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Uma Discussao Conceitual Sobre o Governar o Portugal Seiscentista PDF
Uma Discussao Conceitual Sobre o Governar o Portugal Seiscentista PDF
Nesse sentido, admitir a historicidade dos conceitos, ao invés de uma visão co-
natural, significa reconhecer que os sentidos aos quais determinado conceito remete
1
A presença do saber teológico e dos teólogos nas matérias políticas “é uma traço dessa outra época em que os
dados respectivos ao funcionamento da respublica eram subordinados a uma concepção teológico-moral do
mundo” (XAVIER, 1998, p. 172).
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Segundo Rotelli (2003), embora não se saiba precisar com exatidão a data de aparecimento da expressão antigo
regime, pode-se afirmar que ela teve seu uso expandido a partir do ano de 1790. No entanto, o autor mostra
também que antes de prevalecer, os constituintes usavam também outras expressões, como, por exemplo, regime
precedente, regime antigo e velho regime, para referir-se a ordem de coisas a qual se opunham e que julgavam
estar destruindo.
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Ver também: GOUBERT, Pierre. L’Ancien Régime (Sociéte – Pouvoirs). Paris: Armand Colin, 1969. 2 v.;
FURET, François. Ancien Régime. In: ______; OZOUF, Mona. Dictionnaire critique de la Révolution
française. Paris: Flammarion, 1988. p. 627-637. VENTURINO, Diego. La naissance de l’ ‘Ancien Régime’. In:
LUCAS, Colin (Ed.). The French Revolution and the Creation of Modern Political Culture: The Political
Culture of the French Revolution. Oxford: Pergamon, 1989. v. 2. p. 11-40.
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coisas, sendo objeto do direito e podendo, inclusive, sua observância ser postulável em
juízo.
Etiqueta e boas maneiras, precedências, manifestações corporais, a forma de
falar e até as mais íntimas relações não eram meras questões de educação pessoal, mas
uma questão de honra, servindo para identificar a posição, o grupo social ao qual
pertenciam os interlocutores, funcionando, logo, como mecanismo de diferenciação
social.
De acordo com Maravall, a honra seria um dos eixos estruturantes das
sociedades ibéricas da época moderna, na medida em que ela delineava os princípios
jurídicos e sociais vigentes, através das quais eram mantidos os laços de solidariedade,
amizade e, em última análise, de dependência entre os indivíduos. A honra, na visão do
autor, teria uma dupla função integradora, pois funcionaria como discriminador de
estratos e comportamentos, criando, dessa forma, estatutos particulares e extremamente
diferenciadores e também seria um princípio distribuidor de privilégios.
Na sociedade estamental, como a sociedade portuguesa da época moderna, a
identidade individual e social de um indivíduo, o que era praticamente a mesma coisa,
dependia do seu pertencimento e aceitação dentro de um determinado grupo social. Sua
posição na sociedade determinava, em certo sentido, as funções que poderia
desempenhar, como também ditava as normas de comportamento que deveria observar.
Como afirma Maravall,
tudo, vestidos, joiás, linguagem, sentimento, não menos que comida e a habitação,
que jogos ou esportes e uso de armas, etc., se havia distribuído segundo criterios de
hierarquia estamental (MARAVALL, 1989, p. 25, tradução nossa).4
Embora isso ocorresse em todos os níveis da hierarquia social, nos estratos mais
altos o sentido de pertencimento ao grupo e a necessidade de uma plena aceitação por
parte de todos os membros, adquiriu matizes muito particulares e se desenvolveu com
mais força devido ao fato de que estas esferas sustentavam o poder e, portanto, a razão e
a origem do sistema estabelecido. Assim, a questão da honra, com todas as suas
implicações para a vida cotidiana, determinou o comportamento da nobreza e dos
demais estamentos.
Dessa forma, a inserção em determinado grupo obrigava o indivíduo a observar
e comportar-se de acordo com uma série de deveres próprios da condição do grupo no
qual estava inserido. O prestígio que um determinado grupo possuía estava relacionado
4
O texto em língua estrangeira é “[...] todo, vestidos, joyas, lenguaje, sentimientos, no menos que comida y
vivienda, que juegos o deportes y uso de armas, etc., se halla distribuido según criterios de jerarquía estamental”.
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com uma série de planos de valores, que eram reconhecidos pela sociedade e
representavam diversos níveis de estratificação. Além disso, a cada estrato social
cabiam atribuições e deveres, aos quais correspondiam retribuições e recompensas pelo
desempenho dessas atividades. Estas, por sua vez, eram conferidas aos indivíduos não
por sua pessoa, mas por seu pertencimento a um dado grupo estamental.
Portanto, o indivíduo só conseguia ascender até o nível onde pessoas do seu
grupo podiam chegar. Isso se deve ao fato de que o monarca, justiceiro e dispensador
das remunerações, não podia atribuir a um indivíduo mais do que era próprio àqueles do
seu estatuto, sob pena de ser tomado como injusto e desigual e, em consequência,
ameaçar o equilíbrio social estabelecido.
