, ou, pior ainda, renunciar simplesmente a conhecê-los.
Com efeito, a fundamentação teológica da distinção do justo e do injusto confronta-nos
desde logo com duas dificuldades de grande monta, de resto, intimamente ligadas entre
si: uma relaciona-se com a dificuldade intrínseca do próprio fundamento, a outra relacio-
na-se com a “heteronomia” absoluta que instaura entre a Lei e o sujeito que lhe é subme-
tido, e, portanto, a absoluta falta de “autonomia” do sujeito submisso. Se a Justiça deri-
va de uma legislação divina e transcendente, como pode ser inteligível e acessível ao ser
humano? Não é provável que o Homem a possa conhecer sem a ocorrência de um fe-
nómeno miraculoso (e por conseguinte singular, excepcional, e, por isso, imprevisível e
irracional) de Revelação ou de Graça. Pior ainda, se Deus é o fundamento da autorida-
de da Lei, e a Fé o fundamento da autoridade de Deus aos olhos do devoto, então este
raciocínio acabará inevitavelmente num círculo vicioso. Todas as religiões reveladas se
fecham neste “círculo da Fé”: a Lei de Deus só vale, na medida em que acreditemos no
seu valor. Esta primeira dificuldade poderia ser ultrapassada, se os homens pudessem
compreender a Lei divina na necessidade moral intrínseca, no seu carácter obrigatório.

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Mas em que condições os Mandamentos divinos podem aparecer-nos como imperativos?


Só à custa, parece, de um agravamento absoluto da relação de “heteronomia”, pois a
vontade do “Altíssimo” é, antes de mais, a vontade de outro que não o sujeito. Daqui
resultaria que o homem, incapaz de entrar nos desígnios de Deus, e, mesmo assim, sujei-
to do exterior à sua Lei, é forçosamente incapaz de apreender o princípio interno da au-
toridade e da legitimidade dessa Lei.
Deste modo, o seu carácter respeitável, imperativo, obrigatório só pode ser percebido
irracionalmente como a expressão do Arbitrário divino, ou como imperativo da Vontade
suprema, isto é, como um constrangimento absoluto, suportado pela ameaça permanen-
te de um terrível castigo do Todo-Poderoso. Assim, para a piedosa Antígona, violar as
“leis não escritas” concebidas como leis divinas é, diz ela, “por um covarde respeito
pela autoridade de um homem, sujeitar-se ao rigor dos deuses”.
Vejamos o Decálogo (ou a Lei de Talião, vale o mesmo para o efeito). São leis inspira-
das por Deus, “escritas”, com certeza, mas não pelos homens, nem sequer por Moisés.
Necessariamente apoiadas na ameaça do castigo, estes Mandamentos de um “Deus
ciumento (…) que persegue o pecado dos pais nos filhos, durante três ou quatro gera-
ções”, para o crente, não são mais do que uma lista de imperativos “hipotéticos”, que se
resumem ao seguinte princípio: Se acreditas em mim, e não quiseres sofrer as minhas
fúrias, então obedece-me.
A outra alternativa seria a “lei não escrita” concebida como lei natural. O que é que isto
quer dizer? Na verdade, trata-se de uma forma de realismo, uma redução do Justo a
uma ordem imanente ao Cosmos, portanto do ideal ao real, do valor ao facto. Ora, co-
nhecer o real, mesmo que seja objectivamente, não é a mesma coisa que estar em con-
dições para o julgar. O que nos pode dizer o ser a respeito do dever-ser? O naturalismo,
compreendido à maneira de Cálicles3, é mesmo o cúmulo do cinismo e do amoralismo:
reduz-se, de facto, à lei do mais forte. Para Cálicles, as leis igualitárias não passam de
convenções arbitrárias, de artifícios contra-natura, portanto injustos e absurdos. O direito
natural, para ele, é a anomia, a ausência de lei. Se Cálicles tivesse razão, que necessi-
dade teríamos nós de raciocinar para nos justificarmos, uma vez que qualquer razão
que fosse dada seria sempre errada, a não ser que fôssemos nós próprios a deter o po-
der de decisão? Bastaria ser o que se é, isto é, deter o poder e conservá-lo para estar-
mos no nosso direito de fazer o que entendêssemos dever ser feito. Nenhuma justifica-
ção racional ou irracional seria necessária. Esta doutrina não é só imoral ou ilegítima,
ela é também uma concepção “física” - mecanicista ou fatalista - da heteronomia moral,
que confina claramente com o absurdo. Com efeito, se o justo existe naturalmente, por
conseguinte, objectivamente e por necessidade, tudo o que existe seria necessariamente
justo. A Cidade dos homens não poderia derrogar as leis do universo e, não o podendo
fazer, qualquer instituição qualquer regra, qualquer autoridade seria forçosamente legí-

