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Quando se dá aula há muito tempo

Nara Keiserman1

In: RIBEIRO DA SILVA TAVARES, Joana; KEISERMAN, Nara. (Org.). O corpo


cênico entre a dança e o teatro. 1ed. São Paulo: Annablumme, 2013, v. 1, p.
145-162.

Quando se dá aula há muito tempo é difícil responder com precisão sobre o que
é, exatamente, o seu trabalho em sala de aula. Essa frase informa três coisas:
vou tratar aqui das minhas aulas; dou aula há muito tempo; assumo, desde já, o
tom coloquial, de quem reflete em voz alta (em palavra escrita), como que
trocando experiências com um parceiro amigo. Tenho observado a existência de
nichos de especializações, que se organizam ao redor de mestres ou de
técnicas, que permitem a afirmação que alguém trabalha com Grotowski, com
Meyerhold com Rasaboxes2, com Viewpoints3, etc. Não é o meu caso e,
certamente, não é o fato de dar aula há muito tempo que acarreta na definição
do meu trabalho. Esta pode ser sintetizada em: aproveitamento de várias
técnicas, permeadas pela admiração por alguns mestres e fundamentada na fé
no espírito humano.

UMA VISADA AUTOBIOGRÁFICA - HISTÓRIAS

Dou aula de “Corpo”. Comecei por acaso - talvez eu preferisse dizer que foi por
um destes sincronismos da vida. Aluna do curso de Direção Teatral da UFRGS,
nossos professores sofreram a aposentadoria compulsória. Para os mais jovens:
houve uma varredura nas universidades (e não só lá, é claro) exercida pela
ditadura militar, a partir de março de 1964 e endurecida a partir de dezembro de

1
Professora Adjunta na Escola de Teatro da UNIRIO, Graduação e Pós-Graduação. Artigos publicados
nos periódicos: Urdimento/Revista de Estudos Pós-Graduados em Artes Cênicas, Vol. 1, nº 7, 2005. Sala
Preta/Revista de Artes Cênicas, nº 8, 2008. O Percevejo online Vol. 1, Nº 2, 2009 e Vol. 3, Nº 1, 2011
2
. Ver “O ator como atleta das emoções: o rasaboxes”, artigo de Michele Minnick e Paula Murray Cole.
Traduzido por Ana Bevilaqua, Márcia Moraes e Michele Minnick. Disponível em: <http://
www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/1797/1460>.
3
Cf. TELLES, Narciso. Viewpoints e a pedagogia do Teatro: pensando ações de criar e
[trans]formar. No capítulo 3 – Criando a Cena.
1968, com a promulgação do Ato Institucional nº5. 4 Os professores indesejados
por suas ideias “esquerdistas”, ou minimamente arejadas, foram presos ou
simplesmente aposentados. A maioria destes foi disseminar sua sabedoria em
terras europeias. Nosso curso ficou desfalcado, os professores remanescentes
passaram a dar aula de todas as matérias – ainda não se chamava disciplina,
essa palavrinha tão desconfortável – com que tivessem afinidade. Minha mestra
Maria Helena Lopes5 assumiu as aulas de Interpretação e de Expressão
Corporal. Como eu havia feito aulas de balé clássico “a vida toda” na minha
Pelotas natal, com a grande Dicléia Ferreira de Souza 6, fui convidada para ser
monitora de Expressão Corporal. Com a Maria Helena aprendi a dar aula e
também a preencher pauta, o que não é pouca coisa: aprendem-se os nomes do
que se faz e um modo sintético de se referir a isso. Eu era aluna de segundo ano
dando aula para os do primeiro. Tinha dezenove anos. Alguns alunos eram mais
velhos do que eu. Depois, passei a ter a idade dos meus alunos, quase em
seguida era um pouco mais velha do que a maioria e hoje tenho muito, mas muito
mais tempo de magistério do que meus alunos têm de vida. Lá se vão quarenta
e quatro anos da primeira vez em que pedi aos alunos que deitassem e indiquei
que fossem soltando seu corpo sobre o chão, parte por parte. Eu não sabia que
sabia fazer isso. Lembro-me de olhar para eles (Fernando Mello da Costa 7, o
cenógrafo, era um deles) e ir nomeando cada parte do corpo. À medida que o
fazia, fui percebendo mudanças no meu próprio estado corporal, o que,
evidentemente afetou minha voz e acredito que também minhas palavras. Ali
percebi que sim, eu poderia ser professora de Expressão Corporal.

4
“O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general
Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até
dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento
mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que
fossem inimigos do regime ou como tal considerados.” Disponível em : <http://cpdoc.fgv.br>. Acesso em
16/04/2012. A íntegra do AI-5 pode ser encontrada em <http://www.acervoditadura. rs.gov.br>.
5
Foi professora de interpretação, improvisação e expressão corporal no Departamento de Arte
Dramática/UFRGS entre 1967 e 1994. Estudou na Escola de Jacques Lecoq, tendo como professores
Philippe Gaulier e Monika Pagneux. 6. Foi solista do Teatro Municipal do Rio de Janeiro nos anos 1950.
Em 1858, muda-se para Pelotas/ RS onde, em 1960, funda sua Escola de Balé, que existe até hoje.
6
Foi solista do Teatro Municipal do Rio de Janeiro nos anos 1950. Em 1858, muda-se para Pelotas/ RS
onde, em 1960, funda sua Escola de Balé, que existe até hoje.