Nesse sentido, a lógica da honra servia à preservação da ordem estamental e,
portanto, a estratégia de ascensão social era sempre realizada de forma individual e não
por um grupo, ou seja, não criava jurisprudência a favor de todo o grupo do qual o
indivíduo fazia parte. Isso porque a ascensão de todo grupo destruiria ou, pelo menos,
poderia ameaçar a ordem estamental. A possibilidade de ascensão individual, ao
contrário, reforçava a ordem estamental e, principalmente, a hierarquia, na medida em
que ela era dispensada diretamente pelo próprio rei. Apesar disso, é preciso ter em conta
que o indivíduo não era remunerado somente pelos seus serviços, mas também pela
ação dos seus antepassados na defesa do interesse régio.
Sendo a ordem de Deus, em sua origem, um ato de amor e sendo os homens
naturalmente propensos à bondade e ligados por afeições, o princípio básico de todos os
membros da sociedade, desde a família até as instituições políticas, era o de zelar pelo
bem comum. Esse modo de conceber a sociedade se baseava na crença, existente na
tradição cultural e política européia, notadamente no mundo ibérico, de que os homens e
as coisas possuíam uma ordenação “natural”, estabelecida por Deus, onde cada qual
teria sua posição e função definida “naturalmente”, orientada “para um fim último, que
o pensamento cristão identificava com o próprio Criador” (HESPANHA; XAVIER,
1993, p. 122), não cabendo, e nem devendo, aos homens questionar tal ordenamento.
Essa concepção sobre a conformação da sociedade se fundamentava no chamado
paradigma corporativista, segundo o qual a sociedade era imaginada como um corpo,
onde cada uma das partes que o compunham, ordenado de maneira natural e
hierarquizado pela vontade divina, possuíam funções diferentes, com vistas à
consecução de uma causa final, que os transcendia. A ordem da criação, dessa forma,
era entendida como uma unidade da ordenação, “que não comprometia, antes
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O aristotelismo, segundo Ângela Barreto Xavier (1998, p. 22), enquanto concepção filosófica, desempenhou um
papel “dominante e estruturante”, no Portugal do século XVII, servindo para embasar diferentes, e por vezes
antagônicos, discursos e práticas políticas.
6
De acordo com Ângela Barreto Xavier (1998, p. 104-105), os colégios da Companhia de Jesus situavam-se, em
sua grande maioria, próximos a importantes centros urbanos administrativos, mostrando “sua vocação para
educar grupos que [...] estavam próximos das decisões políticas, ou detinham posições privilegiadas na
conformação do imaginário. [...] Esta vizinhança entre a companhia e o poder fez com que, em muitos países, ela
constituísse um auxiliar imprescindível (ou um adversário a temer) na luta política. Era o caso de Portugal.
7
Segundo Arno Wehling (2001, p. 54-56), “o domínio escolástico em matéria de pensamento foi inconteste no
período colonial, praticamente até o final do século XVIII. Derivava-se da escolástica-coimbrã, que atingiu alta
significação no pensamento de modelo aristotélico-tomista europeu até princípios do século XVII. Nele,
entretanto, cabia, como na matriz lusitana, largo espectro de correntes, sobretudo tomistas e escotistas, bem
como a presença tópica de elementos não-escolásticos, sobretudo no campo científico [...] discutindo e às vezes
incorporando teses de homens como Tycho Brahe, Copérnico, e mesmo Bruno e Galileu. [...] Tal aspecto deve
ser sublinhado, uma vez que a historiografia das ideias sofreu a influência das concepções iluministas, liberais e
socialistas que anatemizaram o pensamento jesuítico como mera reafirmação da escolástica decadente dos
séculos XIV e XV, quando ao contrário constituiu-se em nova inflexão intelectual que procurava
simultaneamente manter-se fiel à articulação entre a filosofia aristotélica e a teologia cristã e responder aos
desafios dos ‘mundus novus’ do renascimento”.
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Para um maior detalhamento sobre essas questões remeto à obra As fundações do pensamento político moderno,
de Quentin Skinner (SKINNER, 2006, p. 417-421).
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Segundo Skinner (2006, p. 453), Suárez propunha que “tal como no caso de um indivíduo, [...], para quem ‘o
direito de preservar a própria vida é o maior de todos os direitos’, também no caso de uma república, ‘que o rei
esteja de fato agredindo com o objetivo de injustamente destruir e matar os cidadãos’, deve existir um direito
análogo à autodefesa, que ‘torna legal para a comunidade resistir a seu príncipe, e até mesmo matá-lo, se não
houver outro meio para ser preservar’”. Essa postura se justificava, pela compreensão de que o direito a
autopresevação da comunidade não podia ser cedido, como os demais, pelo povo ao soberano.
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A teoria política enunciada pelos jesuítas, na virada dos séculos XVI-XVII, apresentava-se aberta à capacidade
de escolha do homem na determinação das leis, direitos, natureza do poder etc. Nesse sentido, de acordo com
Skinner (2006, p. 450), os inacianos anteciparam, em muito, a gênese do pensamento político moderno. Além
disso, mesmo sem ter a real consciência do alcance dos seus atos, forneceram os primeiros elementos do ideário
constitucionalista na Europa.
O catolicismo jesuítico, com uma retomada do tomismo teve fundamental importância no desenvolvimento da
moderna teoria do Estado. As ideias da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino, foram, no século XVI, o
eixo da restauração e modernização da teologia ibérica e repercutiram nos campos da política e do direito.
