Você está na página 1de 5

Os direitos da cidadania: do surgimento à consolidação.

por Júlio Henrique Canuto da Silva

Quando estudamos o desenvolvimento dos direitos da cidadania, nos deparamos


com vários pontos de vista que enxergam este processo como decorrente de fatos distintos
que variam da justificativa de legitimidade do sistema capitalista lançando mão destes
direitos como forma de manter o controle das massas até a valorização maior de
reivindicações ou demandas sociais vindas “de baixo”, das classes populares que estão fora
do poder. Independente do ponto de vista, a aplicação prática e em certa medida eficiente
destes direitos na forma de políticas públicas se deu no século XX e, portanto, num estágio
já bastante desenvolvido do Estado capitalista. Deste modo, estes direitos podem ser
entendidos como sendo um produto do processo de modernização da sociedade em seus
aspectos políticos e econômicos e do modo de produção capitalista. Em resumo, o
desenvolvimento dos direitos da cidadania está situado na relação entre democracia e
capitalismo.
Cito aqui dois autores que trabalham com o tema: T.H. Marshall e Clauss Offe.
T.H. Marshall, que se situa entre os que entendem o estabelecimento das políticas
sociais como decorrência da mobilização social e política promovida ao longo de três
séculos, na seguinte ordem: emergência dos direitos civis, no século XVIII, que são os
direitos necessários à liberdade individual – direito de ir e vir, de possuir propriedade,
pensamento e fé e direito à justiça; direitos políticos, no século XIX, que são, basicamente,
os direitos de votar e ser votado, abrindo a possibilidade de participar da definição das
prioridades do Estado e de fiscalizar suas atividades, ou seja, o direito de participar no
exercício do poder político, como membro ou como eleitor de tal organismo; e os direitos
sociais, no século XX, que abrange tudo o que vai desde um direito mínimo de bem-estar
econômico e segurança ao direito de participar da vida social como um ser civilizado de
acordo com os padrões da sociedade – como segurança alimentar, transporte, saúde,
educação, habitação, assistência jurídica etc..
Em períodos anteriores a este, houve o desabrochar deste novo modo de vida e
conscientização da existência. Na sociedade feudal, não havia nenhum código uniforme de
direitos, a sociedade era dividida em estamentos, o rei e o clero eram a lei, encarnavam o
poder e portanto o status era a medida da desigualdade. O conceito de cidadão autônomo
foi sendo formado a partir da idade média, num confronto com esta desigualdade
constituída “natural e religiosamente” na sociedade estamental. Ao mesmo tempo, e não por
acaso, ocorria o desenvolvimento das formas de reprodução. A superação do status servil
para o de liberdade foi fundamental para o desenvolvimento da sociedade econômica e
politicamente.
No entanto, os direitos civis eram reconhecidos como essenciais para este projeto,
pois como foi dito acima, eles se referem aos direitos do indivíduo.
O problema que vem à tona neste momento é que esta autonomia objetivada no
iluminismo frente as formas de reprodução do capitalismo mostrava-se inexeqüível. Com
isso, há a necessidade de se estabelcer um contrato, que encontramos nos textos dos autores
deste período e que consiste basicamente, numa definição teórica, num acordo entre
indivíduos livres, iguais em status mas desiguais em todas as demais dimensões da vida
social (movimento do status para o contrato). Primeiramente, este conjunto de direitos e
deveres que foram criados como modo de viabilizar o projeto do homem burguês eram
locais, e a participação nos negócios públicos era mais um dever do que um direito. Os
direitos se confundiam porque as instituições estavam amalgamadas.
O status jurídico concedido ao homem moderno dá a ele a oportunidade de lutar
pelos bens que almeja. No entanto, isto não garante , e nem pretende, que tais bens serão
efetivamente alcançados. Temos isso muito claro principalmente no direito à propriedade
