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A Mulher:

na Psicanálise e na Arte

KALIMEROS
(Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Rio)

Apresentação:
Stella Jimenez

facebook.com/lacanempdf
Para esta edição:
Copyright© 1995, Contra Capa Livraria Ltda.
Todos Direitos Resevados.
A reprodução não autoriz.ada desta publicação, no todo ou em parte, constitui
violação da Lei 5988
Organização Gera):
Stella Jimenez e Gloria Sadala
Coordenação de Edição:
Elisa Monteiro
Conselho Editorial:
Elisa Monteiro, Helolsa Caldas Ribeiro, Maria Aparecida Telles Bueno, Rosa
Guedes Lopes, Vera Avellar Ribeiro, Vera Pollo.
Capa:
Jorge Marinho.
Revisão:
Maria Judith Azevedo Vieira
Tânia Maria Cuba Bittencourt
Editoração:
Jorge Marinho.
Impressão: Tavares e Tristão Ltda.

.A Mulher: na psicanálise e na arte I Kalimeros - Escola


Brasileira de Psicanálise - Seção Rio; organização
geral: Stella Jimenez e Gloria Sadala.
- - Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1995
206 p.; 21 cm
ISBN- 85-86011-01-0
1 .Psicanálise 1. Kalimeros. Escola de Psicanálise
II. Jimenez, Stella; org. III. Sadala, Gloria; org

COO - 150.195

Contra Capa Livraria Ltda.


Rua Barata Ribeiro, 370 • Lj. 208
22040-000 • Riode Janeiro • RJ
Tel.: 236-1999 • Fax (55 21) 256-0526
Sumário
Apresentação 5
1. O Outro falta 9
As fonnas do amor na partilha dos sexos • Antonio Quinet - 11
Mulberes ... entre o ser e o nada • Stella Jimenez - 24
A mulher e suas máscaras • Heloisa Caldas Ribeiro • 33
O Falo e a Outra: um estudo sobre a feminiliade • Cristiana Facchinetti - 41
Uma questão delicada - Rita Maria Manso de Barros· 48
2. A Mulher, o objeto e o gozo 53
Notas sobre o supereu feminino - Romildo do Rêgo Barros - 55
Êxtase: o desatino do dizer - Elisa Monteiro • 66
e Ines Autran Dourado Barbosa
A mulher e o narcisismo ou o goro feminino
e a Igreja Universal do Reino de Deus· Sonia Alberti - 78
Do ifdiche, do Witz e da mulher· Sara Perola Fux • 85
"Ela anda em bclez.a, como a noite" - Maria Anita Carneiro Ribeiro - 92
A voz na fantasia feminina· Mirta Zbnm - 99
3. Horsexe 109
, De mãe para filha - Maria do Rosário do Rêgo Barros • 111
"Não quero que ela seja como eu" - Maria Luisa Duret - 119
4. Loucas, mas não todas 127
"Nasci nua de minha mãe" - Graça Pamplonn - 129
Quando a máscara cai: a devastação • Elizabeth da Rocha Miranda - 139
Quem come não está só ... - Eliane Schennann • 147
5. Ato analítico e Não-Todo 155
Mulher e interpretação: adeus significante - Gloria Sadala - 157
Medusa: castração e ato apotropaico - Nelisa Guimarães • 163
6. Á Mulher na arte 173
"Dorotéia"- Elza Marques Lisboa de Freitas - 175
• ·'Do amor e da letra": recortes de duas histórias - Vera Pollo - 181
"Mulher é dcsdobráver': a mulher e o semblante - Ana Martha W. Maia - 189
A escrita feminina e o semblante - Angela Batista - 196
7. Entrevista - Gennie Lemoine 203
Agradecimentos

A Consuelo Almeida, Vanda Almeida, Halina Grynberg, Maria Pinto,


Márcia Ely Lemos, Gisele Gonin, Eliane Schermann, Angela Batista,
Inês Autran Dourado Barbosa, Maria Luisa Duret. Glória Seddon,
Selma da Silva, Maria Helena Martinho, Sonia Nery e Maria Lídia
Arraes Alencar que, com seu trabalho na VI Jornada Clínica da EBP -
Seção Rio, ajudaram na realização desta edição.

A Antonio Quinet pelo incentivo e participação sempre constantes neste


projeto.

A Manuel Barros da Motta por suas oportunas indicações bibliográficas.

A Maria Anita Carneiro Ribeiro e Graça Pamplona pela participação na


revisão dos textos.

A Bette Paiva Kalache pela gentileza.

A Mme. Gennic Lemoine por sua importante colaboração.


Apresentação
Stella Jimenez

Sobre o enigma da feminilida!k se interrogaram os homens de todos


os tempos. A este enigma, Lacan acrescenta um outro: o enigma do
gozo da mulher, que ele equip~a ao dos místicos e dos poetas.

Neste livro foram selecionados vinte e dois trabalhos sobre o


aforismo de Lacan, A Mulher não existe. Mas, existem mulheres.
Elas ex-sistem ou insistem? O que a arte e a clínica têm a falar
sobre este tema?

Na primeira parte, O Outro falta, Antonio Quinet demonstra que a


teoria de A Mulher estava já presente nos textos freudianos e no
pensamento de Lacan anterior aos anos 60. Por trás da aparente
fidelidade da mulher, há sempre um outro homem velado. Helofsa
Caldas Ribeiro modaliz.a as três saídas do Édipo atribuídas por Freud
à mulher, provando que nenhuma delas complementa o homem. A
mulher fica dividida entre os semblantes dos quais se vale e a falta
de um significante que referencie sua identidade. Teoriz.a que todas
as máscaras, mesmo as femininas, se inscrevem do lado masculino
nas fórmulas da sexuação. Cristiana Facchinetti define a posição
feminina como fazer-se de Outro. Rita Maria Manso de Barros
mostra, a partir da radicalidade de um caso de hermafroditismo, que
é no campo do Outro que o'$ espera a resposta à questão: sou homem
ou sou mulher?

Os textos clínicos estão agrupados sob os subtítulos: Horsexe -


5
palavra que Lacan escolhe para designar a aparente
homossexualidade da histéricas - e Loucas, mas não todas. Nos
trabalhos de Maria do Rosário do Rêgo Barros e de Maria Luisa
Duret fica evidente que a questão histérica é correlata à questão sobre
.~pai.Do ponto de vista da primeira, o desejo da mãe é decisivo na
escolha das mascaradas femininas no momento em que, decepcionada
com o pai, a criança retoma para ela.

Em Loucas, mas não todas aparece a dimensão de extravio em que


uma mulher pode se colocar renunciando ao ter. Elizabeth da Rocha
Miranda narra a catástrofe que acontece numa dinastia de mulheres
quando cai a última tentativa de procurar no homem o significante.
Eliane Shermann descreve um caso de anorexia, no qual o sujeito
renuncia a tudo para ser o falo, mesmo que um falo um pouco magro.
Graça Pamplona trabalha as coordenadas que nos permitem
estabelecer o diagnóstico entre uma histeria grave e uma psicose,
fundamental na direção da cura.

Em A. Mulher, o objeto e o gozo, Romildo do Rêgo Barros teoriza


o gozo do supereu nas mulheres relacionando-o com o temor da
perda do amor que dessimboliza o objeto. Sonia Alberti estabele
uma relação entre o gozo a mais das místicas e a tendência atual das
mulheres pobres a frequentar a Igreja Universal. Maria Elisa
Monteiro e Inês Autran Dourado estudam o gozo do Outro a partir
da vida e da poesia de dois místicos e de Sóror Juana Inés de la
Cruz, ex-cortesã, freira e santa. Sara Fux estabelece uma
compararação entre o gozo de um chiste, possibilitado pela falta de
um significante no Outro, e o gozo a mais da mulher. Maria Anita
Carneiro Ribeiro articula a idéia de Lacan de que a beleza seria o
último véu a cair antes da aparição do objeto com a compulsão das
mulheres à beJc7.a.. No texto de Mirta Zbrun, o objeto voz aparece
como resto da alienação significante que, na experiência clínica da
autora, cai a partir da pergunta sobre a feminilidade.
6
Nos textos agrupados sob o nome Ato análitico e Não todo, Nclisa
Guimarães teoriza que o ato psicanálitico faz com que o sujeito, que
usa o horror para se proteger da castração, receba sua própria
mensagem de maneira invertida. Glória Sadala aproxima o conceito
de ato psicanalf tico da posição feminina.

Seguindo o conselho de Freud de consultar os poetas para saber


sobre a feminilidade, quatro trabalhos estão agrupados no capítulo
J.. Mulher na arte. Vera Pollo usa a literatura para mostrar o que os
escritores sabem do não todo e concluir que, se existe alguma
feminilidade, ela se encontra no ato da escrita e no ato analítico, no
que eles conduzem do pai ao pior. Angela Batista define a escrita
como feminina e o demonstra a partir de textos literários. Elz.a Freitas
mostra como Nelson Rodrigues cria a ficção de um mundo de
mulheres excluindo o universo dos homens, como se a parte direita
das fórmulas da sexuação se desprendesse da esquerda. Ana Martha
Wilson Maia compara poesias de Carlos Drummond de Andrade e
de Adélia Prado para tirar conclusões sobre a parte esquerda e a
direita destas fórmulas.

No meu texto, no capítulo O Outro falta pretendo demostrar, a partir


de fragmentos clínicos, que as fórmulas da sexuação não se referem
à partilha entre homens e mulheres, e sim à partilha entre a parte
falável e a não falável do ser humano que, por força de expressão,
são chamadas de parte Homem e parte A Mulher. A parte não falável
é aquilo que ex-siste em todo ser falante.

O debate está aberto.

7
Capítulo 1

O Outro falta
As formas de amor na partilha dos sexos 1
Antonio Quinei
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Partirei do famoso texto de Freud sobre A femini/idade 2, para


introduzir as formas do amor na partilha dos sexos: a fonna fetichista
do amor do homem e a fonna erotomaniaca do amor da mulher.

A feminilidade é o texto que Freud escreve para tentar responder ao


que ele chama de 'enigma da mulper'. A primeira coisa que ele faz
é desfazer a equivalência, proposta por ele mesmo, entre:
feminino = passivo e masculino = ativo, pois "há mulheres
que podem desenvolver uma grande atividade em diferentes
direções e há homens que só podem viver num certo grau de
submissão passiva" 3, Após esta correção de sua posição, Freud parte
para o exame do complexo de Édipo e o de castração.

Ao constatar que também para a menina o primeiro objeto de amor


é a mãe, a questão de Freud é: por gue, diferentemente do menino, a
menina abandona a ligação com a mãe? Esse não é o caso do homem
que mantém a mulher como objeto de amor para toda a sua vida. A
questão de Freud é saber o que faz a menina se desligar da mãe e se-
voltar para o pai. A partir do momento em que a menina abandona a
mãe como objeto e se liga ao pai, tudo parece ocorrer sem maiores
problemas. Todo o problema da sexualidade feminina se centra 7
exatamente nesta passagem da mãe ao pai. Mas o que determina
-;;ta passagem? É o complexo de castração, uma resposta relativa a
falta-a-ter: a menina faz de sua mãe a responsável por sua falta de

11
,f Mullrer

pênis, e não lhe perdoa esta desvantagem.

T ai como no caso do menino, o complexo de castração para a menina


se inicia diante da visão dos órgãos genitais do outro sexo. Diante
da diferença. "ela se sente gravemente lesada e sucumbe à inveja do
pênis (penisnei<!)", ou como elegantemente Lacan diz à nostalgia
da/alta-a-ter, a nostalgia de algo que ela jamais tivera. Entretanto,
o simples reconhecimento da falta de pênis não leva a menina a se
submeter facilmente à castração. A partir da descoberta da castração
há três saídas possíveis:

1. Neurose f-t . -v:lÍ'..v...('o,. :


complexo
de castração
L 2. Complexo de masculinidade
~ 3. Feminilidade

Esta dittinção freudiana é essencial e, como sabem, Lacan mantém


esta repartição esquemática proposta por Freud.

1. A escolha da neurose: Diante da inveja do pênis, a menina abre


mão da sexualidade fálica. "Humilhada, ela renuncia à satisfação
masturbatória e rejeita seu amor pela mãe e, com isto, boa parte de
suas aspirações sexuais"4 • Seu amor, na verdade, era dirigido à mãe
fálica. Diante da descoberta da ausência de pênis na mãe, a menina
deixa-a cair como objeto de amor, a desvaloriza, e a odeia. Mas,
nesta passag~da mãe para o pai como objeto de amor, algo ~ -
detém e a sexualidade fálica é abandonada.

2. O complexo de masculinidade: Há uma recusa da menina em


reconhecer a castração da mãe e, tomada por uma revolta impregnada
de desafio, ela exagera a masculinidade e se refugia na identificação
com a mãe fálica, ou com o pai. O pai não intervém aí a 11ão ser pela
identificação imaginâria.
12
Antonio e
Freud não vai situar aqui a homossexualidade feminina, que ·---
origem na situação edipiana e na não aceitação da decepção causada
pelo pai. A menina se d_ecepciona por não obter o que espera do pai:
o falo sob a forma de um filho; diante desta decepção, ela regride ao
complexo de masculinidade, a ele se agarrando.

3. Safda pela feminilidade: Diante da castração da mãe, a menina


renuncia ao amor desta e se volta para o pai com "o desejo de pênis,
do qual sua mãe a frustrou". Mas a situação feminina só é instaurada
quando o desejo de pênis _é substituído pelo desejo de filho. Eis, diz
Freud, "o desejo da feminilidade efetuada, realizada''5 . Neste trecho,
Freud hesita. Apesar de ele afirmar que o desejo feminino é o desejo
de filho, tem-se a impressão de que não está muito certo quanto a
isso, porque diz que nesta expressão 'desejo de um filho do pai', i
este 'um filho' é mais importante do que 'do pai'. Freud diz, então,
que talvez possamos reconhecer mais o desejo feminino no desejo
do pênis do que no desejo do filho.
~
Se formos resumir a proposta de Freud neste artigo, diremos que ele
·propõe uma partilha dos sexos a partir do falo - ter ou não ter o falo
- e rebate o desejo feminino sobre o desejo de filho, fazendo equivaler
Q_ortanto a m~ à mulher ..

É exatamente em relação a estes dois aspectos que Lacan se posiciona


de modo diferente, indo mais além do ponto em que Freud deixou
esta questão. Em contraposição a este 'ter ou não ter o {!liP', Lacan
•--
propõe que é justamente por não ter que a mulher se torna o falo. Ela
se transforma naquilo que ela não tem. A ausência de falo é o que
condiciona justamente a mulher a ser um objeto fálico. "É a ausência
de pênis que a faz falo''6. Ela só é objeto de desejo, na condição de
encarnar para o parceiro a significação da castração. Para se tornar
objeto causa de desejo para o parceiro, tem de ocupar este lugar de
.
-;r o falo_Para tal, ela tem de se apresentar sempre com o sinal de
13
~Mulher

menos,, com uma menos valia qualquer, enfim, tem de estar marcada
pela castração de alguma fonna, como por exemplo!A mulher pobre,
de Léon Blois, que mostra a mulher que não tem nada, representando
aquilo que falta.

É a falta que torna alguém objeto de desejo para o outro. Com~


também ocorre no caso do homem em relação à mulher. Para ele
-- -- -·-----'
ocupar este lugar_de objeto de des~Q.J!!Y.ª uma mulher, ele tem de
estar marcado por um menos _g_ualguer. Eis a estrutura depreendida
por Lacan a partir da posição feminina.

Quanto à questão do desejo feminino, qual a função do filho? Se o


filho vem tamponar a falta, respondendo ao lugar de desejo, isto não
quer dizer que ele se situe como um objeto causa de desejo da mulher.
É justamente o órgão vi~l que ela encontra no parceiro que vem
preencher a função de semblante fálico, e gue será transformado por
ela em fetjclla
.P-

~ Lacan diz em Notas para um Congresso sobre a sexualidade


~feminina, ue a falta-a-ter en endrada la frustra ão estrutural d
1' dem stituída ela falta-a-ser ue o falo simboliza. É a
/: partir desta substituição, ou seja, deste deslizamento da falta-a-ter à
/'1 falta-a-ser "que entra o clitóris antes de sucwnbir na competição, e
~ o campo d~ desejo precipita seus n~vos objetos (na pr~meira fila o
! filho por vir) da recuperação da metafora sexual, onde Já tenham se
enveredado todas as outras necessidades 7".

Lacan retoma aqui uma discussão freudiana do clitóris como .wn


92s equivalentes do falo; ele entra como um dentre outros objetos
da metáfora sexual, que poderíamos escrever assim:


-. (filho)
falta-a-ser clitóris novos desejos
-+
falta-a-ter desejo (- (j))

14
Antonio Qumct

A problemática da falta-a-ter é simboliz.ada como falta-a-ser a partir


da questão do clitóris, onde se dá a sexualidade fálica, ou seja, no
campo do desejo. Desta forma, novos objetos, inclusive o filho, serão
constituídos como objetos sexuais, marcados por(-q,).

Em Observações sobre o Jn[Orme de Daniel Lagache, Lacan situa o


desejo masculino e o desejo feminino dentro da dialética do amor e -
do desejo. O ~sejo masculjno é representado pelo materna ct> (a),
sendo ct>, o significante do gozo e do desejo neste momento do ensino
de Lacan e o objeto a - no caso o outro - a mulher: a mulher ~~
v~o_lugar d? significante fálico. ,_, ; i
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o d~s~j~,f~~j~li~o'é ~s~rito ~~mo dé~jo'de ralo·~~ t~i~-i~aii~àri~.-


0 pênis fetichizado como falo que a mulher vai encontrar no parceiro
sexual. no lugar de A.. A forma erotomaníaca de amor do lado
feminino significa que a mulher ama de uma forma delirante, na
medida em que está suspensa ao Outro. Se na paranóia há uma certeza
do amor do Outro. no caso da mulher esse amor é marcado pela
-
incerteza.

Do lado do homem, este ama uma mulher, a quem designa com um


·tu és minha mulher'. para receber a sua própria mensagem de forma
invertida ('eu sou teu homem'), situando-o tranqüilamente na partilha
dos sexos. ""na medida em que o significante do falo a constitui col]!Q
dando no amor aquilo que ela não tem''. Mas, diz Lacan, o desejo do
homem ""si.! situa para além dessa mulher". Onde? Numa Vénusberg
(trata-se do nome de uma cidade inventado por Lacan. que
1!i
corresponderia a um Venuspolis, tal como Teresópolis. Petrópolis)
- onde proliferam as girls-phallus. Seu próprio desejo de falo f~á
surgir seu significante numa outra mulher. que pode significar o
falo de diversas fonnas: prostituta, virgem, enfim, qualquer figura
que venha simbolizar o falo 8 •

No inconsciente do homem. com as girls-phallus o sujeito vê


ressurgir o desejo do Outro como 'falo desejado pela mãe·, mostrando
como o sujeito se encontra justamente dentro desta estrutura edipiana.
Ele que achava estar se afastando cada vez mais do âmbito edipiano
materno, na verdade vai reinstaurar exatamente isto. desejando o
falo como significante do Outro materno.

