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Texto produzido para participação na aula inicial da disciplina de Memória

e Formação do PPGEDUC/UFG/RC – março de 2016.

Falar sobre vida é complexo. Desde o convite que o Wolney me fez para
participar dessa aula, comecei a pensar no que falar. Quem iria escutar e Por
que falar o que vou falar. Lembro da primeira aula dessa mesma disciplina em
que o Wolney nos colocou a contar um pouco de nossas histórias. Cada um foi
contando sua história a seu modo, escolhendo os fatos, as palavras, os gestos
e alguns escolheram as lágrimas.
Para falar da vida, não há como não falar de nós, da vida vivida, daquilo
que nos atravessa. Por isso, o falar da vida emerge toda a complexidade da
nossa composição. Complexidade esta que não cabe em palavras, por isso
transborda.
Bom, vou, então, falar um pouco sobre a vida e, também, da vida.
Minha fala está dividida em duas partes: primeiro abordarei um pouco da
minha visão sobre a vida, como a percebemos numa perspectiva maior, e nesse
momento trago tbm algumas angústias e desabafos, pois não há como pensar a
vida dispensando as nossas trajetórias e experiências ao longo do tempo e por
isso, talvez, minha fala seja um pouco pessimista. Na segunda parte, trago
experiências que me fazem pensar a vida não aprisionada.
Me chamo Thimoteo Pereira Cruz. Nasci em 1988, na cidade de Anápolis,
cidade antes popularmente conhecida por ser de maioria cristã protestante.
Morávamos em uma casa simples. Minha mãe era dona de casa e meu pai
trabalhava como professor no Senai. Tenho dois irmãos. Fomos criados em meio
a rigidez do meu pai. Além disso, desde pequenos tivemos uma educação cristã.
Já fui de muitas igrejas.
Com seis anos de idade mudamos para Tocantins e lá moramos 12 anos.
Nesta terra quente, vivi maior parte da minha infância e adolescência. A cidade
era pequena e no bairro que moramos eu costumava brincar na rua e na quadra
local. Desde a quarta série, eu já podia ir sozinho para a escola. Sempre estudei
em escolas conveniadas, primeiro no presbiteriano. Depois, até o terceiro ano,
no São Geraldo.
Apesar de ser de família cristã e de sempre frequentar as escolas
dominicais e os cultos de domingo, foi só na adolescência que comecei a
participar efetivamente das rotinas da igreja. Participei do grupo de música, do
grupo de dança, do grupo de teatro e outras atividades. No começo, não sabia
fazer nada dessas coisas, depois fui me aperfeiçoando.
Já fui palhaço, dançarino, cantor, ator. Hoje... não sei o que sou.
Mudamos de volta para Anápolis. Fiquei por lá alguns meses e depois vim
para Catalão fazer o curso de Psicologia, em 2008. Era a segunda turma de
psicologia.
Comecei o curso com o pensamento de ajudar pessoas da igreja. Quando
cheguei na cidade, procurei uma igreja, encontrei uma e lá continuei a ser cantor.
Vocês devem ter percebido que a igreja teve um papel importante na
minha formação. Sim, e apesar de toda doutrinação, foi lá que transformei o
canto, a dança e o teatro na minha arte.
Aos poucos, fui descobrindo a universidade e a psicologia. Com os novos
conhecimentos, vieram os questionamentos e os embates entre ciência e
religião.
Acho que a ciência prevaleceu. Em 2012, não mais frequentava a igreja.
Roubaram a minha arte!
A universidade me seduziu. Me possibilitou outras maneiras de pensar,
de agir, de perceber a realidade. Apesar de ter participado de projetos que
envolveram arte, música, cinema, tive que me apropriar dos modos de vida da
universidade. Busquei produzir, adaptar, pesquisar. Fui oscilando nesse
percurso, ora buscando me enquadrar, ora querendo escapar do modo de vida
perverso da universidade. Às vezes eu conseguia.
Quando terminei o curso, quis aproximar da educação e vim fazer o
mestrado. No primeiro dia de aula já disseram algo como: Vocês tem apenas 23
meses e 29 dias. Busquei no mestrado uma oportunidade de diálogo entre
psicologia e educação. Não foi fácil. Apanhei... Apanhamos... ralamos e ora nos
submetemos ora resistimos à pressão imposta ao pesquisador da
contemporaneidade.
