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1 DIÁLOGOS E APROXIMAÇÕES: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL

SOBRE O GOVERNAR O PORTUGAL SEISCENTISTA

Nesse capítulo, irei discutir algumas características da ordenação da sociedade e


da estrutura governativa portuguesa, a partir do cotejo das obras que se debruçam sobre
os discursos e ideias políticas, enunciados, por juristas – civilistas ou canonistas – e por
teólogos1, no Portugal seiscentista. Além disso, como dito na introdução, partirei dessa
reflexão para fazer uma breve discussão acerca dos conceitos de antigo regime,
absolutismo, estado, centralização e centralidade. Importante salientar que não
pretendo esgotar aqui a análise sobre nenhum desses conceitos, mas apenas apresentar
algumas ponderações, relevantes para a confecção desse trabalho, a partir de minhas
leituras.

1.1 Um poder político tradicional

Primeiramente, gostaria de tecer algumas considerações sobre a própria noção de


conceito, acompanhando, principalmente, as reflexões de Melvin Richter (1990, p. 38-
70), em trabalho que examina os estudos desenvolvidos por historiadores alemães e
ingleses na área da história das linguagens políticas e dos conceitos.
Partindo do entendimento de que os conceitos básicos utilizados pela linguagem
política e social são indicativos das estruturas sociais, econômicas e administrativas das
sociedades que os produziram, propõe-se que eles sejam analisados historicamente e
não “como co-naturais ou inerentes ao homem enquanto ser” (WEHLING, 2006, p. 92).
Como salienta Arno Wehling (2006, p. 91),

o senso comum encaminha-nos para co-naturalidade dos conceitos que utilizamos


para designar os objetos. Quando nos referimos ao conceito ‘estado’, por exemplo, a
percepção primária é a de um ente político que ‘sempre existiu’, desde que o homem
primitivo alcançou certo patamar cultural.

Nesse sentido, admitir a historicidade dos conceitos, ao invés de uma visão co-
natural, significa reconhecer que os sentidos aos quais determinado conceito remete

1
A presença do saber teológico e dos teólogos nas matérias políticas “é uma traço dessa outra época em que os
dados respectivos ao funcionamento da respublica eram subordinados a uma concepção teológico-moral do
mundo” (XAVIER, 1998, p. 172).
37

referem-se a características “típicas de uma determinada sociedade e cultura,


respondendo funcionalmente a seus desafios e necessidades” (WEHLING, 2006, p. 93).
De acordo com Melvin Richter (1990, p. 7-12), ao assim proceder, o pesquisador
evita os riscos do anacronismo pela utilização de categorias que não são nem
adequáveis aos usos linguísticos do passado, nem as atuais práticas registradas pelos
conceitos em voga. Além disso, é possível conseguir identificar, a partir da mudança
dos significados atribuídos a determinado conceito, as permanências e modificações
ocorridas na sociedade, identificando quais grupos, por exemplo, o utilizavam ou
contestavam, seja como produtores ou receptores. Por fim, historicizar os conceitos
permite indagações sobre, como, por exemplo, quando e por que ocorreram mudanças
em seus significados, percebendo quais os usos que lhe são atribuídos por uma dada
sociedade.
É com base nessas ponderações que pretendo refletir acerca dos conceitos
enunciados anteriormente. Começo por aquele que é mais usualmente aceito pelos
historiadores e por isso motiva menos controvérsia: antigo regime. A expressão foi
utilizada, inicialmente, para caracterizar o modo de ser da sociedade e do estado francês,
em um período, grosso modo, identificado entre o final da Idade Média – entre a Guerra
dos Cem Anos e as Guerras Religiosas – e a Revolução Francesa. Seu surgimento, no
final do século XVIII, é atribuído aos constituintes franceses de 1789 e 1791, que com
ela procuravam referir-se não somente a “uma forma do estado [...], mas [...] também
(a) uma forma de sociedade, uma sociedade com seus poderes, as suas tradições, os seus
usos, os seus costumes, as suas mentalidades e as suas instituições” (ROTELLI, 2003).
De acordo com Ettore Rotelli (2003), a partir da análise de um conjunto de
documentos escritos durante o processo revolucionário francês, é possível perscrutar
alguns elementos que conformam a noção de antigo regime, tal como concebida pelos
contemporâneos2. Para eles o regime que estavam sendo destruído era caracterizado por
toda espécie de escravidão pessoal, todos os direitos feudais ou senhoriais, décimas de
todas as espécie, venalidade e hereditariedade dos cargos, privilégios pecuniários em
matéria de impostos fiscais, desigualdade de nascimento e de capacidade jurídica para
os empregados. Por outro lado, não se contestava o rei – definido ‘restaurador da
liberdade francesa’ – nem o caráter católico e cristão do regime (ROTELLI, 2003).

2
Segundo Rotelli (2003), embora não se saiba precisar com exatidão a data de aparecimento da expressão antigo
regime, pode-se afirmar que ela teve seu uso expandido a partir do ano de 1790. No entanto, o autor mostra
também que antes de prevalecer, os constituintes usavam também outras expressões, como, por exemplo, regime
precedente, regime antigo e velho regime, para referir-se a ordem de coisas a qual se opunham e que julgavam
estar destruindo.
38

Nesse sentido, é possível perceber, entre outras coisas, que “o princípio


monárquico, a pessoa e a instituição do rei não estão em discussão” (ROTELLI, 2003).
Ou seja, se algumas questões de ordem política eram debatidas, sendo exemplos a
questão da soberania, a qual passava ser buscada na nação e não mais em um único
indivíduo, e a confecção de uma Constituição, os revolucionários não negavam o caráter
monárquico do governo.
Apesar de inicialmente a expressão ter sido utilizada para fazer referência tão
somente a um conjunto de características próprias da monarquia francesa, logo se
percebeu que a ordem de coisas, condenada pelos franceses, era algo que “transcendia
de muito as fronteiras da França” (DOYLE, 1991, p. 55). Dessa forma, William Doyle
afirma ser possível falar de um antigo regime europeu, no sentido de que as instituições
políticas européias encontravam-se, todas, inseridas dentro de uma mesma conjuntura
econômica e social que englobava toda a Europa. No entanto, é preciso reconhecer que
o processo possuía especificidades próprias para cada região e que, portanto, existiam
diferenças, por exemplo, entre a Europa ocidental e oriental.
Esta sociedade, como sintetizam Ronaldo Vainfas e Guilherme Pereira das
Neves, estava assentada em diversos contrastes – entre o mundo urbano e o rural, a
riqueza dos nobres e a cultura dos letrados de um lado e do outro, a pobreza e a situação
de analfabetismo de larga parcela da população. Nela não era a riqueza que jogava o
papel determinante, mas a busca de distinção social e mesmo os burgueses quando
enriqueciam, decidiam-se por “imobilizar a fortuna em títulos e terras, a fim de viver à
moda da nobreza” (VAINFAS; NEVES, 2000, p. 44).
A ideia de igualdade dos indivíduos, fundada no princípio do direito, inexistia
nessa sociedade, onde prevalecia a noção de privilégio. O primeiro privilégio era o de
nascimento, que dava à nobreza distinção pelo sangue. Havia também o privilégio de
ocupação, que valorizava o homem que vivia de seus rendimentos, sem exercer
atividades manuais, e os privilégios particulares, que eram dados a indivíduos, grupos
sociais e corporações, entre outros, para os quais os laços afetivos e as relações de
amizade eram fundamentais na tentativa de obtenção de alguma ascensão social
(OLIVEIRA, 2006, p. 102)3.

3
Ver também: GOUBERT, Pierre. L’Ancien Régime (Sociéte – Pouvoirs). Paris: Armand Colin, 1969. 2 v.;
FURET, François. Ancien Régime. In: ______; OZOUF, Mona. Dictionnaire critique de la Révolution
française. Paris: Flammarion, 1988. p. 627-637. VENTURINO, Diego. La naissance de l’ ‘Ancien Régime’. In:
LUCAS, Colin (Ed.). The French Revolution and the Creation of Modern Political Culture: The Political
Culture of the French Revolution. Oxford: Pergamon, 1989. v. 2. p. 11-40.
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Pode-se, em consequência, dizer que amizade e amor eram, na sociedade de


antigo regime, elementos essenciais na construção dos laços sociais, “possuindo uma
dimensão social real e profundamente enraizada na vida cotidiana, algo que ultrapassava
o nível do discurso racionalmente conduzido, estando no cerne da constituição da
própria sociedade” (OLIVEIRA, 2006, p. 102).
Nesse sentido, a possibilidade de ter acesso ao núcleo do poder, ou mesmo de
alcançar certa mobilidade social ascensional, derivava, em larga medida, da qualidade
das relações que cada aspirante possuía. A lógica e o princípio do mérito não jogavam o
papel determinante nessa sociedade. Ser amigo de alguém poderoso e, mais do que
tudo, ser amigo do rei tornava-se o elemento decisivo para qualquer trajetória social.
Toda discussão sobre a importância dos afetos na constituição da sociedade,
dentro daquela cultura política, tomava o modelo familiar como base dos discursos
legitimadores da importância da amizade. A relação entre pai e filho servia, portanto,
como princípio elementar de identificação da amizade enquanto estrutura organizativa
da sociedade.
No plano simbólico, o relacionamento entre pai e filho constituía-se na mais
perfeita forma de amor e, portanto, de amizade, e servia como modelo para os
relacionamentos travados dentro da vida comunitária, visto que esta era entendida como
uma extensão da família. Além disso, o fundamento básico de hierarquia e obediência
encontrava expressão na própria organização da casa familiar, cujo governo cabia ao
pater familias, expressão da autoridade legítima. Em nível mais geral, o monarca era
visto como grande pai e senhor, protetor de todos, e isto por que

A palavra ‘governo’, usada para designar a atividade desenvolvida pela Coroa,


incorporou esse imaginário doméstico, e tal sucedeu porque era unanimemente aceite
que a arte de conduzir uma família, por um lado, e a técnica que habilitava a governar
a ‘República’, por outro, eram saberes que relevavam, fundamentalmente, de uma
mesma exigência, de uma mesma qualidade, de um mesmo princípio ético e político
(CARDIM, 2005, p. 52).