Por que Lacan chama isto de fonna fetichista de amor? Porque este
revestimento fálico qüe o homem faz da mulher vela o horror~-ª
castração, impedindo que o homem se depare com a mulher como
~ a n t e do Outro sexo. Ele a faz falo fetichisticamente para
poder desejá-la e gozar dela, pois se não houvesse este artificio não
haveria possibilidade de um homem abordar uma mulher.

Vejamos agora a posição feminina. O desejo de pénis explica


inteiramente a questão do desejo feminino? O pertencimento do pênis
real ao parceiro em quem ela vai encontrar seu significante do desejo.
faz com que ela esteja ligada a este homem de forma unívoca, sem
duplicidade nenhuma? Será que a duplicidade só se encontra do lado
do homem? Lacan, nesse texto jntrodutório sobre a sexuaJjdade
feminina, desvela a duplicidade implícita na forma de amar da mulher.
' 1
çuem é o Outro eara a mulher? Tanto o menino quanto a menina se
deparam com a castração do Outro. ou seja. a mãe submetida a uma
lei; e isto faz com que a alteridade na sexualidade se encontre
desnaturalizada. Não há nada mais de natural na sexualidade. na
medida em que o que ocorre no complexo da castração é da ordem d:..

16
Anionio Quinei

um Outro simbólico. A alteridade sexual não é, portanto, equivalente


ao que se imaginariz.a: que o outro para mulher seja o homem.

:·o homem serve aqui de relais (conector) para que a mulher se tome
'~ie Outro para ela mesma, como ela é parã el~'! A mUlher- não· é
um 'eu mesma' para si própria, ela é (e não-o1iomem) um Outro
para si mesma. Lacan chega a dizer que a mulher na dialética
falocêntrica representa o Outro absoluto.

1 Por que a mulher precisa do homem para se sentir Outro para si


mesma? A mulher utiliza o homem como traço distintivo da fun~.ão
fálica, para que se divida em: por um lado, ela é igual ao holfil.!!1_
podendo se espelhar nele a partir deste traço distintivo do falo
inserindo-se na ordem fálica; por outro lado. tem algo totalmente
diferente, para-além do falo. Essa divisão a constitui como um Outro

.- para si mesma -

Para ascender ao Outro, lugar do inconsciente onde _se ..coloca em


jÕgo a castração simbólica. ela precisa do homem com.çsone~tor.
~ a r q u e ela vai encontrar nele o significante de seu desejo
de pênis, que encontra ai seu valor de fetiche e que fará com que ela
.colog_ue em jogo sua próp_ria castração simbólica. A mulher encontra
este significante no corpo de seu parceiro sexual, ao qual ela dirige
sua demanda de amor. ~orém, esse traço fálico não lhe dá garantia
alguma do amor do parceiro· e ela fica sempre esperando um sinal de
amor, o que vem dar a forma erotomaniaca de um 'ele me ama'.
Mas, como esta forma erotomaníaca de amar da mulher não é
-------~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

e.:,icótica, este 'ele me ama' é sempre acompanhado de um ponto de


interrogação: ele me ama? - a eterna pergunta da mulher. ~

Trata-se de um a m o ~ mordido pela dúvida, pois o amor dela


não é propriamente dirigido ao parceiro. Na verdade, o jpgo d~
escamoteio se situa do lado da mulher: ela diz amar o seu parceiro

17
,t( Mulhtr

sexual quando na verdade se trata aí de um outro objeto de amor,


que Lacan vai situar como o 'incubo ideal'.

Mas, segundo Lacan, 'não há virilidade que não seja ~onsa_grada


_pela castração'. Uma mulher só P-Q_d~-I..~lli'ª-.Yiriljgí!?~_de s~u
parceiro marcando-o inconsciente_mente~ -~~t__ra~o-~i!J1:~6_1Js:_~·
-Algwnas mulheres sabem conscientemente que marcam - e como -
o parceiro com a castração e que é necessário este jogo para que ele
possa ser desejado por ela. É wna estratégia conhecida pela his!érica·t
que unilateraliza a castração do lado do homem para escamotear a
-
própria falta.
·-·-

· Làcan propõe um jogo de _cena na fonna de amar da mulher onde há


um homem na frente do véu, e um outro por trás. Na frente-do véu,
hã o parceiro sexual no corpo de quem a mulher vai encontrar o
significante de seu desejo. Atrás do véu, aparecem os efeitos da
castração que a mulher imputa ao homem sob a forma do amante
castrado ou do homem morto (que podem ser resumidas na figura
do Cristo). São formas que, estando veladas no parceiro sexual,
mostram o 'outro homem' da sexualidade feminina.

Se o desejo feminino visa o parceiro sexual diante do véu, é de um


~to atrás do véu que é chamado o seu parceiro no amor. O g~e é
~_em do desejo sexual da mulher está desvelado @Quanto ~~S
é propriamente o amor está atrás do véu, seg~ndo a forma
erotomaníaca de amar que supõe o amor deste Qutro vel~do pelo
recalque.
l / '
veu
~ '
. _., p.,..,011,wl
·.'.
·1 - ....._ }
_, il'l"'.~~
.
·~ l Homem morto Crilto 1.1',.

-~ '---v--'
· ; DHlfO MnJal ""1of"

O parceiro sexual não é então o objeto de adoração da mulher, mas


sim esta figura do homem submetido à castração, que é chamado

18
Antonio Quinei

aqui por Lacan de o incubo ideal: ·'por trás do véu do parceiro sexual
vai se perfilar o íncubo ideal".
Termo utilizado na Qemonologia da possessão, o incubo é um tipo
de demônio que vem possuir as mulheres à noite, durante o pesadelo.
incubo vem de incubare, que significa estar deitado sobre, tomar
posse de, usurpar. Em latim, este termo também quer dizer pesadelo,
ou seja, Q pej9_do gozo.do Q11tr.9_ s_QQte_.Q._p_e.i!o do s_Ejeitot que é
c~mo Lac~~- d~fi_ne a angústia do pesadelo no~eminário X. 1
Este ín~ubo ideal é uma figuração do pai morto como guardião do
gozo, instaurador da lei e do desejo, sendo também o a ente da
~traçã2_: a figuração do Nome-do-Pai, do lugar da exceção, do
pai da horda primitiva de Totem e tabu, que é por um lado o pai da
lei e, por outro, também o pai do gozo - aquele que seria o guardião
do gozo. É deste lugar do pai que vem uma ameaça de castração,
que para ela é inoperante. O efeito disso, diz Eric I .aurent é "uma
irrealização da função paterna"'º· A figura paterna se desdobra na \
·-figura do pai impotente, aquele que é inoperante na castração e na
Qgu~a co~P.e~satória do pãiicle-al, que é ~nstruí~ par~-~~~~!~~~- __
sua 1mpotenc1a. ,

Com o incubo ideal aparece o pai como detentor do gozo. pai


idealizado a quem a mulher faz sua demanda de amor e clama por
~ adoração. ~a clínica vemos que algumas mulheres chegam a
representar este Outro do amor que sustenta o circuito do gozo como
uma figura paterna, ~arecendo nestas versões do homem morto ou
do amante castrado. Trata-sê do pai da exceção..) o Nome-do-Pai,
que se vincula à lei e ao símbolo e também com o real do gozo,
surgindo como o demônio que à noite vem gozar do corpo da mulher.

Dizer que a condição do gozo feminino se relaciona ap~nas ao órgão


masculino é reduzir a questão. Trata-se de um circuito que parte
deste ponto atrás do véu e vai culminar no órgão masculino desejado,
19
A' Mulhtr

que aparece em primeiro plano e que Freud chama de 'desejo de


. .,
perus .
Onde localizar o gozo aí? Ora, o gozo não é localizável. Lacan não
retoma a discussão em tomo do gozo clitoriano e do gozo vaginal
que ocorreu nos anos 30. ~le situa o gozo em algum ponto deste
trajeto, que vai do Nom~Pai (ou pai do gozo) ao pênis fetichizado.
"É desse íncubo ideal que uma receptividade de abraço deve ser
remetida a uma sensibilidade de cinta em relação ao pênis" 11 •
gntretanto o gozo, ou~ adoração, se situa mais para o lado do amor,
e o desejo, para o lado do pêms do parceiro.
O gozo feminino se situa mais do lado do amor, como se pode
verificar clinicamente na superestimaçilo pelas mulheres do amor
em relação ao desejo.

Há, no entanto, um obstáculo neste circuito do gozo que vai do incubo


ideal até o parceiro sexual: é a identificação imaginária do sujeito
feminino ao falo, que sustenta a fantasia. O que é uma identificação
E!agínária ao falo? Por não suportar ser marcada pela fal~, a mulher/
quer se mostrar como inteira. Identificando-se com o traço_do Umf
-------·· -
ela faz obstáculo a ser marcada pel!1 falta - eis o recurso da histeria.
'A dificuldade da posiç!o feminina é discutida por Lacan neste
~ momento como situando a mulher entre · ~ ~ a
) ~ e ' . Podemos dizer que ela se posiciona entre urna
pura ausência do pai, que não responde ao apelo de sua adoração, e
uma pura sensibilidade sem representação, do lado do gozo. Daí ela
1

recorrer ao desejo, que é vinculado ao significante fãlico, que Lacan


~ chama de narcisismo (lo desejo.

--
Esta expressão narcisismo do desejo é um paradoxo, pois narcisismo
se refere ao eu, ao amor pela imagem, e o desejo é sempre do Outro.
Lacan propõe o recurso ao narcisismo do desejo para resolver esta

20
Antonio Quinei

dificuldade da posição feminina. O narcisismo do desejo é o amo!


pela imagem desejante; o am__QI_Jlela..f.alla. No narcisismo do desejo,
o amor pela imagem vem:· süpnr·a faifa-a-s~ dando como resultado
o 7ünor pela falta. A image~-~nh~ ·surge-como a própria imagem
do desejo - o fazer-se desejante e ~esejada a partir da imagem.
A estrutura da forma de amor erotomaníaco do sujeito feminino
mostra a duplicidade que na realidade aparece velada. O que aparece,
na frente do véu, é freqüentemente a existência de um só parceiro do
qual é exigida a fidelidade sob a alegação de sua própria fidelidade.
A estrutura depreendida por Lacan da__sexu_alidade_femini.na desvela
o que se poderia chamar de traição constante da mulher com o incu.!29
i ~..-.§_la gue apregoa sua fidelidade, trai sempre o parceiro. seja
com o amante castrado, seja com o homem morto, ou com os dois
~ .;:.,-.

"_;,sta duplicidade é tanto mais mascarada_ quanto a s_eryidão do


cônjuge toma-o apto a represe~tar a vítima da castração" 12 . Quando
a mulher encontra um parceiro servil, esta duplicidade é ainda mais
velada, pois a servidão do parceiro é aquela em que este faz da .mm.r
----=-~~__;~~~~-
~ tudo para ele e o resultado é ser nada menos do que a vítima da
castração feminina.
Esta duplicidade da sexualidade feminina entre o incubo ideal e o
. parceiro sexuai representa a duplicidade entre amor e desejo na
rriúlher. É isto que faz com que Lacan, nos anos 70, proponha o
'desdobramento da sexualidade feminina como vinculada ao gozo
fálico e tendo acesso também a este outro gozo, a algo a mais que
Lacan chama de gozo enigmático. Podemos dizer que hã ai um

-
deslocamento do que Freud chamou de 'enüuna da mulher' para o
que Lacan, nos anos 70, chama de 'enigma do gozo feminino': a
mulher se encontra no gozo fálico, mas não apenas.
,,-· r
- --
. 1.... L,\ ·1_.{ •.J0<.1

21
,.f Mullttr

/ ' <I>
A( Mulher'" .
~ s "1{)

Aigualdade dos sexos é absoluta no que s_e_ref~a_o ~l.Q l~-+- <I>).


Só que a mulher tem algo a mais para ªlé_l!_l do fa!o: o g_~zo
enigmático, louco, tal como e encontrado nos místicos, que nã~m
'i'ignificante para conter em um universo (~ S(A)).

NOTAS

1. Trecho da abertura do Seminário A mulher e o não-todo efetuado


na Escola Brasileira de Psicanálise - Rio de Janeiro, segundo
semestre de 1995.

2. FREUD, S. - "Novas conferências introdutórias à psicanálise",


'A Feminilidade' ( 1932), Obras completas, vol. XXII, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1976.

3. Idem, Ibidem, p.143.

4. Idem, Ibidem, p.155-156.

5. Idem, Ibidem, p.158.

LACAN, J. - "Subversion du sujet et dialectique du désir dans


l 'inconscient freudien", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 730.

(j) Idem, "Propos directifs pour un Congres sur la sexualité


féminine" (1958), op. cit., p.730.

8. Idem, Ibidem, p.733.

9. Idem, Ibidem, p.732.


22
Antonio Quinct

10. LAURENT, E. - "Positions féminines de l'être", in: La Cause


.freudienne, n.24 - 'L 'Autre sexe ·, Paris, Navarin-Seuil, 1993,
p.110.

11. LACAN, J. _..Propos directifs pour un Congres sur la sexualité


féminine", op. cit., p. 733.

12. ldem, Ibidem, p.734.


A Mullter

Mulheres ... entre o ser e o nada


Stella Jimenez
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

"~ quero saber quem sou eu verdadeiramente, fora do personagem"


- dizia uma analisanda, sem saber que com isso expunha, em breves
palavras, o drama essencial do ser humano. "Eu sei que sou um
~ eng~o" - eram as palavras escolhidas por uma outra para dar conta
de semelhante impasse.

Porque, desse drama essencial do ser humano, a radical percepção


da inadequação do sujeito com a máscara com que se representa
frente ao Outro, são as mulheres que falam? Porque os homens
raramente se perguntam sobre isto, ou o falam como um aforismo. o
"todos devemos representar"' de André Gide? Essa aparente
particularidade do discurso das mulheres é uma das razões pela qual
se poderia cair na falácia de se pensar numa clinica do feminino.
Percepção de falta de identidade, sensações de despedaçamento
corporal, de falta de consistência, medo de perda de controle, de
enlouquecer, temor de perder o domínio do corpo, queixas de ser
nada, têm sido referidos como especificamente femininos. Mas se
lembramos nossa clínica, certamente exemplos não nos faltam de
homens falando coisas semelhantes. "Quando me olho no espelho,
não sou eu o que vejo", me falava um analisando outro dia._Mas são
as mulheres as que mais denunciam o aspecto ficcional da identidade,
.ª facticidade do ego corporal; o fato de não sermos, como queremos
achar, donos de nossas vidas e de nossas palavras, mas joguetes de
um Outro (inconsciente) que nos l_~m _seu poder demoníaco, a

24
Stclla J1mcnez

aterradores de nossas vidas.


---
repetir as situações das que mais queremos fugir, os momentos mais
--- -·- --~

Algo faz com que isso seja mais claro do lado das mulheres. O além do
significante, a relação com a falta, a percepção do indizível, o imaginário
do ego corporal dando uma unidade de engodo ao corpo despedaçado
pelo simbólico, é certamente mais óbvio do lado das mulheres. Nos
homens é mais freqüente a tendência a dar conta de tudo com raciocínios,
de tudo explicar, de ignorar as repetições inconscientes com argumentos
que os tranqüiliz.am.

Pode-se pensar que do lado masculino o falo, enquanto significante


privilegiado, faz obstáculo ao encontro com aquilo que o significante
não dá conta, com a falta que se produz, resto do próprio significante.
Os homens querem acreditar que têm o falo, acreditar nas palavras,
na lógica da contradição dos opostos. Nem todas as mulheres
acreditam nisso, nem todas confiam na equação de substituição do
falo pelo filho.

Esse aparente conformismo masculino com o significante se


manifesta também no fato de que o ser falante cai no engodo de
acreditar que tem resposta para o que é ser homem, designando assim
os embaraçados pelo falo; do lado da mulher fica claro que se trata
de um enigma. Na realidade não existe o significante homem nem o
significante mulher, não existe ser falante que possa ser representado
por esses significantes. A pergunta 'o que é ser homem?', 'será que
eu o sou?' é tão presente como a pergunta 'o que é ser mulher?',
mas muito menos evidente.

Assim, a necessidade de acreditar no significante leva os homens a


obnubilar aquilo que o próprio significante determina, o indizível
para além do falo. As mulheres, no que "elas o são sem o ter" 2
(logicamente não todas não tendo, pelo menos não constantemente,

25
,(M11lher

já que desde Freud se sabe que elas podem passar algum tempo
como mulheres3 e outros como homens), nem todas se enganam sob~e
a ficção significante. Mas se queixam disso sem saber o que dizem.

Isso coloca as mulheres na possibilidade de um contato maior com


o real. Este contato, que lhes possibilita o acesso ao gozo..a..mm.ua
mesma maneira que aos místicos e poetas, é também..aguilo do ql!_e
m.afsseC!u"eixam. Pode-se dizer que, quanto mais histérica, mais se
-queixa, e mais pretende recalcar procurando um Tug_ãr-;ignifi~Íe
no Outrº-1 sela se identificando cºm um homem, seja__a___timJ-º-. .?.~
~nf~rm~ira ou de rainha, de imP-ossível ou de enfeite. Terror de se
reconhecer nesse a, que apesar do esforço não deixa de se impor,
levando-a a não querer que uma parte do seu corpo sirva de faz-de-
conta de objeto na mascarada dos sexos, já que isso a afastaria da
possibilidade de se identificar com o significante fálico.

Dessa forma, escutamos a queixa de estar fora, de ser diferente do


resto do mundo, de ser uma sombra, uma extraterrestre ou "uma
folha solta, perdida na tormenta". Não deixa de ser uma maneira de
tentar se refugi_ar no signif~te fálico, já que na falta de ter _Q_(aj.o
se ___
pode escolher ser o falo. E a percepção de estar nesse lugar fora
-...;:;__

do significante, numa tentativa de o retomar falicament~~~r aquilo


que ao resto do mundo falta.

O discurso da histérica, matemiza o que disse anteriormente:

Esse materna mostra que a histérica tenta recaJcar aquilo que está no
26
StcOa J~ncz

lugar da sua verdade, o pequeno a, e espera receber do Outro os


significantes que a afastariam do horror da falta.