7
Nascido em Pelotas/RS, em 1950, radicado no Rio de Janeiro. Vencedor do Prêmio Shell em 1992, pelo
cenário de Cartas Portuguesas, direção de Bia Lessa; em 2007, pelo cenário de As Centenárias, direção
de Aderbal Freire-Filho, além de várias indicações a Prêmios.
1968. Éramos o CAD (Centro de Arte Dramática, ligado à Faculdade de
Filosofia). Um pequeno polo de respiração, ouso dizer, vanguardista. Dos
professores, além da Maria Helena Lopes, o Gerd Bornheim (1929-2002), o Luis
Damasceno. Meus colegas, para citar os que permaneceram no teatro: Graça
Nunes, Irene Brietzke, José Faleiro, Suzana Saldanha, Irion Nolasco. E também
Luís Artur Nunes que, no final de 1968, havia acabado de chegar de uma
temporada em Aix-en-Provence, com O teatro e seu duplo, de Artaud, debaixo
do braço (devoramos o livro!) e na cabeça, em que fervilhavam também ideias
sobre o Teatro-Dança. Naquele fatídico dezembro do AI-5, montávamos
Homem: variações sobre o tema, sob a direção do próprio Luís Artur, criado a
partir de muitas improvisações. Espetáculo sem palavras, num espaço que
congregava atores e espectadores, com os quais interagíamos bastante.

1969. Veio a reforma do ensino contra a qual todos lutamos. Um acordo entre o
MEC e o USAID8 modificou drasticamente nossa vida acadêmica. Gritamos
muito e muitas vezes, em inúmeras passeatas e manifestações intermináveis:
“Abaixo o MEC-USAID! Abaixo o MEC-USAID! Abaixo o MEC-USAID!”
Concretamente, o que afetou nosso dia-a-dia foi: o curso passou a ser um

8
Série de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC)
e a United States Agency for International Development (USAID). Visavam estabelecer
convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira. Entre junho de
1964 e janeiro de 1968, período de maior intensidade nos acordos, foram firmados doze,
abrangendo desde a educação primária (atual ensino fundamental) ao ensino superior. O
último dos acordos firmados foi no ano de 1976. Os MEC-USAID inseriam-se num contexto
histórico fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capital humano, isto é,
pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econômico. Nesse
contexto, a “ajuda externa” para a educação tinha por objetivo fornecer as diretrizes políticas
e técnicas para uma reorientação do sistema educacional brasileiro, à luz das necessidades do
desenvolvimento capitalista internacional. Os técnicos norte-americanos que aqui
desembarcaram, muito mais do que preocupados com a educação brasileira, estavam
ocupados em garantir a adequação de tal sistema de ensino aos desígnios da economia
internacional, sobretudo aos interesses das grandes corporações norte-americanas. Na prática,
os MEC-USAID não significaram mudanças diretas na política educacional, mas tiveram
influência decisiva nas formulações e orientações que, posteriormente, conduziram o processo
de reforma da educação brasileira na Ditadura Militar. Destacam-se a Comissão Meira Mattos,
criada em 1967, e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU), de 1968, ambos
decisivos na reforma universitária (Lei nº 5.540/1968) e na reforma do ensino de 1º e 2º graus
(Lei nº 5.692/1971). Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br >. Acesso em
16/04/2012.
Departamento (DAD), desapareceu a turma, funcionando ao invés do sistema
seriado, o de créditos e, o mais grave, o sumiço de muitas das melhores cabeças
da Universidade, professores e alunos: por perseguição e assassinato ou exílio,
voluntário ou não. Tínhamos medo: de falar, de criar. Éramos constantemente
vigiados, inclusive por “colegas” plantados pelos militares em todos os cursos de
todas as universidades do país – todas, mesmo. Não é força de expressão. Eu
tinha muitos amigos na Faculdade de Arquitetura e juntamente com um deles, o
Paulo Renato d’Almeida, que era também aluno do CAD – continuamos a
chamar assim ainda por muito tempo – passamos a “dar aula” para um grupo de
lá, da Arquitetura. Está entre aspas porque não sei bem se podia chamar de
aulas. Se na Filosofia estavam os que queriam a revolução política, na
Arquitetura estavam os revolucionários do comportamento, os que aderiram à
contracultura. Não eram aulas, eram encontros em que Paulo e eu propúnhamos
atividades (jogos, exercícios?) corporais. Era, na verdade, uma festa! E foi onde,
sem a Maria Helena, eu tive que começar a pensar uma “aula”, em função do
que esse pessoal (eu incluída) queria fazer – e não era teatro. Ali, eu passei a
adotar uma espécie de vício, reconhecido como estratégia, a de me colocar no
lugar do outro para perceber o que eu deveria propor a seguir. Esse assunto vai
voltar, adiante. Permaneci monitora enquanto estive na Universidade.