Além disso, é preciso ter também em consideração que, nessa sociedade,


expressar sentimentos e emoções não dependia do temperamento individual, ao
contrário, deviam refletir disposições internalizadas, tal qual padrões psicológicos, da
forma como foram identificados e avaliados por teólogos e juristas. Disso decorre toda
atenção que eles dedicavam a questão dos afetos, preocupados em enquadrá-los numa
rígida tipificação, hierarquizando os sentimentos e suas manifestações externas.
Os sentimentos e comportamentos externos eram, portanto, regidos por padrões
objetivos e rigorosas regras, que se acreditava estarem inseridos na ordem natural das
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coisas, sendo objeto do direito e podendo, inclusive, sua observância ser postulável em
juízo.
Etiqueta e boas maneiras, precedências, manifestações corporais, a forma de
falar e até as mais íntimas relações não eram meras questões de educação pessoal, mas
uma questão de honra, servindo para identificar a posição, o grupo social ao qual
pertenciam os interlocutores, funcionando, logo, como mecanismo de diferenciação
social.
De acordo com Maravall, a honra seria um dos eixos estruturantes das
sociedades ibéricas da época moderna, na medida em que ela delineava os princípios
jurídicos e sociais vigentes, através das quais eram mantidos os laços de solidariedade,
amizade e, em última análise, de dependência entre os indivíduos. A honra, na visão do
autor, teria uma dupla função integradora, pois funcionaria como discriminador de
estratos e comportamentos, criando, dessa forma, estatutos particulares e extremamente
diferenciadores e também seria um princípio distribuidor de privilégios.
Na sociedade estamental, como a sociedade portuguesa da época moderna, a
identidade individual e social de um indivíduo, o que era praticamente a mesma coisa,
dependia do seu pertencimento e aceitação dentro de um determinado grupo social. Sua
posição na sociedade determinava, em certo sentido, as funções que poderia
desempenhar, como também ditava as normas de comportamento que deveria observar.
Como afirma Maravall,

tudo, vestidos, joiás, linguagem, sentimento, não menos que comida e a habitação,
que jogos ou esportes e uso de armas, etc., se havia distribuído segundo criterios de
hierarquia estamental (MARAVALL, 1989, p. 25, tradução nossa).4

Embora isso ocorresse em todos os níveis da hierarquia social, nos estratos mais
altos o sentido de pertencimento ao grupo e a necessidade de uma plena aceitação por
parte de todos os membros, adquiriu matizes muito particulares e se desenvolveu com
mais força devido ao fato de que estas esferas sustentavam o poder e, portanto, a razão e
a origem do sistema estabelecido. Assim, a questão da honra, com todas as suas
implicações para a vida cotidiana, determinou o comportamento da nobreza e dos
demais estamentos.
Dessa forma, a inserção em determinado grupo obrigava o indivíduo a observar
e comportar-se de acordo com uma série de deveres próprios da condição do grupo no
qual estava inserido. O prestígio que um determinado grupo possuía estava relacionado

4
O texto em língua estrangeira é “[...] todo, vestidos, joyas, lenguaje, sentimientos, no menos que comida y
vivienda, que juegos o deportes y uso de armas, etc., se halla distribuido según criterios de jerarquía estamental”.
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com uma série de planos de valores, que eram reconhecidos pela sociedade e
representavam diversos níveis de estratificação. Além disso, a cada estrato social
cabiam atribuições e deveres, aos quais correspondiam retribuições e recompensas pelo
desempenho dessas atividades. Estas, por sua vez, eram conferidas aos indivíduos não
por sua pessoa, mas por seu pertencimento a um dado grupo estamental.
Portanto, o indivíduo só conseguia ascender até o nível onde pessoas do seu
grupo podiam chegar. Isso se deve ao fato de que o monarca, justiceiro e dispensador
das remunerações, não podia atribuir a um indivíduo mais do que era próprio àqueles do
seu estatuto, sob pena de ser tomado como injusto e desigual e, em consequência,
ameaçar o equilíbrio social estabelecido.
Nesse sentido, a lógica da honra servia à preservação da ordem estamental e,
portanto, a estratégia de ascensão social era sempre realizada de forma individual e não
por um grupo, ou seja, não criava jurisprudência a favor de todo o grupo do qual o
indivíduo fazia parte. Isso porque a ascensão de todo grupo destruiria ou, pelo menos,
poderia ameaçar a ordem estamental. A possibilidade de ascensão individual, ao
contrário, reforçava a ordem estamental e, principalmente, a hierarquia, na medida em
que ela era dispensada diretamente pelo próprio rei. Apesar disso, é preciso ter em conta
que o indivíduo não era remunerado somente pelos seus serviços, mas também pela
ação dos seus antepassados na defesa do interesse régio.
Sendo a ordem de Deus, em sua origem, um ato de amor e sendo os homens
naturalmente propensos à bondade e ligados por afeições, o princípio básico de todos os
membros da sociedade, desde a família até as instituições políticas, era o de zelar pelo
bem comum. Esse modo de conceber a sociedade se baseava na crença, existente na
tradição cultural e política européia, notadamente no mundo ibérico, de que os homens e
as coisas possuíam uma ordenação “natural”, estabelecida por Deus, onde cada qual
teria sua posição e função definida “naturalmente”, orientada “para um fim último, que
o pensamento cristão identificava com o próprio Criador” (HESPANHA; XAVIER,
1993, p. 122), não cabendo, e nem devendo, aos homens questionar tal ordenamento.
Essa concepção sobre a conformação da sociedade se fundamentava no chamado
paradigma corporativista, segundo o qual a sociedade era imaginada como um corpo,
onde cada uma das partes que o compunham, ordenado de maneira natural e
hierarquizado pela vontade divina, possuíam funções diferentes, com vistas à
consecução de uma causa final, que os transcendia. A ordem da criação, dessa forma,
era entendida como uma unidade da ordenação, “que não comprometia, antes
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pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos objetivos de cada uma das ordens a


criação e, dentro da espécie humana, da cada grupo ou corpo social” (HESPANHA,
1994, p. 300).
De um lado, de tal questão decorre a constatação de que essa sociedade
legitimava e naturalizava as desigualdades e hierarquias sociais, uma vez que nela se
“pressupunha, a especificidade e irredutibilidade de cada uma das ‘ordens da criação e,
dentro da espécie humana, de cada grupo ou corpo social’ [necessários para a]
realização do destino cósmico” (HESPANHA; XAVIER, 1993, p. 122).
De outro, isso leva à constatação da “impossibilidade [de pensar, para época
moderna,] de um poder político puro e não partilhado” (HESPANHA; XAVIER, 1993,
p. 123), pois era preciso reconhecer que a cada parte do corpo social cabia certa
autonomia jurídico-política, necessária para que pudesse exercer suas funções. Tal
autonomia, no entanto, nunca foi idealizada como força capaz de modificar a hierarquia
natural das funções do corpo social, pois não se levantava questão à primazia da cabeça,
isto é, do rei, como guia de todo o corpo. Da mesma forma, não poderia a cabeça querer
subsistir sem as outras partes desse organismo social.
Dessa maneira, competia ao rei, que representava a cabeça do reino, a
manutenção do equilíbrio e da harmonia desse corpo, garantindo a paz interna e fazendo
a guerra externa, quando necessária, distribuindo mercês a cada um de seus membros,
de acordo com as funções, direitos e privilégios, e exercendo a justiça em nome do bem
comum, “finalidade que os juristas e politólogos tardomedievais e primomodernos,
consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político” (XAVIER;
HESPANHA, 1993, p. 123).
Portanto, a metáfora do corpo social mostra que existiam algumas limitações ao
poder régio, pois uma vez que o poder se encontrava repartido entre diversas partes, e
não concentrado unicamente nas mãos do soberano, faz-se necessário admitir a
coexistência do poder real e de outros poderes, como por exemplo, o poder eclesiástico,
das comunas e das corporações de ofício, entre outros.
É importante salientar que, no caso português, o desenvolvimento das teorias
corporativas de poder se deveu à forte influência exercida pelos padres jesuítas. Os
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jesuítas foram os grandes estudiosos da neo-escolástica e propuseram uma


reinterpretação da obra de São Tomás de Aquino e do pensamento aristotélico5.
A filosofia da Segunda Escolástica, Neo-Escolástica ou Neotomismo, como
ficou conhecido o movimento, se desenvolveu no início, nas Universidades de Paris e
de Salamanca, sob a hegemonia dos dominicanos. Já durante a segunda metade do
século XVI, porém, as doutrinas propostas pelos dominicanos começaram a ser
adotadas pelos jesuítas, que acabaram assumindo o primado da difusão de tais teorias,
passando a divulgá-las com energia ímpar, dando corpo e vida ao neotomismo e às
teorias corporativas de poder (SKINNER, 2006, p. 415).
Dominando oito faculdades na Espanha e, em Portugal, tendo a hegemonia nas
universidades de Coimbra e Évora, e, de maneira geral, sobre todo o sistema de ensino6,
ao menos no caso português, os jesuítas transformaram o mundo ibérico no grande
baluarte da defesa da Igreja Católica tridentina, como também no grande centro de
ressurgimento e difusão das concepções aristotélico-tomista7.
Essas teorias ganharam força no contexto das lutas contra todas as heresias
protestantes (principalmente de Lutero e Calvino), contra o humanismo de Erasmo de
Rotterdam e contra as ideias de “razão de estado” de Maquiavel, contidas na obra O
Príncipe. Buscava-se, nesse sentido, extirpar a doutrina de Maquiavel, tida como
pestilenta, barrar todas as heresias protestantes e se alinhar fortemente ao Concílio de
Trento8.