Isso determina a importância de se sentirem amadas, colocando o


Outro no lugar da demanda de amor de onde se espera um lugar
significante.

O terror de se deparar com o a leva as histéricas a serem


extremamente suscetíveis à possibilidade de serem usadas. Uso
remete aqui ao objeto, e elas não querem se confrontar com essa
verdade. Assim, escutamos queixas como "ele me usa para trepar",
"ele me usa para cozinhar", "ele me usa para cuidar dos filhos", etc.

---
O mesmo temor as leva a não quererem ser tomadas por um~e
delas mesmas. Parte remete também ao objeto. Também costumam
dizer: "não quero que ele goste de mim só porque tenho um corpo
.

lindo", "não quero que ele goste de mim só por causa de minhas
pernas". Exigem ser amadas pelo que não são, na tentativa de serem
amadas como falo.

Gostem ou não, as mulheres estão mais perto do real. Não foi por
acaso que o inconsciente (o Outro) foi descoberto graças às mulheres,
como também não é casual que elas procurem mais a análise.

No Seminário Mais, ainda, Lacan teoriza as fórmulas da sexuação,


que não correspondem à divisão entre homens e mulheres, e sim à
partilha entre a parte masculina e a feminina do ser falante. A
masculina corresponde ao universal, ao Um, e a feminina ao que
está além do significante, ao que não admite nenhuma universalidade.
A parte feminina se apresenta como não todo, como o que se produz
como resto da própria articulação significante e da suplência oferecida
aos neuróticos na forma da identificação com o falo.4 As mulheres
não se colocam todas na parte direita das fórmulas, já que como
sujeitos falantes estão no 8 do lado masculino, mas têm wna abertura
27
A Mulhtr

maior para esse lado. Não todas, posto que muitas histéricas tentam
estar todas do lado do significante.

3x <I>x
Vx ll>x

Na linguagem popular, o fato de se ter o falo apaga aparentemente a


particularidade dos homens: 'Os homens ... são todos iguais'. Mas,
quem entende as mulheres? A donna ê mobile ... A própria
~consistência atribuída às mulheres, de que elas próprias se queixam,
é devida ao fato de serem não todas representadas pelo significante.
__!. percepção de falta de limites CO[J2QraiS é reforçada pela dúvida
que sempre fica: elas têm ou não o falo? Têm_g_ue ser revistadas uma
~
a uma... Seguindo mais uma vez o conselho de Freud de perguntar .
aos poetas, Drummond de Andrade nos ilustra esta indeterminação
~ corpo da mulher.:.._

"Não saberei? Só pegando,


pedindo: Dona, desculpe
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?"6

As fórmulas da sexuação mostram a parte mulher do ser falante,


indizível e a parte masculina, falante. As mulheres encarnam, para
todos, a parte enigmática. Assim como o enigma de seu gozo,
ninguém decifra o enigma da feminilidade.
28
Stclla Jimcnez

Isto determina que as mulheres se percebam mais claramente como


uma mascarada. já que "só a máscara existe no lugar vazio da
mulher" 7 • Menos evidente é a mascarada masculina. 8 Na clínica,
verificamos que os homens também temem ser um engodo e se
sentem obrigados a fingir que têm o que sabem que não têm, já que
o pênis não é o falo. Muitas vezes se colocam intimamente, como as
mulheres, no lugar da exceção: pensam que todos os outros homens
têm, só eles duvidam disso. É freqüente escutar queixas sobre o
tamanho do pênis. O enigma sobre o gozo da mulher é concretizado
em dúvidas sobre a própria capacidade de as fazer gozar. Isso reforça
o terror de que elas os comparem, ao trepar com outros homens.

Mas a mascarada do lado das mulheres é tão evidente que, quando


um homem pretende imitar mulheres, o que imita é esse traço de
afetação, de falsidade.

Mulheres, então, existem de infinitos tipos: realistas, idealistas,


apaixonadas, indiferentes, loucas, sensatas, frívolas, profundas,
confiáveis, inconstantes - só se pode fazer catálogos de mulheres.
Só podem ser tomadas uma por uma. É o que o imaginário popular
nos diz das mulheres, sobretudo no mito feminino de Don Juan. A
clínica nos mostra que essa verdade evidente nas mulheres é a de
todo ser falante: os analisandos são todos diferentes, devem ser
tomados um por um.

Esta percepção do real além do significante, que caberia às mulheres


com mais facilidade do que aos homens, seria mais um dos·
determinantes da invenção feminina do tecido. Tanto tecer como
fazer tr~as é um gesto que constantemente deixa de fora um terceiro
elemento: dois são ligados entre si, mas um terceiro fica de fora.
Tenta-se amarrar este terceiro elemento e aparece um outro, sempre
de fora. É a concretiz.ação do terceiro e a tentativa de introduzi-lo no
imaginário do dois. Lacan diz que o nó borromeano é. uma trança.
29
"Os homens ficam dando voltas nas rodinhas e não percebem que
passaram de uma rodinha para outra, e muito menos que as rodinhas
são três. Já para as mulheres isso é evidente'"}. Mas existem mulheres
que, na ansiedade de fechar a trança, acabam fazendo nós muito
mais fechados do que os homens.

E agora, as mulheres não tecem? Não operam dessa maneira com o


três do real? Acho que sim; tecem de outra maneira, com sua própria
vida. As mulheres atuais estão sempre às voltas com o terceiro
elemento, seja a profissão, os filhos ou o seu 1ugar de amantes frente
a um homem. Pelo menos um dos três elementos aparece geralmente
em falta. Mas às vezes uma mulher consegue fechar os três, e assim
as últimas décadas assistiram à aparição de uma nova mascarada de
mulher - profissional bem sucedida, esposa perfeita, mãe adequada,
sempre bem apresentada e sedutora. Isso existe. Super mulher, mulher
maravilha, mulher completa, como é chamada vulgarmente na
tendência intrínseca da língua de recorrer à ironia. São as mulheres
das quais as outras se perguntam, cheias de inveja: 'como consegue?'
'Será que não dorme?' A clínica também muitas vezes nos mostra a
angústia por trás dessa mascarada, o desassossego na corrida inútil
tentando fechar todos os buracos. Mas não todas se angustiam.
Muitas nunca procuram análise.

Lacan também nos fala do que chama a 'verdadeira mulher', aquela


que visa "abrir um buraco no ser" 1º, a que aponta "para deixar um
lugar deserto no coração vivo do ser amado" 11 • Aquela que por ter
esse contato com o real e não o temer, sabe que o mais doloroso para
o homem é o confronto com esse buraco. Medéia, que mata os
próprios filhos e Madeleine Gide, que queima as cartas do marido, o
bem mais precioso para ambos, são exemplos dados por Lacan de
atos de uma 'verdadeira mulher'. Esse ato guarda semelhanças
estruturais com o ato psicanalítico, já que o analista, por ter
atravessado a sua própria destituição subjetiva, não teme tanto o
30
S1ella Jimenc:z

real, assim como não teme a perda que implica apontar para o lugar
vazio do desejo. Entretanto, uma diferença se impõe: o ato da
'verdadeira mulher' é o sujeito que o produz. Madeleine Gide
confessa ter percebido que precisava fazer algo para se vingar do ser
amado. No caso do analista, não é bem ele quem produz o ato, mas
algo dentro dele, algo que tem a ver com seu desejo de analista,
frente ao qual ele se sente tão tomado e tão ultrapassado como seu
analisando.

Para finalizar, posso dizer que a única queixa que até o momento
escutei como específica das mulheres é a de não serem entendidas
pela mãe, sem que precisem se explicar. O que recriminam na mãe,
em última instância, é dela se ter e as terem submetido à lei do
significante.

NOTAS

1. LACAN, J. - "Jeunesse de Gide", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 752

2. Idem -Seminário VI: O desejo e sua interpretação, inédito, grifo


nosso.

3. FREUD, S. - "La femineidad", Obras completas, Madrid,


Editorial Biblioteca Nueva, 1968, p.941.

4. O conjunto dos homens pode parecer fechado porque eles portam


o representante privilegiado do falo. Não se percebe aí que o
conjunto fechado não existe, que todo conjunto contém em si
mesmo o conjunto vazio e, portanto, todo conjunto está aberto
ao infinito. Isto também é demonstrado pelas fórmulas da
sexuação. O conjunto universal, do todos, aparece como um
conjunto fechado, enquanto o da direita aparece como um
conjunto abeno, infinito, que pode ser também pensado como o
conjunto vazio sempre contido em qualquer conjunto.
31
A Mlllhu

5. LACAN, J. - Le Séminaire, Livre XX: Encare, Paris, Seuil. 1975,


p.73.

6. DRUMOND DE ANDRADE, C. - Antologia Poética, Rio de


Janeiro, Livraria J. Olimpio Editora, 1978, p.140.

7. LACAN, J. - "O despertar da primavera", (1 de Setembro de


1974), inédito.

8. Miller chega a dizer que a mascarada é basicamente masculina


porque é bem sucedida: nem sequer aparece como mascarada.

9. LACAN, J., Seminário XXI: Os não tolos erram, inédito.

10.ldem, "Jeunesse de Gide", op. cit., p.761.

11. Idem, Ibidem, p.762.


IA mulher e suas máscaras
Heloisa Caldas Ribeiro
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

No seu escrito La signi.ficación dei falo, Lacan faz menção à


mascarada em sua relação com a questão do feminino. O trecho é o
seguinte: "Por mais paradoxal que possa parecer esta formulação,
dizemos que é para ser o falo. quer dizer o significante do desejo do
Outro, que a mulher vai recusar uma parte essencial da feminilidade,
concretamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela
não é que pretende ser desejada ao mesmo tempo que amada'''.

O que chama, inicialmente, a atenção é a questão enquanto um


paradoxo em torno de ser o que não é. Sabemos que toda a lógica
lacaniana da operação significante trata disto, ou seja, do paradoxo
inerente à representação. O falo, enquanto um significante que
responde pela articulação da cadeia, propicia justamente que o
irrepresentável invista um significante da missão impossível de
representá-lo. No L 'Etourdit, Lacan lembra que Freud nos diz que a
falta de sentido designa o sexo, e acrescenta "mas isso não vai sem
dizer" 2• Está implicada nesta frase tanto a concepção freudiana da
Coisa como a noção que Lacan desenvolve de objeto pequeno a.
Diante da falta de sentido do sexo há que dizer.

Com relação à divisão que a castração produz, a fórmula freudiana


comuta ter/não ter o falo. No entanto, encontramos nas idéias de
Lacan um desdobramento desta comutação para ter/ser o falo e suas
respectivas negativas.

33
j(Mullltr

A mulher freudiana está do lado da falta-a-ter e três respostas são


possíveis: ou ela escolhe o caminho da neurose onde sua
reivindicação viril se submeterá às substituições exigidas pelo
recalque; ou ela adota uma posição de protesto de masculinidade
como homossexual; ou se torna mulher encontrando na maternidade
seu lugar de âncora identificatória e no filho o substituto do falo
perdido. As três saídas são referidas ao falo.

O que muda segundo a dicotomia proposta por Lacan? Qual é a


mulher lacaniana?

Quando uma mulher está do lado da falta-a-ter e faz semblante de


que tem, não se trata de uma mulher. Sua posição é a mesma de um
homem que procura o complemento que venha suturar a fratura
produzida pela castração. A mulher submetida à problemática da
posse do falo - a pretensa mulher fálica - está do lado do homem, de
onde se interroga, como ele, o que é uma mulher. As três saídas
freudianas são modulações desta posição: a histérica faz o homem,
a homossexual é, na verdade, heterossexual e a mãe busca fazer par
com o filho. São saídas em que o conceito de mulher é o enigma a
resolver. Estes sujeitos não podem portanto ser o complemento para
o homem, uma vez que se encontram diante do mesmo impasse. A
mãe, modelo de mulher para Freud, deixa de sê-lo na ótica de Lacan.

No Mais, ainda, ele diz que quando uma mulher entra na relação
sexual enquanto mãe, e um homem enquanto castrado, seus objetos
não são simétricos1. Um homem busca uma mulher, e uma mulher
um filho, fazendo do homem apenas o procurador desta petição. O
homem, que busca uma mulher, encontra I).ela outro sujeito no lugar
do suposto objeto de complemento, o objeto a de sua fantasia. O
mesmo se passa do lado dela. Ela obtém a criança, mas só pode
viver com seu pequeno filho as desilusões cotidianas de perdê-lo a
cada dia, já que ele também não poderá encarnar o complemento.
34
Hcloisa Cal das Ribeiro

Não há simetria, logo não há relação sexual na vertente do ter. Ser


mãe, a que tem um filho, é colocar um significante para dizer da
falta de sentido do sexo. É uma máscara na medida que cobre a
ferida narcísica, o ponto onde um sujeito se constitui como faltante.
No entanto, é uma máscara que, além de velar aja/ta-a-ter também
remete à/alta-a-ser, visto que a identificação ao significante mãe se
presta a recobrir a falta de sentido do ser.

Passamos então a outra dimensão do falo enquanto significante da


falta: a/alta-a-ser. A idéia de Lacan com relação a/alta-a-ser está
articulada à questão que se coloca frente ao desejo do Outro. Ao
Outro falta e o que se pode ser para completá-lo? A problemática da
identificação a um significante que possa funcionar como objeto do
desejo do Outro é anterior a questão do ter. Quando a diferença
anatômica entre os sexos é descoberta pela criança, o pênis assume
este lugar privilegiado de imagem, máscara de falo, permitindo o
deslizamento da questão que, originariamente, gira em tomo do ser,
para fazê-la girar em torno do ter. Obviamente o que se passa com
as meninas deve ser distinto do que se passa com os meninos. Eles
podem se virar com o desconforto da ameaça de perder, pois para
eles é menos problemático proceder a este deslizamento e recobrir a
falta-a-ser com a questão do ter. A elas resta permanecer na dialética
anterior - a de ser ou não ser - ou desliz.ar para a vertente do ter, o
que só pode resultar em nostalgia e reivindicação: Penisneid. Desta
forma Lacan nos diz que é por não ter o pênis que uma mulher se
depara com a questão de ser o falo.

Poderíamos colocar nestes termos, onde x é a falta de sentido do


sexo:

ter o/alo para o homem e ser o/alo para uma mulher


X X

35
AM11lhtr

Para os homens há um significante que pemlite a organização de um


conjunto com base em um traço, ainda que este traço - o que confere
a um homem sua condição de potente - só vigore para o pai totêmico
e para cada homem a castração se coloque como ameaça e ponto de
partida do desejo.

Para as mulheres falta um significante que possa assegurar sua


coleção em tomo de um único traço, já que a castração sequer se
coloca para elas como fundamento. Não se pode perder o que não se
tem. Se de fato a questão se inaugurasse no ter, a posição das mulheres
poderia ser bem outra; talvez fosse frutífera a busca de atributos
conferíveis à mulher que pudessem marcar sua existência com base
em algum paradigma. Alguns teóricos procuraram este modelo por
confundir falo com pênis. Afastaram-se da primazia do falo da teoria
de Freud e atribuíram à vagina um indício da feminilidade primária
da menina. Isto retorna a uma visão biológica do sexo e portanto
não é compatível com o cerne da descoberta da psicanálise: o sexo
enquanto psíquico. A importância. portanto, está no fato de que há
uma anterioridade lógica da relação do sujeito com o falo, que gira
em redor do ser frente à demanda e ao desejo do Outro primordial.
Relação que se estabelece na dimensão da linguagem e que prepara
o solo fértil para o deslocamento ao redor do ter, quando a diferença
anatômica se faz presente. O pênis se presta a encarnar a máscara da
falta-a-ser, deslocando o problema para a esfera do ter. Jacques-
Alain Miller sublinha em seu texto De mujeres y semblantes4 que
os homens são mais amigos dos semblantes que as mulheres, são
mais afeitos a colecionar séries pois sua relação com o significante é
melhor estabelecida. O que não quer dizer que o enigma se solucione
para eles, apenas é transferido para a mulher que se constituirá em
mistério insondável. As mulheres são mais amigas do Real, ele nos
diz, porque elas sabem que os semblantes são máscaras e não os
toleram muito bem.

36
Heloisa Caldas Ribeiro

Embora não deixem de se submeter à operação fálica, wna vez que


são falantes, as mulheres não estão de todo neste registro. De um
lado, elas se valem do semblante de forma inevitável, porém do outro,
estão diretamente vinculadas à falta de um significante cm que
possam se ancorar numa identidade. Convém salientar que há sujeitos
de anatomia masculina que também podem se colocar nesta posição
subjetiva, para quem os semblantes fálicos desvelam o nada que
encobrem. Há sujeitos de anatomia feminina que se colocam
inteiramente no lado dos homens e adotam semblantes que funcionam
corno postiços. Há ainda a posição subjetiva, que se pretende que
resulte de uma análise, quando, por wn processo de esvaziamento
das identificações egóicas e uma exaustiva verificação do nada por
trás das miragens do objeto a, um sujeito possa ocupar o lugar deste
nada e daí incitar o discurso do analista. A posição do analista é a
posição feminina.

Voltemos à citação de Lacan que nos provocou este trabalho. Há


nela urna referência implícita a um texto de Joan Riviere, La
femineidad como mascara', no qual a autora, segundo urna
abordagem kleiniana e também adotando conceitos de Emest Jones,
trabalha um caso clínico. Trata-se de uma mulher muito bem sucedida
profissionalmente, em cujo sucesso se verificava a identificação ao
pai no exercício fálico de ser aquela que tem. Todavia, após suas
brilhantes conferências, colocava-se diante dos homens que a haviam
assistido com certo jogo sutil de sedução. Procurava atrair elogios e
simultaneamente flertar com eles, como urna mulher frágil diante
de um homem forte. Em seguida era acometida de forte angústia em
que pensava que havia dito algo inapropriado. J. Riviere aponta
para esta posição aparentemente feminina. frente àos homens, como
sendo uma máscara que encobria seu temor de ter desafiado o homem
em seu território. Apresentar-se corno em falta e provocar seu desejo,
do lugar da que não tem. fazia parte de sua estratégia de disfarçar-se

37
,,(Mu/Mr

de feminina para não provocar a ira masculina pela sua ousadia.


Esta máscara de falta-a-ter era usada para despertar o desejo dele, e
portanto reduplicava sua falta no Outro, ao mesmo tempo em que se
oferecia como o objeto complementar a esta falta. Ser o falo que o
Outro deseja, substituía ter o falo imaginariamente subtraído ao
Outro. O feminino mascara o masculino e a deixa a salvo de ter que
devolver o que não lhe pertencia. O artificio consiste em desviar a
atenção do Outro do falo que ela pretensamente possuía, oferecendo-
se em troca como falo.