1971. Recém formada, atuei em Sonho de uma noite de verão, com direção do
Luís Artur Nunes, montagem do Grupo de Teatro Província.9 Eu fazia uma fada
e José Faleiro, Egeu e um dos artesãos. No camarim, em que ficávamos um bom
tempo, Faleiro traduzia (o que faz profissionalmente até hoje) textos e mais
textos sobre a pedagogia do teatro, o teatro na educação e com esse material
produzia apostilas (em mimeógrafo, com matrizes coloridas) que guardo até hoje
– e não apenas por seu valor afetivo.

1971-1972. Com o Grupo Província, veio o teatro improvisacional, físico, a


direção coletiva. Fizemos Era uma vez uma família muito família, criação
coletiva, em que todas as atrizes criaram os papéis femininos e os atores, os
masculinos. A cada noite, os espectadores escolhiam quem ia fazer qual papel,
e isso, é claro, trazia mudanças em alguns conteúdos, mas não na estrutura do

9
O histórico do Grupo encontra-se em: <http://www.itaucultural.org.br>.
roteiro. Grande novidade, fazíamos a peça no palco do Teatro de Câmara da
Prefeitura de Porto Alegre, o público acomodado em arquibancadas ao nosso
redor; estudamos/experimentamos Stanislavski (com desconfiança), Artaud,
Brecht e Grotowski – e quem mais? Era o que faziam as pessoas comprometidas
com o teatro.

1974-1975. Fiz um curso de Expresión Corporal com Patrícia Stokoe (19191996)


e Perla Jaritonski, em Buenos Aires. Conheci pessoalmente as coreógrafas
Angel Vianna e Ausonia Bernardes. Em 1975, de volta à Pelotas, passei a dar
aula na UFPEL, no curso de Licenciatura em Educação Artística 10. Estes cursos
foram criados juntando os Conservatórios de Música com as Escolas de Belas
Artes. Eu representava o Teatro – era a única professora. Dava aula no auditório
do Conservatório de Música. Eram turmas de vinte e cinco, trinta alunos. No
“palco” cabiam cerca de dez alunos, entalados entre dois belos pianos de cauda.
Aprendi a dar aula de Expressão Corporal com os alunos sentados ou em pé, no
espaço entre as fileiras. Entrei em contato, por bibliografia, com Thomas Hanna
(1928-1990), Moshe Feldenkrais (1977, 1979), Lily Ehrenfried (1991), Gerda
Alexander (1983), Thérèse Bertherat (1977), Rudolf Laban (1955 e 1978). Luís
Artur Nunes, então professor de Expressão Corporal no DAD, me ensinando,
ensinando, ensinando.

1980-1984. No início dos anos oitenta, iniciei o Mestrado na USP. A partir de


1981, no Rio de Janeiro, passei a dar aulas de Expressão Corporal na Casa das
Artes de Laranjeiras/CAL, na Escola Angel Vianna e na UNIRIO. Em 1984,
finalizei o Mestrado na USP escrevendo sobre A preparação corporal do ator –
uma proposta didática. Tem dias que a gente se sente. Orientada pelo querido e
saudoso Miroel Silveira. Foi minha primeira revisão do trabalho já feito. Peguei
meus cadernos de aulas dadas, anotações soltas e dei um sentido para aquilo
tudo. Numa proporção bem menor, é claro, é o que estou me dispondo a fazer

10
“Educação Artística é termo instituído oficialmente no Brasil a partir da Lei 5692/71, por
meio da qual implantou-se os cursos de Licenciatura Curta, com duração de dois anos e
conteúdos polivalentes e concomitantes: Artes Plásticas, Música, Teatro e Dança”. Disponível
em <www.artenaescola.org.br>. Acesso em 16/04/2012. No endereço
<http://www.pedagogiaemfoco.pro.br> encontra-se a Lei na íntegra.
agora: refletir sobre meu trabalho como professora de Expressão Corporal para
atores. Desta vez, não vou consultar as anotações. Quero me fiar no que já é
parte de mim. E chega de história.