5
O aristotelismo, segundo Ângela Barreto Xavier (1998, p. 22), enquanto concepção filosófica, desempenhou um
papel “dominante e estruturante”, no Portugal do século XVII, servindo para embasar diferentes, e por vezes
antagônicos, discursos e práticas políticas.
6
De acordo com Ângela Barreto Xavier (1998, p. 104-105), os colégios da Companhia de Jesus situavam-se, em
sua grande maioria, próximos a importantes centros urbanos administrativos, mostrando “sua vocação para
educar grupos que [...] estavam próximos das decisões políticas, ou detinham posições privilegiadas na
conformação do imaginário. [...] Esta vizinhança entre a companhia e o poder fez com que, em muitos países, ela
constituísse um auxiliar imprescindível (ou um adversário a temer) na luta política. Era o caso de Portugal.
7
Segundo Arno Wehling (2001, p. 54-56), “o domínio escolástico em matéria de pensamento foi inconteste no
período colonial, praticamente até o final do século XVIII. Derivava-se da escolástica-coimbrã, que atingiu alta
significação no pensamento de modelo aristotélico-tomista europeu até princípios do século XVII. Nele,
entretanto, cabia, como na matriz lusitana, largo espectro de correntes, sobretudo tomistas e escotistas, bem
como a presença tópica de elementos não-escolásticos, sobretudo no campo científico [...] discutindo e às vezes
incorporando teses de homens como Tycho Brahe, Copérnico, e mesmo Bruno e Galileu. [...] Tal aspecto deve
ser sublinhado, uma vez que a historiografia das ideias sofreu a influência das concepções iluministas, liberais e
socialistas que anatemizaram o pensamento jesuítico como mera reafirmação da escolástica decadente dos
séculos XIV e XV, quando ao contrário constituiu-se em nova inflexão intelectual que procurava
simultaneamente manter-se fiel à articulação entre a filosofia aristotélica e a teologia cristã e responder aos
desafios dos ‘mundus novus’ do renascimento”.
8
Para um maior detalhamento sobre essas questões remeto à obra As fundações do pensamento político moderno,
de Quentin Skinner (SKINNER, 2006, p. 417-421).
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Nesse sistema filosófico-teológico destacavam-se as concepções corporativas de


poder que, seguindo as ideias pactistas e corporativas medievais, afirmavam a
indispensabilidade de todos os ramos da sociedade para a composição da política e
sustentavam que o poder advinha de Deus, mas não era transmitido diretamente ao
monarca, passando pela intermediação da comunidade, que se comprometia a obedecê-
lo. Nesse sentido, todas as formas de governo – quer monárquica, ou não – foram
instituídas pelos homens e, não, estabelecidas ou ordenadas diretamente por Deus.
Dessa forma, alguns jesuítas, na qualidade de melhores representantes desse
pensamento, afirmavam que a origem do poder político estava na aceitação do povo e
que os poderes do governante tinham de ser limitados. Nessa concepção, as “razões do
Estado cristão” se impunham às “razões do Estado” e, portanto, em casos de abuso
contra o interesse público, eram consideradas legítimas rebeliões e sedições para se
depor um monarca, ou até mesmo o regicídio, como chegou a propor, no limite
extremo, o jesuíta Francisco Suárez9.
O poder político, dentro desse pensamento, era originado de um “pacto social”,
através do qual a população consentia em ceder todo o poder temporal ao rei que, por
sua vez, tinha como incumbência viabilizar o bem comum. Um bom governo, portanto,
jamais podia se distanciar da ética e da moral cristã, identificado no tema do bem da
respublica, onde os interesses particulares e o interesse comum se fundem em harmonia
(HANSEN, 2006, p. 141). Seguindo essa linha de raciocínio, a autoridade permanecia
sempre, em última análise, depositada no povo, a quem cabia a escolha do tipo de
regime, do detentor desse poder, bem como de sua permanência no poder10.
Apesar disso, não se colocava em questão a autoridade do monarca. Os reis
tinham, efetivamente, a legitimidade do poder temporal, mas tinham que subordinar sua
atuação política aos ditames da moral cristã, às regras do direito natural e do direito dos

9
Segundo Skinner (2006, p. 453), Suárez propunha que “tal como no caso de um indivíduo, [...], para quem ‘o
direito de preservar a própria vida é o maior de todos os direitos’, também no caso de uma república, ‘que o rei
esteja de fato agredindo com o objetivo de injustamente destruir e matar os cidadãos’, deve existir um direito
análogo à autodefesa, que ‘torna legal para a comunidade resistir a seu príncipe, e até mesmo matá-lo, se não
houver outro meio para ser preservar’”. Essa postura se justificava, pela compreensão de que o direito a
autopresevação da comunidade não podia ser cedido, como os demais, pelo povo ao soberano.
10
A teoria política enunciada pelos jesuítas, na virada dos séculos XVI-XVII, apresentava-se aberta à capacidade
de escolha do homem na determinação das leis, direitos, natureza do poder etc. Nesse sentido, de acordo com
Skinner (2006, p. 450), os inacianos anteciparam, em muito, a gênese do pensamento político moderno. Além
disso, mesmo sem ter a real consciência do alcance dos seus atos, forneceram os primeiros elementos do ideário
constitucionalista na Europa.
O catolicismo jesuítico, com uma retomada do tomismo teve fundamental importância no desenvolvimento da
moderna teoria do Estado. As ideias da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino, foram, no século XVI, o
eixo da restauração e modernização da teologia ibérica e repercutiram nos campos da política e do direito.
45

povos, respeitando as jurisdições dos corpos sociais e, principalmente, o interesse maior


da comunidade.
As ideias pactistas, aliás, estavam no centro da argumentação dos que
defendiam, em Portugal, o papel das Cortes, enquanto fórum político do reino. As
Cortes seriam como que a representação da comunidade, legítima detentora do poder.
Disso, decorriam duas importantes implicações: primeiramente, a de que o rei não
possuía o poder, mas apenas usufruía dele para promover o bem-comum; e, em segundo
lugar, de que para governar o monarca precisava também servir-se do aconselhamento
da comunidade, isto é, das Cortes.
Além disso, o monarca não podia ignorar o pacto celebrado com o reino, sob
pena de ser tomado como tirano e, dessa forma, desobrigar os povos a manterem-se
obedientes a ele. Segundo Ângelo Barreto Xavier (1998, p. 166-167), “a força moral
que considerações desse gênero tinham invocava toda a tratadística sobre as virtudes
cristãs que obrigavam os homens a cumprir as suas promessas, e com maioria de razão
os reis, que deveriam servir de exemplo para os seus súditos”.
Durante todo o antigo regime prevaleceu um entendimento jurisdicionalista do
poder, ou seja, a ação política de qualquer autoridade constituída, fosse ela local ou
central, estava definida pela imagem conceitual do Juiz-Deus, responsável por promover
o acordo, consentimento, compromisso e harmonia entre as partes, de acordo com as
particularidades de cada lugar e circunstância. Seus objetivos eram a manutenção da paz
e a salvaguarda dos direitos adquiridos, reconhecendo-se que, ao lado do poder do rei,
existiam outros focos de poder autônomos, auto-regulados, conscientes de seus direitos
e prerrogativas, esperando que o monarca respeitasse tal ordenamento. Importante
salientar que essa distribuição de poderes era entendida como algo positivo, pois
obedecia a um ordenamento divino, e, dessa forma, nem mesmo os reis podiam ignorá-
lo.
Por isso, a teoria política, desde o período medieval, colocava a justiça como a
primeira e principal virtude que o monarca devia possuir. À época, justiça era entendida
como “igualdade, e com justa balança dar o seu a cada um, assim o bom Rei deve ser
sempre um e igual a todos, retribuir e premiar cada um segundo os seus merecimentos”
(XAVIER, 1998, p. 138). Importante salientar que essa igualdade do monarca perante
seus súditos não podia contrariar a ordem social estabelecida, portanto, “tanto o castigo
[como] [...] as recompensas deveriam ser distribuídas na justa medida” (LOUREIRO,
2010, p. 50). Por isso, o rei ao aplicar a justiça devia agir com prudência, entendida
46

como a faculdade que permitia a ele tomar a melhor decisão para cada situação, outra
virtude que devia ser cultivada pela pessoa real.
A justiça, portanto, não podia ser exercida individualmente, antes pressupunha a
existência de uma relação, em que cada elemento recebia aquilo que justamente lhe era
de direito. Em síntese,
a justiça correspondia a possibilidade que cada coisa tinha para realizar os fins para
que fora criada [...] e, por outro, o respeito que cada coisa devia ter pelas criaturas que
eram vizinhas, não pretendendo mais do que lhe era devido. É que a ordem recíproca
das coisas era o bem do universo (XAVIER, 1998, p. 125).