Em suma, uma mascarada que a angústia de ter dito algo


inapropriado denuncia. Era tão inapropriado ter o falo, em seu
sucesso profissional, quanto ser o falo, que o Outro deseja. Revela-
se aí a mentíra fundamental que a linguagem instala, o
escarnoteamento do Real produzido pelo Simbólico. Lacan enfatiza
que o falo é um semblante com o qual os sujeitos fazem de conta
que existe a relação sexual em um jogo de parecer- o que parece ser,
encobre a falta-a-ser. O que esta máscara propicia é que se pense
que por trás dela há alguma coisa. Cogita-se sobre o ser criando-o,
ainda que na esfera da especulação. Assim como o véu que cobre o
corpo feminino, a função da máscara é a de causar desejo justamente
porque não mostra e assim leva a supor que há algo quando, na
verdade, não há.

Lacan ressalta, no texto de J. Riviêre, a sutileza do deslizamento do


ter para ser o falo. Este ponto onde o Outro é colocado como em
falta e seu desejo é despertado. Ponto obscuro pela dissimetria que
guarda quanto aos sujeitos envoividos. De um lado uma mulher se
oferece como objeto de desejo do Outro, sendo o falo que lhe falta,
mas o faz tão submetida à ordem fálica, isto é, visando encobrir sua
falta, quanto o homem que vai tomá-la para se superar enquanto
castrado. O engodo consiste em pretender ser desejada e amada pelo
que ela não é - o falo, esquivando-se assim da posição enigmática,
38
Hcloisa Caldas Ribeiro

da falta de sentido do sexo, com que o parceiro homem a toma em


sua fantasia.Tampouco encontramos neste par a complementaridade
para garantir a existência da relação sexual. Não há relação sexual
na vertente do ser. O falo justamente entra em jogo fazendo suplência
à falta da relação sexual.

Por que será, no entanto, que Lacan vai nos dizer nesta passagem
que uma mulher recusa uma parte essencial da feminilidade, em
especial todos os seus atributos, nessa operação de mascarada?
Chama atenção à idéia de que pudesse haver algo de essência da
feminilidade. Que atributos são estes que caracterizariam uma
mulher?

De acordo com sua teorização, só podemos considerar que os


atributos essenciais à feminilidade a que Lacan se refere - este é o
paradoxo - são na verdade a falta de atributos. Não há nenhuma
definição que possa designar o sexo feminino. Estritamente falando,
não podemos sequer adjetivar o sexo como masculino ou feminino.
Freud nos disse que a libido era única e masculina. Ora, se é única,
prescinde de ser qualificada de masculina, a não ser que se entenda
masculino como fálico e não como oposto de feminino. Não se trata
de um sexo e outro sexo. No Seminário 20, Lacan afinna que há Um
mais a, revelando o inadequado da relação de Um a Outro 6 •

Dizer que a mulher não existe - A mulher- consiste em verificar que


não há Outro do sexo, o que se exprime pelo materna S(A). Este
materna pennite duas leituras que se implicam: falta wn significante
no Outro que possa conferir sentido ao sexo, logo o Outro do sexo
falta; não há wn significante que possa definir a mulher enquanto
complementar ao homem. Cada mulher está,. portanto, referida ao
falo, mas não toda, uma vez que também está referida a esta falta
fundamental de um significante. Uma a uma modula sua divisão
entre a falta-a-ser e a falta-a-ter, portando máscaras sempre
39
inapropriadas. A mascarada que faz semblante de faltante, o faz mais
próxima do Real, porque só lhe resta fazer semblante da verdade: a
falta-a-ser.

NOTAS

1. LACAN, J. - "La significación del falo", Escritos, Madrid, Siglo


XXI Editores, 1984, p.674.

2. Idem, "L 'Étourdit", in: Sei/icei n. 4, Paris, Seuil, 1973, p.8

3. Idem, O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge


Zahar Editor, 1982, p.49.

4. MILLER, J-A - De mujeres y semblantes, Buenos Aires,


Cuadcmos dei Pasador, 1994, p.75.

5. RIVIERE, J. - "La femineidad como mascara", Barcelona,


Cuademos Infimos, 1979.

6. LACAN, J.,op. cit., p.67.

40
O Falo e a Outra: um estudo sobre a
feminilidade
Cristiano Facchinetti
Psicanalista. mestranda em Teoria Psicanalitica, UFRJ.

Freud relaciona a descoberta do gozo com uma experiência de


sedução - a sedução primária, que implica necessariamente a
instância materna. Tal descoberta do gozo pela criança ocorre, num
nível primário, de forma passiva: é desse Outro que o sujeito recebe
sua sexualidade. O gozo é portanto antecipado, na medida em que
ele se apossa da criança na sua relação primeira com o Outro. A
criança inicialmente é gozada, mais do que goza.

Ela fica então numa posição de ser aquilo que Lacan vai chamar de
objeto causa do desejo do Outro - em sua fantasia, mas também na
experiência de dependência. Que fique claro que este 'ser gozado'
inicial é a expressão de um gozo não sexual, uma vez que o sujeito
ainda não passou pelo recalque - ou como diria Lacan, a intervenção
do significante do falo ainda não se deu.

Assim, a experiência que funda a trama de todo sujeito seria aquela


em que este se vê assumindo a posição de objeto oferecido ao Outro,
posição em que ele permanece apenas como dejeto ou instrumento
desse Outro. No caso de uma neurose, sua escolha seria determinada
pela maneira como tal experiência primeira é retomada, remanejada
na fantasia e relembrada-esquecida no e pelo recalque. Na verdade,
a suposição desse Outro que goza só poderá aparecer como efeito
de recalque, isto é, só poderá ser evocado a partir da castração.

E de que maneira funcionaria o recalque? Ele substituiria o orgânico


41
.A Mulh~r

pelo sexual, ou melhor, transformaria o que era da ordem do corpo


numa outra ordem, regida pela representação. Assim, tudo que é da
ordem do sexual passou pelo recalque. Tal fronteira afetaria o gozo
e o reorganizaria, dando - a ele também - um sentido sexual. Em
contrapartida, a sexualização comporta a interdição do gozo não
sexual. A partir do recalque surgem essas duas dimensões
diferenciadas, que Lacan designa como real, por um lado, e uma
realidade sexual, por outro. O real lacaniano está lá - ele também -
no 'só depois', já que, ao nível do inconsciente, a repetição
significante - a representação-limite - o produz.

No entanto, Freud nos diz em Organização Sexual Infantil : que,


para ambos os sexos, haveria neste momento uma primazia fálica,
sustentando a tese que a categoria 'feminino' só seria construída a
posteriori. Se o ato de sexuação do sujeito implica que haja apenas
um sexo, o falo, haveria, no entanto, dois modos de manifestação:
presença ou ausência. O que significa que a falta do pênis, se
reconhecida, é como algo a menos - e não enquanto sexo feminino.
A castração quando surge, é uma construção que exclui - Lacan diria:
'foraclui' - o sexo feminino enquanto tal.

Lacan afirma então não haver significante do sexo feminino. É o


que Freud parece querer dizer, a nível do imaginário, com a
'ignorância da vagina'. Assim, a vagina é ignorada enquanto sexo
feminino, o que significa que ela não é reconhecida como outra com
relação ao falo. Do corpo feminino, alguma coisa é deixada ao
mutismo - precisamente aquilo que concerne seu sexo na medida
em que ele poderia se opor ao falo.

Assim, a identificação do feminino permanece sempre problemática,


na medida em que o traço que lhe corresponderia cai no terreno do
falo. À palavra feminino falta referente; ela conhece, na ordem do
discurso, o mesmo destino que a vagina no plano anatômico: a palavra

42
Cristiana Facchinctti

existe, o órgão existe, mas o investimento fálico que lhe seria


necessário ao saber, é por definição faltoso.

Para tentar resolver este impasse, Lacan retoma a questão da


feminilidade, levando-a para o lado do gozo: divide o sujeito face
ao sexual em dois gozos, wn todo fálico e outro não-todo; o primeiro
fazendo surgir o outro como seu mais além. A questão colocada por
Freud de uma bissexualidade se toma (oure-toma sobre si mesma)
como a de um bi-gozo, de modo que Lacan, como Freud, exclui a
idéia de uma síntese do sujeito em relação ao gozar.

Freud afirmara que, quanto à menina, ela deveria rejeitar o primeiro


gozo passivo e se separar pelo Édipo, mas seria necessário que ela
voltasse mais tarde ao passivo para assumir seu destino feminino. É
como se a sexualidade feminina fosse tributária de um fracasso do
re.calque! De fato, Lacan também seguirá esta via ao dizer que a
feminilidade não é um ser, mas um tomar-se. Mas se Freud se baseava
nessa diferença, que dispõe apenas do complexo de castração e
edípico para esse tornar-se, Lacan afirma que entre a castração e
esse vazio não há um recobrimento completo, o falo não camufla o
furo completamente: se, de fato, a castração e o falo de que nos-fala
Freud são um obstáculo à feminilidade, são também, por outro lado,
sua condição de possibilidade.

A feminilidade se revela como dividida diante da c~tração: uma


mulher se desdobra, mais do que se unifica, sob o nome de 'mulher'.
Isso porque, de acordo com Lacan, ela se relacionaria tanto com o
gozo fálico que um homem pode vir a encarnar para ela, quanto ao
significante do Outro, esse outro que não existe ao nível do gozo.

Mas isso não quer dizer que esse Outro gozo s_eja o traço feminino
por excelência, pois dele nada se sabe. A posição feminina serve de
metáfora para o Outro por este último ser sempre inatingível,

43
A Mulhu

permanecendo sempre Outro. Uma mulher, enquanto apenas mulher,


fica radicalmente fora do alcance do sujeito, inclusive do sujeito
que se alinha na posição feminina. Seria portanto como se fazer-se
de Outro definisse melhor a posição feminina.

Se para Lacan o deciframento da questão da feminilidade parte da


castração para atingir um ponto no real, Freud mostra um
desenvolvimento onde o real vai sendo gradualmente recoberto pelo
simbólico. Serge André diz que: "essa inversão de sentido esclarece
a diferença de resultados aos quais os dois chegam sobre a
feminilidade "2•

Mas se mesmo em Freud percebemos a persistência de uma relação


ao Outro que deveria caducar pela intervenção paterna, se a função
do pai seria a de introduzir o sujeito na lei do falo e na linguagem e
se esse significante é insuficiente, se esse pai é impotente por
definição para significar o que seria a feminilidade propriamente
dita, parece que ambos chegam ao mesmo impasse, pelos diferentes
caminhos que percorreram: afinal, como diriam Perrier e Granoff:
"o que significa ser uma mulher? Eis aí a questão por excelência,
para qual evidência alguma nos oferece seu apoio( ... ) quanto ao que
ela pode querer... jamais se pode estar seguro "1 •

Mesmo uma mulher irá reconhecer que: "o sexo feminino é


misterioso para a própria mulher, oculto, atormentado( ... ). É em
grande parte porque a própria mulher não se reconhece nele que não
reconhece como seus seus desejos "4 •

De modo que nada resta para 'a querida mulher' a não ser fazer
semblante de homem, por urna questão estrutural,já que a linguagem
a situa fora daquilo que se pode dizer. Corno pode urna mulher se
acomodar nesta posição, que à falta de urna essência significável, só
pode se firmar através do artificio?

44
Cristiana Facchineni

A angústia assim, para além da castração, pode visar o horror à


mulher, isto é, dessa posição de wna mulher que teria de ser situada
fora de toda referência fálica. A posição feminina valeria corno
metáfora do Outro, já que esse também é inatingível.

Freud afirma que o medo da morte é extremamente intenso, que


pensamos ainda como "primitivos acerca da morte e da vida após
ela". 5 Ainda, no 'Sonho de Irma' 6 Freud aponta para três pontos de
base para apreender-se a mulher; entre eles, o da mulher corno figura
da morte e vice-versa. Assim, a morte vem limitar a elaboração de
Freud em relação à mulher, a morte que também se apresenta como
furo intransponível, abismo que se nega, como a feminilidade, ao
discurso. A morte é a palavra que significa o que resta da instância
materna como proibida. Na medida em que parte dela fica sem
significante, esta passa a ser um equivalente da morte e só nela pode
ser reencontrada. De fato, a feminilidade, parece andar de braços
dados com o Unheimlich no que ele tem de Fremd (estrangeiro), de
Heimliche, (secreto).

De fato, os homens conservam com todo cuidado seu estatuto de


enigma absoluto, de mistério e de incompreensível, podendo cair no
estatuto primitivo de que essa diferença demarca um perigo, que é
portanto também da ordem do Unheimlich. A mulher pode a qualquer
momento ameaçá-lo como Outro; onde o sujeito é abolido, não pode
mais recusar nada. É portanto no artificio fálico, no véu que evoca
uma ausência sem mostrá-la, que ele poderá manter a garantia de
seu fantasma, erigindo o falo, para tentar cobrir com esse artifício a
ausência.

Assim, a feminilidade é uma invenção fálica, antes de mais nada. A


mulher se coloca sobre esse enigma e responde com um mistério.
Ela o faz porque a imagem de seu corpo feminino é frágil, porque só
se mantém na dependência do desejo do homem.

45
tf Mulher

Essa ausência de significante, de identificação angustiante, articula


ainda mais um acesso ao gozo próprio do feminino. A máscara que
recobre um exterior à linguagem e que ao mesmo tempo a produz,
oferece consistência para algo além do símbolo. No entanto, tal
identificação ao semblante não é desprovida de riscos, pois o sujeito
que segue esse caminho só pode se manter à distância, como que
separado na máscara que ele produz, e isso sem que nada lhe dê um
ponto de referência que garanta tal distância. A imagem feminina é
então precária, sempre ameaçada de se romper, pois só o que se lhe
mostra é o artificio.

A releitura dos casos de histeria de Freud dos anos de 1895-1900,


permite-nos destacar a vertente do que Lacan chama de real, ou seja,
do enigma e do indizível e a vertente do horror à castração. A
demanda da histeria revela o questionamento da feminilidade: o que
o histérico teme é que, sob a máscara de falicização, só haja o
orgânico ao qual se reduz o corpo dessexualizado. Ele está sempre
ameaçado pela possibilidade de recair nesse estado de gozo puro,
para ele apavora.1te, no qual se veria como objeto, uma vez que há
fracasso no recalque. Seu discurso atinge essa representação-limite,
que indica o mais-além do significante, lá onde se situa o fracasso
do recalque.

Convém, porém, levarmos em consideração que, se o recalque


obtivesse êxito total, todas as reminiscências estariam simbolizadas
no inconsciente, isto é, todo real seria transportado para a realidade
sexual. Não haveria trauma nem furo, negando a fala como tal.

Parece então que, mais do que uma falha no recalque, há algo de


verdadeiramente impossível de ser recalcado, pois falta o significante
a ser recalcado. A histeria é então, para além de uma neurose, um
modo de colocar a questão da feminilidade.

46
Cristiana Facchineni

NOTAS

1. FREUD, S. - "Die infantile Genitalorganisation: eine


Einschaltung in die Sexualtheorie" ( 1923), Sigmund Freud
Srudienausgabe, Frankfurt, S. Fischer Verlag, 1989.

2. ANDRÉ, S. - O que quer uma mulher?, Rio de Janeiro, Jorge


Zahar Editor, 1986.

3. PERRIER, F. & GRANOFF, W. - Le Désir et /e Féminin, Paris,


Aubier-Montaigne, 1979.

4. BEAUVOIR, S. -Le secondsexe, vol. 2, Paris, Seuil, 1949, p.147.

5. FREUD, S - "Das Unheimliche" (1919), op. cit.,vol.4, p.241-


247.

6. FREUD, S - "Estudos sobre a Histeria" ( 1893-1895), Obras


Completas, vol.2, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.
,( Mulher

Uma questão delicada

Rita Maria Manso de Barros


Psicanalista.

Há alguns anos, me foi pedido que estabelecesse a identidade sexual


de uma criança de oito anos e nove meses. Eu fazia uma espécie de
residência em psicologia num hospital-escola, especializado em
ginecologia. O diagnóstico psicológico seria complementar ao
diagnóstico médico: genitália ambígua - pseudo-hermafroditismo
ou hermafroditismo? O caso já me havia sido relatado pelo cirurgião
responsável pelo acompanhamento. Esse julgava interessante que a
paciente fosse vista por um psicólogo, embora toda a rotina cirúrgica
já estivesse preestabelecida: biopsia das gônadas intra-abdominais
(testículos?, ovários?) e posterior retirada do phallus (5cm), pois
acreditavam tratar-se de uma menina uma vez que fora criada como
tal. Os exames de cariótipo diferiam: em um a cromatina era
positiva, em outro era negativa. Da mesma forma os
hormônios se encontravam em taxas normais para ambos os
sexos. O médico me falou da dificuldade que tivera em
examiná-la, tendo que submeter a menina à anestesia geral
para proceder ao exame. Acreditava que ela já estava
traumatizada pelos inúmeros exames anteriores, a isto se
acrescentando uma tentativa de exame pelo ânus, através de
toque retal.

Conheci Angélica, nome que lhe atribuo, após tantas histórias de


invasões a seu corpo. Nosso primeiro encontro aconteceu depois de
mais um desses exames, feito desta vez pelo diretor geral do hospital

48
Rita Maria Manso de Barros

na presença de outros médicos, além de residentes, cnfcnneiras e


auxiliares.

Foi levada com sua mãe e innã à sala da psicologia pelo residente
responsável, já que este diretor requisitara acompanhamento
psicológico da criança e de seus pais, anterior ao ato cirúrgico. "Agora
depende só da senhora para que minha filha seja internada aqui e
este problema seja resolvido", me diz a mãe. Vejo que estavam com
sacolas; esperavam deixá-la internada naquele mesmo dia.

Poderia descrever cada encontro que tivemos: Angélica, sua mãe,


seu pai, suas irmãs. Poderia contar também as minhas longas
conversas com os médicos ou com a minha equipe. Mas me deterei
na questão principal, que era o que estava em jogo: a definição de
uma sexualidade como masculina ou feminina. Parecia que desta
definição psíquica dependeria o encaminhamento da cirurgia numa
direção ou em outra, isto é, em fazer de Angélica uma menina ou
wn menino. Mas qual seria o rumo da subjetividade deste sujeito:
estaria posicionada no lugar dos sujeitos do sexo feminino ou no
dos sexo masculino?