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Cálicles é um personagem no diálogo platónico Górgias. A sua existência histórica é duvidosa, já que não é mencionado em outros
documentos, a não ser nesse diálogo.Trata-se de um cidadão ateniense, discípulo do sofista Górgias. No diálogo, argumenta que é natu-
ral e justo os fortes dominarem os fracos e que é injusto os fracos resistirem a tal opressão ao estabelecerem leis para limitar o poder
dos fortes. Defendia ainda que as instituições e o código moral do seu tempo não foram estabelecidos pelos deuses, mas por homens,
que lutavam pelos seus próprios interesses pessoais e particulares.

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tima, desde que existisse. Assimilando o ser ao dever-ser, e negando a liberdade, é claro
que a injustiça seria uma absoluta impossibilidade. Parece, então, que não podemos sal-
var os valores, se os reduzirmos simplesmente aos fenómenos, ou às leis que regem es-
ses fenómenos.
Resta-nos ainda a esperança de conseguir preservar esta bela ideia (muito antiga e mui-
to clássica) de conceber a Natureza como norma absoluta do Justo, e afastá-la do duplo
jugo do cinismo e do absurdo. Para isso, deveríamos ser capazes de “salvar os fenóme-
nos”, no sentido em que deveríamos ver a Natureza como um modelo de perfeição, de
ordem e beleza, cuja lei imanente e intangível prescreveria aos homens a norma a seguir
e as finalidades a perseguir nas suas acções. Em resumo, deveríamos trocar o mecani-
cismo por finalismo, e considerar já não o Real como Ideal, mas o Ideal como Real ou
realizado. No entanto, esta concepção idealista da Natureza, como ordem teleológica,
é uma forma de providencialismo sem Deus, cuja racionalidade atinge rapidamente os
seus limites. Dificilmente ela se pode desenvolver de forma autónoma, sem se prolongar
necessariamente em teologia. Não lhe será possível fundamentar o valor moral da Or-
dem universal sem cair, por seu turno, enquanto “cosmodiceia”, se me é permitido o
neologismo, nas argúcias e aporias tradicionalmente inerentes à teodiceia.
Mesmo assim, será que não podemos salvar de outro modo os valores, operando uma
superação do simples naturalismo, através do recurso a um realismo transcendente, isto
é, metafísico? Esta é a solução de Platão, que separa radicalmente o Ideal do facto sen-
sível. Mas estando a ideia de bem, isto é a ideia de bem em si, situada para além da
Natureza (e até de acordo com uma fórmula tão célebre como enigmática, “para além
da essência”), sendo esta ideia de bem metafísica, eterna e imutável, ela não deixaria
nunca de ser o princípio do Ser, isto é do Real, embora seja mais a título de causa final
do que de causa eficiente. Ela é o princípio dos princípios, o paradigma absoluto, prin-
cípio ontológico por excelência e susceptível como tal de ser objecto de conhecimento
metafísico, isto é, de ciência no sentido platónico. Assim, Sócrates podia reprovar Cáli-
cles por fazer a apologia da injustiça, pela simples razão de desprezar a geometria e,
por isso, ser incapaz de se aperceber da Ordem do Ser, ou melhor, do Ser como Or-
dem.
No entanto, é claro que a ciência, qualquer que ela seja, só se exprime no indicativo,
nunca no imperativo. O discurso da ciência é sempre descritivo, nunca prescritivo. O Ser
não é o Dever-ser. Não é garantido que o Verdadeiro seja o Bem.
Assim sendo, se é da ordem do ideal, e não do real, então a justiça “não existe”; e é
por isso que é preciso fazê-la. Como diz Alain, a justiça “pertence à ordem das coisas
que é preciso fazer, justamente porque não existem.” A justiça não é, então, algo exis-
tente que se deva aceitar; a justiça é coisa que é preciso fazer e refazer.
A distinção do justo e do injusto, se for possível, e esse direito dito “natural”, se for con-
cebível, não podem ser considerados objectivos e substanciais. É por isso que não po-
dem ter origem na ciência. Nestas condições, só nos resta procurar na própria natureza
do Homem o que nela possa existir de universal na vontade humana, evitando, em todo