Nesse sentido, entendo que as monarquias modernas não podem ser pensadas
como estruturas administrativas centralizadas, governadas por um rei onipotente, que
possuía em suas mãos todo o poder, para utilizá-lo a seu bel-prazer, pois a própria
realeza francesa, modelo de centralização para os contemporâneos e para a produção
historiográfica especializada, tinha, segundo o historiador alemão Hagen Schulze, um
espaço de atuação bastante limitado nas terras dos grandes senhores, das cidades e da
Igreja. Seu poder exerceu-se, em várias ocasiões, apenas de forma indireta, tendo como
principal função, o papel de árbitro e juiz, solucionando as questões e contradições
“entre regiões mais ou menos autônomas, [entre] os diversos grupos sociais e os
interesses superiores do [reino]” (SCHULZE, 1997, p. 35), à medida que elas surgiam.
A partir dessa discussão, proponho uma reflexão a respeito do que caracterizaria
o antigo regime nos trópicos, expressão utilizada, num primeiro momento, como título
do livro coordenado pelo professores João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Maria
Fernanda Bicalho (2001). As ideias presentes, nos diversos trabalhos que compõem a
referida obra, buscam apresentar elementos que permitam a constituição de uma nova
forma de análise histórica sobre a dinâmica do Império português entre os séculos XVI
e XVIII. São apresentadas questões peculiares da administração e da sociedade dos
territórios ultramarinos, buscando revisitar e rever o chamado antigo sistema colonial,
e, com isso, flexibilizar a dicotomia metrópole versus colônia, em que se destacava a
exploração econômica da primeira sobre a segunda. Os autores da obra se propuseram a
discutir o conceito de antigo regime no ultramar a partir da percepção de que a
sociedade e as instituições políticas na América portuguesa se encontram inseridas num
mesmo contexto marcado “por regras econômicas, políticas e simbólicas de Antigo
Regime” (BICALHO; GOUVÊA; FRAGOSO, 2001, p. 21).
Em que pesem as discussões, em torno da questão, suscitadas pelos textos de
Vera Lucia Ferlini (2005), no prefácio do livro Modos de Governar, e, principalmente,
47

de Laura de Mello e Souza, na recente obra O Sol e a Sombra, na qual afirma que a
utilização da ideia de um Antigo Regime nos trópicos poderia “amenizar as contradições
e privilegiar olhares europeus” (SOUZA, 2006, p. 69), não irei adentrar aqui no debate
sobre a pertinência ou não do uso de tal expressão. Indico apenas que, utilizando como
referência os estudos de William Doyle, para quem seria possível falar de um antigo
regime europeu, acredito ser pertinente o uso do conceito de antigo regime nos trópicos,
entendido não apenas como uma extensão ou prolongamento dos impérios europeus do
Antigo Regime, mais principalmente como um produto de suas ações.
Dessa forma, afirmo o entendimento de que não é possível analisar essas
sociedades sem o reconhecimento de que elementos culturais, políticos, sociais e
econômicos guardam estreita semelhança entre os centros metropolitanos e as diversas
periferias ultramarinas, mesmo levando em consideração as especificidades –
geográfica, climática, étnico-racial – de cada território ultramarino, que obrigou, em
diversas ocasiões, adaptações dos modelos e mecanismos europeus11. Apesar disso,
reconheço que, embora as relações sociais e políticas na metrópole e no ultramar fossem
marcadas, via de regra, por elementos comuns, não se pode deixar de observar, como
salienta Silvia Hunold Lara (2005, p. 36), a existência de diferenças entre elas,
suscitadas “pela presença maciça de escravos e libertos nas conquistas [que] possuía
uma força disruptiva que precisa ser levada em conta e ser mais bem investigada”.
Por fim, embora utilize o conceito de antigo regime nos trópicos, quero destacar
que a percepção que orienta este trabalho é a de que a relação metrópole-ultramar, do
ponto de vista político-administrativo, que é nossa principal questão, está fundada do
binômio centro decisório/periferia subordinada. Com isso não quero negar a
importância dos poderes locais e da possibilidade de negociação, mas chamar a atenção

11
Em entrevista a Revista História da Biblioteca Nacional, a historiadora Laura de Mello e Souza afirma que a
sociedade existente na América não poderia ser vista como de antigo regime, pois “a lógica da colonização
altera a da sociedade de Antigo Regime [...] [, pois] ela é uma sociedade na qual o dinheiro passa a ter uma
importância incrível. É uma sociedade toda costurada pela escravidão. Nem Corte havia por aqui. Então, essa
qualificação de um ‘Antigo Regime nos trópicos’ explica pouco” (RHBN, n. 46, 2009, p. 54). Sem querer
aprofundar aqui a polêmica, gostaria apenas de assinalar que a opinião da referida historiadora parece de difícil
sustentação quando confrontada com as diversas trajetórias individuais, que mostram como homens de diversos
grupos e origens – índios, negros etc. – atuavam para a manutenção da governabilidade do Império português,
não somente por conta do dinheiro, pois como já assinalava o florentino Baccio de Filicaya capitão de artilharia
e engenheiro-mor do Estado do Brasil, em 1608, os soldos pagos pelos reis portugueses eram sabidamente
pequenos, mas em busca de obter do rei a concessão de terras, postos e ofício, enfim de honra. (Cf. VIANNA
JÚNIOR, 2006, p. 194).
Além disso, é preciso considerar também, como salientado por Pedro Cardim (2004, p. 148), em trabalho onde
faz uma boa recensão sobre a historiografia dedica ao período Habsburgo e aos primeiros anos da disnatia
Bragança, que “a maior parte dos ‘homens de negócio’ a operar nas rotas sulamericanas eram recém-chegados
ao Brasil, e que a maioria daqueles que enriqueciam acabavam por comprar terras, chegando alguns deles a
abandonar a mercancia”.
48

para o fato de que as relações entre as possessões ultramarinas e a metrópole se davam


dentro das práticas políticas e culturais estabelecidas pela Coroa portuguesa.
Em outras palavras, o que quero mostrar é que, em última análise, os vassalos
portugueses na América interagiam com o aparato administrativo português para
apresentar suas reivindicações, reconhecendo, dessa forma, a legitimidade do poder
monárquico, e não o negando. Mesmo quando se lançava mão de expedientes menos
ortodoxos, como, por exemplo, motins e revoltas, buscavam-se revestir esses
movimentos com a capa da legitimidade, ainda que somente ao nível do discurso,
lançando mão de elementos da tradição e dos costumes do reino.
Para além dessas discussões, as reflexões acerca da ideia de antigo regime,
colocam a necessidade de se discutir também os conceitos de estado e absolutismo,
alvos de muita controvérsia entre os especialistas, mas essenciais para a delimitação do
objeto dessa pesquisa.
Surgido no vocabulário francês no final do século XVIII e na Inglaterra no
alvorecer do século XIX, a ideia de absolutismo foi apropriada pela historiografia
liberal para falar das formas de governo que se caracterizavam pelo viés marcadamente
centralizador de seus monarcas e, em consequência, pela falta de representação política
dos povos. Durante o século XIX, os termos absolutismo e absolutista tornaram-se
termos pejorativos e tomados, grosso modo, como sinônimos de tirania e despotismo,
sendo utilizados em contraposição à ideia de constitucionalismo.
No entanto, a revisão levada a cabo por historiadores de diversas
nacionalidades12, a partir da leitura de tratadistas políticos do século XVI e XVII, tem
permitido colocar a questão em outros termos. Desses trabalhos emerge a imagem de
que um rei é denominado absoluto porque não reconhece nenhuma autoridade política
acima da sua e, por isso, figura como primeiro em autoridade dentro de seu reino,
monopolizando as prerrogativas de declarar guerra e paz, de estabelecer alianças, de
recrutar homens, de cunhar moeda e de distribuir cargos e benefícios. Importante
salientar que isso relativizava, mas não eliminava a autonomia dos demais corpos
existentes na sociedade.

12
Gostaria de sublinhar que as discussões em torno do conceito de absolutismo são produto, em sua maioria, das
reflexões de historiadores franceses, britânicos e alemães e na maior parte das vezes sequer mencionam a
experiência portuguesa. Apesar disso, utilizo aqui essas reflexões, pois elas ajudam a pensar sobre o que era
comum e específico na monarquia portuguesa e, dessa forma, construir uma caracterização dela o mais próximo
possível de seus contemporâneos.
49

A monarquia absoluta, como colocam Mousnier e Hartung (1955, p. 8), era um


marco que se opunha à dispersão feudal. Ou seja, a centralização política foi resultado
de um tenso processo de concorrência de tipo senhorial-clientelar entre diferentes forças
centrípetas e centrífugas, em que uma das partes emergiu com mais poder (militar e
financeiro) e configurou para si um território pelo qual estende sua autoridade. É
importante salientar, porém, que apesar dos senhores e corpos sociais não dividirem
mais com o monarca a soberania, isso não significava, a despatrimonialização do poder
políticos dos outros entes sociais, nem sua destruição.
As limitações ao poder régio, impostas pelas leis divinas, naturais e pelas leis
fundamentais do reino, como também pela necessidade de respeitar a propriedade
privada e de reconhecer a existência de outros centros de poder, só podiam ser
ignoradas pelo monarca caso houvesse uma situação concreta de ameaça ao corpo
político, como guerras, rebeliões ou crises. Nesses momentos excepcionais, o poder dos
monarcas era de fato ilimitado, sendo permitidas prisões, penhoras e até mesmo o
confisco de bens.
Portanto, se o resultado do lento diálogo de acomodação de interesses locais com
centros emergentes de poder político-militar e financeiro resultou na formação de novos
centros agregativos ao final da Idade Média, isso não modificou a forma patrimonial-
estamental13 das partes se relacionarem, ao se constituírem novos canais para a
atividade administrativa.
A monarquia no antigo regime estava existencialmente implicada com uma
noção de autoridade cujo sentido prático e conceitual não pressupunha o término dos
privilégios corporativistas ou a imposição de um dualismo que tem por centro a relação
Rei/indivíduo. Os corpos da sociedade tão somente passaram a depender ou estar
referidos à preeminência estrutural e estável de um poder político centralizado, que era
simultaneamente responsável por tratar de questões que afetavam a vida local, mas que
estavam implicadas em nexos extra-locais, como, por exemplo, conflitos de jurisdições,
garantia jurídica de contratos, proteção do comércio entre outros, como também para