Após os múltiplos encontros mantidos com Angélica e com membros


de sua família, alguns dizeres me chamaram a atenção. Seu pai me
diz que talvez ela fosse wn menino pois gostava muito de ficar com
ele na oficina ajudando-o, "mexendo em ferramentas, sujando-se de
graxa". Este gosto era diferente do de suas outras filhas. Angélica
também costumava adormecer com a cabeça sobre as pernas dele
enquanto viam televisão. O pai estranhava a proximidade de Angélica
e entendia isso como uma possível identifi~ação com a figura
masculina 1. Meu entendimento foi outro, a partir das colocações dela
e daquilo que a teoria psicanalítica nos ensina. Angélica, como boa
parte das meninas, procurava em todos os momentos possíveis estar
ao lado do pai. Uma pequena mulher e seu grande homem.

49
A.Wulh~r

Concluí, na ocasião, que Angélica estava se identificando muito mais


como menina do que como menino. A cirurgia extirpou a parte central
de seu phal/us, sendo possível reconstruir cirurgicamente um
pequeno clitóris. Disse, na ocasião, porque não tive mais notícias
dela desde que fui procurada por sua família um ano após a cirurgia.
Angélica estava aparentemente bem, mais gordinha - continuava
tornando a cortisona necessária para manter o equilíbrio hormonal
pela disfunção da glândula supra-renal -, mais falante. Sua mãe me
disse que ela costumava mostrar os retratos antigos dizendo que
"aquela Angélica não existe mais, agora existe esta", e apontando
para si mesma. Contudo, a questão sempre ficou comigo, corno uma
espécie de dilema, afinal como canta Caetano Veloso ''a gente nunca
sabe onde colocar o desejo", e fundá-lo na questão da diferença dos
sexos, no nível do corpo orgânico, não nos dá nenhuma certeza
de que o psíquico a ela se acomodará. Como ficará representado
para Angélica a perda real de um pedaço de carne a mais?
Castração simbólica e castração real ficam aqui singularmente
entrelaçadas. Além disto, o campo médico sempre deixou claro
que independentemente dos resultados da reconstrução da
genitália, fosse corno homem ou como mulher, aquele sujeito
jamais poderia procriar. A equação pênis-bebê, tão importante
na construção do sujeito mulher, ficava vedada a esta criança.

Sabemos que toda pulsão é parcial; nenhuma pulsão representa a


totalidade da tendência sexual. Daí não se poder falar que no
psiquismo exista algo que permita ao sujeito se situar como ser de
macho ou como ser de fêmea 2• Logo, as vias do que se deve fazer
como homem ou mulher situam-se no campo do Outro e não no
campo do sujeito (pulsão). Então, é através do Édipo - do campo do
Outro - que o ser humano deve aprender o que deve fazer como
homem ou como mulher. Para falar mais disso que se constitui no
posicionamento do lado feminino ou masculino dos sujeitos no

50
Rita Maria Manso de Barros

campo do Outro, Lacan fala de um sujeito que encontra, no deserto,


uma pedra inscrita com hieróglifos. Este sabe que um outro sujeito
deixou ali seus significantes, mas ele não pode absolutamente afirmar
que estes significantes se dirigem especialmente a ele. Lembremos
que, em tennos lacanianos, um significante é aquilo que representa
um sujeito não para um outro sujeito, mas para outro significante.
Não se duvida que cada um dos significantes ali inscritos na pedra
se reporte a cada um dos outros. Pois é também disto que se trata na
relação do sujeito ao campo do Outro. Se, como afirma Lacan, o
sujeito é determinado pela linguagem e pela fala, então podemos
entender que o sujeito começa no lugar do Outro, já que é daí que
vem o primeiro significante.

Há, portanto, o campo do sujeito (campo da pulsão) e o campo do


Outro (campo da linguagem, do significante). Eis a divisão do sujeito.
Tudo que vai poder se presentificar no sujeito vem do campo do
Outro e é do campo deste vivo -pulsão -que o sujeito deve aparecer.
Embora possamos dizer que o que se dá primeiro é o Outro e depois
vem o sujeito, isso não pode ser distinguido. Mas podemos afirmar
que sem o Outro (Linguagem, Cultura) não há sujeito (ou teríamos
algo semelhante com o caso das meninas encontradas com os lobos,
Amala e Kamala).

A sexualidade se instaura no campo do sujeito pela via da falta,


preço que ele paga por ser apenas um ser vivo sexuado e não mais
um ser imortal, como este momento de enfrentamento da falta fez
ver que era a forma como antes se imaginava. No inconsciente,
contudo, não há dois sexos complementares. A diferença é uma
questão que não se coloca, pois os opostos coexistem em perfeita
harmonia. Castrado ou não-castrado não define os dois sexos, mas
uma conseqüência de um ato praticado pelos seres, eles próprios
submetidos à falta. Torno a colocar a minha questão: corno
representará Angélica a sua castração simbólica que teve um

51
A Mulher

conteúdo tão violentamente real, mesmo sabendo que para haver


castração simbólica algo do real deva ter sido perdido (placenta,
anexos, cordão umbilical, etc.)?

É do campo do Outro - A - que brota a idéia da localização do sujeito


na partilha dos sexos. Como então proceder à definição de uma
sexualidade como masculina ou feminina? Penso que podemos nos
ª
apoiar na crença da .correção da teoria lacaniana: .. definição da
sexualidade vem do campo do Outro e neste sentido, como os
próprios médicos responderam, Angélica era uma menina pois fora
criada como tal, e se afirmava desta posição, apesar da dúvida de
seu pai.

NOTAS

1. No dia da cirurgia, lembrei-me disto. Angélica não permitia o


procedimento pré-operatório da anestesista e então me dei conta
que talvez se deixasse adormecer por um homem. Sugeri o
procedimento e um anestesista tomou seu lugar. Angélica, mais
relaxada, pode então ser anestesiada.

2. LACAN, J. - O Seminário, livro 11: os quatro conceitos


fundamentais da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1985, p.194.

52
Capítulo 2

IA. Mulher, o objeto


e o gozo
No tas sobre o supereu feminino

Romildo do Rêgo Barros


Psicanalista. membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

Tratar do supereu feminino é tão difícil quanto tratar da sexualidade


feminina. E pela mesma raz.ão: a dificuldade de circunscrevê-lo, de
localizá-lo. Procurar saber se a mulher tem um supereu edipiano -
sem dúvida o ponto mais sensível de toda discussão sobre o assunto
- conduz a uma espécie de abismo, onde perguntas geram perguntas,
e toda resposta parece provisória. Não é muito diferente da
perplexidade que exprimem os psicanalistas ao se perguntarem, por
exemplo, sobre o gozo vaginal, que, objeto de um questionamento
incansável por parte de Freud, talvez faça sorrir algumas mulheres:
as especialistas em abismos, ou aquelas de que falava Lacan, quando
dizia que são os melhores analistas ... quando não são os piores.

Desde que Freud colocou em questão senão a existência, pelo menos


o vigor e o caráter implacável do supereu nas mulheres, os
psicanalistas têm concordado ou divergido a respeito, mas gravitam
todos em tomo de algumas perguntas: o que seria o supereu feminino,
em que se basearia ele, já que a ameaça de castração não pode, nas
mulheres, se aplicar a um correspondente anatômico do falo? Como
a mulher temeria a perda de algo cuja ausência,justarnente, provoca
a sua admissão, ao contrário dos homens, na dialética edipiana? E,
não tendo ela a temer, a partir do que se estruturaria o seu supereu?

Duas posições - com algumas variantes - puderam surgir desde então:


ou a mulher tem um supereu menos inflexível e feroz do que os

55
lf Mulhtr

homens, e estaria fundado, não na ameaça de castração mas na


educação e, sobretudo, no risco da perda de amor; ou então, o supereu
é nela tão feroz quanto nos homens, mas o seu ponto de apoio - na
anatomia ou na fantasia - seria diverso.

Esta discussão, longe de ser secundária ou superada, envolve na


verdade pontos essenciais da constituição do sujeito, tais como a
dívida simbólica, o pai, a formação dos sintomas e o fundamento
universal da culpa.

Talvez a abordagem desse terna seja hoje um pouco mais fácil do


que na época pioneira da psicanálise, uma vez que Lacan, como
intérprete de Freud, já nos esclareceu sobre a distância que existe
entre, de um lado, o falo, como órgão imaginário, e o pênis; e, do
outro, entre A Mulher, que não existe, e as mulheres. Assim como o
falo passa a ser mais claramente entendido como o padrão a partir
do qual os corpos se encontram e se desencontram em suas diferenças,
assim também as mulheres - não menos do que os homens - estão
em exterioridade em relação ao 'continente negro' de A Mulher,
enigma freudiano por excelência.

".'Jão podemos, contudo, nos contentar com o mero enunciado dessas


distinções feitas por Lacan, uma vez que nos defrontamos, na prática
clínica, com depoimentos que não deixam dúvidas, por um lado,
quanto ao seu fundo superegóico, e que marcam com precisão, por
outro, um lugar feminino. O que dizer, por exemplo, da experiência
de uma mulher, vinda à análise por conta de uma espécie de paralisia
do pensamento e uma implacável auto-exigência, e que conheceu
na infância o ódio pouco dissimulado da sua mãe - vivido por ela
não como um ódio materno, por parte de quem teria preferido não
dar à luz a sua cria, mas como um ódio de mulher, de quem vê
esgarçar-se o seu lugar no mundo e no amor dos outros à medida
que a criança, com o passar do tempo, conquista as suas próprias
56
Romildo do Rego Barros

posições? Ou de uma outra, cuja depressão se alterna com uma


bulimia compulsiva, e que traça o perfil de uma mãe que seria, na
sua opinião, excessivamente bela? Ou ainda de uma terceira, que de
certa forma circunscreveu com o seu sintoma - uma relação
particularmente diflcil, e às vezes violenta, com seus filhos - um pai
tido por fracassado, em contraste com ancestrais masculinos bem
sucedidos na linhagem materna?

Poderíamos pensar, pelo menos provisoriamente, que se é verdade


que a formação superegóica nas mulheres, com sua particularidade,
as impele a uma maior leveza quanto ao que Freud chamava de os
grandes objetivos da civilização - grosso modo, os efeitos positivos
da dissolução do Complexo de Édipo-, não é menos verdade que
essa formação se faz sentir de forma patológica e duradoura, quando
está ligada a uma carência na demanda do Outro matemo, se a mãe,
por uma razão ou por outra, está impedida de tratar o corpo de sua
filha, que visivelmente não tem, como sefosse.

Seria muito simples se pensar então que os dois sexos se distribuem


segundo as duas vertentes que constituem o supereu: os homens
seriam marcados preferencialmente pelo supereu 'herdeiro do
Complexo de Édipo', enquanto as mulheres sofreriam os efeitos de
um supereu arcaico ou matemo, cuja característica essencial é o
imperativo de gozo. Esta distribuição faz jus a duas críticas, de
inspirações diferentes: uma, feminista, que reconhece nessa diferença
os traços de uma discriminação das mulheres, e urna outra,
psicanalítica, que enxerga ai uma confusão entre o destino dado pela
anatomia e o que consistiria na dupla via de acesso à sexuação. Ou,
para usar os termos de Freud, uma confusão entre as 'diferenças
anatômicas' e suas 'conseqüências psi quicas'.

Além disso, assim como o supereu como imperativo de gozo não é


uma prerrogativa exclusiva das relações com o Outro matemo - ele
57
AM11o.a

é também, e talvez sobretudo, o outro lado do ideal paterno, o seu


lado de sombras-; assim também a formação do supereu na sua face
simbólica, que se manifesta na consciência moral, tem seu ponto de
origem não na atuação direta do pai - algo como essa mulher é minha
e ndo rua-, mas na sua presença em negativo, potencial, representada
pela ameaça de castração, cujo enunciado Freud atribui à mãe (cf. o
Caso Hans), em nome do pai.

II
Vamos tentar entender melhor essa questão com a ajuda do quadro
proposto por Lacan no seu seminário A Relaçao de Objelo 1 , sobre
as modalidades da falta de objeto:

Agente Falta de Objeto Objeto


Pai real Castração imaginário

Mãe simbólica Frustração real

Pai imaginário Privação simbólico

Desse quadro, vai nos interessar sobretudo a passagem da frustração


à privação, e as relações entre as funções da mãe simbólica e do pai
imaginário, que poderão nos dar elementos para situar o ponto de
ancoragem do supereu.

Por mãe simbólica, devemos entender uma pura escansão


significante, ou um ritmo de presença e ausência, através do qual se
satisfaz a criança: com o seio, por exemplo. Ora, se o ritmo se mantém
inalterado - o que é meramente hipotético -, isto é, se nenhum
intervalo irregular força a criança a interpretar a falta do objeto, não
há frustração, já que um objeto real corresponde a uma necessidade.
A frustração aparece, portanto, no momento em que é rompido o
ritmo, ou, em outros termos, quando é imposta uma dissimetria
58
Romildo do Rtgo Barros

entre a ausência e a presença da mãe. É nessa expectativa


frustrada, nesse começo da relativa imprevisibilidade que vai
marcar definitivamente as relações do sujeito com o outro, que a
operação da frustração tem lugar.
A conseqüência disso é que há uma mudança no registro de todos os
elementos em jogo: na criança, surge uma manifestação
enúnentemente subjetiva, em resposta à ruptura do equilfürio: o apelo
- o grito, o choro -, considerado por Lacan "o primeiro tempo da
palavra" 2 ; a mãe, de simbólica, se realiza, porquanto já não se trata
de uma escansão regular mas de uma escolha radical sua, contingente,
de atender ou não; o objeto, de real passa a simbólico, na medida em
que se torna um objeto de dom 3 , não mais adequado à necessidade
mas índice de amor; e a operação já não é de frustração mas de
privação, que podemos definir como a falta de um objeto no seu
lugar, mesmo que ele nunca tenha estado aí 4 • Por exemplo, se uma
criança pode ser.frustrada do seio matemo - ou da mamadeira-, que
por hipótese é um objeto que está sempre no seu lugar, a mulher é
privada do pênis, se estamos falando de um órgão que, apesar de
inexistente em mais ou menos a metade dos humanos, pode ser objeto
de reinvidicação ou de rivalidade: isto é, o pênis em função de falo.
Se o objeto passa a simbólico, o agente também sofre uma
transfonnação: ao invés da mãe simbólica, pura escansão, surge -
como solução para os efeitos traumáticos da irrupção da mãe como
real - o pai imaginário, que é antes de tudo a figura à qual pode ser
atribuída a razão da quebra do ritmo que fazia da mãe não um
personagem, menos ainda um sujeito, mas um atendimento pontual.
Aquilo que corta o barato, eis a primeira figuração possível do pai
imaginârio, se se entende por barato um estado de gozo no qual não
é propriamente o desejo do sujeito - cuja condição é justamente a
falta do objeto - que é interpelado.
Lacan define assim o pai imaginário: "o pai imaginário é aquele
59
,<"M11lh~r

com que lidamos o tempo todo. É a ele que se refere, mais


comumente, toda a dialética, a da agressividade, a da identificação,
a da idealiz.ação pela qual o sujeito tem acesso à identificação ao pai
( ... ). É o pai assustador que conhecemos no fundo de tantas
experiências neuróticas, e que não tem de forma alguma,
obrigatoriamente, relação com o pai real da criança". No mesmo
trecho, Lacan faz referência às fantasias infantis sobre a "figura
ocasionalmente caricata do pai (... ) que tem somente uma relação
extremamente longínqua com aquilo que esteve presente do pai real
da criança, e que é unicamente ligada à função desempenhada pelo
pai imaginário num momento dado do desenvolvimento" 5 •

A própria extensão ou plasticidade do pai imaginário denuncia a sua


origem. Na verdade, ele é uma função tomada necessária pela
estrutura, a partir do momento em que a mãe simbólica mostra o seu
limite, dando acesso aos caprichos da mãe real. De início um puro
alhures, em seguida objeto justamente daquele desejo da mãe que
escapa ao sujeito, a partir daí rival, logo depois um monstro
assustador, de vez em quando um palhaço, ou um bom sujeito,
homem comum e herói alternados, ideal ou insuficiente ... , em suma,
o pai imaginário recobre as figuras possíveis do pai.

A hipótese deste texto seria a de que o supereu é um efeito da


passagem da frustração à privação, levando-se em conta,
naturalmente, o fato de que estas duas operações somente têm algum
sentido se pensadas corno retroação da castração 6• Esta retroação
tem algumas implicações:

• a passagem do objeto real para o objeto simbólico - aquele que


pode ser dado ou não - implica uma anterioridade lógica da função
do falo como objeto imaginário. Isto significa que o seio, por
exemplo, somente pode ser simbolizado - tomar-se objeto de dom -
se não corresponder exatamente a uma parte real, inamovível, do

60
Romildo do Rtgo Barros

corpo da mãe, mas a algo que, embora possa oferecê-lo, a mãe não
tem. Ou, se o tem, é em referência a uma lei que não é sua.

• o percurso da mãe simbólica ao pai imaginário, marcado pela


emergência da mãe real, exige a incidência do pai real. Quer dizer: se a
mãe simbólica é uma pwa escansão; se a mãe que se realiza é, antes de
tudo, o sinal de que a escansão se esgotou e de que essa ruptura é
experimentada pela criança como um capricho; se o pai imaginário é na
verdade uma figuração daquilo que a própria criança interpreta da crise
que vive ... , para que da frustração se passe à privação, isto é, para que se
imponha o pai imaginário, é necessária uma instância que seja
efetivamente uma exterioridade, e cujo desejo independa da criança O
pai real, agente da castração, é essa exterioridade, esse ponto de
resistência às interpretações da criança, e nisto se distingue - e precede
logicamente- do pai imaginário'. Se se pode pensar um enunciado que
representasse o pai real, este seria não exatamente um essa mulher é
minha e não rua, mas alguma coisa como o meu desejo por essa mulher
não te diz respeito8 • O pai real não é o rival: bem pelo contrário, ele é o
limite para a rivalidade, a partir do qual se impõe a dissimetria
característica da castração.