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como a faculdade que permitia a ele tomar a melhor decisão para cada situação, outra
virtude que devia ser cultivada pela pessoa real.
A justiça, portanto, não podia ser exercida individualmente, antes pressupunha a
existência de uma relação, em que cada elemento recebia aquilo que justamente lhe era
de direito. Em síntese,
a justiça correspondia a possibilidade que cada coisa tinha para realizar os fins para
que fora criada [...] e, por outro, o respeito que cada coisa devia ter pelas criaturas que
eram vizinhas, não pretendendo mais do que lhe era devido. É que a ordem recíproca
das coisas era o bem do universo (XAVIER, 1998, p. 125).
Nesse sentido, entendo que as monarquias modernas não podem ser pensadas
como estruturas administrativas centralizadas, governadas por um rei onipotente, que
possuía em suas mãos todo o poder, para utilizá-lo a seu bel-prazer, pois a própria
realeza francesa, modelo de centralização para os contemporâneos e para a produção
historiográfica especializada, tinha, segundo o historiador alemão Hagen Schulze, um
espaço de atuação bastante limitado nas terras dos grandes senhores, das cidades e da
Igreja. Seu poder exerceu-se, em várias ocasiões, apenas de forma indireta, tendo como
principal função, o papel de árbitro e juiz, solucionando as questões e contradições
“entre regiões mais ou menos autônomas, [entre] os diversos grupos sociais e os
interesses superiores do [reino]” (SCHULZE, 1997, p. 35), à medida que elas surgiam.
A partir dessa discussão, proponho uma reflexão a respeito do que caracterizaria
o antigo regime nos trópicos, expressão utilizada, num primeiro momento, como título
do livro coordenado pelo professores João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Maria
Fernanda Bicalho (2001). As ideias presentes, nos diversos trabalhos que compõem a
referida obra, buscam apresentar elementos que permitam a constituição de uma nova
forma de análise histórica sobre a dinâmica do Império português entre os séculos XVI
e XVIII. São apresentadas questões peculiares da administração e da sociedade dos
territórios ultramarinos, buscando revisitar e rever o chamado antigo sistema colonial,
e, com isso, flexibilizar a dicotomia metrópole versus colônia, em que se destacava a
exploração econômica da primeira sobre a segunda. Os autores da obra se propuseram a
discutir o conceito de antigo regime no ultramar a partir da percepção de que a
sociedade e as instituições políticas na América portuguesa se encontram inseridas num
mesmo contexto marcado “por regras econômicas, políticas e simbólicas de Antigo
Regime” (BICALHO; GOUVÊA; FRAGOSO, 2001, p. 21).
Em que pesem as discussões, em torno da questão, suscitadas pelos textos de
Vera Lucia Ferlini (2005), no prefácio do livro Modos de Governar, e, principalmente,
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de Laura de Mello e Souza, na recente obra O Sol e a Sombra, na qual afirma que a
utilização da ideia de um Antigo Regime nos trópicos poderia “amenizar as contradições
e privilegiar olhares europeus” (SOUZA, 2006, p. 69), não irei adentrar aqui no debate
sobre a pertinência ou não do uso de tal expressão. Indico apenas que, utilizando como
referência os estudos de William Doyle, para quem seria possível falar de um antigo
regime europeu, acredito ser pertinente o uso do conceito de antigo regime nos trópicos,
entendido não apenas como uma extensão ou prolongamento dos impérios europeus do
Antigo Regime, mais principalmente como um produto de suas ações.
Dessa forma, afirmo o entendimento de que não é possível analisar essas
sociedades sem o reconhecimento de que elementos culturais, políticos, sociais e
econômicos guardam estreita semelhança entre os centros metropolitanos e as diversas
periferias ultramarinas, mesmo levando em consideração as especificidades –
geográfica, climática, étnico-racial – de cada território ultramarino, que obrigou, em
diversas ocasiões, adaptações dos modelos e mecanismos europeus11. Apesar disso,
reconheço que, embora as relações sociais e políticas na metrópole e no ultramar fossem
marcadas, via de regra, por elementos comuns, não se pode deixar de observar, como
salienta Silvia Hunold Lara (2005, p. 36), a existência de diferenças entre elas,
suscitadas “pela presença maciça de escravos e libertos nas conquistas [que] possuía
uma força disruptiva que precisa ser levada em conta e ser mais bem investigada”.
Por fim, embora utilize o conceito de antigo regime nos trópicos, quero destacar
que a percepção que orienta este trabalho é a de que a relação metrópole-ultramar, do
ponto de vista político-administrativo, que é nossa principal questão, está fundada do
binômio centro decisório/periferia subordinada. Com isso não quero negar a
importância dos poderes locais e da possibilidade de negociação, mas chamar a atenção
11
Em entrevista a Revista História da Biblioteca Nacional, a historiadora Laura de Mello e Souza afirma que a
sociedade existente na América não poderia ser vista como de antigo regime, pois “a lógica da colonização
altera a da sociedade de Antigo Regime [...] [, pois] ela é uma sociedade na qual o dinheiro passa a ter uma
importância incrível. É uma sociedade toda costurada pela escravidão. Nem Corte havia por aqui. Então, essa
qualificação de um ‘Antigo Regime nos trópicos’ explica pouco” (RHBN, n. 46, 2009, p. 54). Sem querer
aprofundar aqui a polêmica, gostaria apenas de assinalar que a opinião da referida historiadora parece de difícil
sustentação quando confrontada com as diversas trajetórias individuais, que mostram como homens de diversos
grupos e origens – índios, negros etc. – atuavam para a manutenção da governabilidade do Império português,
não somente por conta do dinheiro, pois como já assinalava o florentino Baccio de Filicaya capitão de artilharia
e engenheiro-mor do Estado do Brasil, em 1608, os soldos pagos pelos reis portugueses eram sabidamente
pequenos, mas em busca de obter do rei a concessão de terras, postos e ofício, enfim de honra. (Cf. VIANNA
JÚNIOR, 2006, p. 194).