13
Segundo Hespanha (1984, p. 7-89), a forma patrimonial-estamental de organização política faz parte da lógica
institucional do antigo regime, cujos elementos principais são: dom, contra-dom, graça e punição. Tais fatores
perpassavam todo o corpo político como dispositivos constituidores de compromissos hierarquicamente
estabelecidos e funcionavam como elementos agregadores, possibilitando a centralização política.
Sobre essa questão, ver também: António Manuel Hespanha. La economia da Graça. In: ______. La Gracia Del
Derecho: Economia de la cultura em la Edad Moderna. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1993. p.
151-176.
50

dirimir os assuntos que podiam ser decididos com base nos repertórios locais de leis e
costumes.
Portanto, o sentido prático da autoridade política no antigo regime era o de
subordinar, preservar, confirmar ou adaptar as diferentes instâncias corporativistas,
sempre respeitando os limites impostos pela lei de Deus, pelas leis naturais do reino e
pelos privilégios que cada grupo possuía. Dessa forma, depreende-se que essa sociedade
estava assentada numa relação de interdependência entre os centros emergentes de
poder e as demais localidades, pois as iniciativas tomadas pelo poder central não
respondiam somente a interesses seus, mas também “é sabido que essas intervenções
[...] por vezes tenham sido pedidas pelas próprias autoridades locais” (PUJOL, 1991, p.
125), uma vez que precisavam, agora, responder a nexos sociais e espaciais que
escapavam ao seu controle imediato. Como bem lembra Norbert Elias, “seja uma
questão de terra, de soldados ou de dinheiro, sob qualquer forma, quanto mais é
acumulado por um indivíduo, menos facilmente pode ele supervisioná-los e mais
dependente se torna de seus dependentes” (ELIAS, 1993, p. 100).
Por isso, ao analisar as relações políticas e culturais entre a capital e os
territórios constituintes das monarquias européias, entre os séculos XVI e XVII, Pujol
assinala que sempre houve interação entre o centro e as localidades, bem como conflitos
e divergências, já que a comunidade local nunca foi passiva. Além disso, o autor
salienta também que, se o estudo das codificações de direitos e das compilações de
costumes locais indica que os poderes do centro souberam instrumentalizar as
localidades em seu favor, derrotando àqueles que se opunham ao movimento
sistematizador, isso não se deveu apenas a uma ação unilateral do primeiro, “mas
também às necessidades das próprias comunidades” (PUJOL, 1991, p. 136), como se
pode perceber, por exemplo, pelo “crescente prestígio da justiça real, considerada mais
técnica e imparcial, [o que] abriu muitas vezes o acesso de novos setores sociais a
ministros do rei” (PUJOL, 1991, p. 125).
Os organismos centrais, desde o século XV, aliás, de maneira cada vez mais
sistemática, buscaram a progressiva incorporação dos direitos jurisdicionais das cidades
51

e dos nobres à jurisdição régia14. Isso possibilitou a criação de um conjunto de oficiais


que, falando em nome de uma autoridade soberana, não dependiam materialmente da
figura pessoal do rei, mas da estrutura institucional da monarquia, sendo figuras
“imprescindíveis para manutenção da ordem” (PUJOL, 1991, p. 128).
Nesse sentido, entendo que o absolutismo, tal como definido usualmente, não
guarda nenhuma correspondência com a lógica e a prática do poder político dos séculos
XVI e XVII. Certamente, a partir do seiscentos, século marcado por intensas guerras
civis religiosas e/ou inter-dinásticas, a situação internacional, o movimento dos grupos
sociais, as conjunturas econômicas e até mesmo a personalidade do soberano e dos seus
ministros, possibilitou ao poder monárquico expressar uma tendência maior a
concentração de poderes, no entanto, isso deve ser compreendido como uma prática
inscrita numa lógica jurisdicionalista de poder.
Dessa forma, quanto maiores fossem as circunstâncias extraordinárias, comum
em um contexto caracterizado por guerras contínuas, maiores seriam as chances do
poder monárquico agir de maneira unilateral, pois em tais casos a necessidade de
preservação do corpo social se sobrepunha as leis. Apesar disso, os reis jamais
esqueciam os limites de seu poder e, em última análise, a forte dependência que os unia
às redes de intermediários que compunham o reino. Tal questão constitui-se no “grande
paradoxo do absolutismo”, segundo a noção de Pujol, ou seja, “uma crescente
concentração de poderes num centro cada vez mais reduzido e, ao mesmo tempo, uma
dependência desse centro em relação às forças sociais periféricas” (PUJOL, 1991, p.
130).
Em síntese, quero frisar que, dentro da cultura política do antigo regime, um
monarca era absoluto, pela posição que ocupava como cabeça do reino, não podendo ser
coagido pelos interesses particulares de seus súditos, nem pelos seus, devendo sua
vontade se confundir com as demandas da ordem e do bem comum (HARTUNG;
MOUSNIER, 1955, p. 15). Suas atitudes deviam revelar justiça, amor, equidade,
respeito às leis e zelo para com a conservação das posses e pessoas de seus súditos. Por
fim, deve-se salientar, marcadamente para o caso da monarquia portuguesa, que como

14
Segundo Pujol (1991, p. 123), “a guerra e os seus custos cada vez mais elevados, constituíam o pano de fundo de
qualquer aspecto da política. A maquinaria bélica e a guerra propriamente dita, faziam sentir o seu peso ao
conjunto da sociedade, e não só pelas exigências fiscais, mas também através de uma lenta militarização dos
valores sociais”. Desse modo, a estruturação da sociedade passava necessariamente pela remuneração dos
serviços prestados, por parte do rei. Isso gerava uma interdependência entre o monarca e seus vassalos: o
primeiro num esforço de cooptação desses homens em busca da concentração de poder político, fiscal e
territorial; os segundos em busca de privilégios que assegurassem a manutenção de seus poderes e posições
dentro da esfera do reino.
52

nenhum homem recebeu de Deus o direito de comandar os outros, as próprias leis da


natureza lembravam que todo contrato de submissão era um acordo humano e, como tal,
podia ser rompido, caso o soberano não fosse capaz de cumprir com suas atribuições.
Alvo de muita controvérsia, a discussão sobre o uso do conceito de estado para
fazer referência às instituições políticas da época moderna já foi abordada em minha
dissertação de mestrado15. Quero apenas retomar alguns elementos daquela discussão,
que são pertinentes também para o presente trabalho.
Como acontece com muitas outras expressões da época, não se sabe precisar
exatamente quando a palavra “passou de um significado genérico de situação para um
significado específico de condição de posse permanente e exclusiva de um território e
de comando sobre seus respectivos habitantes” (BOBBIO, 1987, p. 67), embora as
pesquisas indiquem que tal fato deve ter ocorrido entre o quatrocentos e o quinhentos. O
grande responsável pela difusão do termo em seu sentido mais atual foi, segundo
Norberto Bobbio, Nicolau Maquiavel, com sua obra O Príncipe.
Apesar disso, só muito lentamente a expressão foi se modificando e se
consolidando, de maneira que entre os séculos XVI e XVII encontram-se obras, como
as de Bodin e Hobbes, que usam palavras como república, civitas e commonwealth para
fazer referência ao que hoje se entende por estado, e outras, como a de Giovanni Botero,
por exemplo, que como o próprio título sugere, Razão de Estado, buscava discutir a
razão de estado. Além disso, na linguagem política da época, era usual a utilização da
palavra estado no plural, sendo empregada para designar as diversas partes – clero,
nobreza e povo – que compunham o corpo social.
No que se refere a Portugal, embora existissem órgãos e cargos, como, por
exemplo, o Conselho de Estado e o Secretário de Estado, que permite pensar na
existência de instituições voltadas para a organização política do território, o termo
estado era utilizado também para designar as possessões ultramarinas da Coroa
portuguesa – Estado da Índia e Estado do Brasil.
O debate sobre a história e a configuração do poder político na época moderna
mobilizou a atenção de parcela significativa de produção historiográfica desde o século
XIX até meados do século XX, quando entrou em franco declínio e passou a ser um
campo quase que exclusivamente frequentado por cientistas políticos (SCHULZE,
1997). Esse panorama sofreu nova alteração nas últimas décadas do século passado,

15
Cf. VIANNA JÚNIOR, 2006, p. 23-27.
53

com a revalorização das análises sobre o poder, em seus diferentes matizes, e também
pelas questões surgidas no processo de crise do chamado Estado nacional (GARRIGA,
2004).
Norberto Bobbio (1987) e Carlos Garriga (2004) mostram em seus trabalhos que
a opção por usar, ou não, a expressão estado para fazer referência ao ordenamento
político de época moderna estaria relacionada com o olhar do estudioso sobre seu
objeto, ou seja, se dá maior ênfase ao componente da continuidade ou da
descontinuidade, as analogias ou as diferenças.
Já Pedro Cardim (1999), em trabalho que aborda a questão do conceito de
Estado e de sua utilização para o período anterior às revoluções liberais em Portugal,
identifica duas correntes antagônicas na historiografia. Uma dessas vertentes sustenta
que o estado era uma entidade com forte presença na vida política do antigo regime
português. Nessa linha de argumentação, portanto, o processo de centralização, ocorrido
a partir do século XVI, se confundia com a gestação do Estado, que se apoderou dos
mecanismos de dominação, anulando a capacidade política dos outros corpos sociais,
monopolizando o poder político, concentrando as prerrogativas da tributação e do uso
da violência.
Xavier Pujol (1991), Hagen Schulze (1997) e Yves Déloye (1999), não
necessariamente tratando ou se referindo ao caso português, podem ser identificados
com essa vertente explicativa. De maneira quase semelhante, Pujol e Schulze, afirmam
que o estado europeu moderno, com determinada constituição territorial, possuindo um
poder burocrático e com algum grau de centralização, desenvolveu-se a partir dos laços
pessoais característicos do período medieval, marcando a afirmação da realeza sobre um
território, em certa medida, definido, a partir “de um centro cada vez mais perceptível –
a capital” (PUJOL, 1991, p. 119).
Yves Déloye (1999), por sua vez, sublinha outros aspectos para justificar sua
posição, enfatizando o tripé guerra, tributação e estado para explicar o aparecimento
deste último16. O autor afirma que o processo no qual se formou e construiu o Estado
moderno foi marcado por embates militares, e que este se reforçou “pela e na guerra,
com a finalidade de preencher funções de coordenação administrativa e militar, cada
vez mais complexas” (DÉLOYE, 1999, p. 61). A tributação ao atingir todos os súditos,
menos os que possuíam o privilégio da isenção, possibilitou ao Estado os meios