Ili
O supereu é um resíduo. Isto pode ser entendido tanto no sentido de
que é wna interiorização, que no texto freudiano tem por origem a
pura angústia diante de uma punição eventual até se constituir em
uma instância intra-psíquica, quanto no de um resto não assimilável,
de um imperativo sem palavras que guarda, no entanto, traços de
sua origem simbólica, expressa na caricatura de lei através da qual
determina ações, ou, ao contrário, impede qualquer movimento. O
supereu é uma lei reduzida à simples voz de comando, que Freud
expressou com um 'Farás!' ou 'Não farás!', e que Lacan traduziu
com um 'Goza!': o supereu é um imperativo de gozo9 , e neste sentido

61
,(Mulhu

dessubjetivante, na medida em que não há corno ser considerada, a


partir dele, a questão do desejo.
O fato de ser wn resíduo dá ao supereu um caráter de herança, que no
texto freudiano aponta para direções diferentes: herança do Complexo
de Édipo, da educação recebida, e, sobretudo, herança do supereu dos
pais. Esta última pode ser entendida como o resto do que não foi
simboliz.ado nas gerações anteriores. Isto faz do supereu, de alguma
forma, wn resíduo da castração do Outro, nas suas duas vertentes: a
primeira, arcaica, ligada às desventuras do sujeito com o Outro materno,
e a segunda, simbólica, relacionada com a função do pai.
Nós poderíamos pensar que se trata de uma simples evolução, como
se passássemos da primeira para a segunda, sob o efeito da ação
separadora do pai. E de fato, isto não é falso. É preciso que se diga,
no entanto, que há nessa passagem algo de inassimilável que faz
com que, em qualquer dos dois planos, o supereu ordene exatamente
aquilo que leva o sujeito a abrir mão do seu desejo. É um elemento
do que Freud chamava de mal estar na civilização: um resíduo que
as operações da civilização - por se fundarem na renúncia pulsional
- engendram necessariamente, e contra o qual de pouco adianta a
pregação cretinizante dos que acreditam que a interdição do incesto,
por exemplo, seria um efeito da repressão, um limite imposto por
uma sociedade à espera de um aperfeiçoamento que, na verdade,
não seria a realização do ideal do eu - o ponto de onde o sujeito pode
se ver como capaz de ser amado, segundo Lacan -, mas, muito pelo
contrário, o império sem entraves do supereu.
O fato do supereu feminino estar ligado à eventualidade da perda do
amor - o que, para Freud, é o correlato, na mulher, da ameaça de
castração - tem algumas implicações:
• enquanto para o homem, em relação ao ideal paterno, o acesso
a poder ser pai passa de alguma forma, pelo menos em um
primeiro momento, pela morte do pai (ser pai em lugar do pai, ou
62
Romildo do Rlgo Barros

em lugar de ter pai)'º, na mulher a adesão a esse ideal (que é


curiosamente uma forma de masculinização, sem dúvida
necessária ao seu papel sexual) exige justamente uma certa
perenização do pai, fonte de amor e também do suposto dom fálico
representado por um bebê 11 • É o que explica a opinião, talvez
majoritária entre os psicanalistas, a começar por Freud, segundo
a qual a mulher, pela ausência da ameaça de castração, na verdade
não experimenta a dissolução do Édipo. Portanto, o objeto de
menos, princípio de base do desejo, e que é comum a todos os
sujeitos na dialética do Édipo, teria para os homens uma
formulação do tipo o que pode ser tirado, enquanto para as
mulheres seria algo como o que ainda vai ser dado pelo pai.

• ora, o que o pai daria é paradoxalmente o que ele não tem, isto é, o
objeto simbólico do qual a mulher é privada. Simbólico no sentido
de que o bebê, cujo dom supostamente anularia a privação, não se
pode reduzir ao pênis, que efetivamente o pai possui, mas não pode
transmitir. É portanto pela negação do real do pênis - o que indica
precisamente a castração do pai - que o bebê pode aparecer como
objeto simbólico, e, por conseguinte, como dom de amor, que L~can
definiu algumas vezes 12 como "dar o que não se tem". Talvez se
possa formular desta maneira a questão do amor na lógica ~a
privação: o que o Outro tem, não pode dar, e o que ele dá, não tem.
A partir deste paradoxo, a menina é levada, segundo Freud, a
renunciar à sua demanda de um bebê no lugar do pênis faltante, e se
identifica ao ideal do eu paterno. Catherine Millot se pergunta, em
um artigo sobre o supereu feminino, se o que leva à renúncia é a
decepção da menina ao descobrir que não recebe o dom do bebê, ou
se pelo contrário, é o próprio amor pelo pai que a faz renunciar, já
que "ela sentiria que esta última (a sua demanda) constitui uma
ameaça de castração para o pai" 13 .

O que perde então a mulher quando perde o amor, a ponto do simples


63
!<Mulher

risco constituir a fonte do supereu? Uma resposta aceitável seria a


de que, com a perda do amor, que tem a função de significar o desejo,
o objeto se dessimboliza. Ou, em tennos freudianos, desfaz-se a
equação simbólica que estruturava a série que vai do pênis ao bebê,
deixando a mulher às voltas com o imperativo superegóico matemo
- plano no qual, aliás, não há uma diferença essencial entre mulheres
e homens 14 -, cuja reinvidicação incide no ser, na carne, e não mais
no significante. Aqui tem lugar a observação de Lacan, que se referiu
certa vez à 'devastação da relação mãe-filha', o que de fato se pode
constatar na experiência clínica. Por exemplo, em casos de anorexia
nervosa, nos quais a relação com o alimento - dependente da relação
com o Outro matemo - regride ao regime da necessidade, forçando
o sujeito a 'comer nada' - a expressão é de Lacan -, como única
maneira de, construindo um vazio em tomo do objeto, salvaguardar
o desejo.

NOTAS

1. LACAN, J. - O Seminário, livro 4: A Relação de Objeto, Rio de


Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.220.
2. Idem, Ibidem, p.185.
3. Idem, Ibidem,"É sobre um fundo de revogação que o dom surge,
é sobre este fundo, e como signo de amor, inicialmente anulado
para ressurgir em seguida como pura presença, que o dom se dá
ou não ao apelo".
4. Não é impossível de se pensar um exemplo clinico do efeito da
passagem da frustração à privação: o pânico diante da hipótese de
se ser abandonado, mesmo por parte de alguém que não se teria
razão aparente nenhuma de querer perto de si. A sabedoria popular
fixa esse estado com um ditado: ruim com ele, pior sem ele.
5. LACAN, J. - op. cit., p.225.

64
Romildo do Rego Barros

6. A articulação das operações da frustração e da privação com a


castração tem, dentre outras vantagens, a de impedir que a série
proposta no quadro de Lacan seja vista como um mero
desenvolvimento cronológico, em analogia com o que se costwna
atribuir às fases oral, anal e genital.
7. 'Não se interpreta o pai real', disse certa vez Lacan, em wn outro
contexto.
8. Esta frase, mesmo se aparecida tardiamente, é de algwna forma
o enunciado resolutivo do paradoxo que representa para o sujeito
a cena primitiva, na qual ele está, por definição, incluído e
excluído ao mesmo tempo.
9. LACAN, J. - 'Nada nos obriga a goz.ar, a não ser o supereu'.
1O. Isso é constatável na experiência clínica, em particular no
tratamento da neurose obsessiva.
11. Alguns psicanalistas são bem claros quanto a essa questão. Helen
Deutsch, por exemplo, pensava que o filho é para a mulher "a
encarnação do ideal do eu paterno". Citada por CHASSEGUET-
SMIRGEL, J. - La Sexualité Féminine, Paris, Petite Bibliotheque
Payot, 1978, p.34.
12. No Seminário A Transferência, por exemplo: "O amor é dar o
que não se tem, e não se pode amar senão fazendo como se não
tivesse, mesmo tendo. O amor como resposta implica o domínio
do não-ter. Dar o que se tem, é a festa, não é o amor".
13. MILLOT, C. - "Le Sunnoi Féminin", in Ornicar?, n. 29, p.122.

14. Idem, Ibidem, p.112: "Esta diferença entre o supereu nas mulheres.
e no homem é articulada por Freud ao complexo de Édipo. As
restrições de Freud a respeito do supereu nas mulheres concerne
ao supereu pós-edipiano e não ao supereu precoce".

65
,( M11I/Ju

Êxtase: o desatino do dizer


Elisa Monteiro
Psicanalista. membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise.
Inês Autran Dourado Barbosa
Psicanalista, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise.

"Nilo me parece outra coisa senão um mo"er quase totalmente a todas as coisas
do mundo e ficar gozando em Deus. Nilo conheço outros termos para o expressar
Nilo sabe entilo a alma o que fazer: se fala, se fica em silêncio, se ri, se chora. É
um glorioso desatino, uma celestial loucura onde se aprende a verdadeira
sabedoria. Para a alma é uma maneira muito deliciosa de gozar. "

Teresa de Ávila, Livro da Vida.

"Essas jae11lações místicas. não é lorota nem falação, é em suma o que se pode
ler de melhor. Podem por em rodapé. nota - Acrescentar os Escritos de Jacques
Lacan, porque é da mesma ordem".

Jacques Lacan, Encore. cap. VI.

Do qqe se trata na experiência mística? Consultemos os poetas


místicos que, com sua letra, cernem esse gozo fora da ordem fálica,
impossível de dizer. Sua escrita constrói em tomo desse fosso, o
real, um meio-dizer que poderia nos aproximar desse gozo-a-mais,
próprio da parte feminina dos seres falantes.

Não nos.interessa a Teresa de Ávila santa, a Juana Inés sóror, ou o


Juan de la Cruz são. Seguimos aqui o conselho de Freud 1 , tomado
por Lacan ao pé da letra, de consultar os poetas, se desejamos saber
mais a respeito da feminilidade.
66
Elisa Moaieiro Ines Autrui Dourado Blllbosa

Os místicos falam de amor. De wn amor desatinado, de um desejo de


encontro desse Outro, de sua união com ele. Nessa união, só sabem
gozar. É de gozo do Outro que se trata. Diante do desamparo - 'Pai,
porque me abandonaste?' -, da inconsistêacia desse Outro que de algwna
forma eles pressentem, procuram fazer desse Eros divino, presença.

~ Em seus últimos aportes sobre a feminilidade,._f r~~d apontara três


! saídas para o Col'l}_P-lexo de ~di~~~ menina, enfatizando sua
1

1
i masculinidade inicial, ou seja, seu falicismo na relação com a mãe.
Destaca que o "tomar-se mulher" é um processo longo e ·não realizado
, totalmente. A fem~nilidade para ele se resumiria nwn "tornar-se
' mãe" 2 , ou seja, numa substituição do penisneid pelo desejo de filho,
que implicaria na aceitação da mediação do homem.

Lacan retoma o falocentrismo freudiano, acentuando a função


simbólica do falo. É a partir do si~ficante fálico, único a representar
o sexo no inconsciente, que os seres falantes podem se inscrever na
partilha dos sexos.

Em ~pa.r.a 7:Jm CQ1Jgresso sobre a sexualidgqe f~'!'i!l_i"!_a de 1958,


L~~!lllJ~ro__põe ch~ar a fonna masculina de amor de fetichista, e a
--- -- - -----·. -. --- -
- ---·-----· -·----- ..

fem_inina ~e erotomaníaca. Deixa bem claro que não considera a


posição feminina resolvida no patamar da inveja do pênis. Freud
colocava como questão central da feminilidade a dificuldade de
abandono, pela menina, do seu primeiro objeto de amor, a mãe. Mas,
desde que ela se voltasse para o pai, sua ligação com um homem
poderia se produzir de forma quase 'natural', ou seja, por um
deslocamento do desejo incestuoso proibido. Mais além dessa ligação
incestuosa ao pai morto, nesse escrito Lacan constata um apelo
doloroso das mulheres a um Outro que, na verdade, seria o objeto de
seu culto. "É um amante castrado ou um homem morto (representado
---pela figura-
- -·-··
d~ Cristo) que
•- -
para a mulher -
se esconde atrás do véu
para daí prov~car sua adoraç[o". 3
67
,< Mulhtr

À reivindicação constante da mulher de fidelidade por parte do


parceiro corresponde uma infidelidade que nela é de estrutura, já
que essa converg~ncia do amor e do desejo de uma mulher no mesmo
objeto é apenas aparente. Assim como o homem fetichiza uma parte
do corpo da mulher, o desejo dela se volta para o pênis do parceiro,
que adquire também para ela o "valor de fetich~' 4• Entretanto seu
amor se dirige ao 'Outro do Amor'. Para chegar ao Outro, a mulher
geralmente necessita do parceiro como relais. "É somente daí onde
ela é toda, quer dizer daí onde a vê o homem, apenas dai a cara
mulher pode ter um inconsciente"5• Mas isso só ocorre se sobre ela
recair um amor fixado num lugar para além do semblante matemo,
'de onde lhe vem uma ameaça de castração que não a concerne
realmente'. O pai, porta-voz dessa ameaça, não se realiza totalmente
numa posição de Ideal~-dessel~g~, para além do pai, ocupacio por
uni-incubo ide~I. que-~a ,;-recepÚv1dàde de ab;aço V~~ s;
transformar numa sensibilidade de cinta sobre o pênis''6 do parceiro.
Esse ponto atrás do véu sublinha a proximidade entre gozo e amor
nas mulheres, tão presente na clinica e explica a sua superestimação
do amor. O incubo é um demônio masculino que, segundo crença
popular, vem à noite copular com as mulheres, causando-lhes
pesadelos. Isso nos lembra a dimensão não desejada do gozo, para
além do princípio do prazer.
Essas formulações de Lacan em Notas para um Congresso sobre a
sexualidade feminina podem ser esquematizadas' da seguinte forma:
Vtu

Outro gozo

68
Elisa Monteiro lnh Autr11n Dourado Darbosa

A inscrição do sujeito na partilha dos sexos nada tem a ver com a


anatomia; homem e mulher são significantes. Nem o masculino pode
ser identificado ao fálico, nem o feminino escapa dessa ordem
inteiramente. O feminino é uma posição do ser. Daniele Silvestre8
define a parte feminina dos seres falantes como aquilo que objeta à
ordem fálica, exatamente "aquilo que a excede ou recusa se reduzir
a ela". Segue aqui os desenvolvimentos de Lacan no Enc.ore.

Nas fónnulas da sexuação9, nem o lado esquerdo corresponde aos


homens, nem o direito às mulheres. . \"··
\
-
e..
,".-.:.~..: ,·.

3x <I>x
Vx <I>x

S()()

O lado esquerdo equivale à p_arte fálica dos seres falantes, ao Um,


ao que faz conjunto, ao Universal, enquanto o direito corresponde
ao não-todo, à alteridade absoluta, ao Outro sexo. Nessas fórmulas
fica evidente que não haveria Universal: \fx<I>x, sem que a lei da
castração tome possível a exceção: 3x<I>x. A entrada na linguagem
implica na abdicação do gozo que, no mito de Totem e tabu, é
representado pelo assassinato do orangotango que gozava de todas
mulheres e na instituição do totem.

Com o seu aforismo "A mulher não existe", Lacan quer marcar que
69
AMulllu

não há um 'segundo sexo', não há a inscrição do significante mulher


no inconsciente. Nas fórmulas da sexuação, isso é expresso da
seguinte maneira: 3x<I>x (não existe x que não esteja inscrito na
função fálica). As mulheres não fazem conjunto, são uma a uma.
Ora, se há também 'V'x<I>x (nem todo x está inscrito na ordem fálica),
algo em cada mulher escapa ao registro fálico.]la é não-t~ins_c..riia
no falicismo.

Q aforismo · A relação sexual não exist~-· __!l!asta qualquer idéia de


~a p_ossível complementariedade entre os sexos, fato que a clínica
exemplifica a cada dia. Há mesmo desarmonia, wna impossibilidad_e
· que é de estrutura, já que o objeto é desde sempre perdido.

A oposição facaniana contida nessas fórmulac; não é entre o ter e o


não-ter - o falo nin__g~~~ _t~IP, - mas entre o Todo e o Não-:tQdo.
Trata-se de"uiiíâ diferença entre dois gozos, o fálico e um gozo-a-
mais, suplementar, específico da parte feminina dos seres falantes,
P!~s~nte!los poetas,. místicos e mu_lheres. Esse gozo do Outro, fora
do significante, é da ordem da ex-sistência. Eric Laurent o define
como "um gozo automático, herdeiro de um gozo autoerótico que
permanece autoerótico, num eterno sonhar acordado" 1º.

Numa ~rimeira abordagem, a vida desses místicos não parece nada


divertida. Fala-se de dores 1 t!rivações, sofrimentos. Basta lembrar
as agruras de. Teresa de Ávila e::Í~ de la Cruz nos conventos dos
pés descalços, e a renúncia de Juana lnés ao seu bem mais precioso,
" -
sua biblioteca. A biografia de Juana lnés de laCruz.(1651-1695),
. -
intelectual e musa da poesia barroca mexicana, nos mostra uma
menina que aos .três anos aprendeu a ler e aos seis pedia à mãe que a
vestisse de homem e a levasse à Universidade. Apaixonada pelas
letras, a única forma de ter livre acesso a uma biblioteca nessa época
era entrar para o convento. A recusa à vida cortesã - na juventude
encantou a corte com seu espírito - e seu repúdio ao casamento a
70
Elisa Monteiro lnes Aulran Dourado Barbosa

levam à vida monástica, onde podia se dedicar a seus escritos,


compondo imensa obra poética, filosófica, hwnanística, pictórica e
musical. Um dos seus biógrafos comenta que ela só se toma
"arrebatadoramente santa" nos últimos anos de vida. Exortada por
seu confessor não a abandonar, mas a aperfeiçoar sua poesia
dedicando-se mais aos assuntos religiosos, acaba convertendo a
biblioteca de 4000 volumes, instrumentos matemáticos e musicais
em dinheiro para os pobres. Deixa para si apenas três livrinhos,
disciplinas e silícios. O que a teria levado a isso? Masoquismo?

Nesse escrito de 1958, reabrindo o debate sobre a sexualidade


feminina, Lacan denuncia que a pretensa essência do masoquismo
feminino não passa de uma fantasia do homem que, para se sustentar
como falo imaginário da mãe, tem que manter a ficção d'A mulher.
Lacan não nega a ex!~tência d_e ~asoquistas,_mas s_im que-J?
masoquismo constitua a essência do feminino, fazendo girar a atenção
·da idéia da dor para a do gozo nele implicado.

Em seu seminário A Transferência, Lacan acentua que "o santo se


movimenta inteiramente no domínio do ter. Se ele renuncia a essas
coisinhas, é para possuir tudo( ... ). Se vocês examinarem a vida dos
santos, verão que ele só pode amar a Deus como o nome do seu
gozo. Ele bem que faz o que pode para ter o ar de pobre. Mas é nisso
justamente que ele é um rico, pois a sua não é urna riqueza de que se
possa livrar facilmente" 11 •

É isso que Teresa de Ávila conta em stta autobiografia: menina,


"vendo os martírios que os santos sofriam por amor a Deus, parecia-
me que compravam muito barato a sorte de gozarem de Deus.
Desejava morrer assim, para desfrutar depressa dos imensos bens
que os livros diziam haver no céu" 12 • É essa morte gozosa em Deus
que ela busca ao fugir de casa com seu irmão predileto para oferecer
sua cabeça à espada dos mouros.
71
AMulhtr

Com o conceito de privação, Lacan tenta dar conta desse gozo que o
sujeito pode experimentar no despojamento do ter, fabricando-se
um ser. T~to mais Teresa abre mão dos bens mundanos, mais..ela.é..
_A noção_ de ex-sistência toma aqui todo seu sentido. É o .que está
_fora da medida fâlica que se busc_a.