Além disso, é preciso considerar também, como salientado por Pedro Cardim (2004, p. 148), em trabalho onde
faz uma boa recensão sobre a historiografia dedica ao período Habsburgo e aos primeiros anos da disnatia
Bragança, que “a maior parte dos ‘homens de negócio’ a operar nas rotas sulamericanas eram recém-chegados
ao Brasil, e que a maioria daqueles que enriqueciam acabavam por comprar terras, chegando alguns deles a
abandonar a mercancia”.
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12
Gostaria de sublinhar que as discussões em torno do conceito de absolutismo são produto, em sua maioria, das
reflexões de historiadores franceses, britânicos e alemães e na maior parte das vezes sequer mencionam a
experiência portuguesa. Apesar disso, utilizo aqui essas reflexões, pois elas ajudam a pensar sobre o que era
comum e específico na monarquia portuguesa e, dessa forma, construir uma caracterização dela o mais próximo
possível de seus contemporâneos.
49
13
Segundo Hespanha (1984, p. 7-89), a forma patrimonial-estamental de organização política faz parte da lógica
institucional do antigo regime, cujos elementos principais são: dom, contra-dom, graça e punição. Tais fatores
perpassavam todo o corpo político como dispositivos constituidores de compromissos hierarquicamente
estabelecidos e funcionavam como elementos agregadores, possibilitando a centralização política.
Sobre essa questão, ver também: António Manuel Hespanha. La economia da Graça. In: ______. La Gracia Del
Derecho: Economia de la cultura em la Edad Moderna. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1993. p.
151-176.
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dirimir os assuntos que podiam ser decididos com base nos repertórios locais de leis e
costumes.
Portanto, o sentido prático da autoridade política no antigo regime era o de
subordinar, preservar, confirmar ou adaptar as diferentes instâncias corporativistas,
sempre respeitando os limites impostos pela lei de Deus, pelas leis naturais do reino e
pelos privilégios que cada grupo possuía. Dessa forma, depreende-se que essa sociedade
estava assentada numa relação de interdependência entre os centros emergentes de
poder e as demais localidades, pois as iniciativas tomadas pelo poder central não
respondiam somente a interesses seus, mas também “é sabido que essas intervenções
[...] por vezes tenham sido pedidas pelas próprias autoridades locais” (PUJOL, 1991, p.
125), uma vez que precisavam, agora, responder a nexos sociais e espaciais que
escapavam ao seu controle imediato. Como bem lembra Norbert Elias, “seja uma
questão de terra, de soldados ou de dinheiro, sob qualquer forma, quanto mais é
acumulado por um indivíduo, menos facilmente pode ele supervisioná-los e mais
dependente se torna de seus dependentes” (ELIAS, 1993, p. 100).
Por isso, ao analisar as relações políticas e culturais entre a capital e os
territórios constituintes das monarquias européias, entre os séculos XVI e XVII, Pujol
assinala que sempre houve interação entre o centro e as localidades, bem como conflitos
e divergências, já que a comunidade local nunca foi passiva. Além disso, o autor
salienta também que, se o estudo das codificações de direitos e das compilações de
costumes locais indica que os poderes do centro souberam instrumentalizar as
localidades em seu favor, derrotando àqueles que se opunham ao movimento
sistematizador, isso não se deveu apenas a uma ação unilateral do primeiro, “mas
também às necessidades das próprias comunidades” (PUJOL, 1991, p. 136), como se
pode perceber, por exemplo, pelo “crescente prestígio da justiça real, considerada mais
técnica e imparcial, [o que] abriu muitas vezes o acesso de novos setores sociais a
ministros do rei” (PUJOL, 1991, p. 125).
Os organismos centrais, desde o século XV, aliás, de maneira cada vez mais
sistemática, buscaram a progressiva incorporação dos direitos jurisdicionais das cidades
51
14
Segundo Pujol (1991, p. 123), “a guerra e os seus custos cada vez mais elevados, constituíam o pano de fundo de
qualquer aspecto da política. A maquinaria bélica e a guerra propriamente dita, faziam sentir o seu peso ao
conjunto da sociedade, e não só pelas exigências fiscais, mas também através de uma lenta militarização dos
valores sociais”. Desse modo, a estruturação da sociedade passava necessariamente pela remuneração dos
serviços prestados, por parte do rei. Isso gerava uma interdependência entre o monarca e seus vassalos: o
primeiro num esforço de cooptação desses homens em busca da concentração de poder político, fiscal e
territorial; os segundos em busca de privilégios que assegurassem a manutenção de seus poderes e posições
dentro da esfera do reino.
