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Alessandra Vannucci
1Viabilizado pelo MinC através do Prêmio Interações Estéticas e Residências Artísticas em Ponto de
Cultura, realizado em parceria com o Pontão do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro e em seguida,
seriam exclusivos para mulheres: não atrizes, mas filhas, mães, netas, trabalhadoras
no campo, na cidade, no mato ou no sertão, enfim “atrizes sociais” em seu cotidiano,
entre a necessidade de repetir todo dia o mesmo papel e o desejo de ser e de se ver
outra, de ocupar outro lugar. Nossa pergunta inicial dizia respeito à universalidade
desta busca e desta contradição. O que teria em comum entre vivências tão diversas,
seja no que diz respeito às relações reais quanto ao aparato simbólico, às imagens
que descrevem, aos papéis que são atribuídos ao corpo feminino? Existe uma
especificidade feminina, nas diversas culturas, independentemente de sua
subordinação às culturas masculinas hegemônicas? Em que medida uma mulher
pode ser espelho de outra? Quais modelos ancestrais (dominantes, subalternos)
continuam agindo no “devir mulher” do nosso tempo? Quais contextos sociais
condicionam seu comportamento e seu corpo? Quais expectativas, quais sonhos?
Estruturamos nossas perguntas em quatro Atos de pesquisa, compactados
em períodos de convivência que variaram de quinze dias a três horas de duração:
no primeiro Ato, investigamos as imagens ancestrais ou infantis “coladas” no
inconsciente, seja feminino como masculino, a condicionar os nossos hábitos; no
segundo Ato, as imagens “reforçadas” por cada sociedade; no terceiro Ato, as
imagens em que nos espelhamos; no quarto Ato, as imagens que queremos
incorporar e assumir como identidade. No Ato final, montamos uma partitura, no
sentido de ações editadas em forma fechada (performance ou peça) ou uma forma
aberta (teatro-fórum2 ou exposição de instalações e obras ou procissão, ato público,
festa) e apresentamos. Mesmo que definido por ser um espaço de trabalho
reservado às mulheres, o laboratório se realiza necessariamente como Ato público,
no sentido de uma ação física coletiva de ocupar um lugar público onde partilhar o
comum, acolhendo em cena as intervenções dos espectadores, de todos os gêneros.
com o Ponto de Cultura ESTEC de Brasília. O nome Laboratório Madalena inspirou-se na rede
internacional de teatro Magdalena Project. A adesão ao método Boal, mesmo que experimental
enquanto interação artística, viabilizou ampla difusão na rede internacional de Teatro do Oprimido,
o que fez conhecer o Laboratório pelo nome Madalena – teatro das oprimidas. Atualmente, é uma
rede autônoma de núcleos sem referência central, com três encontros internacionais realizados (Rio
de Janeiro 2011, Berlim 2012, La Paz 2014) e um festival previsto para 2015 (Puerto Madryn,
Argentina).
2 Técnica do arsenal do Teatro do Oprimido em que se apresenta uma história baseada em vivências
reais em que um personagem enfrenta os seus antagonistas opressores, cada qual defendendo os
seus interesses; o oprimido fracassa e o público é convidado a substitui-lo em cena, buscando
alternativas para o problema encenado.
A palavra “ato” tem portanto uma dupla função: passando pelos quatro Atos que
hospedam ações intimas e analíticas (como escrever poesias, declaração de
identidade, dançar gestos infantis, desenhar e pintar de olhos fechados, produzir
instalações e improvisar performances e muitas outras), as Madalenas produzem
um Ato final relacional, político, cuja função é interferir no regime de visibilidade e
comungar nossas perguntas, desafios, desejos de transformação. Nas cenas de
Teatro-Fórum (entre 2009 e 2010 montamos EVA, no Cariri; MADALENA, no Rio de
Janeiro; RITUAL DE PARIDEIRAS, na Guiné Bissau; A VOZ DE ROSA, em
Moçambique; BOA NOITE, CINDERELA em Ouro Preto e BRAZILHA, em Brasília) a
denúncia da violência sobre o corpo feminino foi constante, legitimando as
preocupações que surgem tanto ao ouvir narrativas pessoais quanto a analisar
estatísticas mundiais, mesmo em condições diversas. Porém, perguntas
frequentemente surgiam não indagando a postura dos opressores, mas, sim, das
próprias oprimidas quando contribuem, ratificam e propagam a opressão que as
prejudica. Ficou logo claro que não estamos interessadas em psicologizar a opressão
de gênero, como fato isolado vinculado a psicoses individuais, mas de estudar e
revelar os dispositivos sociais que a fundamentam historicamente, condicionando
as formas de ver e as formas de fazer que constituem as coletividades. Tentamos
definir, assim, nossas modalidades criativas como uma experiência estética que não
alimentasse a distribuição tradicional “artista versus espectadores” (onde pessoas
são tidas por ter diferentes competências, autorias e lugares de visibilidade, de
acordo com sua posição na comunidade); ao contrário, uma experiência estética que
configurasse uma nova partilha de sensibilidades e proporcionasse a busca de um
novo regime de visibilidade. Observando, com Jacques Rancière (2010), que os
regimes de representação tradicionais (especialmente aqueles instituídos pela
indústria cultural, dados ao consumo massivo como televisão, mídias e em muitos
casos, também teatro) tendem a incorporar as desigualdades na apreensão do
mundo sensível, dando como fato que “aqueles que foram destinados a criar regras
e aqueles que foram destinados a serem regidos por regras não têm o mesmo
equipamento sensorial, nem os mesmos olhos, nem os mesmos ouvidos e nem a
mesma inteligência”, buscamos adentrar em um regime estético esvaziado de tais
expectativas. Sintonizado com o pensamento do Boal, especialmente atendendo ao
convite repetido em sua última obra, Estética do Oprimido, o laboratório Madalena
elaborou, ao longo dos anos, até hoje, um arsenal de ações criativas, articuladas nos
cinco Atos, visando afirmar a arte como linguagem de subjetivação, ferramenta de
diálogo e processo relacional transformador. O método se mantém experimental,
isto é, capaz de absorver qualquer sugestão, seja da minha atividade de ensino e
pesquisa na área da direção teatral, seja de colaboradores (pintores, músicos,
cenógrafos) e seja de todas as participantes, militantes de TO ou de movimentos
feministas mas, principalmente, mulheres interessadas em buscar uma estética
feminina em rima com ética, mais do que com cosmética. Qualquer elemento
(objetos, sons, imagens, histórias, dados estatísticos, slogans, gestos, provérbios,
lendas, músicas) pode se tornar material estético desde o momento que é
distanciado do dispositivo social de manutenção da opressão e desnaturalizado, isso
é, analisado sob outro ponto de vista.