Agora, aqui estou. Contando a vocês partes da minha história. Aliás, de
uma história que não é minha, é de muitos outros, é com muitos outros.
Penso que devem estar se perguntando do porquê estou a compartilhar
isso com vocês. Simples! Para falar sobre a vida e da vida.
No decorrer da minha trajetória eu fui me constituindo e me formando a
partir das experiências vividas. São essas e outras experiências que direcionam
o modo como percebo o mundo e o meu modo de pensar e agir. As minhas
palavras, os meus gestos, os meus olhares, a minha fala contam essa história
que, num primeiro momento parece não visível, mas basta algum tempo de
convivência para perceber a força das marcas da minha trajetória de vida.
Trago tudo isso para falar do que Peter Pal Pelbart chama de biopoder.
Vivemos numa época marcada pelo intenso consumo de modos de
pensar, de agir, de sentir. Presenciamos, com auxílio da internet, da publicidade,
das tecnologias em geral, uma imensidão de dados que exigem, a todo
momento, novas composições do eu. Na verdade de um eu-tu-ele. Não há como
pensar numa subjetividade una em um eu uno.
Nesse modo de pensar, a subjetividade constitui-se nos dados da
experiência, portanto, sempre em construção. O conceito de subjetividade como
aquilo que é único de cada um, mais do que nunca está em xeque, pois a
violência com que as informações nos afetam, geram em nós desejos,
pensamentos, vontades e nos vemos, quase que espontaneamente, como
meros consumidores de modos de agir e de pensar. É a força do biopoder.
Para falar sobre a vida, não posso deixar passar despercebidos os fatos
recentes em nossa política. Afinal, a política partidária também nos atravessa e
nos forma. Mas antes, quero recordar um momento de nossa história.
Na década de 80 o Brasil foi marcado pela luta das classes populares,
que defendiam, em geral, melhores condições de vida. Por outro lado, nessa
época, também são fortalecidos ideais de uma sociedade neoliberal. Relembro
esses fatos para afirmar que cruelmente e perversamente o macropoder e o
biopoder começaram a se apropriar da utopia, da força da luta das classes
populares, da potência criativa, da resistência e os transformaram em suas
próprias armas de controle.
Os desejos de uma sociedade justa, igualitária e fraterna foram
substituídos e, quase, banidos, em detrimento do consumo da saúde, da beleza,
do dinheiro, dos bens materiais e imateriais, como fama, sucesso, felicidade.
Roubaram a resistência, a utopia. Roubaram a arte daquela sociedade.
Hoje, pouco nos afeta a condição política do país, a situação da violência,
a injustiça. Fazemos de conta que não vemos, talvez, porque nossos desejos,
nossa condição humana, estejam ligados à outras coisas que não levam em
consideração aspectos éticos, políticos e estéticos da vida que respeita o outro,
a diferença, o diferente, as diversas maneiras de pensar e agir, bem como a vida
coletiva, a cidadania.
Falo isso numa perspectiva geral.
A vida tem sido o desafio de sobreviver numa atualidade que não oferece
muitas escolhas. Não há como pensar a vida não-aprisionada em tempos que a
submissão é fator crucial à sobrevivência/vida.
Vivemos tempos de crueldade. Presenciamos e consentimos com
barbáries todos os dias. Negamos o direito à vida com qualidade a todos. Nos
acostumamos com a ideia de que há miséria aceitável, de que há violência
aceitável, de que há exploração aceitável, de que há morte aceitável. Por mais
que os ideais da sociedade justa e igualitária permeiem uma minoria, esta
mesma minoria é atravessada por conflitos que geram necessidades, desejos,
vontades, sentimentos trazidos pela história, pela cultura, sendo quase
impossível não comungar com as barbáries do dia a dia.
Sem que haja uma ruptura nos modos de pensar e agir do homem
contemporâneo, não há como pensar numa sociedade justa e igualitária.
Enquanto isso, comungamos, seja no nível que for, com as atrocidades do
humano, que têm se tornado tão vitais como a necessidade do ar e da água.
Bom, chega de ser pessimista. Afinal, eu não estaria aqui se não
acreditasse na vida não aprisionada.
Peter fala da biopotência, capacidade que temos, mesmo em meio a força
do biopoder, de resistir, de criar, de inventar, de romper com um modelo de vida
predominante.
A vida, em potência, é capaz, em meio a todo um sistema opressor e
produtor de subjetividades prontas para consumo, de se reinventar. Esse é o
momento que a vida vira arte.