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15
Cf. VIANNA JÚNIOR, 2006, p. 23-27.
53
com a revalorização das análises sobre o poder, em seus diferentes matizes, e também
pelas questões surgidas no processo de crise do chamado Estado nacional (GARRIGA,
2004).
Norberto Bobbio (1987) e Carlos Garriga (2004) mostram em seus trabalhos que
a opção por usar, ou não, a expressão estado para fazer referência ao ordenamento
político de época moderna estaria relacionada com o olhar do estudioso sobre seu
objeto, ou seja, se dá maior ênfase ao componente da continuidade ou da
descontinuidade, as analogias ou as diferenças.
Já Pedro Cardim (1999), em trabalho que aborda a questão do conceito de
Estado e de sua utilização para o período anterior às revoluções liberais em Portugal,
identifica duas correntes antagônicas na historiografia. Uma dessas vertentes sustenta
que o estado era uma entidade com forte presença na vida política do antigo regime
português. Nessa linha de argumentação, portanto, o processo de centralização, ocorrido
a partir do século XVI, se confundia com a gestação do Estado, que se apoderou dos
mecanismos de dominação, anulando a capacidade política dos outros corpos sociais,
monopolizando o poder político, concentrando as prerrogativas da tributação e do uso
da violência.
Xavier Pujol (1991), Hagen Schulze (1997) e Yves Déloye (1999), não
necessariamente tratando ou se referindo ao caso português, podem ser identificados
com essa vertente explicativa. De maneira quase semelhante, Pujol e Schulze, afirmam
que o estado europeu moderno, com determinada constituição territorial, possuindo um
poder burocrático e com algum grau de centralização, desenvolveu-se a partir dos laços
pessoais característicos do período medieval, marcando a afirmação da realeza sobre um
território, em certa medida, definido, a partir “de um centro cada vez mais perceptível –
a capital” (PUJOL, 1991, p. 119).
Yves Déloye (1999), por sua vez, sublinha outros aspectos para justificar sua
posição, enfatizando o tripé guerra, tributação e estado para explicar o aparecimento
deste último16. O autor afirma que o processo no qual se formou e construiu o Estado
moderno foi marcado por embates militares, e que este se reforçou “pela e na guerra,
com a finalidade de preencher funções de coordenação administrativa e militar, cada
vez mais complexas” (DÉLOYE, 1999, p. 61). A tributação ao atingir todos os súditos,
menos os que possuíam o privilégio da isenção, possibilitou ao Estado os meios
16
A importância da guerra e das necessidades dela decorrentes também são destacadas por Xavier Pujol (1991, p.
123).
54
17
Entre as obras citadas por Hespanha (1999), encontram-se diversos estudos do próprio autor, como por exemplo,
As vésperas do Leviathan e Portugal moderno: político e institucional, trabalhos de Nuno Gonçalo Monteiro,
José Manuel Subtil e Ana Cristina Nogueira – sobre os juízes de fora – e alguns textos do volume quatro do livro
História de Portugal, dirigido por José Matoso.
55
Nesse sentido, a partir das leituras efetuadas e dos dados empíricos que
disponho, não adotarei o termo estado no presente trabalho, seguindo, portanto, a
terminologia sugerida por Hespanha, que entende como mais pertinente o uso da
expressão “monarquia portuguesa [...] caracterizada como uma monarquia corporativa”
(HESPANHA, 2001, p. 166), na qual se reconhece que o poder régio compartilhava o
espaço político com outros poderes. Nesta, os direitos da Coroa se encontravam
limitados pelo direito comum e por práticas locais e os deveres políticos, inseridos em
redes clientelares e familiares, sustentados por laços de amizade, compadrio,
liberalidade, caridade, magnificência, gratidão e serviço.
Minha opção é também tributária das reflexões feitas a partir da leitura da obra
de Max Weber, que ao definir o Estado o identificou como um processo, no qual um
grupo expropria de terceiros os meios materiais de gestão, concentrando os recursos
necessários para, dentro do limite de determinado território, monopolizar o uso da
violência física (WEBER, 2000, v. 1, p. 34). Portanto, a concepção weberiana de estado
implica em reconhecer a existência de três elementos básicos: a presença de um
aparelho administrativo que garanta a prestação de serviços públicos, o monopólio
legítimo da força e a regulação através de normas gerais e abstratas. Tais elementos,
como se verifica, e como será também mostrado ao longo desse trabalho, não são
possíveis de serem encontrados nas monarquias da época moderna, notadamente na
portuguesa.
Por fim, resta a discussão em torno dos conceitos de centralização e
centralidade para uma referência a atuação das monarquias modernas. Utilizado de
maneira generalizada e sem grandes críticas, até bem pouco tempo atrás, o conceito de
centralização sofre hoje diversas contestações e, em certa medida, parece parcialmente
abandonado pela produção historiográfica atual. Xavier Pujol (1991) foi, sem dúvida
nenhuma, um dos responsáveis por essa guinada, com seu trabalho Centralismo e
localismo?. O autor afirma que a expressão centralização, surgida no final do século
XVIII, nos anos do Terror, foi posteriormente utilizada pela “historiografia
conservadora francesa [que] projetava uma forte visão retrospectiva sobre o passado,
buscando demonstrar a íntima comunhão entre nação e Estado” (PUJOL, 1991, p. 123-
124), tendo sido apresentada, desde Tocqueville, como um dos traços mais marcantes
das monarquias do antigo regime.