Assim, o laboratório constitui um anti-dispositivo, no sentido dado por
Agamben (2010): temporário, porém infinitamente multiplicável. Seu êxito consiste
na clareza e contundência com que consegue mostrar preconceitos e bloqueios e
despertar ações políticas engajadas na luta contra as formas materiais e simbólicas
de opressão de gênero. Se a arte é um direito, ela pode e deve abranger toda a
comunidade. Provocadas pela ideia de realizar atos públicos em função de anti-
dispositivo, realizamos incursões site specific nos diversos territórios, visando
modificar a paisagem social: em Juazeiro do Norte, terra de romeiros, saímos pela
feira devocional cantando e dançando a nossa música (ao que chamamos de
Romaria das Madalenas); no Rio, improvisamos uma guerrilha urbana em plena
Lapa, armadas de batom vermelho para modificar imagens e escritas machistas
(Bloco das Madalenas); em São Domingos, Bissau, participamos de uma cerimônia
de fertilidade vetada aos homens (Cerimonia de Paridas); no Porto, fizemos
incursões de Teatro Invisível sobre união homossexual em um parque frequentado
por famílias; em Berlim, participamos da Marcha Mundial de Mulheres; no Rio,
convocamos uma reunião na praça pública (Madalena ocupa a Lapa) com
programação intensa de debates, galeria de arte, mostra de teatro, performance,
dança e música. Naquela ocasião, em junho de 2010, reunimos 140 mulheres do
Brasil, Argentina, México, Itália, Guiné Bissau e Moçambique e cerca de 2.000
espectadores de todas as classes sociais, cores e opções políticas. A partir daí,
pensando em manter em comunicação os núcleos iniciais e incluir os novos,
multiplicados pelas participantes, articulamos uma rede, pela qual tem sido possível
o proliferar de iniciativas sem um “centro” representativo.3 Imaginamos também
uma ponte sensorial, constituída por um (dois, três, inúmeros) tecido branco
comprido e horizontal, que todas assinamos, usando como carimbo as próprias
mãos pintadas. O tecido viaja de um laboratório para outro, inaugurando os
trabalhos das Madalenas com uma saudação ao mesmo tempo individual e coral por
parte de todas as outras, em outros tempos e lugares. A ação potencializa a ideia de
um comum capaz de subjetivar cada indivíduo; ao mesmo tempo, resgata, no ato de
assinar, a consciência da re-inclusão feminina no domínio da autoria artística. A
mínima incidência da mulher enquanto autor-sujeito da obra de arte, função em que
está embutido o direito de expressão de uma visão de mundo, é efeito da distorção
de um milenário regime de representação (do qual a arte faz parte) que desqualifica
as práticas femininas enquanto não rentáveis, na logica produtiva capitalista,
resumindo a história humana em dupla sujeição da mulher: ao homem e ao capital.
Reduzida a tarefas domesticas, a mulher sofreu exclusão das práticas artísticas –
apanágio masculino desde tempos imemoriais, por projeção da ordem social vigente
– a não ser na subordinação de corpo-objeto exposto em estado de inatividade em
inúmeras obras de arte. Uma expedição arqueológica recente,4 porém, atribuiu a
uma mulher a assinatura em forma de mão achada nas paredes decoradas de uma
caverna pré-histórica na Indonésia; a descoberta alinha a prática artística ao
domínio doméstico, atribuindo a mulher um papel bem maior no ato da criação e até
mesmo da invenção da arte. O tecido remete a esta pré-histórica testemunha.
Pensamos nisso, diante do fato real de não dispor, na maioria dos casos, de
recursos financeiros nem de aparato cênico para a produção. Assumir-se como
artista e parte de uma comunidade estética, a priori, potencializa os recursos
humanos, isto é, memória, vivência, imaginário das mulheres participantes, sua
vontade de expressão e de afeto em relação à sua comunidade, provocando a
proliferação de seus próprios meios de criação. Sempre há quem costura, quem
cozinha, quem desenha, quem maquia, quem canta, quem ritualiza. Gestos femininos
antigos em que as mulheres de hoje vivenciam em seus corpos a memória de
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de Mestrado em Estudos da Mulher e do Genero (GEMMA), Universitá di Bologna (Itália) e
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