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o caso, cair numa antropologia científica e objectiva, numa metafísica essencialista ou


num substancialismo religioso.
Adoptemos, então, uma definição da natureza humana tão minimalista quanto possível,
despida de qualquer preconceito metafísico ou religioso: o Homem é este animal particu-
lar capaz de construir convenções e de, bem ou mal, lhes obedecer. Esta é uma defini-
ção de humanidade como autó-noma, isto é, como legisladora, como universalmente ca-
paz de legislar e estabelecer convenções, em resumo, de se impor a si mesma (autos)
regras (nomoi), mesmo que só o consiga fazer de forma arbitrária ou irracional, por ca-
pricho ou fantasia. Devemos reconhecer que uma faculdade legisladora no homem tem
necessariamente algo a ver com o que se chamou, na sequência de Kant, uma “razão
prática”.
Que podemos, então, deduzir desta definição da humanidade como legisladora em ge-
ral? A simples consideração da faculdade legisladora da humanidade implica, parece,
consequências teóricas importantes do ponto de vista de uma filosofia universal do direi-
to. Ela permite, com efeito, definir certos princípios transcendentais - ou estruturais - de
justiça, princípios anteriores a todas as leis instituídas e até a todos os contratos funda-
dores. Portanto, uma espécie de “lei natural”, se se quiser, mas concebida como inscrita
na humanidade, como inerente à “natureza” tão paradoxal do Homem: uma lei “co-na-
tural” a um ser, cuja natureza consiste precisamente em não ter natureza, a um ser ca-
paz de se definir a si próprio, em poucas palavras, a um ser que não é determinado
nem regido pela natureza, onde, de resto, não ocupa lugar marcado.
Nestas condições, uma “lei” implicaria necessariamente:
1. O reconhecimento e portanto o respeito pela liberdade, isto é, pela capaci-
dade de autonomia presente em todos os homens;
2. O reconhecimento e portanto o respeito pela igualdade dos homens nessa
capacidade, que seria o fundamento a priori de um princípio de isonomia4.
Estes são dois princípios cardinais e estruturais daquilo a que se pode chamar “direitos
subjectivos” da pessoa, “direitos naturais do Homem” ou da “humanidade”, e que, por
si sós, bastam para refutar a tese de uma desigualdade natural (racial ou outra) entre os
homens e para destruir, por exemplo, a teoria aristotélica da escravatura fundada na
natureza.
Isto daria lugar a uma verdadeira “dedução transcendental” dos direitos universais da
humanidade, isto é, princípios a priori de um “Direito natural”, cuja presença e a activi-
dade de uma faculdade legisladora “nos seres que reconhecem (uma) lei como obriga-
tória para eles” (Kant) provam não só a possibilidade, mas também a realidade objecti-
va. Podemos ver, então, nos Direitos do Homem princípios estruturais ou transcendentais,
tão necessários quanto incontestáveis, enquanto condições universais a priori da capaci-
dade efectiva de qualquer homem fazer leis para si mesmo. Claro, o conteúdo de tais
princípios (o da isonomia, por exemplo, sem dúvida constitutivo de qualquer sociedade
democrática e, mais geralmente, de qualquer definição de Justo) ainda se mantém vago

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Equivalência das regras

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e indeterminado, a este nível da reflexão. Mas, evidentemente, estes princípios, longe de