ENSINAR, APRENDENDO A ENSINAR APRENDENDO

Adoro a máxima que diz “teatro não se ensina!” Entendendo: não se ensina
porque ninguém aprende – porque nasce sabendo? Não, claro que não. Bem,
mais ou menos. Não quero discutir aqui o tal do talento, a tal da vocação – pero
que los hay, hay. Acredito que não se ensina porque não é disso que se trata.
Entendi desde cedo que dar aula de teatro é proporcionar experiências. Cabe ao
aluno vivenciá-las, ou não. É assim: marca-se dia e hora, dividem-se funções. A
melhor parte é a daquele que vai para o encontro verdadeiramente blind. Não
sabe o que vai acontecer, não sabe o que o aguarda. Idealmente, isso é o que
deveria acontecer com todos os que estão lá, incluindo o que está encarregado
de fazer as propostas, o professor. Compreendi que há uma medida no meu vício
de me colocar no lugar do outro. Fazendo isso, eu acabo por antecipar a
realização do aluno, cria-se um “como eu faria” absolutamente indesejável e
contraproducente. Bem, nem sei se precisa ser “producente” ou mesmo o que
isso quer dizer numa aula de atuação através do movimento – que é o que tenho
feito há anos, agora mais assumidamente. A prática com alunos de diferentes
níveis de aprendizado e em situações diversas proporcionou-me uma visada
sequenciada dos conteúdos e propostas que utilizo, o que se dá de acordo com
a circunstância e o grupo com que estou trabalhando, o que implica em variáveis
como: nível, experiência, expectativas, objetivos, atitudes, humores, clima,
demais professores e outros fatores inomináveis, para os quais ainda não tenho
as palavras. Detendo-me brevemente sobre cada um deles: o nível do aluno no
curso (primeiro ou último período) nem sempre tem relação com sua experiência,
considerando aprendizados anteriores e o fato de que todos nós temos vivências
corporais, ao contrário do que acontece com a atuação, por exemplo. Assim, o
que é bastante determinante, na seleção dos conteúdos a serem propostos, está
mais relacionado à disponibilidade do grupo do que propriamente aos outros dois
fatores mencionados, nível e experiência. Podem-se arriscar propostas
sofisticadas num grupo mesmo inexperiente, mas que se entrega livremente ao
movimento. Entregar-se livremente significa uma execução espontânea,
intuitiva11, aquela em que o movimento vem antes da decisão de movimentar-se.
É irresistível citar Chico Buarque: “aja duas vezes antes de pensar”, de Bom
Conselho. Noto que os alunos muito experientes respondem com grande alegria,
adesão espontânea e inventividade a propostas aparentemente muito simples,
as quais os alunos com alguma experiência consideram simples demais, fáceis,
inúteis. “Já sei fazer isso”, ou “já conheço esse exercício, não preciso fazer de
novo”, pensam – mas não dizem, apenas realizam seus movimentos com
desdém. Pena. Outra observação: quando o aluno acha o exercício difícil ou
“chato”, o que, em geral, consideram a mesma coisa, perguntam para que serve.
Ainda tenho dificuldade em esclarecer que gostar ou desgostar (da aula, da
proposta, do resultado do trabalho) não chega a ser critério de avaliação, nem
para mim e nem para eles. Com relação às expectativas e objetivos: costumo
pedir aos alunos, no primeiro dia de aula, que verbalizem sua expectativa em
relação ao curso, em poucas palavras, que são ditas em voz alta e clara, jogadas
com um gesto em direção ao centro da roda, a “fogueira”. É a resposta a um “o
que você veio buscar aqui”. Isso serve para um conhecimento, ou
reconhecimento: meu, em relação a cada um deles, de cada um em relação aos
outros e, principalmente, cada um em relação a si mesmo. E o conjunto de
respostas dá uma “temperatura” do grupo. O objetivo, para o trabalho que se
realiza, é sempre o de aprimoramento: como atores e como pessoas. Essa
relação é bastante problematizável e não vou entrar na questão. Sim, o teatro é
sabida e comprovadamente terapêutico, mas um bom ator não é
necessariamente uma “boa pessoa” – o que também precisaria de uma
definição. Clima – frio ou calor, chuva ou sol. Isso interfere nos humores, assim
como os acontecimentos recentes: a aula anterior, a aula que virá logo depois.
A relação entre professor e aluno é uma sintonia muito fina, delicada. Há as
afinidades, e o quanto elas interferem no trabalho depende tanto do professor
quanto do aluno. É claro: se a sintonia é boa, permite-se que ela prevaleça, mas
e se não é, como fazer para que não interfira na relação de troca que acredito

11
Intuição, segundo Nereida Fontes Vilela é a “habilidade que permite o ver, o perceber e o
discernir de forma clara ou imediata; que torna possível e palpável o pressentir; que promove
o conhecimento e a compreensão por caminhos diversos daqueles localizados por meio da
razão ou do saber analítico” (2010: 260).
necessária para que o almejado aprimoramento ocorra? É melhor para todos a
afinidade também entre os vários professores, quando se trata de um curso
neste moldes, por motivos óbvios. Quando todos acreditam no mesmo teatro, as
solicitações e demandas em relação aos alunos sendo coerentes, todo o trabalho
flui melhor, e é bonito de se ver seus rostos iluminados quando o que se diz faz
sentido ou complementa o que outro professor disse. No entanto, gosto de alertar
que o aluno não precisa “acreditar” em tudo o que o professor diz, ou prega, e
que tem todo o direito de discordar. O perigo é quando o faz levianamente.

Indo, faceira, para o primeiro dia de encontro com os alunos atores, sentamo-
nos em roda e exponho o que considero uma espécie de declaração de
princípios. Digo para os alunos:

1. No nosso trabalho não tem certo e errado. Tem, sempre, o seu modo pessoal
de se expressar, de se comunicar. O que pode estar “errado”: conduzir sua
resposta corporal à proposta de um modo que parece não contemplar os
objetivos almejados; responder “apenas” com o corpo, o que me leva ao impulso
de cutucar o aluno e perguntar; “tem gente aí?” 2. São objetivos primordiais:
trazer os movimentos à flor da pele – e é tão bonito pensar que a pele tem uma
flor, de modo a ser capaz de responder com movimento de forma imediata, a
qualquer tipo de estímulo e/ou impulso interno (quando poderia ter o nome de
motivação) e externo. 12 3. Estamos atrás de uma atuação em que pensamento
e ação são a mesma coisa. 4. Se precisar chegar mais tarde ou sair mais cedo,
faça de forma imperceptível. Observe o que está acontecendo e se inclua,
encontre um lugar para si. Ao sair, faça com o cuidado e delicadeza necessários
para não romper a rede que se criou entre todos, que é formada pela imbricação
do corpo etérico de cada um.13 5. Não me olhem durante o trabalho. Passo a ser