Para Pujol (1991) o processo que se desenrola, desde o século XVI, não pode ser
rotulado de centralizador, pois o que as monarquias almejavam era o fortalecimento de
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18
O sistema central de valores era comum a toda sociedade, ou seja, ao centro e a periferia. Apesar disso, embora
afirme que a zona central não seja definida por sua localização geográfica, Shils (1992) admite a possibilidade
de que a vigência do sistema central de valores e a própria autoridade institucional sofram a influência do
distanciamento territorial entre o centro e a periferia. No entanto, o autor afirma que, ainda que de forma
fragmentária e descontínua, o sistema valores da “massa da população”, para utilizar a expressão empregada
pelo próprio autor, mantém algum tipo de relacionamento com o sistema central de valores.
57
posição para obter dividendos políticos e, logo, fazer crescer seu próprio poder. Apesar
disso, os estudiosos, que seguem essa vertente, apontam para o fato de que o aumento,
ou reforço, da centralidade do rei não implicava em centralização de poder
Tal percepção é encontrada em trabalhos que se dedicam ao exame das
estruturas sociais, quer políticas ou econômicas, do mundo do antigo regime, mas
também em estudos voltados para a administração portuguesa na América. Nestes, por
exemplo, tem se buscado demonstrar que a sobreposição de funções e competências
entre os diversos agentes administrativos da Coroa, que geravam recorrentes querelas
sobre o espaço jurisdicional de um ou outro órgão, funcionava como um instrumento do
monarca, no sentido de mantê-los sobre controle e até, em última análise, assegurar a
centralidade da figura real, que como árbitro e juiz, devia garantir a cada qual aquilo
que lhe era de direito e evitar a intromissão de funções e competências entre as diversas
agências da monarquia (COSENTINO, 2009, p. 34-37).
Sem negar a validade dos argumentos expostos, desejo tecer algumas
considerações sobre eles. Primeiramente, acredito que a justificativa apresentada por
Xavier Pujol (1991) é por demais severa ao conceito centralização, uma vez que sua
opção, ao refutá-lo, baseia-se no significado que lhe é dado por certa vertente
historiográfica. Este não considera a hipótese dele poder ser enunciado com uma
significação distinta do originalmente pensado.
Além disso, entendo que se o conceito de centralidade serve bem ao propósito
de apresentar como se estruturavam as relações sociais no mundo do antigo regime,
notadamente no ibérico, no entanto, seu alcance torna-se bastante limitado para dar
conta da questão do ponto de vista institucional e político, ou seja, para falar do esforço
dos governos monárquicos por uma atuação mais interveniente sobre o corpo social –
não necessariamente por meio de ações coordenadas. Dessa forma, penso que o conceito
de centralidade não pode ser utilizado, segundo a abordagem de alguns estudos, como
substitutivo ou oposto àquele de centralização, na medida em que eles se referem, em
minha visão, a processos distintos e complementares19.
Nesse sentido, acredito ser possível falar de centralização como um processo
através do qual as monarquias modernas buscaram obter um maior controle sobre outros
organismos políticos, como as cidades, corporações, que perderam gradualmente o seu
19
O próprio léxico ajuda a elucidar a questão, pois centralidade é definida como “o caráter ou qualidade do que é
central” e centralização como “reunião em um mesmo centro; acumulação de atribuições no poder central”.
Dessa maneira, entendo que o processo de centralização concorre, em última análise, para aumentar a
centralidade do monarca dentro do corpo social. (FERREIRA, 1975, p. 306).
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caráter autônomo, para serem inseridos dentro de uma rede encimada pelo poder central.
Esse processo foi marcado pela procura da concentração de poderes e atribuições – o
poder de ditar as leis válidas para toda a coletividade, o poder jurisdicional, o poder de
usar a força no âmbito interno e externo com exclusividade, o poder de impor tributos –
nas mãos do soberano e de seus prepostos, possibilitando, portanto, um alargamento na
sua esfera de atuação e intervenção.
Nada disso implica em não reconhecer que os poderes do monarca tinham
limites impostos pelas leis divinas e pelas leis fundamentais do reino, nem desconsidera
a existência de outros centros legítimos de poder dentro do espaço da monarquia, o que
fez, inclusive, com que a atuação desta fosse marcada pela descontinuidade, com a
adoção de medidas contemporizadoras em determinadas circunstâncias e em outros,
uma atuação mais efetiva e, por vezes, repressora.
Em outras palavras, pode-se falar de um processo de centralização do poder
régio, sem que isso necessariamente pressuponha a existência de uma posição unilateral,
por parte daquele que detém o poder, que desconsidere a existência de outras forças
dentro do cenário político, o que, no mais, julgo difícil de ser pensado para qualquer
contexto histórico, mesmo aqueles autoritários e ditatoriais20.