O conceito de arte tem a ver com as novas possibilidades de vida. Tem
a ver com uma estética que a vida adquire, na qual a força do viver, do querer
viver, transborda, escapa.
Participei de um projeto chamado PRONERA, que forma professores para
atuar no primeiro segmento da EJA em assentamentos rurais. Numas das
viagens realizadas, fui a cidade de Doverlândia, em um dos assentamentos do
município.
Visitamos as salas de aula e depois visitamos alguns alunos. Chegamos
na casa de um deles. Era uma casa simples rodeada de árvores. Ao lado da
casa tinha um celeiro e na frente do celeiro havia uma carroça carregada de
milho seco. A professora que nos acompanhava disse que ali morava um senhor
e que o milho ele tinha catado de uma plantação próxima, já que o milho que não
era colhido pela colheitadeira da plantação, poderia ser retirado por moradores
da região.
Chamamos pelo morador e logo ele apareceu. Um senhorzinho de uns 60
anos. Usava um chapéu de palha, uma camiseta azul claro, uma calça com o
cinto lá na cintura. Ele era branquinho e as bochechas estavam rosadas,
provavelmente por estar catando o milho no sol. O senhorzinho nos recebeu de
modo simpático e ainda nos ofereceu um pé de moleque que ele tinha feito no
dia anterior.
Encantei-me com a sua simplicidade e mais que isso. Percebi que algo
atravessou o encontro com esse senhorzinho. Depois da visita, fiquei pensando
o porque daquele encontro ter me encantado. Talvez, porque percebi a arte da
vida daquele senhorzinho. Aspectos visíveis e invisíveis daquele encontro me
colocaram em contato com um outro tipo de vida, com as marcas da vida do
campo. De algum modo, a força das virtualidades desse encontro me
atravessaram e me afetaram. Bastou um encontro, sem muitas palavras, para
que a história de uma vida fosse sentida, escutada, percebida de outros modos.
A história de uma vida não aprisionada.
Este ano é a terceira vez que o pneu da minha moto furou e sempre levo
no mesmo borracheiro. Chego e já coloco a moto no cavalete. O borracheiro já
pega as ferramentas necessárias para tirar o pneu e começa o serviço. Ele tira
o pneu e o próximo passo é tirar a câmara de ar. Ao tirar a câmara, ele enche
ela e coloca em um tanque com água para verificar onde é o vazamento. Depois
ele usa um pedaço de outra câmara para fazer o remendo. Ele disse que esse
tipo de remendo é que funciona. Enquanto a câmara está numa prensa que fará
o remendo colar, ele verifica se não há nada no pneu que possa perfurar
novamente a câmara. Depois do remendo ficar pronto, ele enche a câmara de
ar e verifica se não há vazamentos, depois esvazia e coloca dentro do pneu.
Enche o pneu e no final coloca um pouco de cuspe no bico da câmara para ver
se não há vazamento e depois coloca o pneu d volta na moto.
Parece um trabalho simples. Só que toda vez que vou lá, observo
atentamente os passos que ele segue para realizar o concerto do pneu. Não há,
simplesmente, como definir todo o ritual que ele segue apenas como um
procedimento técnico ou repetitivo. Os detalhes de todos os passos realizados
pelo borracheiro me contam uma história. Não dá para definir apenas como
trabalho. O trabalho daquele borracheiro, no meu olhar, virou arte.
Trago estas duas experiências para pensar a vida não aprisionada, pois
quando algo que parece predominante traduz-se em arte, a vida ganha outros
sentidos.
Quando eu contei que eu cantava e dançava na igreja e que essa era a
minha arte e quis dizer que o canto e a dança pra mim eram mais do que práticas
religiosas que reproduziam uma doutrina ou dogma, era a minha arte. Cantar e
dançar pra mim transcendia a finalidade proposta pela igreja.
Diante do que foi abordado, nosso desafio, então, coloca-se em como
ativar a biopotência, como subverter os modelos predominantes de vida, como
resistir, como criar. Como encontrar linhas de fuga, suspiros.
Bom, o samba, sabe o samba? “Não deixe o samba morrer, não deixe o
samba acabar, o morro foi feito de samba, de samba prá gente sambar.” O
samba é suspiro, é potência de uma multidão, nele o sofrer e a vida são
reinventados. Ritmo intenso que faz o corpo balançar e a alma dançar.
Termino minha fala com o que disse no início. Falar da vida é complexo.

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