12
Aprendi, com Meyerhold, o princípio da reflexologia de Pavlov: primeiramente, tiro a mão e
depois penso que o chão estava quente e, no conhecido exemplo da psicologia de William
James. “Vejo um urso, tremo e sinto medo”, o mais interessante está em: sinto medo porque
tremi. Referências a essa filiação de Meyerhold ao taylorimo, à reflexologia soviética e à
psicologia americana encontram-se em Picon-Vallin (2006); Meyerhold (1980); Faleiro (2007);
Bonfitto (2002). Ver ainda em: MEYERHOLD, Vsévolod. “O Ator do Futuro e a Biomecânica”
neste mesmo capítulo.

13
Segundo Nereida Fontes Vilela e João Celso dos Santos, o etérico é “um corpo que olha tanto
para o inconsciente quanto para o consciente. [...] No plano sutil, o Corpo Etérico transporta e
uma voz que conduz, instrui. Almejamos que cada um saia do cotidiano e se
instale num lugar de ficção teatral, que nada tem a ver com dramaturgia, e de
que eu não faço parte. Minha presença representa a “vida real”. Não interessa.
6. Inicia-se a aula com todos sentados em círculo. Então, abre-se a roda para
perguntas, ou depoimentos sobre a aula anterior; exponho as propostas do dia,
abre-se para dúvidas, que serão respondidas apenas na medida em que a
resposta não interfira no modo de criação do aluno. Por acreditar que este
momento é de grande potência para gerar um estado de predisposição para o
trabalho – quando é “quente” os alunos começam a quicar no lugar, prontos para
começar a agir -, dali parte-se imediatamente para a primeira proposta, em geral
chamada de “aquecimento”, e só voltamos a conversar no final da aula, o que
nem sempre acontece. 7. Há um pacto entre mim e cada um deles. A eles
compete fazer tudo o que pensam, a mim, dizer tudo o que me vem à cabeça.
Eu cumpro. Acredito que o que penso é produzido pelo encontro entre todos os
que estão na sala de trabalho, unidos pela mesma intenção, que é fazer Teatro.
8. O que nos move é o prazer, a alegria.14

OS CONTEÚDOS Dos conteúdos que costumo propor aos alunos, especifico


aqui duas unidades: Objetos e Manipulações.

Objetos15

Chego aos Objetos pelo Tato, por sua vez abordado juntamente com os outros
sentidos num item programático denominado Os sentidos e sua relação com o
movimento. O objetivo é tornar os alunos mais vivos, acreditando na
possibilidade efetiva daquilo que aprendi com Feldenkrais e que sempre
acreditei ser o estado fundamental, o que sustenta o ator quando está agindo
em nome do teatro: a ATENÇÃO*16. Parece redundante referir ao “ator quando

transmite os impulsos-mensagens, que são códigos que suscitam e impulsionam a inspiração, o


desejo e a vontade – forças geradoras do movimento” (2010: 25).

14
“O actor só pode improvisar quando está possuído de alegria interior” (Meyerhold, 1980: 281).
15
“Os objetos são os parceiros do ator, eles também têm seu ‘texto’. Entre suas mãos, tornam-
se uma parte de seu corpo.” (MEYERHOLD apud Picon-Vallin, 2006: 44).

16
Uma nota da tradução do livro Consciência pelo Movimento esclarece que, na ausência de
uma tradução exata para awareness, serão utilizadas as palavras “consciência, conscientização,
está agindo em nome do teatro”. O que quero dizer é que só acredito neste ator,
o que trabalha em nome do teatro, da sua arte, e não em seu próprio.

No estado de ATENÇÃO* estão ativados e conscientes, quatro fatores:


sensações, sentimentos, pensamentos e movimentos 17. Estar consciente,
segundo Bergson (2009), é tomar decisões – isso dito com a maior simplicidade,
talvez comprometedora18. Damásio oferece uma riqueza imensa de pensamento
indagativo, que conduz à ideia de um amalgamento entre mente, subjetivação e
o que ele denomina de sentimentos de conhecimento, que “estabelecem uma
distinção entre o eu e não-eu” (DAMÁSIO, 2010: 24). Completo, satisfeita, com
o que percebo nos ensinamentos de Feldenkrais: estar consciente é pensar no
que faz enquanto faz. Simples assim. Os quatro fatores estão sempre ativos no
estado de vigília e, idealmente equilibrados no ator em estado de criação. Na
espécie de transe em que o ator se instala no ato criador, modificam-se as
qualidades, as especificidades do pensamento cotidiano, conhecido, re-
conhecido, o que, às vezes, faz parecer ao ator que ele “parou de pensar”. Pode-
se dizer, também, que consciência é um “estado de presença”, aquele em que
não há passado nem futuro, o do aqui-agora do acontecimento teatral.
Responder com movimento aos impulsos19vindos dos sentidos ativados favorece
a experiência de estar nesse estado de presença. Aprecio imensamente o
trabalho com Objetos que, propostos aos alunos a propósito do Tato, vai muito
além, abarcando a Visão, a Audição (eventualmente o Paladar e o Olfato, de

percepção, seguidas de asterisco” (1977: 50). Optei por ATENÇÃO* - em caixa alta, para
apontar seu grande valor e com asterisco para indicar sua especificidade.