A morte da mãe e o casamento da irmã mais velha levam Teresa ao


convento. Seu confessor na época, cuja amiz.ade segundo ela 'não era
má, mas em excesso deixou de ser boa', lhe confidenciou sua 'perdição'
com uma mulher. Começam os acessos de Teresa, males que ela própria
chama de histéricos: não consegue engolir nada, tem febre, vômitos,
dores no coração, desmaios. É dada como morta. Só não é enterrada
porque o pai adia seu sepultamento. Sua biografia fala desses momentos:
"fiquei
~.__ quatro dias como morta, de modo que .só o Senhor pode saberº-ª-
insuportáveis t~rmentos que em mim sentia. Parecia esta_r_..toda
~esconj~tada_e ~ cabeça sentia grande desatino".

A violência dessas conversões traduz a violência do desejo recalcado.


São duras as críticas que Teresa faz à mãe, por ter lhe despertado o
gosto pela leitura de romances de cavalaria, e às 'conversas
pestilenciais'das monjas, que transformavam o convento num 'lugar
de perdição'. Como diz Gennie Lemoine, "seu corpo se toma símbolo
da unidade perdida" 13 , fala disso. Paralítica por três anos, Teresa
deverá reaprender a andar.

A experiência mística é a forma escolhida para se curar desses males.


Começa a trilhar a via dos patamares ou graus da oração, que se
expressam num discurso cada vez mais apaixonado em relação a
Deus, 'Sua Majestade'. po amor ao pai, passa a esposa de Cristo.
Aliás, isso é tudo que ela pede aos homens: serem pais. Seus
confessores confirmam o amor de Deus por ela. Para Teresa, o pênis
não vem ao caso. Está sublimado na hóstia, que ela prefere bem
grande. Sabendo de sua gulodice, S. Juan, confessor e companheiro
72
Elisa Mnmeiro lnes Autran Dourado Barbosa

de fundação de tantas ordens religiosas na Espanha, fazia questão


de dar-lhe apenas um pedaço, o que ela aceitava resignadamente.
Esse amor incompleto entre homens e mulheres, o daqui da terra,
não era o bem que ela desejava:

"Nos gozos daqui debaixo, suponho que é maravilha descobrirmos


onde está o contentamento; nunca lhes falta um 'senão'. Nos gozos
do céu, tudo é 'sim' enquanto duram; o 'não' vem depois, por vermos
que se acabou e não o podemos recobrar, nem sabemos como".

Juanà lnés também rejeita o casamento. É_ uma intelectual, ama o saber.


Recusa o destino comum às mulheres do seu tempo, d~~ da grinalda
às fraldas. Sabe da impossibilidade de complementação entre os sexos.
Em dois de seus sonetos de sua juventude cortesã, diz:
1-"AI que ingrato me deja, busco amante;
ai que amante me sigue, dejo ingrata;
constante adoro a quien mi amor maltrata;
maltrato a quien mi amor busca constante.
2-AI que trato de amor, hallo diamante,
y soy diamante ai que de amor me trata;
triunfante, quiero ver ai que me mata,
y mato ai que me quiere ver triunfante.
3-Si a éste pago, padece mi deseo;
si ruego a aquél, mi pundonor enojo:
de entrambos modos infeliz me veo.
4-Pero yo, por mejor partido, escojo
de quien no quiero, ser violento empleo,
que. de quien no me quiere, vil despojo.""

"Amor empieza por desasosiego,


solicitud, ardores y desvelos;
crece com riesgos, lances y receios,
susténtase de llantos y de ruego.
Doctrinanle tibiezas y despego,
conserva el sér entre engaflosos veios,
hasta que con agravios o con celas
apaga con sus lágrimas su fuego." 15

73
/f M11lller

A divisão entre amor, dirigido ao incubo ideal, e desejo, dirigido ao


pênis do parceiro, do texto de 1958, será trabalhada por Lacan nos
anos 70 como um desdobramento do gozo entre <I> e S(A),
significante da falta no Outro. "A mulher tem relação com S( A) e é
nisso que ela se desdobra. não é toda, porque por outro lado ela
também tem relação com <I>". Lacan trata desse gozo-a-mais,
suplementar, em S(A), como suporte da existência de Deus - "A
face de Deus como suportada pelo gozo feminino". teª~!! O!l.t.ro,
Deus, um dos Nomes-do-Pai, que ess~ almas amam. Trata-se de
a/mor.

i:eresa, Juana Inés e Juan q~erem a este Um unir-se como esposas.

Em Canções entre a alma e o esposo, S. Juan de la Cruz (1542-


15 91 ) fala do caminho que a alma, comparada à esposa, tem que
percorrer, se desligando de todas as coisas mundanas, inclusive de
si mesma, para chegar a esse amor pleno, à união e gozo com Deus,
o esposo.
"Esposa
1-Adónde te escondiste,
Amado, y me dejaste con gemido?
Como el ciervo huiste,
habiéndome herido;
salí tras ti clamando, y eras ido.
2-Pastores, los que fuerdes
aliá por las majadas ai otero,
si por ventura vierdes
aquel que yo más quiero,
decilde que adolezco, peno y muero.
9-Por qué, pues has llagado
aquéste corazón, no le sanaste?,
y, pues me le has robado,
por qué asl te dejaste
y no tomas e! robo que robaste?

74
Elisa Monteiro Ines Autran Dourado Barbosa
Esposo

37-Y luego a las subidas


cavernas de la piedra nos iremos
que están bien escondidas,
y alll nos entraremos,
y el mosto de granadas gustaremos.
38-Alli me mostrarias
aquello que mi alma pretendia,
y luego me darfas,
allf tú, vida mia,
aquello que me diste el otro dia:
39-EI aspirar dei aire,
e! canto de la dulce filomena,
el soto y su donaire
en la noche serena,
con llruna que consume y no da penn". 1º

_
Teresa
... ---·
não
.
compreende seus arroubos.. Só sabe que goza .

"Falar é impossível, pois a alma não atina a formar palavras e, se


atinasse, não teria forças para poder pronunciá-las; porque toda a
força exterior se perde e aumentam as forças da alma afim de poder
melhor gozar de sua glória".

É de seu êxtase que fala na famosa passagem referida por Lacan no


Encore e eternizada pelo escultor .Bemini:

"Via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, em forma corporal,


que não costumo ver senão muito raramente ( ... ). Não era grande,
mas pequeno, muito belo e o rosto tão iluminado que dt:veria ser
dos anjos que servem muito próximos de Deus - desses que parecem
abrasar-se todos( ... ). Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro.
Na ponta, julguei haver um pouco de fogo. Parecia que ele o metia
pelo meu coração a dentro, de modo que chegava às entranhas. Ao
tirá-lo, tinha eu a impressão que as levava consigo, deixando-me

75
,<Mulh~r

toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor que
me fazia soltar gemidos; e tão excessiva a suavidade que me deixava
aquela dor infinita, que não podia desejar que me deixasse nem se
contenta a alma com menos do que Deus. Não é dor corporal, mas
espiritual, embora o corpo não deixe de ter participação e bem grande.
t t11!1 trato ~e amor entre Deus ~ a alma que, suplico eu à Su_a
~o~~_de, f~ça-o gozar a quem pensar__9ll_e.__J?into." 1;

Em sua fala desatinada sobre este êxtase, ela meio-diz um gozo vivido
nesse encontro, em sua união com este Outro, Eros divino. Em seu
desamparo a alma clama o desejo do amor infinito do pai: 'Oh! pai,
,não me abandone'. E nesse momento de ilusão de amparo, goza ...

NOTAS

1. FREUD, S. - "Novas conferências introdutórias à psicanálise",


'A Feminilidade' (1932), Obras completas, vol. XXII, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1976, p.165.

2. Idem, Ibidem, p.157.

3. LACAN, J. - "Propos directifs pour un Congres sur la sexualité


féminine"(l 958), Écrits, Paris, Seuil, 1966, p.733.

4. Idem, "La signification du Phallus"(l 958), op. cit., p. 694.

5. Idem, Le Séminaire, Livre XX.· Encare, Paris, Seuil, 1975, p.90.

6. Idem, "Propos directifs pour um Congres sur la sexualité


féminine", op.cit., p.733.

7. Cf. MOREL, G. - "La Jouissance sexuelle dans les Écrits et Le


Séminaire Encare de Jacques Lacan", in: Le Séminaire des
Échanges, ACF-Bordeaux, nov. 92-jun. 93.

76
Elisa Monteiro lnes Autran Dourado Barbosa

8. SILVESTRE, D. - "La question féminine", in: Revue la Cause


Freudienne, Paris, E.C.F, juin 1993, p.42.

9. LACAJ~. J. - Le Séminaire, Livre XX: Encore, op. cit., p.73-81.

1O. LAURENT, E. - Positions féminines de l 'être - du masoquisme


féminine au pousse à la femme, Curso de 1992-93 na
Universidade de Paris VIII, Depart. de Psicanálise, Seção Clínica,
p.20.

11. LACAN, J. - O Seminário, livro 8: a tranferência, Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 1992, p.347.

12. TERESA DE JESUS, Santa - Livro da vida, São Paulo, Ed.


Paulinas, 1983, p.12, grifos nossos.

13. LÉMOINE-LUCCIONI, E. - Partage desfemmes, Paris, Seuil,


1976, p.94.

14. JUANA INÉS DE LA CRUZ, Sor - Obras Completas, Tomo l,


México, Fondo de Cultura Economica, 1988, p.289.

15. Idem, Ibidem, op. cit., p.297-298.

16. JESUS, C. - Vida y obras de San Juan de la Cruz, Madrid,


Biblioteca de Autores Cristianos, 1964, p.627-629.

17. TERESA DE JESUS, Santa, op.cit.,p.326.

77
.<Mullltr

A mulher e o narcisismo ou o gozo feminino


e a Igreja Universal do Reino de Deus
Sonia Alberti
Psicanalista. membro dei Escola Brasileira de Psicanálise. Professora Adjunta. UEIU.

"E por que não interpretar uma face do Outro, a


face Deus, como sustentada pelo gozo feminino?"

Jacques Lacan, Encore, p.71.

Desejo e gozo diferenciam-se cedo na psicanálise. Já com Freud,


quando, em Luto e melancolia, observa a existência de um Genu/J
(gozo) nas autoacusações do melancólico, o gozo diz respeito ao
campo do narcisismo que, na década em que Freud escreveu o texto,
caracteriza a psicose (cf. Schreber). Aí o sujeito se identifica via
especularização (cf. V Encontro Brasileiro do Campo Freudiano),
onde o eu é um outro, o que na psicose, viabiliza o tamponàmento
da foraclusão do Nome-do-Pai. O desejo, ao contrário, implica o
atravessamento do Édipo e a singularidade de cada sujeito, que se
sustenta do objeto a.

Genevieve Morei, 1 ao retomar o Para um congresso sobre a


sexualidade feminina e o Seminário ..IT de Lacan, levanta algumas
questões que irão pennitir melhor situar a sexualidade feminina a
partir dessa diferenciação entre desejo e gozo. Retomarei algumas
destas trilhas para tentar levantar uma hipótese que nos permita
refletir um pouco sobre o enorme fenômeno que diz respeito à
participação da mulher pobre nesse movimento de massa organizado
pelas novas igrejas evangélicas, particulannente a Igreja Universal
do Reino de Deus. Trata-se de uma primeira abordagem da questão

78
Sonia Alberti

à qual somos convidados a refletir na medida em que a midia2 começa


a se preocupar com o fenômeno e, sobretudo, por ele penetrar nossa
clínica quotidiana, em especial nas instituições públicas que assistem
às pessoas de baixa renda. Meu trabalho não pretende dar conta do
fenômeno mas simplesmente iniciar uma contribuição da psicanálise
-para a sua discussão teórica.

1. A castração e o S (A).

:p_ar~ _aceder ao desejo, já dizia Freud, é fundamental a castração_.


Çomo pensar então a mulher na sua relação com o desejo? Fre~
dizia que é a angústia da perda do amor o que mais se assemelha, na
mulher, à angústia de castração no homem. Na clínica verificarnps
que é da castração do Outro que o sujeito mais tem medo, razão pela
qual a mulher histérica se dá em sacriflcio ao Outro, velando com
isso agistração dele; castração que a ameaça muito mais do que a
sua própria. Em 'Dora', caso clássico de Freud, essa castração do
Outro é velada pela impotência do pai, a quem Dora procura sustentar
de todas as formas. Esse velamento é característico da neurose e,
ponanto, vamos encontrá-lo em homens e mulheres.

Mas se uma das formas que temos de representar a castração do


Outro é pelo materna lacaniano S (A) - falta wn significante no
Outro-, no Seminário XX, Lacan observa que esse significante, que
falta no Outro, é o lugar mesmo onde podemos localizar A mulher
para a qual justamente falta um significante no Outro, na medida em
que não há um significante que a identifique. É o que Dora sabe
quando, diante da Madona da Capela de Dresden, não procura
sustentar histericamente o Outro impotente, tapando-lhe a falta, mas
observa essa falta em A mulher, aí representada pela própria Madona.

Se todo desejo é desejo do Outro, A mulher está fora do campo do


desejo na medida em que ex-siste ao campo do Outro. 3
79
,l('Mulhtr

Assim, podemos verificar que o fato da castração - fato com o qual,


confonne Freud, ela se depara desde o início - remete a mulher à ex-
sistência, ao S (A), ao gozo que tem outro registro que não o fálico
e, mais uma vez, por causa disso, distancia-se do desejo cujo objeto
é, desde sempre, o falo.

2. "A mulher não atinge o Outro senão por intermédio do


bomem". 4

O que vela o desejo é o amor, donde a relação entre amor e desejo (cf. o
materna de Lacan, i (a)). Isso pode tornar o amor metáfora, uma das
fonnas da sublimação. A mulher, que sabe que por trás da falta não há
nada e que, como Dora na Capela, se depara com o Outro como barrado,
só pode desejar através de um homem. Talvez por isso esse temor do
abandono de que Freud jâ suspeitava O homem, por sua vez, por aí não
poder identificar-se, já que há um significante que o representa, coloca
A mulher neste lugar.
Essa relação entre amor e desejo foi exemplificada por um sujeito aos
dez anos de idade, quando trouxe a estorinha que resumo a seguir: "O
rei trancou a princesa em seu quarto e foi donnir. O feiticeiro, que estava
dormindo, acordou e pegou o dragão e enfiou grampos (clips) no dragão
- o dragão aqui representa o isso da princesa - lugar da libido. Aí o
dragão foi ao poço dos desejos onde jogou uma moeda".

A menina diz que é mágica para o desejo realizar-se. Pergunto-lhe


qual foi seu desejo e a resposta é: "seu desejo é o que o feiticeiro fez
com o dragão". Pergunto: "e o que ele fez com o dragão?" e a nova
resposta: "o que seu chefe mandou". Pergunto: "quem é seu chefe?"
e ela me diz: "o rei, ora bolas, sua burra! Aí a princesa vai acordar o
rei para perguntar a este o que ele mandou fazer ao dragão. E ele
responde, bem baixinho: 'dar remédio, escovar, dar injeção".

O rei volta a donnir e o feiticeiro transforma animais e pessoas em


80
Sonia Albcr11

robôs que obedecem. Dessa vez transforma o dragão cm cachorro


manso. Na última sessão transformara a princesa em cantora que
tinha que cantar o que ele queria e casar com ele. Ele a deitara e
fizera cara de mau.
3. Quando "é do lado do amor que parte o circuito do gozom.
No momento em que o desejo implica a castração, em que a mulher
se depara com o S (A), enquanto não-toda, há como que wn curto-
circuito do desejo, onde o amor aponta para a demanda de amor, o
temor do abandono, do abandono pelo pai como dizia Freud, o temor
de se ver largada do desejo. Perda nar_sisica ao extremo. tal que a_
perda narcísica com a qual o homem se depara no momento f!A
angústia da castração. 6 Tal como o homem, a mulher se atém ao
narcisismo. Para tanto ela permanece no registro do amor. Assim, a
castração - que aqui escrevo S (A) -remete a mulher a A mulher, o
que falta ao Outro. É aqui, creio, que podemos entender a referência
freudiana de 1914: o amor objetal do homem - consequência da
castração - equivale, na mulher, a algo que parte do narcisismo, a
forma mais pura e verdadeira do tipo feminino. Como já dizia Freud
(cf. o primeiro parágrafo deste texto), o gozo é do campo do
narcisismo'. Seria esse o gozo que Lacan localiza cm S (A), o gozo
feminino propriamente dito, um gozo místico, não referido ao falo
num para além do narcisismo?
4. "Assim o universal do que elas desejam é loucura: todas as
mulheres são loucas (... ) a tal ponto que não há limites às
concessões que cada uma faz para um homem: de seu corpo, de
sua alma, de seus bens".ª
O movimento da Igreja Universal do Reino de Deus é uma nova
massa: não mais sustentada na culpa - neurose obsessiva da
humanidade -, nem na identificação a um líder pelo amor a um Pai
(o exército), mas na garantia de um gozo místico.
81
~Mulher

No Hospital Pedro Ernesto, wna adolescente vai à Igreja Universal


do Reino de Deus. Seus pais são alcoólatras, seu innão provavelmente
'avião', a agressividade reina na família e ela quer mudá-la. A
situação em casa é um verdadeiro inferno, além das dificuldades
econômicas e financeiras. Vive para reconquistar o amor do pai e se
dispõe, para isso, a qualquer sacrifício. Nossa adolescente crê,
firmemente, que com seu sacrificio e com a ajuda do pastor da igreja,
ela irá modificar a família Além de encontrar um substituto do pai
neste pastor - que. aliás, parece muito bem saber fazer de conta de pai,
atendendo-a, inclusive em entrevistas individuais, o que hoje já
inviabiliza seu tratamento na nossa equipe do hospital -, ela sabe que
não tem mais nada a perder e é por isso que entrega-se a ele - pastor.

É esse saber e essa entrega que colocam questão. Nossa adolescente


decidiu acreditar, por amor ao pai, sabendo - e ela o verbaliza - que
a crença a engana. A escolha da Igreja é a tentativa última do
narcisismo de sustentar o pai antes da perda, enquanto que a escolha
pela psicanálise já admitiria a perda definitiva, onde se vê, claramente,
que a entrada na análise já contém a saída.