Para o caso da monarquia portuguesa, é possível afirmar que, entre os séculos
XVI e XVIII, procurou-se conferir um maior protagonismo político à realeza, em
diversos campos: primeiramente, com a afirmação da realeza sobre um território, em
certa medida, definido, a partir “de um centro cada vez mais perceptível – a capital”
(PUJOL, 1991, p. 119) e, em última análise, da corte, onde se fixou um grupo de
pessoas, em sua maioria nobres21, que estabeleceu um vínculo de interdependência e
complementaridade com o monarca, caracterizando o que Nuno Gonçalo Monteiro
chama de pacto de regime (2005, p. 10)22. Essa relação travada entre o rei e as elites que
20
Aqui vale lembrar uma passagem da obra de Max Weber sobre as relações de dominação. Conforme dizia o
sociólogo alemão, uma relação de dominação mesmo que “puramente unilateral, faz surgir sempre a exigência
de reciprocidade, por parte dos submetidos ao poder, e esta exigência, em virtude da própria natureza da coisa’,
adquire reconhecimento social como costume [...] Também o senhor ‘deve’, portanto, alguma coisa ao
submetido, não juridicamente, mas de acordo com o costume. Sobretudo [...] proteção de perigos externos e
ajuda em caso de necessidade” (WEBER, v. 2, 2000, p. 237). Ou como afirma em outro momento, “em toda a
relação autoritária, certo mínimo de interesse em obedecer, continua sendo, na prática, a força motriz normal e
indispensável de obediência” (WEBER, v. 2, 2000, p 190).
21
A curialização da nobreza laica e eclesiástica, de acordo com Pedro Cardim (1999, p. 141), seria o traço mais
marcante dentro do referido contexto.
22
Esse pacto, segundo Nuno Gonçalo Monteiro, teria se aprofundado no contexto da Restauração portuguesa,
deflagrada pelo movimento de 1º de dezembro de 1640. De acordo com o autor (2005, p. 10-11), “o fato [da
primeira nobreza do reino ter] sustentado a dinastia [de Bragança] de armas na mão, nos seus momentos
fundacionais, constituía parte integrante e fundamental do pacto que julgavam ter estabelecido com a monarquia
e que esta reconhecia como fundamento para a perpetuação do seu estatuto contra ventos e marés. Na verdade,
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o cercavam, gerava uma cultura de serviços, mantida à custa dos bens da Coroa, que
eram redistribuídos pelo rei, através da concessão de mercês23.
Essa cultura de serviços assentava-se no preceito medieval de consilium atque
auxilium, segundo o qual o vassalo tinha a obrigação de fornecer recursos materiais e
financeiros – auxilium –, bem como aconselhamento – consilium – a seu senhor. Vale
assinalar que tais práticas não eram restritas apenas as esferas mais altas da sociedade,
sendo usadas “nos mais diversos níveis de vassalagem, desde o mais modesto vassalo
em relação ao pequeno senhor, como do grande senhor em relação ao seu rei”
(XAVIER, 1998, p. 143). Da mesma forma, cabia ao monarca, enquanto senhor da
justiça, a tarefa de retribuir seus vassalos pelos serviços prestados, criando-se, portanto,
uma espiral de reciprocidades, que perpassavam todas as cadeias hierárquicas do reino.
Apesar disso, o poder monárquico tentou conferir uma maior preeminência às
suas leis, buscando colocá-las acima das normas produzidas pelas entidades detentoras
de poderes jurisdicionais, empenhando-se também em supervisionar o efetivo
cumprimento de suas diretivas. As ordenações Manuelinas e Filipinas eram símbolos
desse afã legislativo, bem como a legislação que procurava estabelecer, de maneira mais
precisa, relações entre os diversos níveis da administração e também a remuneração
pelos serviços prestados.
A monarquia portuguesa tentou também limitar, de maneira cada vez mais
circunstanciada, a patrimonialização dos cargos do oficialato régio, para torná-lo
politicamente mais controlável, e “em certos casos, houve mesmo um esforço no
sentido da despatrimonialização, e a Coroa esboçou várias tentativas para dissociar o
aceitou a obrigação de preservar e perpetuar as casas que tinham ajudado a consolidar a dinastia no seu período
fundacional, sobretudo as que tinham prestado serviços na ‘guerra viva’, aos quais se atribuía uma relevância
única. Mais exatamente, essas obrigações eram assumidas como dimensões ‘constitucionais’ do regime
brigantino, como um pacto tácito (e algumas vezes explícito), quase invariavelmente aceite pelas instituições da
monarquia, entre a dinastia e as casas aristocráticas que na guerra a tinham defendido e sustentado”.
Sobre essa questão ver também a obra O Crepúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em
Portugal, desse mesmo autor.
23
A distribuição de mercês – honras e privilégios – por parte do rei constituía-se numa prerrogativa extraordinária
e exclusiva do monarca, sendo a face mais aparente do poder taumatúrgico dos reis, tão presente na tradição
européia, e entendida, por teólogos e tratadistas da época, como uma virtude própria dos reis.
A designação mercê era, segundo Fernanda Olival, a mais comum em Portugal, durante os séculos XVII e
XVIII, sendo sua atribuição classificada em dois grupos: as que eram conseguidas por via da graça, sendo fruto
da liberalidade régia (doações), e as conquistadas por via da justiça, que decorriam de situações geradoras de
débito, relacionando dádiva e serviço, suscetíveis inclusive de serem alegadas nos tribunais, pois o rei tinha
obrigação de remunerar os vassalos pelos serviços prestados.