poderem resultar simplesmente de uma convenção ou de um contrato arbitrário, consti-
tuem, pelo contrário, as condições universais de possibilidade, as condições a priori de
qualquer contrato legítimo possível - pois, em qualquer caso, um contrato válido e digno
desse nome só poderá existir entre sujeitos, à partida, reconhecidos como livres e iguais.
Chegados aqui, este é o momento receado de tirar algumas consequências da crítica ini-
cial do relativismo moral e do positivismo jurídico. Se o justo não pode reduzir-se ao le-
gal, nem o injusto ao ilegal, se há leis injustas e infracções legítimas (Antígona), então
fica claro que a noção de justiça excede necessariamente a autoridade da lei, como o
atesta, aliás, a prática do julgamento equitativo nos tribunais. E isto é assim, mesmo
quando a lei não é celerada, mesmo quando é legítima, razoável, incontestável. No en-
tanto, será sempre geral, demasiado geral, como Aristóteles bem viu, para ser adequa-
da, sem mais, à diversidade das acções e das escolhas possíveis ao Homem, enquanto
ser livre. Assim, a justiça, tal como a injustiça, está sem dúvida menos presente na lei, do
que no julgamento: é, portanto, uma qualidade aferente ao julgamento. Como pode, en-
tão, um juiz, em função de casos sempre particulares, corrigir ou ponderar a justiça legal
(justiça estritamente conforme à letra da lei), se não aceder em consciência ao espírito
da lei, a uma lei “não escrita”, a um puro ideal de justiça? É claro que o julgamento
equitativo não é a aplicação ao particular do universal previamente conhecido. O juízo
de valor que ele implica não é e não pode ser um simples juízo de reconhecimento, ao
jeito de Platão: estamos, portanto, perante um julgamento “reflexivo” no sentido kantia-
no do termo.
Ora, embora o juiz tenha de julgar por si mesmo, em consciência, a verdade é que não
julga só para si mesmo. Ele deve praticar o “pensamento alargado”, no sentido kantia-
no, isto é, mostrar-se capaz de julgar, colocando-se no lugar de qualquer outro. Deve ser
capaz de se elevar acima das condições subjectivas do julgamento (condições sociológi-
cas, psicológicas, ideológicas, etc.) e poder reflectir sobre o valor do seu próprio julga-
mento a partir de um ponto de vista universal - ponto de vista que só pode ser determi-
nado a partir do ponto de vista de outrem. Esta aptidão singular, esta qualidade subtil
ou este espírito refinado é aquilo a que se chama equidade. Superando o legislador,
substituindo-se a ele, o árbitro não pode mostrar-se arbitrário. No seu “foro íntimo”, o
juiz deve julgar para todos os homens e, portanto, também por todos os homens, na
medida em que a sua deliberação íntima deve sempre poder tomar características de
universalidade. Sublinhe-se, de passagem, que esta aptidão não tem tanto a ver com um
dom, um talento ou uma virtude excepcionais, mas mais com uma espécie de “senso co-
mum ético”, a coisa mais bem distribuída do mundo, como pressupõe em direito e o mos-
tra em facto a prática da justiça democrática, que não receia atribuir um papel importan-
te a membros de um júri popular.
“Fazer” a justiça não é só respeitá-la e fazê-la respeitada, através da aplicação de lei,
mas sobretudo concebê-la e defini-la, através do uso dos nossos meios de razoabilidade,
na ausência ou no silêncio da lei. A melhor das leis não tem outro remédio senão o de
calar-se no que diz respeito à sua concepção e definição: ela nunca fornece a regra da

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sua própria interpretação nem sequer da sua aplicação; daí a importância atribuída à
jurisprudência, concebida ela própria como fonte de direito. Face à justiça concreta,
abre-se necessariamente o abismo deste vazio jurídico. Não é possível deixar de julgar.
Compreende-se agora por que razão o Justo não é nem pode ser nada em si. De facto,
primeiro e antes de tudo o mais, ele tem de ser para nós. Situa-se sempre no horizonte
de um consenso universal possível: um consenso universal simplesmente postulado, espe-
rado ou procurado através do debate e da confrontação pública das ideias, e no qual
se poderia ser tentado a reconhecer a “fraternidade” invocada pela divisa republicana,
fraternidade não étnica mas moral, concebida de modo problemático, como um ideal
inacessível e puramente regulador.
O facto de a justiça absoluta nos ser inacessível não invalida em nada essa exigência de
universalidade de que somos portadores, exigência essa que está muito para além do
sistema jurídico positivo. Do ponto de vista da reflexão ou da prudência - a do juiz, mas
também a de todos nós - o justo enquanto valor só é universalizável, e não um universal
dado e conhecido a priori, que bastaria aplicar mecanicamente ao particular. Por este
motivo, a prudência ou o entendimento reflexivo não se reduz a uma simples faculdade
de conceber as excepções a uma regra de justiça já conhecida, determinada e instaura-
da: a prudência é a própria faculdade de julgar.
Destas premissas podem ser retiradas consequências de natureza política, nomeadamen-
te a fundamentação dos regimes democráticos.
Com efeito, a ideia de bem comum não se adequa nunca à vontade de um único ho-
mem, por muito genial que ele seja. Ora, esta ideia de bem comum, concebida como fim
supremo da Cidade, não é uma ideia dada, não é conhecida a priori antes de qualquer
reflexão ou deliberação dos cidadãos. Não está acima da Cidade terrestre como o sol
do Bem que brilha no exterior da Caverna de Platão. O Bem comum, concebido como
interesse geral, só pode ser definido por uma Vontade geral, à qual não pode ser impos-
to nem sobreposto, à qual não pode ser anterior nem superior.
Uma lei justa só pode, portanto, ser a expressão directa da Vontade geral. Dito isto, a
concepção e a definição do interesse geral pela Vontade geral não podem ser totalmen-
te factícias, nem podem ser arbitrárias. É evidente, pelo contrário, que a autonomia da
Vontade geral comporta em si mesma um princípio regulador interno, um princípio ima-
nente que, tal como uma bússola, a impede de errar no Oceano da soberania. Para ser
justa e legítima, a Vontade geral não pode afrontar valores fundamentais (dignidade
moral, liberdade, igualdade), princípios a priori que a tornam possível e a legitimam,
viabilizando e validando o “contrato originário”, “a primeira convenção” fundadora, o
pacto social que a faz nascer como princípio. O próprio Rousseau na sexta Carta da
Montanha sublinha isso com limpidez, prevenindo ao mesmo tempo a objecção de uma
eventual arbitrariedade da Vontade geral: “(…) por esta condição da liberdade, que
encerra outras, nem todos os tipos de compromissos são válidos, mesmo diante dos tri-
bunais humanos. (…) Pois não é mais permitido iludir as leis naturais através do contrato
social, do que é permitido iludir as leis positivas através dos contratos particulares; e é
só por via dessas leis que existe a liberdade que dá força ao compromisso.”