16
A importância da guerra e das necessidades dela decorrentes também são destacadas por Xavier Pujol (1991, p.
123).
54

necessários à defesa e à segurança do reino, além de fomentar sua política de expansão e


de controle sobre um dado território.
De outro lado, Pedro Cardim (1999, p. 131) identifica aqueles que não percebem
essa presença estatal, propondo “uma visão muito mais descentrada das relações de
poder, insistindo na vitalidade política da igreja, da nobreza, e dos demais corpos
sociais” e destacando que as tendências centralizadoras por parte da Coroa coexistiram
com outras forças, que atuavam no sentido da descentralização política e da manutenção
da pluralidade dos pólos de poder. Além disso, essa corrente enfatiza que o processo de
centralização percorreu um caminho descontínuo, com muitos avanços, mas também
com inúmeros retrocessos, sendo conduzido por pessoas que não tinham consciência do
alcance de seus atos.
As posições de Antônio Manuel Hespanha (1999) e Carlos Garriga (2004)
podem ser identificadas com essa corrente. Ambos os autores defendem que foi um
equívoco considerar-se o princípio estadualista como sistema político do Antigo
Regime, pois isso ocasionava uma diluição da dimensão política, como também da
alteridade estrutural das instituições jurídico-políticas do período. Para Garriga, ao
utilizar-se o conceito de estado como chave explicativa para as instituições políticas da
época moderna, adotava-se uma perspectiva que lia o passado através do presente,
construindo, em última análise, uma genealogia do Estado.
Hespanha (1999) embasa sua posição com os resultados apresentados em alguns
trabalhos historiográficos17, que demonstram que a Coroa portuguesa possuía um
aparato administrativo frágil, uma crônica falta de recursos financeiros e um precário
conhecimento do território. Além disso, o reconhecimento da coexistência do poder real
e de outros poderes na época moderna implicava na constatação de que se o monarca
possuía prerrogativas, que não eram compartilhadas com os demais poderes, estes, por
sua vez, tinham atribuições e uma esfera de atuação, nas quais o rei não podia interferir.
Por fim, destaco a posição apresentada por Norberto Bobbio (1987, p. 69), para
quem importa menos o nome que se queira dar a tal ordenamento político, e mais “saber
se existem analogias e diferenças entre o assim chamado Estado moderno e os
ordenamentos políticos precedentes, se devem ser postas em evidência mais umas do
que outras.

17
Entre as obras citadas por Hespanha (1999), encontram-se diversos estudos do próprio autor, como por exemplo,
As vésperas do Leviathan e Portugal moderno: político e institucional, trabalhos de Nuno Gonçalo Monteiro,
José Manuel Subtil e Ana Cristina Nogueira – sobre os juízes de fora – e alguns textos do volume quatro do livro
História de Portugal, dirigido por José Matoso.
55

Nesse sentido, a partir das leituras efetuadas e dos dados empíricos que
disponho, não adotarei o termo estado no presente trabalho, seguindo, portanto, a
terminologia sugerida por Hespanha, que entende como mais pertinente o uso da
expressão “monarquia portuguesa [...] caracterizada como uma monarquia corporativa”
(HESPANHA, 2001, p. 166), na qual se reconhece que o poder régio compartilhava o
espaço político com outros poderes. Nesta, os direitos da Coroa se encontravam
limitados pelo direito comum e por práticas locais e os deveres políticos, inseridos em
redes clientelares e familiares, sustentados por laços de amizade, compadrio,
liberalidade, caridade, magnificência, gratidão e serviço.
Minha opção é também tributária das reflexões feitas a partir da leitura da obra
de Max Weber, que ao definir o Estado o identificou como um processo, no qual um
grupo expropria de terceiros os meios materiais de gestão, concentrando os recursos
necessários para, dentro do limite de determinado território, monopolizar o uso da
violência física (WEBER, 2000, v. 1, p. 34). Portanto, a concepção weberiana de estado
implica em reconhecer a existência de três elementos básicos: a presença de um
aparelho administrativo que garanta a prestação de serviços públicos, o monopólio
legítimo da força e a regulação através de normas gerais e abstratas. Tais elementos,
como se verifica, e como será também mostrado ao longo desse trabalho, não são
possíveis de serem encontrados nas monarquias da época moderna, notadamente na
portuguesa.
Por fim, resta a discussão em torno dos conceitos de centralização e
centralidade para uma referência a atuação das monarquias modernas. Utilizado de
maneira generalizada e sem grandes críticas, até bem pouco tempo atrás, o conceito de
centralização sofre hoje diversas contestações e, em certa medida, parece parcialmente
abandonado pela produção historiográfica atual. Xavier Pujol (1991) foi, sem dúvida
nenhuma, um dos responsáveis por essa guinada, com seu trabalho Centralismo e
localismo?. O autor afirma que a expressão centralização, surgida no final do século
XVIII, nos anos do Terror, foi posteriormente utilizada pela “historiografia
conservadora francesa [que] projetava uma forte visão retrospectiva sobre o passado,
buscando demonstrar a íntima comunhão entre nação e Estado” (PUJOL, 1991, p. 123-
124), tendo sido apresentada, desde Tocqueville, como um dos traços mais marcantes
das monarquias do antigo regime.
Para Pujol (1991) o processo que se desenrola, desde o século XVI, não pode ser
rotulado de centralizador, pois o que as monarquias almejavam era o fortalecimento de
56

suas dinastias, e para tanto colocaram em prática um programa de disciplinarização


social, fomento econômico e reforma política, buscando com isso tornar seus agentes
mais presentes na vida local e, assim, conseguirem impor o “princípio de autoridade
sobre seus súditos considerados pouco obedientes e pouco cumpridores das suas
obrigações, especialmente em matéria fiscal” (PUJOL, 1991, p. 124).
Desde então, os especialistas têm preferido utilizar o conceito de centralidade,
que busca enfatizar o componente relacional existente nas sociedades de antigo regime,
a partir da conformação de diversas redes de poder, que organizavam o tecido social.
Essas redes, por um lado, dependiam umas das outras, mas, por outro, competiam entre
si para galgar melhores posições dentro da sociedade. No centro dessa espiral de poder
estava o monarca, a quem todos se dirigiam, por ser ele o dispensador de todas as
benesses (GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004, p. 98).
Esse viés interpretativo é tributário das reflexões do sociólogo Edward Shils
(1992) e do historiador Russell-Wood (1998). De acordo com Shils, todas as sociedades
possuem um espaço central (centro), que, de alguma forma, exerce influência sobre as
pessoas que convivem dentro do mesmo espaço físico (periferia). A centralidade desse
espaço não era conferida por um aspecto geográfico ou geométrico, mas, ao contrário
disso, estava relacionada com um sistema de valores e crenças comuns que governam e
estruturam a sociedade como um todo18.
Posteriormente, Russel-Wood, em seu clássico artigo Centros e Periferias no
mundo Luso-Brasileiro, utilizou-se do modelo centro-periferia para examinar as
relações travadas entre metrópole e colônia e também o contexto intracolonial,
buscando examiná-las em sua dinâmica política, econômica, social e cultural. O autor,
além disso, avançou ao considerar em sua análise que a posição do observador é
fundamental para a definição do que se constitui como o centro e a periferia de uma
relação social, e que, portanto, ela se modifica à medida em que se altera o lugar de
onde se observa (RUSSELL-WOOD, 1998).
Esse esquema explicativo não ignora que entre essas redes existisse uma
hierarquia e que o rei, por sua posição central, estivesse no ponto mais alto dela, o que
faz com que se leve em consideração a possibilidade dele, monarca, se valer de sua

18
O sistema central de valores era comum a toda sociedade, ou seja, ao centro e a periferia. Apesar disso, embora
afirme que a zona central não seja definida por sua localização geográfica, Shils (1992) admite a possibilidade
de que a vigência do sistema central de valores e a própria autoridade institucional sofram a influência do
distanciamento territorial entre o centro e a periferia. No entanto, o autor afirma que, ainda que de forma
fragmentária e descontínua, o sistema valores da “massa da população”, para utilizar a expressão empregada
pelo próprio autor, mantém algum tipo de relacionamento com o sistema central de valores.
57

posição para obter dividendos políticos e, logo, fazer crescer seu próprio poder. Apesar
disso, os estudiosos, que seguem essa vertente, apontam para o fato de que o aumento,
ou reforço, da centralidade do rei não implicava em centralização de poder
Tal percepção é encontrada em trabalhos que se dedicam ao exame das
estruturas sociais, quer políticas ou econômicas, do mundo do antigo regime, mas
também em estudos voltados para a administração portuguesa na América. Nestes, por
exemplo, tem se buscado demonstrar que a sobreposição de funções e competências
entre os diversos agentes administrativos da Coroa, que geravam recorrentes querelas
sobre o espaço jurisdicional de um ou outro órgão, funcionava como um instrumento do
monarca, no sentido de mantê-los sobre controle e até, em última análise, assegurar a
centralidade da figura real, que como árbitro e juiz, devia garantir a cada qual aquilo
que lhe era de direito e evitar a intromissão de funções e competências entre as diversas
agências da monarquia (COSENTINO, 2009, p. 34-37).
Sem negar a validade dos argumentos expostos, desejo tecer algumas
considerações sobre eles. Primeiramente, acredito que a justificativa apresentada por
Xavier Pujol (1991) é por demais severa ao conceito centralização, uma vez que sua
opção, ao refutá-lo, baseia-se no significado que lhe é dado por certa vertente
historiográfica. Este não considera a hipótese dele poder ser enunciado com uma
significação distinta do originalmente pensado.
Além disso, entendo que se o conceito de centralidade serve bem ao propósito
de apresentar como se estruturavam as relações sociais no mundo do antigo regime,
notadamente no ibérico, no entanto, seu alcance torna-se bastante limitado para dar
conta da questão do ponto de vista institucional e político, ou seja, para falar do esforço
dos governos monárquicos por uma atuação mais interveniente sobre o corpo social –
não necessariamente por meio de ações coordenadas. Dessa forma, penso que o conceito
de centralidade não pode ser utilizado, segundo a abordagem de alguns estudos, como
substitutivo ou oposto àquele de centralização, na medida em que eles se referem, em
minha visão, a processos distintos e complementares19.
Nesse sentido, acredito ser possível falar de centralização como um processo
através do qual as monarquias modernas buscaram obter um maior controle sobre outros
organismos políticos, como as cidades, corporações, que perderam gradualmente o seu