Embora se procurasse enfatizar que o súdito devia servir ao soberano sem procurar recompensa material por sua
atitude, o que ocorria na prática era que quem prestava serviços à Coroa o fazia visando também as
recompensas, e não por puro amor ao rei. Nesse sentido, mercê e serviço tinham um papel essencial, primeiro,
como alicerce da monarquia portuguesa, pelas relações que construía entre súdito e soberano. Depois, por se
constituir como veículo para mobilidade e controle social, além de consolidar o papel da Coroa como centro de
redistribuição de distinções. (Cf.: OLIVAL, 2003 e RAMINELLI, 2008).
60
oficial do seu ofício” (CARDIM, 1999, p. 136), buscando reforçar a percepção de que o
monarca era o único detentor deste.
No entanto, como salienta Pedro Cardim (1999), é importante ressaltar que
apesar das ações da realeza, com o intuito de reforçar seu poder, serem contemporâneas
e convergentes, apresentavam pouca articulação entre si e tiveram que enfrentar a
resistência das instituições pré-existentes. Portanto, esse processo foi lento e pouco
sistemático, não obedecendo a nenhuma estratégia previamente delineada24,
“vislumbrando-se, apenas, uma disposição – conjuntural e instável – para o alargamento
da sua esfera de decisão [da Coroa] e para centralização da capacidade decisória”
(CARDIM, 1999, p. 136). Nesse sentido, de acordo com o autor, até o final do século
XVIII o impulso centralizador da monarquia portuguesa desenvolveu-se sempre dentro
do quadro da matriz política tradicional, ou seja, a atuação da Coroa se processava
dentro de um cenário marcado por relações do tipo patrimonial-estamenal25, no qual
vigorava
Disso decorre o quadro, sinteticamente traçado por Cardim, do qual salta uma
imagem de Portugal que, até o final do século XVIII, “permaneceu politicamente pouco
integrado e pouco homogêneo” (CARDIM, 1999, p. 148). Apesar do esforço
centralizador da Coroa,
o poder central seiscentista não dispunha, por um lado, de grande capacidade de
irradiação periférica; e, por outro, mesmo no centro estava repartido por uma
multiplicidade de órgãos com atributos políticos quase soberanos, que expropriavam o
centro de uma decisiva capacidade de intervenção (HESPANHA, 1998, p. 148).
24
A atividade governativa no antigo regime, de acordo com Pedro Cardim, seria marcada, de maneira geral, pelo
improviso e pela falta de planejamento, estando dele ausentes a elaboração de estratégias que tivessem uma
visão do conjunto e que pensassem em uma intervenção de longo prazo. (CARDIM, 1991, p. 141).
25
Cf. WEBER, v. 1, 2000, p. 155; HESPANHA, 1984, p. 7-90.
61
26
Os debates ocorridos em 1668, por ocasião dos acontecimentos envolvendo a deposição de D. Afonso VI e a
aclamação de seu irmão D. Pedro, mostram, segundo Ângela Barreto Xavier (1998, p. 168), que a imagem das
63
por uma questão de estilo pessoal do rei ou dos seus ministros, mas porque o ritmo da
evolução da conjuntura política, a premência das respostas que tinham que ser dadas e
as necessidades de uma política unitária e de mudanças, obrigavam a um novo modo
de institucionalização da ação política, a uma nova forma do poder central
(HESPANHA, 1989, p. 59).
Além disso, é preciso observar que nas juntas e comissões, ao contrário dos
conselhos, não pontificavam os juristas, mas “validos, nobres ou não, e oficiais
subalternos e práticos” (HESPANHA, 1989, p. 60). Pessoas que não possuíam os
privilégios, que eram conferidos as conselheiros régios, e que, portanto, precisavam
garantir a sua “permanência [...] com a maleabilidade e a obediência ao rei e seus
ministros” (HESPANHA, 1989, p. 60).
Em síntese, apesar de num primeiro momento, a ascensão da dinastia dos
Braganças ter significado o retorno de formas mais tradicionais de poder, com a
convocação das Cortes e recolocação dos juristas, da justiça e dos conselhos em posição
destaque, não foi possível “evitar, das anteriores mudanças, aquelas que tinham um
caráter estrutural” (HESPANHA, 1989, p. 66).
Nesse sentido, Hespanha afirma que o período filipino foi responsável por
modernizar o sistema político lusitano. Se, as Cortes voltaram a ser convocadas, elas
passaram a ter, a partir de 1641, o assessoramento da Junta dos Três Estados. Da mesma
forma, se a forma de governar permaneceu assentada no paradigma jurisdicionalista,
cada vez mais ela foi sendo penetrada por princípios políticos, com base numa estrutura
Cortes “como uma assembléia legitimadora (mais simbólica do que politicamente), eram um expediente
utilizado em conjunturas perturbadoras: regências, sucessão, juramento do príncipe herdeiro. [...] as valorizações
conjunturais traduziam mais uma necessidade política do que uma reivindicação de direitos políticos associada à
natureza da assembléia”.
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