17
Feldenkrais, em Consciência pelo Movimento justifica a abordagem terapêutica do ser pela
via do movimento, como garantia de acesso à sua totalidade (1977: 53). É interessante
associar com o Método das Ações Físicas, de Stanislavski e outros trabalhos de formação do
ator daí decorrentes.

18
“Quer consideremos o ato decretado pela consciência ou a percepção que o prepara, nos
dois casos a consciência aparece-nos como uma força que se insere na matéria para apossar-se
dela e voltá-la para seu proveito” (Bergson, 2009: 16).

19
Segundo Nereida Fontes Vilela, impulsividade é a atuação irrefletida, que obedece ao
impulso e ao grau de excitação do momento (2010: 261).
acordo com os objetos disponíveis), o Espaço, a Locomoção, o Tempo-Ritmo e
a Comunicação. Na execução das propostas, elementos como disponibilidade e
entrega; desapego e generosidade. Somados, resultam em porosidade e
interação; consciência e percepção. As etapas reconhecidas por Laban (1978:
109 e 131), como exercidas pelo ator/bailarino na relação com objetos e pessoas
– nomeadas como Atenção, Intenção, Decisão, Contato e Separação – oferecem
uma das bases do trabalho. Traduzo-as com simplicidade: a Atenção está
conectada aos sentidos e pode se dar não só concretamente, mas também pela
imaginação, considerando as propriedades da memória sensorial; a Intenção
aparece associada a desejo, impulso; através da Decisão, opera-se a opção por
o que fazer com o impulso e o Contato fisicaliza essa Decisão. A proposta se dá
em estágios de realização, aqui sintetizados. Ao aluno ator é solicitado:

1) Considerando as etapas, ir até sua bolsa e apanhar o que considerar


adequado para trabalho20; 2) Selecionar um lugar da sala para colocar o objeto,
realizando a etapa da Separação e colocar-se na periferia da sala; 3) Atenção:
observar os objetos, ativando sua memória sensorial. A Visão é suficiente para
trazer outras informações/sensações; evitar nomear o objeto internamente;
evitar considerá-lo por sua utilidade. Absorver o objeto pelo que ele é
materialmente e não pela sua utilidade prática; 4) Intenção: passar a desejar os
objetos, sempre pela sensorialidade, reconhecendo os impulsos que os objetos
despertam; 5) Decisão: selecionar o objeto com que deseja se relacionar; 6)
Contato: ir até o Objeto e passar a agir com ele. Neste momento de se aproximar
do Objeto, compreender que o Movimento de Locomoção utilizado é
determinado pela relação já estabelecida com o objeto pelo olhar (Visão), em
que estão contidas as informações/sensações advindas dos outros sentidos
despertadas pela memória. Essa locomoção será desenvolvida por diferentes
modos de execução do rastejar, engatinhar, andar, correr e saltar. A trajetória
descrita no Espaço pela Locomoção, assim como o Tempo-Ritmo, também são
função do somatório entre impulso e decisão, que essa etapa concretiza. A
trajetória pode se dar considerando, ainda com Laban, o Espaço Direto ou

20
O objeto adequado é inquebrável e prescindível. A ideia é que objeto é que se escolhe e o
aluno segue esse chamado.
Indireto e, em relação ao Tempo-Ritmo, o foco está no uso de diferentes
andamentos e na presença ou não de pausas. 7) Agir com o objeto, evitando
sempre e enfaticamente qualquer alusão ao realismo, e considerando os
seguintes momentos: a) movimentar-se com o objetivo de perceber o objeto pelo
Tato, confirmando ou não as informações trazidas pela memória sensorial; b)
movimentar o objeto, num jogo que pode ser traduzido por “eu movimento o
objeto, o objeto me movimenta”; c) movimentar-se com o objeto, movimentar-se
para o objeto.

As principais instruções que verbalizo durante a realização da proposta orientam


o aluno para: a ressonância dos gestos no corpo todo; a certeza de que o que
está sendo feito é determinado pelo objeto, garantindo que não haja respostas
corporais prontas, anteriores ao aqui-agora; a percepção dos menores gestos, a
favor de um olhar que consiste em tornar estranho o que é familiar, de des-
cotidianizar as atitudes, de transformar o “natural” em linguagem artística.
Enfatizo, sempre, a ação de pensar no que se faz enquanto faz. Estou certa de
que essa atitude, de modo algum, provoca uma realização mais mental do que
emocional. A consciência e a fisicalidade, acompanhadas do prazer que o
movimento proporciona, garantem o equilíbrio entre os componentes da vigília,
apontados por Feldenkrais (1977: 50), trazendo, em consequência uma atuação
viva, vivaz. A proposta evolui para: trocas constantes de objetos entre os alunos-
atores; um ator e dois objetos; dois atores e um objeto; dois atores e dois objetos;
aproximar-se, afastar-se e circundar os objetos, eliminando o Tato do jogo
relacional. E ainda outras várias possibilidades de variações e construção de
sequências de movimentos.