que deve ser entendido como direito de adquirí-la e protege-la, caso adquirida, portanto
bem diferente do direito de possuir propriedade; e o direito à liberdade de expressão,
diferente do direito à educação para poder se expressar livremente.
Fica estabelecido um conjunto de leis universais que garantem, em tese e apenas
assim como veremos, uma certa igualdade. Faço questão de frisar que esta igualdade existia
apenas em tese porque ocorreram várias situações em que ela se mostra frágil. Em primeiro
lugar porque o parlamento nos Estados europeus era composto por uma elite que,
obviamente, defendia seus interesses criando mecanismos institucionais para isto e também
porque na esfera jurídica, do direito à justiça, muitas pessoas não podiam pagar para ter
acesso a este direito, o que aprofundou ainda mais a desigualdade social. Este era o
problema prático da cidadania. Mesmo com um conjunto de leis estabelecendo a igualdade
como o direito à justiça, educação etc, havia o problema do acesso a estes direitos, que é o
problema dos custos. Problema este que está presente na discussão da viabilidade das
políticas sociais desde o século XVIII até os dias de hoje.
No primeiro caso citado, o da ocupação e representatividade nos parlamentos, foi
sendo resolvido ao longo do século XIX quando se viu em grande avanço nos direitos
políticos com o surgimento num plano competitivo dos primeiros partidos de massa, a
organização de sindicatos e o sufrágio universal, ou melhor, a ampliação do direito ao voto.
Mudança esta de grande importância na regulação das relações de trabalho, ou se quiser, na
luta de classes. É neste período também que se deram grandes conflitos e com isso
podemos compreender a divergência dos pontos de vista citado no início do texto, pois no
caso das relações de trabalho, a conquista destes direitos pode ser entendida como
decorrentes tanto da luta política, numa visão conflitualista, como um modo encontrado
pelos detentores do poder e, neste caso, dos meios de produção, para conter a
“desobediência” das massas. Várias teorias vêm à tona, inclusive as que dizem que a
pobreza existe como condição para a existência do capitalismo.
Continuando a abordagem feita por Marshall, temo que somente no século XX
foram postas em prática a tentativa de resolver estes problemas com o estabelecimento os
direitos mínimos para cada cidadão: os direitos sociais. Aqui, pela primeira vez, houve a
tentativa de combate à desigualdade social, pois estes direitos garantem, entre outras coisas,
uma renda mínima e o acesso a serviços importantes como a gratuidade de auxílio jurídico,
tudo sendo calculado de acordo com as condições de cada cidadão.
Muitos destes direitos sociais visam alcançar e beneficiar as populações mais pobres
e por isso criam-se mecanismos para estabelecer a qual camada da população será
destinado estes direitos, e isto não é fácil, pois os Estados tem de deslocar recursos privados
para estes fins sem deixar que isto se constitua num privilégio de classe.
Voltamos então ao nosso velho dilema, pois ao adotar estas medidas, a sociedade
não promove a igualdade, mas garante um mínimo de direitos e de condições para uma vida
digna dentro de uma sociedade nos moldes capitalistas, e pode-se argumentar (e questionar)
que para a real obtenção de igualdade, o melhor seria igualar as rendas dos cidadãos. No
entanto, o ideal que promoveu este desenvolvimento se baseia na diversificação de
pensamentos e vontades e na valorização do individualismo e, por isso, na democracia.
Considero conveniente, após a exposição das fases do alcance dos direitos da
cidadania, fazer uma rápida apresentação das bases teóricas da discussão sobre a relação
entre democracia e capitalismo e para isso utilizo o texto de Claus Offe. Em seguida volto à
análise do Estado de bem-estar social na Europa e os problemas atuais com os quais nos
deparamos nesta discussão.
Offe analisa não apenas uma relação, mas questiona a possibilidade de democracia e
capitalismo coexistirem a partir da obra de vários autores que escreveram em vários lugares