19
O próprio léxico ajuda a elucidar a questão, pois centralidade é definida como “o caráter ou qualidade do que é
central” e centralização como “reunião em um mesmo centro; acumulação de atribuições no poder central”.
Dessa maneira, entendo que o processo de centralização concorre, em última análise, para aumentar a
centralidade do monarca dentro do corpo social. (FERREIRA, 1975, p. 306).
58

caráter autônomo, para serem inseridos dentro de uma rede encimada pelo poder central.
Esse processo foi marcado pela procura da concentração de poderes e atribuições – o
poder de ditar as leis válidas para toda a coletividade, o poder jurisdicional, o poder de
usar a força no âmbito interno e externo com exclusividade, o poder de impor tributos –
nas mãos do soberano e de seus prepostos, possibilitando, portanto, um alargamento na
sua esfera de atuação e intervenção.
Nada disso implica em não reconhecer que os poderes do monarca tinham
limites impostos pelas leis divinas e pelas leis fundamentais do reino, nem desconsidera
a existência de outros centros legítimos de poder dentro do espaço da monarquia, o que
fez, inclusive, com que a atuação desta fosse marcada pela descontinuidade, com a
adoção de medidas contemporizadoras em determinadas circunstâncias e em outros,
uma atuação mais efetiva e, por vezes, repressora.
Em outras palavras, pode-se falar de um processo de centralização do poder
régio, sem que isso necessariamente pressuponha a existência de uma posição unilateral,
por parte daquele que detém o poder, que desconsidere a existência de outras forças
dentro do cenário político, o que, no mais, julgo difícil de ser pensado para qualquer
contexto histórico, mesmo aqueles autoritários e ditatoriais20.
Para o caso da monarquia portuguesa, é possível afirmar que, entre os séculos
XVI e XVIII, procurou-se conferir um maior protagonismo político à realeza, em
diversos campos: primeiramente, com a afirmação da realeza sobre um território, em
certa medida, definido, a partir “de um centro cada vez mais perceptível – a capital”
(PUJOL, 1991, p. 119) e, em última análise, da corte, onde se fixou um grupo de
pessoas, em sua maioria nobres21, que estabeleceu um vínculo de interdependência e
complementaridade com o monarca, caracterizando o que Nuno Gonçalo Monteiro
chama de pacto de regime (2005, p. 10)22. Essa relação travada entre o rei e as elites que

20
Aqui vale lembrar uma passagem da obra de Max Weber sobre as relações de dominação. Conforme dizia o
sociólogo alemão, uma relação de dominação mesmo que “puramente unilateral, faz surgir sempre a exigência
de reciprocidade, por parte dos submetidos ao poder, e esta exigência, em virtude da própria natureza da coisa’,
adquire reconhecimento social como costume [...] Também o senhor ‘deve’, portanto, alguma coisa ao
submetido, não juridicamente, mas de acordo com o costume. Sobretudo [...] proteção de perigos externos e
ajuda em caso de necessidade” (WEBER, v. 2, 2000, p. 237). Ou como afirma em outro momento, “em toda a
relação autoritária, certo mínimo de interesse em obedecer, continua sendo, na prática, a força motriz normal e
indispensável de obediência” (WEBER, v. 2, 2000, p 190).
21
A curialização da nobreza laica e eclesiástica, de acordo com Pedro Cardim (1999, p. 141), seria o traço mais
marcante dentro do referido contexto.
22
Esse pacto, segundo Nuno Gonçalo Monteiro, teria se aprofundado no contexto da Restauração portuguesa,
deflagrada pelo movimento de 1º de dezembro de 1640. De acordo com o autor (2005, p. 10-11), “o fato [da
primeira nobreza do reino ter] sustentado a dinastia [de Bragança] de armas na mão, nos seus momentos
fundacionais, constituía parte integrante e fundamental do pacto que julgavam ter estabelecido com a monarquia
e que esta reconhecia como fundamento para a perpetuação do seu estatuto contra ventos e marés. Na verdade,
59

o cercavam, gerava uma cultura de serviços, mantida à custa dos bens da Coroa, que
eram redistribuídos pelo rei, através da concessão de mercês23.
Essa cultura de serviços assentava-se no preceito medieval de consilium atque
auxilium, segundo o qual o vassalo tinha a obrigação de fornecer recursos materiais e
financeiros – auxilium –, bem como aconselhamento – consilium – a seu senhor. Vale
assinalar que tais práticas não eram restritas apenas as esferas mais altas da sociedade,
sendo usadas “nos mais diversos níveis de vassalagem, desde o mais modesto vassalo
em relação ao pequeno senhor, como do grande senhor em relação ao seu rei”
(XAVIER, 1998, p. 143). Da mesma forma, cabia ao monarca, enquanto senhor da
justiça, a tarefa de retribuir seus vassalos pelos serviços prestados, criando-se, portanto,
uma espiral de reciprocidades, que perpassavam todas as cadeias hierárquicas do reino.
Apesar disso, o poder monárquico tentou conferir uma maior preeminência às
suas leis, buscando colocá-las acima das normas produzidas pelas entidades detentoras
de poderes jurisdicionais, empenhando-se também em supervisionar o efetivo
cumprimento de suas diretivas. As ordenações Manuelinas e Filipinas eram símbolos
desse afã legislativo, bem como a legislação que procurava estabelecer, de maneira mais
precisa, relações entre os diversos níveis da administração e também a remuneração
pelos serviços prestados.
A monarquia portuguesa tentou também limitar, de maneira cada vez mais
circunstanciada, a patrimonialização dos cargos do oficialato régio, para torná-lo
politicamente mais controlável, e “em certos casos, houve mesmo um esforço no
sentido da despatrimonialização, e a Coroa esboçou várias tentativas para dissociar o

aceitou a obrigação de preservar e perpetuar as casas que tinham ajudado a consolidar a dinastia no seu período
fundacional, sobretudo as que tinham prestado serviços na ‘guerra viva’, aos quais se atribuía uma relevância
única. Mais exatamente, essas obrigações eram assumidas como dimensões ‘constitucionais’ do regime
brigantino, como um pacto tácito (e algumas vezes explícito), quase invariavelmente aceite pelas instituições da
monarquia, entre a dinastia e as casas aristocráticas que na guerra a tinham defendido e sustentado”.
Sobre essa questão ver também a obra O Crepúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em
Portugal, desse mesmo autor.
23
A distribuição de mercês – honras e privilégios – por parte do rei constituía-se numa prerrogativa extraordinária
e exclusiva do monarca, sendo a face mais aparente do poder taumatúrgico dos reis, tão presente na tradição
européia, e entendida, por teólogos e tratadistas da época, como uma virtude própria dos reis.
A designação mercê era, segundo Fernanda Olival, a mais comum em Portugal, durante os séculos XVII e
XVIII, sendo sua atribuição classificada em dois grupos: as que eram conseguidas por via da graça, sendo fruto
da liberalidade régia (doações), e as conquistadas por via da justiça, que decorriam de situações geradoras de
débito, relacionando dádiva e serviço, suscetíveis inclusive de serem alegadas nos tribunais, pois o rei tinha
obrigação de remunerar os vassalos pelos serviços prestados.
Embora se procurasse enfatizar que o súdito devia servir ao soberano sem procurar recompensa material por sua
atitude, o que ocorria na prática era que quem prestava serviços à Coroa o fazia visando também as
recompensas, e não por puro amor ao rei. Nesse sentido, mercê e serviço tinham um papel essencial, primeiro,
como alicerce da monarquia portuguesa, pelas relações que construía entre súdito e soberano. Depois, por se
constituir como veículo para mobilidade e controle social, além de consolidar o papel da Coroa como centro de
redistribuição de distinções. (Cf.: OLIVAL, 2003 e RAMINELLI, 2008).
60

oficial do seu ofício” (CARDIM, 1999, p. 136), buscando reforçar a percepção de que o
monarca era o único detentor deste.
No entanto, como salienta Pedro Cardim (1999), é importante ressaltar que
apesar das ações da realeza, com o intuito de reforçar seu poder, serem contemporâneas
e convergentes, apresentavam pouca articulação entre si e tiveram que enfrentar a
resistência das instituições pré-existentes. Portanto, esse processo foi lento e pouco
sistemático, não obedecendo a nenhuma estratégia previamente delineada24,
“vislumbrando-se, apenas, uma disposição – conjuntural e instável – para o alargamento
da sua esfera de decisão [da Coroa] e para centralização da capacidade decisória”
(CARDIM, 1999, p. 136). Nesse sentido, de acordo com o autor, até o final do século
XVIII o impulso centralizador da monarquia portuguesa desenvolveu-se sempre dentro
do quadro da matriz política tradicional, ou seja, a atuação da Coroa se processava
dentro de um cenário marcado por relações do tipo patrimonial-estamenal25, no qual
vigorava

um entendimento jurisdicional do poder, de acordo com qual a cada parte do corpo


social assistiam determinados direitos e prerrogativas [...] E de acordo com essa
cultura política onde as razões da religião se cruzavam com os preceitos jurídicos, os
homens não deviam alterar aquilo que a divindade havia disposto, sob pena de pecar.
Este preceito dizia respeito a todos, e nem sequer os reis podiam ignorá-lo (CARDIM,
1999, p. 143).