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Não é, portanto, de recear que a Vontade geral possa abrigar canibalismos, Goulags
ou outras atrocidades. De direito, a Vontade geral não pode ser aquele “ventre fecun-
do” de onde poderia nascer “a Besta imunda”; e o que podemos constatar é que nunca
o foi. Donde se segue que a Democracia, ou, se se preferir, a República só pode ser um
regime justo e legítimo, na medida em que seja aquele onde a lei - e não somente o po-
der - é permanentemente julgada.
A definição do Justo, para sujeitos dotados de razão, é uma tarefa sem fim à vista, in-
cessantemente recomeçada. A Justiça não é, portanto, objecto de uma ciência, de um
conhecimento objectivo, mas de uma preocupação permanente e de um debate sempre
aberto entre todos os homens. Talvez seja por isso que o sentimento de injustiça e a re-
volta contra a injustiça tomem a primazia face a uma concepção clara de Justo. É que o
Justo e o Injusto, na sua oposição recíproca, não parecem ser totalmente simétricos.
Mesmo que não consigamos identificar o Justo, vemos bem o que o não é. Conseguimos
reconhecer a injustiça, mesmo que nada saibamos a respeito do que seria uma justiça
ideal e perfeita. Na verdade, esta assimetria sugere que a injustiça é mais imediatamen-
te reconhecível, na medida em que contradiz radicalmente os princípios “estruturais” da
natureza humana: dignidade da pessoa, autonomia ou liberdade, isonomia ou igualda-
de., etc..
Se a distinção do justo e do injusto não está inscrita na ordem objectiva da Natureza ou
do Ser, se não pode ser lida no “céu estrelado que está por cima de nós”, nem contem-
plada no Cosmos inteligível das Essências, então talvez seja melhor conceber essa distin-
ção como um universal intersubjectivo: um universal de que cada um de nós, num certo
sentido, é portador e ao mesmo tempo responsável diante de todos os outros. O Justo e
o Injusto são, assim, ao mesmo tempo, convenções - enquanto objectos de um consenso
universal possível - e “regras não escritas”. Podemos, então fazer do homem “a medida
de todas as coisas”, em matéria de justiça e de injustiça, sem, por isso, cairmos no relati-
vismo e no positivismo.
Podemos agora entender porque é que a heroína de Sófocles tem razão em contestar o
julgamento de Creonte. Com efeito, o ponto de vista de Antígona, depurado dos seus
pressupostos culturais, dos seus tiques religiosos o afectivos, é mais universal e mais pró-
ximo da humanidade dotada de razão. Quando Creonte lhe diz “tu és a única, em Te-
bas, a defender tais opiniões”, Antígona responde com grande lucidez: “Todos os que
me ouvem ousariam concordar comigo, se o medo não lhes fechasse a boca”. E, apon-
tando para o Coro - que simboliza sempre a consciência colectiva da Cidade na Tragé-
dia grega -, acrescenta: “eles pensam como eu, mas estão a morder os lábios.” Face ao
tirano que a condena à morte, Antígona pressente que poderia partilhar a sua convic-
ção íntima com a humanidade inteira. Apercebe-se de um ideal de fraternidade mais su-
blime. O próprio Creonte, bem contra a sua vontade, e para sua própria infelicidade, só
encontra uma razão para prosseguir na condenação: “É preciso respeitar (…) as leis
fundamentais”: a “Razão do Estado” e não a razão dos homens.

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