e períodos da história. Começando pela divergência entre Marx e Tocqueville e Stuart Mill
e depois entre Lênin e Lipset.
Para Tocqueville e Mill, a democracia atentava contra a liberdade (política ou
econômica). Econômica porque, indiretamente, ela promovia a igualdade. Mill preocupava-
se mais com a propriedade, portanto com o aspecto econômico enquanto Tocqueville
preocupava-se mais com a liberdade, portanto com o aspecto político.
Na medida em que as massas são incorporadas no sistema, o capitalismo vai sendo
ameaçado seja por conta da promoção da igualdade, inibindo a diversidade e o mérito (na
visão dos primeiros),seja porque este processo conscientizaria as massas (para Marx). Por
isso, Marx propõe um modelo democrático radical.
A grande diferença está na conceitualização de “massa”, que é visto pelos autores
liberais como algo desorganizado, enquanto Marx procura combater a alienação, que seria o
oposto da conscientização.
Para Lênin, a democracia é subordinada ao capitalismo. Ela legitima o sistema
econômico ao garantir a permanência da desigualdade. Para Lipset, ocorre o contrário, o
capitalismo é subordinado à democracia no sentido de que as pessoas, se realmente
quisessem derrubariam o sistema econômico por meio da liberdade que lhe é oferecida.
Os autores desenvolveram uma idéia sobre de que forma a democracia e o
capitalismo se relacionam na Democracia Liberal, enquanto os anteriores falavam de um
conceito mais amplo.
Estes são, basicamente, as variáveis na discussão sobre a relação entre democracia e
capitalismo.
Voltando a abordagem histórica, notamos desde o início do século XX ema certa
tendência na harmonização entre capitalismo e democracia, exceto na Alemanha, Itália e
Japão que tiveram sistemas fascistas.
Offe diz que um “arranjo institucional” permitiu a harmonização não só da relação
em questão como também da luta de classes. Ou seja, dos fatores que eram vistos
anteriormente como impeditivos. Este arranjo institucional seria a entrada efetiva dos
partidos de massa no parlamento e, principalmente para nossa discussão, a instituição do
Walfare State Keynesiano que visava, basicamente, o estímulo da demanda. A idéia do
Walfare seria a de um Estado que garantisse além dos direitos básicos, salários altos para o
consumo, fazendo “girar” a economia, com grande acordo interclasses visando uma espécie
de jogo com soma positiva (lucro – investimento – salário – consumo). Esta equação
pressupõe que com maior lucro, haverá maior investimento e daí maiores salários e
conseqüentemente maior consumo, proporcionando maior lucro. Este pensamento ganhou
força após a crise de 1929 e também ao final da segunda guerra mundial onde a Europa se
mostrava como um cenário propício para a implantação destas políticas, pois necessitava de
maneiras rápidas de desenvolvimento e mesmo porque foi lá que se desenvolveu
primeiramente a idéia de direitos da cidadania como coloquei no início do texto. Montado
todo este aparato, o Estado cria fundos públicos para investimentos em serviços públicos
através da arrecadação de impostos, já que os lucros aumentariam. Outra maneira de
captação de recursos seria o financiamento das políticas sociais através da inflação, onde o
Estado emite moeda, fazendo os preços subirem, aumentando os lucros e possibilitando o
recolhimento de mais impostos.
Atualmente, com o fenômeno da financeirização, os empresários têm outras formas
de canalizar os lucros sem precisar investir na produção, que é o direcionamento à
especulação financeira e demais modalidades de investimento em “dinheiro virtual”. Há
também o incentivo a empresários que prestam ou financiam serviços públicos com a
isenção de impostos e outros benefícios, pois uma bandeira da política econômica, nos dias
de hoje, é o controle da inflação.
Como vemos, o desenvolvimento da cidadania é tema permanente na história do
homem desde que este buscou sua autonomia e a cada etapa superada parecem outras
trazendo novos questionamentos a serem solucionados.

Você também pode gostar