Disso decorre o quadro, sinteticamente traçado por Cardim, do qual salta uma
imagem de Portugal que, até o final do século XVIII, “permaneceu politicamente pouco
integrado e pouco homogêneo” (CARDIM, 1999, p. 148). Apesar do esforço
centralizador da Coroa,
o poder central seiscentista não dispunha, por um lado, de grande capacidade de
irradiação periférica; e, por outro, mesmo no centro estava repartido por uma
multiplicidade de órgãos com atributos políticos quase soberanos, que expropriavam o
centro de uma decisiva capacidade de intervenção (HESPANHA, 1998, p. 148).

Nessa perspectiva, Hespanha afirma que mesmo as terras e senhorios existentes


em Portugal conheciam uma situação de self-government, isto é, de autogoverno, uma
vez que o monarca, não possuía um conhecimento tão amplo e preciso de seu território
e, por sua vez, seus súditos não sabiam muito sobre o rei ou a dinastia reinante,
conhecimento, aliás, que era, em última análise, irrelevante para as práticas políticas
locais. Por este motivo, é que Pedro Cardim salienta que, “em muitos casos, os laços de

24
A atividade governativa no antigo regime, de acordo com Pedro Cardim, seria marcada, de maneira geral, pelo
improviso e pela falta de planejamento, estando dele ausentes a elaboração de estratégias que tivessem uma
visão do conjunto e que pensassem em uma intervenção de longo prazo. (CARDIM, 1991, p. 141).
25
Cf. WEBER, v. 1, 2000, p. 155; HESPANHA, 1984, p. 7-90.
61

pertença à comunidade familiar e religiosa imperaram sobre a consciência de integrar


uma comunidade política mais geral sob a alçada de um rei” (CARDIM, 1999, p. 147).
A este cenário o monarca respondeu através da utilização de estratégias – como, por
exemplo, as festividades e rituais régios – que apostavam “numa forte personalização da
sua autoridade” (CARDIM, 1999, p. 147), como forma de reforçar e conservar, através
do contato pessoal, a fidelidade entre rei e vassalos.
Ademais, retomo a discussão sobre o modelo centro-periferia. Essa chave de
análise permite notar a interdependência e o interesse recíproco entre as partes, bem
como as relações e as diferenças entre as muitas periferias, vistas anteriormente como
um bloco homogêneo, que reagiam e se relacionavam com o centro da mesma forma.
Como Ronald Raminelli (2008) assinala, em recente trabalho, a dominação portuguesa
sobre as possessões ultramarinas não seria possível, se não contasse com a participação
e colaboração dos moradores destes territórios.
Nesse sentido, “se as distâncias, os inúmeros grupos e conflitos eram como
forças centrífugas, [é forçoso reconhecer que existiam também] [...] elementos que
atuavam como imãs, atraindo para o centro pontos distantes da periferia”
(RAMINELLI, 2008, p. 19). Isso ocorria, principalmente, pelos serviços militares
prestados, mas também pela produção de cartas e relatórios, que permitiam ao monarca
conhecer as potencialidades dos seus domínios e de ter notícias dos acontecimentos que
aí se processavam. Os homens, que se encontravam na América, obedeciam às ordens
régias, guiados não somente por um princípio puro de fidelidade à Coroa portuguesa,
mas também “com a finalidade de alcançar privilégios, dependência, que, por certo,
viabilizou o controle monárquico [...] [na medida em que] dependiam do soberano para
reconhecer seus feitos e honrá-los com mercês”. (RAMINELI, 2008, p. 21). E é,
justamente, por comungarem dos mesmos valores do centro, que esses homens
envidavam tantos esforços na expectativa de que fossem “reconhecidos e
recompensados, [...] [com] honras e privilégios que os aproximavam, paulatinamente,
do monarca” (RAMINELI, 2008, p. 7).

1.2 Breves considerações sobre o modelo castelhano e sua influências sobre o


governar o Portugal restaurado
62

Por fim, esboço algumas rápidas considerações sobre o governar Portugal no


período posterior ao domínio dos Habsburgos de Espanha. De acordo com Antônio
Manuel Hespanha, os anos de monarquia dual teriam introduzido “algumas novidades
no plano da constituição política do reino” (HESPANHA, 1989, p. 51) português. Isso
porque, ao contrário da matriz de poder portuguesa, muito mais próxima das formas
tradicionais do sistema político da Europa ocidental, a Espanha possuía uma forma de
governar mais centralizada, sem as limitações corporativas, exercendo seu poder de
maneira mais eficaz sobre a sociedade.
Dessa forma, se, por um lado, o Estatuto de Tomar, celebrado em 1581,
resguardou o exclusivo reinícola de Portugal, garantindo que este mantivesse suas leis e
suas instituições, por outro, ao longo dos anos, e de forma cada vez mais crescente, o
funcionamento e a organização dos órgãos pertencentes ao reino português foram
sofrendo alterações, que os aproximavam da prática governativa empreendida pelos
Filipes.
O modelo castelhano, como denomina Hespanha, introduziu “novas formas de
institucionalizar a comunicação política entre a coroa e os poderes periféricos”
(HESPANHA, 1989, p. 51), com a substituição das ideias participativas, encarnada
pelas Cortes, por um esquema representativo, “sob a forma de uma representação de
muitos por poucos” (HESPANHA, 1989, p. 55), posto que esse universo seja
hierarquizado, ou seja, dotado de uma cabeça e de seus membros inferiores. Nesse
sentido, para fins tributários, por exemplo, não se fazia necessário consultar todo o
reino, mas tão somente as cidades mais importantes, nomeadamente Lisboa que, através
de sua Câmara, durante o período filipino, acabou por se tornar a principal interlocutora
do reino português com o monarca Habsburgo (HESPANHA, 1989, p. 53).
Apesar do movimento de 1640 ter, a princípio, restaurado às Cortes a sua função
de fórum político do reino, não foi possível eliminar completamente o novo estilo de
comunicação rei-reino, instituído pelo governo dos Filipes. Dessa maneira, as Cortes
passaram a ter um papel cada vez mais simbólico e menos interveniente na atividade
governativa do reino, “servindo mais como um meio que os pólos políticos periféricos
detinham para garantir – mais ao nível da negociação política, do que no plano jurídico
– os seus direitos particulares” (XAVIER, 1998, p. 168). De fato, elas não voltaram ter
a importância de outrora, acontecendo sua última reunião antes do final do seiscentos26.

26
Os debates ocorridos em 1668, por ocasião dos acontecimentos envolvendo a deposição de D. Afonso VI e a
aclamação de seu irmão D. Pedro, mostram, segundo Ângela Barreto Xavier (1998, p. 168), que a imagem das
63

Outra modificação importante ocorrida no período filipino deu-se no campo


político administrativo, com a implantação de um sistema mais centralizado, com base
num corpo de agentes políticos, com a criação de juntas ou a nomeação de comissários
ad hoc, em detrimento das formas de decisão assentadas em decisões colegiais, típicas
das monarquias tradicionais.
Com isso, buscava-se conferir mais agilidade e evitar o moroso processo
decisório dos conselhos, cujas decisões eram tomadas apenas após “a expressão de
todos os pontos de vista e respeitando, por isso, a natureza tópica e argumentativa do
processo jurídico de decisão” (HESPANHA, 1989, p. 58). Em última análise, o que se
verificou foi a mudança de um estilo de governar, com base no direito e no parecer dos
juristas, por outro mais político. De acordo com Antônio Manuel Hespanha, isso se deu
não somente

por uma questão de estilo pessoal do rei ou dos seus ministros, mas porque o ritmo da
evolução da conjuntura política, a premência das respostas que tinham que ser dadas e
as necessidades de uma política unitária e de mudanças, obrigavam a um novo modo
de institucionalização da ação política, a uma nova forma do poder central
(HESPANHA, 1989, p. 59).

Além disso, é preciso observar que nas juntas e comissões, ao contrário dos
conselhos, não pontificavam os juristas, mas “validos, nobres ou não, e oficiais
subalternos e práticos” (HESPANHA, 1989, p. 60). Pessoas que não possuíam os
privilégios, que eram conferidos as conselheiros régios, e que, portanto, precisavam
garantir a sua “permanência [...] com a maleabilidade e a obediência ao rei e seus
ministros” (HESPANHA, 1989, p. 60).
Em síntese, apesar de num primeiro momento, a ascensão da dinastia dos
Braganças ter significado o retorno de formas mais tradicionais de poder, com a
convocação das Cortes e recolocação dos juristas, da justiça e dos conselhos em posição
destaque, não foi possível “evitar, das anteriores mudanças, aquelas que tinham um
caráter estrutural” (HESPANHA, 1989, p. 66).
Nesse sentido, Hespanha afirma que o período filipino foi responsável por
modernizar o sistema político lusitano. Se, as Cortes voltaram a ser convocadas, elas
passaram a ter, a partir de 1641, o assessoramento da Junta dos Três Estados. Da mesma
forma, se a forma de governar permaneceu assentada no paradigma jurisdicionalista,
cada vez mais ela foi sendo penetrada por princípios políticos, com base numa estrutura

Cortes “como uma assembléia legitimadora (mais simbólica do que politicamente), eram um expediente
utilizado em conjunturas perturbadoras: regências, sucessão, juramento do príncipe herdeiro. [...] as valorizações
conjunturais traduziam mais uma necessidade política do que uma reivindicação de direitos políticos associada à
natureza da assembléia”.
64

comissarial, principalmente nos assuntos relativos à fazenda e à guerra. Por fim, a


própria administração tributária é exemplo das continuidades entre o a época dos Filipes
e os Braganças, com a manutenção de impostos, instituídos pelos primeiros, e a criação
de novos, necessários para o equilíbrio do orçamento ordinário, dentro de um contexto
marcadamente complexo e conflituoso no reino e no ultramar.

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