Figura 8. Alunos de Expressão Corporal I, trabalho com objetos, UNIRIO, 2012

Manipulações

Conheci as sequências de Manipulação nos ensaios preparatórios para a


encenação de A vida como ela é, dirigida por Luís Artur Nunes como o Núcleo
Carioca de Teatro, em que trabalhei como atriz, em 1992 21. O trabalho é

21
Nunes conheceu este trabalho em workshop realizado nos anos 1980 com o Performance
Group, dirigido por Richard Schechner (1934). 22. Considero impossível que se atinja este
estado por completo, no corpo inteiro, e durante todo o tempo de realização do exercício.
realizado sempre em duplas, numa relação ativo-passivo, em que o primeiro é o
manipulador e o segundo é o manipulado, numa dinâmica análoga a do
bonequeiro e seu boneco. Todo o contato corporal feito pelo manipulador tem a
função de produzir movimento ou de atuar como apoio para o corpo do parceiro.
Os objetivos principais são os de proporcionar ao aluno ator: percepção de
diferentes graus de tensão, eventualmente associados a estados emocionais
específicos; precisão no desenho gestual; adequação dos gestos e movimentos
a propósitos definidos; possibilidade de eliminação de pontos de tensionamento,
de modo que o movimento repercuta no corpo inteiro; o exercício de ser fiel a
um impulso recebido; confiança e interação com o par, e ainda outros. As etapas
sequenciadas das Manipulações ocorrem baseadas na modificação do centro de
gravidade no corpo do boneco. São denominadas de: Morto, Macaco, Bêbado,
Impulso, Mola, Bonecos Chineses e Fotograma. Vou me deter brevemente sobre
cada uma delas: No Morto, o boneco encontra-se idealmente num grau zero de
tensão, sem qualquer tonicidade muscular e, portanto, sem possibilidade de
sustentação e equilíbrio próprios, entregue à ação da gravidade.22 A posição
inicial para o boneco é, portanto, deitada. Cabe ao manipulador produzir
movimentos num corpo que não se movimenta. O contato físico com o boneco
se dá com esta finalidade clara, a de produzir movimento, para o que o
manipulador empenha todo o seu corpo. A posição inicial do Macaco é em pé.
Cabeça, braços, e tronco relaxados à frente, as mãos na altura dos joelhos, que
estão dobrados, para que o centro de gravidade do corpo esteja em forte
conexão com o chão, através das plantas dos pés, que, consequentemente,
dificilmente sairão do lugar, em locomoção. É a partir deste estado do boneco
que o manipulador vai produzir os movimentos. No Bêbado, aparece uma
tonicidade maior nos tornozelos, pernas, pélvis e tronco, permanecendo em
estado de relaxamento a parte alta das costas, os braços e a cabeça. A
flexibilidade nos tornozelos, joelhos e articulação coxofemoral permite ao
manipulador que faça o boneco realizar alguns deslocamentos no espaço, com

Tenho observado uma dificuldade especial de relaxamento completo nas regiões do pescoço e
das coxas.

22
Considero impossível que se atinja este estado por completo, no corpo inteiro, e durante todo o
tempo de realização do exercício. Tenho observado uma dificuldade especial de relaxamento completo
nas regiões do pescoço e das coxas
uma qualidade semelhante ao andar típico do bêbado. O boneco movimenta-se
numa relação entre equilíbrio e desequilíbrio, oscilando sobre o seu eixo vertical,
num grau maior ou menor, conforme os impulsos recebidos do manipulador.
Sempre levando em conta o aumento da tonicidade muscular, a etapa seguinte,
que denomino de Impulso, caracteriza-se por um “estado de leveza”, em que há
um equilíbrio delicado entre duas forças opostas: a da gravidade, que atrai o
corpo do boneco para o chão – que é menor do que no Bêbado - e a força
corporal de sustentação que o próprio ator-boneco exerce e que o mantém
alinhado, ereto, em pé, mas num estado geral de soltura, observável no pescoço
e nos braços, principalmente. Aqui, qualquer pequeno impulso exercido pelo
manipulador transforma-se em um movimento de grande extensão, pela
disponibilidade corporal em que se encontra o boneco, cuja sensação é a de
estar “livre, leve e solto”. O prazer da sensação favorece a expressão facial
correspondente. Na Mola há um ponto de partida que é o movimento pendular
contínuo das articulações – coxofemoral, joelhos e tornozelos – mantido pelo
boneco, com os pés firmemente apoiados no chão, cabeça e braços soltos,
tronco ereto, mas flexível, leve. Qualquer movimento produzido pelo manipulador
terá como resultado a realização de pequenos saltos, que repercutem no corpo
todo, pela ausência de tensão excessiva. Estes saltos serão maiores ou menores
em altura e extensão, de acordo com o esforço e o desenho que a manipulação
imprimir. Os Bonecos Chineses23 apresentam uma forma mais sofisticada de
manipulação. O boneco tem seu corpo numa tonicidade equilibrada, o que
significa autossustentado e flexível. O manipulador está colocado exatamente às
costas do boneco, segurando-o pelo antebraço, logo acima dos punhos e
exercendo sobre ele uma dinâmica de gestos em ações contínuas, fluentes.
Estabelece-se entre os dois tal grau de sintonia, integração e harmonia que é
como se o manipulador sugerisse o movimento, cabendo ao boneco
compreender e finalizar. É nesta etapa que se dá uma maior participação do
boneco. São dele as expressões faciais e a finalização dos movimentos, como a
colocação de pés e eventuais detalhes de mão. Além disso, o boneco tem a

23
A aparente inspiração no bunraku, técnica japonesa de manipulação de bonecos, faz crer
que “bonecos japoneses” seja um nome mais adequado. No entanto, originalmente é
denominado de chinese puppets.
liberdade de criar pequenos movimentos que venham compor de forma coerente
as sugestões e os impulsos recebidos do manipulador, completando-os. De tal
modo que a manipulação, aqui, é quase uma indicação, delicada, sutil, se bem
que sempre atuante e indubitavelmente presente. O Fotograma, em termos de
tensão corporal, significa que o boneco mantém-se alternadamente firme e
flexível, de modo que o manipulador possa movimentá-lo sem esforço, para em
seguida, imprimir o grau de tensão necessário não apenas para permanecer na
pose em que foi colocado, mas utilizando um grau além, para defini-la como uma
atitude estática, uma escultura; e não uma pausa numa ação, com o tônus
aproximado do cotidiano. O manipulador coloca o boneco na posição pretendida
sempre pelo caminho mais curto, e afasta-se, enfatizando que o movimento de
passagem de uma pose para outra não tem valor expressivo. Como nos Bonecos
Chineses, as expressões faciais e os dedos das mãos são definidos pelo ator-
boneco, que deve captar a intencionalidade imprimida pelo manipulador na
construção da atitude corporal desejada e completá-la com a expressão de rosto
que considere adequada.

ESTADOS CORPORAIS DAS ETAPAS: MORTO, MACACO, BÊBADO E


IMPULSO

Figura 9. Alunos da disciplina Expressão Corporal III, UNIRIO, 2012

Além dessas duas unidades de trabalho corporal aqui especificadas, proponho


ainda aos alunos-atores realizações de movimentos com foco na exploração do
Espaço, considerado em suas variações de: Espaço Pessoal, Espaço Parcial e
Espaço Total. Trabalhamos, de igual modo, as Ações Básicas e os Impulsos, de
acordo com Laban; a Manipulação de Objetos Imaginários; e algumas
sequências de movimentos inspiradas na Biomecânica de Meyerhold. O
universo de expressão pelo movimento aí contemplado parece-me possibilitar
ao aluno ator o contato efetivo e comprometido com seu Ser, artista e criador.
Atualmente, quando me perguntam o que eu faço, respondo que dou aula de
Corpo para atores, e me percebo sorrindo internamente. Acho que foi o que eu
sempre quis fazer. E acho, também, que cada vez mais minha aula quer premiar
algo mais do que o Corpo, ou ir até onde o Corpo pode ir, que é além, muito além
dos limites convencionais do nosso corpo. Na variedade de referências com que
gosto de lidar, acrescentei mais algumas: a Leitura Corporal de Nereida Fontes
Vilela; a Linguagem Orgânica, de Alex Fausti; e a Yoga Suksma Vyayama. Estas
referências estão me encaminhando para uma abordagem do Corpo em direção
ao infinito. Ao Corpo Infinito do Ator...

Quando se dá aula há muito tempo, parece que a aula não é assim tão
importante.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Gerda. Eutonia: um caminho para a percepção corporal. São


Paulo: Martins Fontes, 1983. ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. São
Paulo: Max Limonad, 1984. BERGSON, Henri. A energia espiritual. São Paulo:
Perspectiva, 2009. BERTHERAT, Thérèse. O Corpo tem suas Razões. São
Paulo: Martins Fontes, 1977. BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo:
Perspectiva, 2002. DAMÁSIO, António. O Livro da Consciência. A Construção
do Cérebro Consciente. Lisboa: Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2010.
DIGELMANN, Denise. La eutonia de Gerda Alexander. Buenos Aires: Paidós,
1976.

159

EHRENFRIED, L. Da educação do corpo ao equilíbrio do espírito. São Paulo:


Summus, 1991. FALEIRO, José Ronaldo. Marionetes & teatro contemporâneo.
Móin-Móin. Revista de estudos sobre teatro de formas animadas. Ano 3, Nº 4,
2007. FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo Movimento. São Paulo,
Summus, 1977. __________. Caso Nora. São Paulo: Summus, 1979. HANNA,
Thomas. Corpos em revolta. Campinas: MM, 1976. LABAN, Rudolf. Domínio do
movimento. São Paulo: Summus, 1978. MEYERHOLD, Vsévolod. O teatro
teatral. Lisboa: Arcádia, 1980. PICON-VALLIN, Béatrice. A arte do teatro: entre
tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Rio de Janeiro:
Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006. STOKOE, Patricia. El Niño y
la expresión corporal. Buenos Aires: Ricordi, 1979. VILELA, Nereida Fontes e
SANTOS, João Celso dos. Leitura corporal – a linguagem da emoção inscrita no
corpo. Belo Horizonte: Núcleo de Terapia Corporal, 2010.

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