4.1. "80% são mulheres, a maioria é pobre", e/ou "procura a


seita num momento de grande dor" 9•

Freud já dizia que a principal característica da dor é uma ferida que


relança o sujeito no próprio narcisismo 10 , razão pela qual é nesse
momento que o sujeito se volta para si mesmo na tentativa de um
trabalho de reparação. Esse trabalho pode, a meu ver, ter três
vicissitudes: o fechamento dessa ferida que permite uma
reorganização libidinal de forma que aos poucos o sujeito sai desse
narcisismo; a permanência no narcisismo, levando à depressão, e a
morte como último recurso de resolução.

Diferentemente no que ocorre na interseção com a mulher pobre


que é a não-toda por excelência, Penia, S(A), a que não tem
82
Sonia Albcni

representação. É aqui que encontramos uma semelhança com alguns


fenômenos dos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus e que
vínhamos discutindo sobre IA mulher e um gozo para além do
narcisismo. Em detrimento de uma histeria coletiva - que implicaria
a identificação pela via do desejo-, a interseção entre a mulher pobre
e a dor faz desse movimento de massa algo totalmente diferente dos
movimentos que têm por referência a lei do pai. É nesse para além
do narcisismo que nada mais faz falta.

4.2. "O neopentecostalismo segue a teologia da prosperidade" 11 •

Tal o puritanismo dos quakers dos Estados Unidos no século XVIII,


a Igreja Universal do Reino de Deus não admite o pecado. Eu diria
mesmo que ele não tem lugar, ele é exterior, inadmissív~l. A falta
está excluída, não há lugar para ela 12 • A ausência do .registro da falta
é aquela que Lacan introduz no seu materna: existe um x on~
_função da falta não ocorre D. Com esse lugar mítico, pode-se pensar
que IA mulher, se existisse, estaria em relação. Excluída do discurso
do capitalista é este outro discurso que dela se utiliza, como se
pudesse fazê-la existir nesse lugar.

Ledo engano, diz a nossa adolescente que procura, desesperadamente,


uma insçrição no desejo do Outro pelo que escolhe sacrificar-se tal
como a menina que, princesa, deita-se com o feiticeiro que faz cara
de mau.

NOTAS

1. MOREL, G. - "La Jouissance sexuelle dans les Écrits et Le


Séminaire Encare de Jacques Lacan", in: Le
Séminaire des
Échanges, ACF-Bordeaux, nov. 92-jun. 93.

2. A reportagem à qual me referirei durante o texto foi publicada


no Jornal do Brasil de segunda-feira, 23 de outubro de 1995 sob
8~
,<Mulher

o título "Edir Macedo 'hipnotiza' a multidão", e tem uma


chamada de primeira página.

3. Por isso mesmo, ela pode ser causa do desejo do homem, já que
todo desejo se sustenta da própria falta.

4. MOREL,G., op. cit., p.59.

5. MOREL, G., op. cit., p.61.

·© por causa do narcisismo, diz Freud, que o menino desi~te da


mãe como objeto sexual, finalizando assim o complexo de Edipo.

7. Observação que, além de trazer luz à questão da frigidez, como


já dizia Lacan no Notas para um Congresso sobre a sexualidade
feminina, talvez possa também nos ensinar algo sobre a ejaculação
precoce.
8. LACAN, J - Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, p.
70.

9. in: Jornal do Brasil, acima citado.


I O. Cf. Para além do princípio do prazer (1920), cap.lV.
11. in: Jornal do Brasil, acima citado.

12. Donde os fiéis são, provavelmente, uma massa sempre em


movimento. Quando um fiel peca, ele está fora, mas não faz mal;
outros fiéis chegam, em número maior, movidos pela mesma causa:
a dor.
13. LACAN, J. - Le Séminaire, Livre XX: Encore, Paris, Seuil, 1975.

84
Do iídiche, do Witz e da mulher
Sara Pero/a Fux
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

O ano de 1905 foi 1.Ul1 dos c1.U11es da produtividade de Freud. Surgiram


por esta época quatro ensaios e dois livros.

Um dos livros era O Chiste e sua Relação com o Jnconsciente 1, que


é considerado incorretamente como um livro sobre o humor. Talvez
por ser de dificil apreensão, é o menos lido dos seus livros.

Foi escrito simultaneamente com Os Três Ensaios sobre a Teoria


da Sexualidade 2• Foi a única ocasião, ao que se saiba, em que Freud
conjugou o escrito de dois livros. Este fato pode nos sugerir o quão
ligados os dois temas se achavam em sua inspiração.

A razão subjetiva para que Freud se dedicasse aos Witzn teria sido
uma queixa de Fliess de que os sonhos relatados na Interpretação
dos Sonhos 3 estariam por demais carregados de chistes. Esta
observação pode ter atuado como fator para que Freud dedicasse
mais atenção ao tema, mas, seguramente, não foi a origem de seu
interesse.

Na carta 95, de 22/06/1897, após citar dois chistes sobre dois


Schnorrer (mendigo), Freud, siderado, escrevera a Fliess: "Devo
confessar que desde há algum tempo estou reunindo uma coleção de
anedotas de judeus, de profunda importância'.'4 •

Desta coleção, destes muitos exemplos, baseia-se a sua teoria, que

85
,< Mulhtr

só ganhara tal aprofundamento no seu livro sobre os sonhos.

O que Freud objetivou no Witz é que ele é uma formação do


inconsciente. Witz em alemão ou em iídiche designa chiste. Remete
a wissen, que significa saber. Então, qual seria a relação com o wissen
que o Witz abrange? Witz tem homofonia com wie ist? (onde está?),
o que prenuncia o instantâneo, o tropeço, sua sutil temporalidade.

Se Freud pensava em alemão, como seus ~tos denotam, pode-se inferir


que seu inconsciente falava em iídiche, sua língua mãe, suporte linguístico
que subsiste mesmo quando não se fala mais a língua É isto que permite a
Freud tomar cada Witz no seu valor significante, analisando-o na sua relação
com a linguagem, e não em relação ao cômico.

Para Freud, então, o ponto de partida não é o humor judaico, mas,


sim, a linguagem que o sustenta. Ele utiliza o Witz tão-somente para
ilustrar uma noção. Fazendo-o intervir como significante, Freud não
o detalha, mas, somente o toma como pretexto para sua teorização.
Assim, o Witz é um meio para exprimir o inconsciente de um sujeito.
Mesmo utilizando termos em iídiche, não é a língua que está em
questão. Não é a língua que é subversiva, mas, sim, o sujeito do
inconsciente, ao qual o Witz remete.

Pode-se, então, deduzir que, apesar de Freud não falar o iídiche no


seu cotidiano, ele não o teria perdido por trás do alemão. O iídiche
possivelmente aparece para ele como um retomo do recalcado, que,
apesar de não falado, é sabido, entendido e cultivado.

Neste livro, por se posicionar como tesoureiro dos significantes


judaicos, Freud se utiliza de diversas palavras intraduzíveis, que,
por isso, só têm 'profunda importância' no cerne da cultura judaica.
São chistes criados por judeus e contrários às características dos
judeus. "Não sei" - diz Freud - "se há muitos outros casos em que as
pessoas fazem troça, em tal grau, do seu próprio caráter". 5

86
Sara Perola Fux

Para aqueles pegos pela cultura, que a têm nas costas como pulgas,
'futucando' e despertando, a leitura do livro de Freud tem um efeito
'familionário': ao mesmo tempo, familiar e rico de prazer e surpresa.

Como diz Freud, não há a possibilidade de emergência de um Witz sem


uma certa surpresa. O Outro, enquanto lugar simbólico, quase anônimo,
tesouro de idéias recebidas, ao rir, o dignifica como Witz. Assim,
dignificado, o Witz se toma um espaço em que a palavra tem valor.

Uma das situações bastante exploradas é a do Schadchen


(casamenteiro), traduzido traiçoeiramente por "agente matrimonial
judeu"6, "uma risível figura" 7 , segundo Freud, que também define a
sua função na comunidade judaica: "Um homem pobre cuja
existência depende de explorar e criticar os abusos de urna trapaça
para arranjar um marido para uma moça"8 •

··o ridículo dos chistes que abordam tal tema é a desprezível


situação das moças que se deixam dessa forma serem levadas ao
casamento, ou ainda, a anedota recai sobre a desgraça dos
casamentos contratados em tais bases" .9

Contratado geralmente pela família da noiva (Kale), o Schadchen,


mesmo sem a conhecer, não mede esforços em camuflar e produzir
admiração entre duas pessoas, empenhado que está em 'arranjar'
casamentos que lhe garantem a sobrevivência financeira.

Assim, ·negociada', a mulher é posta em circulação, adquirindo


função de moeda, enquanto valor de troca. A pulsão escópica aparece,
então, nestas situações, como ligada ao corpo da mulher.

Com a sua persuasão, o Schadchen pretende a complementação justa,


a existência da relação sexual, ou seja, o objetivo é que a Kale agrade.
Equivocado, o Schadchen se conve11e de uma "risível figura" em
"simpática, merecedora de pena". 10 Tão logo vê que o caso está

87
A Mulher

perdido, o Schadchen permite à Verdade escapar num instante de


distração. Na realidade, este tropeço, em vez de embaraçá-lo, o alegra,
por livrá-lo da mentira. "Eis um correto e profundo insight
psicológico". 11
Nos exemplos que expõe, Freud desmascara, desequilibrando o ideal
da beleza, da riqueza e da cultura. Ele desvela, assim, o poder que se
apóia no objeto do olhar, do haver e do saber.

"O noivo, ficando muito desagradavelmente swpreso quando a Kale


lhe foi apresentada, chamou o Schadchen a um canto e cochichou-
lhe suas censuras: 'por que você me trouxe aqui? Ela é feia e velha,
vesga, tem maus dentes e olhos remelentos ... '. 'Não precisa abaixar
a voz', interrompeu o Schadchen, 'ela é surda também."

Assim, a Kale está Ka/e (defeituosa). A mulher encarna o defeito,


por excelência. O Schadchen propôs um negócio furado - a mulher
é furada. O homem, por sua vez, é colocado em posição histérica:
confrontado com o enigma da feminilidade, mantém a questão em
suspenso, insatisfeito que fica com a impossibilidade do seu.
deciframento.

Será que foi o Witz que abriu para Freud_ a percepção da questão
histérica?

Na maioria dos Witzn da coleção de Freud, é a mulher seu objeto.


Ela raramente está presente em alguns deles. A mulher não fala, ela
é falada. Se ela está ausente, é porque ela própria não está em posição,
porque mulher, de significantizar a questão sobre sua identidade
sexual.

É o Schadchen que fala em nome da noiva. Como negociante, ele a


apresenta como tendo um desejo sexual que deve entrar na lei pela
via do casamento. Cabe ao homem legislar, ao designã-la: 'tu és
minha mulher'. Assim, elevada à posição de desejante, a Kale é
88
Sara Pcrola Fux

forçada a estabelecer um compromisso com o seu desejo.


Quando, porém, uma mulher se manifesta num Witz é para designar
a castração do futuro noivo.

"Um casamento foi organizado por um Schadchen e os noivos ainda


nem se conheciam no seu dia. Quando a Kale viu o noivo pela primeira
vez, começou a chorar. O Schadchen, assustado, perguntou: 'o que
houve?'. 'O noivo não tem nariz!', ela responde, gemendo. 'E em que
lugar da Torah está escrito que o noivo deva ter um nariz?" 12

Assim, não é só a noiva que é Kale. Nos arranjos do Schadchen, ao


homem também lhe falta um pedaço.

Nenhuma mulher pode encarnar à perfeição o ideal feminino para


um homem, enquanto o homem só consegue encaixar no ideal de
virilidade que uma mulher inventa se tiver uma boa dose de
feminilidade.

Se a mulher encarna algo no seu corpo é o gozo oferecido ao Outro.


Corno mulher, só possui corno dote o seu corpo privado de qualquer
significante, desnudado de qualquer referência possível de
linguagem.

Um Witz não produz nenhum saber sobre o gozo, assim como a


mulher. Ele, simplesmente, produz o gozo, assim como a mulher.

Um Witz se oferece ao gozo, assim corno o corpo de uma mulher.


Do gozo, porém, ela mesma nada sabe, ela o experimenta, tão-
somente. Pela sua própria constituição de sujeito, então, a mulher
encarna a própria falta, a falta de um traço identificatório que marque
a sua imagem corporal.

"'Escute, é inútil continuar. Eu não aceito um Schidourh (casamento


por arranjo)'. 'Mas, então, o que você quer?' 'Quero casar por amor.'
89
,f Mullier

'Um casamento por amor ... Também tenho!". n

Ao promover os encontros, o Schadchen aponta que é preciso um


intermediário, posto que, pela total inadequação do objeto, o homem
e a mulher, abandonados à própria sorte, só podem mesmo se casar
no discurso, um casamento no simbólico, interessados que ambos
estão no acesso ao gozo fáliro.

Casar-se por amor, porém, é muito diferente de casar por arranjo. Se o


Schadchen tem a pretensão de organiz.ar tudo que se imagina entre um
homem e uma mulher, ele não consegue, contudo, inventar o amor. O
amor não é a causa do encontro. Se ele vier, ele só vem depois.

O que a persua~ão do Schadchen pretende é convencer o rapaz dos


dotes físicos e materiais da Kale capazes de satisfazerem as suas
necessidades sexuais e econômicas. Não há jogo de sedução. Não
há o prazer da conquista.

O que, porém, fica patente nestas histórias da tradição judaica é que,


ali aonde se procura a mulher, se encontra a falta, inclusive, a falta
de amor, a fim de que o desejo possa prevalecer.

O segredo da atração que uma mulher desperta num homem está no


desejo de conquista que ela provoca. Por sua vez, qual 'Bela
Adormecida', a mulher espera ser despertada para a vida por esse
mesmo desejo do qual ela é causa.

NOTAS

1. FREUD, S. - "Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente"


(1905), Obras completas, vol. VIII, Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1969.
2. Idem, "Três Ensaios sobre a teoria a Sexualidade" (1905), op.
cit., vol. VII.
90
Sara Perota Fux

3. Idem, "A Interpretação dos Sonhos" (1900), op. cit., vol. IV-V.

4. MASSON, J. M. - A Correspondência Completa de Sigmund


Freud para Wilhelm Fliess- I 88 711904, Rio de Janeiro, Imago
Editor~ 1986, p.255.

5. FREUD, S. - "Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente",


op. cit, p.132.

6. Idem, Ibidem, p.72.

7. Idem, Ibidem, p.126.

8. Idem, Ibidem, p.127

9. Idem, Ibidem, p.127

l O. Idem, Ibi~em, p.126.

11. Idem, Ibidem, p.126.

12. KOHN. M. - Freud e o Iídiche: o pré-analítico, Rio de Janeiro,


Imago Editora, 1994, p.50.

13. Idem, Ibidem, p.49.

14. JONES, E. - Vida e Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro,


Zahar Editores, 1975.

91
,,< Mulher

"Ela anda em beleza, como a noite"


Maria Anita Carneiro Ribeiro
Psicanalista, membro da &cola Brasileira de Psicanálise.

"Ela anda em beleza como a noite


de céu sem nuvens e estrelas f u:as
e o que há de melhor da escuridão e do brilho
Encontra-se em seu rosto e nos seus olhos'

É assim que o poeta Lord Byron aborda o continente negro da


feminilidade: abóbada celeste, noite sem nuvens, coberta de estrelas.
Nas estrelas fixas que nos espiam (em inglês starry de star - estrela
- e to stare - encarar, fixar - pennite esta duplicidade), o que está em
jogo é o olhar. A ambigüidade da escuridão e do brilho se encontra
então no aspecto - aspect -, que traduzi por rosto, mas que é mais do
que isto, é um todo, uma camada envolvente que toma todo o corpo
da mulher mas que sobretudo se detém nos olhos, que refletem o
brilho e a escuridão do desejo de quem a fita.

Assim, fitada no brilho do desejo, a mulher caminha, anda em beleza.


É da relação da mulher com a beleza - bela para um homem e bela
para si mesma- que quero falar.

Diz Gennie Lemoine: "A mulher é bela por definição; uma vez que,
se ela se sabe ou se declara feia, não é mais uma mulher" 2. Por outro
lado sabemos que é o brilho do olhar de desejo de um homem que
pontilha a noite do continente negro de estrelas que brilham.

A condição feminina, para além da estrutura, se revela aí numa


relação essencial com a beleza: a beleza na qual se adorna a mulher
92
Maria Anila Carneiro Ribeiro

ou a beleza com a qual, para além dos atributos objetivos, a reveste


o homem.

Da clínica, o fragmento do discurso de uma histérica se impõe, por


contraste. Levada à análise por uma queixa outra, consegue formular,
num momento de verdade, que marca sua entrada no discurso
analítico, o seu desespero: "Prefiro morrer a que ele me veja sem
batom". Ele, o homem, era mantido numa distância estranha, num
vem-cá, vai-lá, de oscilações intempestivas, da qual ameaçava sair,
embora declarasse que a amava. "Vou perder meu homem por um
batom?", pergunta-me desnorteada.

Que batom vale um homem? A que bastião esta mulher se aferra


para se esconder e de quê? Ela mesma o diz casualmente: "Sem
batom, no espelho, pareço morta, um cadáver!"

Assim, para além de um instrumento da mascarada da sedução


feminina, o batom, para esta mulher histérica, se apresenta como o
último baluarte que a protege daquilo que ela não suporta ser para
·wn homem: um pedaço de carne do qual ele possa gozar. Ser o objeto
do gozo de um homem atualiza para ela a libra de carne que é,
lançando-a nos limites do intolerável. Antes da procura da análise,
uma passagem ao ato marcara mais um desfecho do interminável
caso amoroso, uma tentativa de suicídio, logo seguida de mais uma
rumorosa reconciliação.

Jacques-Alain Miller em De mujeres y semblantes diz, numa


expressão encantadora, que a mulher é "amiga do real" 3. Ora, em La
Tercera, Lacan deixa bem claro que "não há a menor esperança de
alcançar o real pela representação"\ O protesto fálico da histérica
visa justamente isto: pelo menos uma representação, uma palavra,
um significante, um batom que recubra o impossível de dizer.

Ao real, entretanto, paradoxalmente só podemos ascender pelo que


93
,KMulhD

o recobre, o significante, signi_ficante-letra S 1, "significante que se


escreve.porque se escreve, sem nenhum efeito de sentido" e que é
homólogo ao obj~to a '. Poi~. La~an nos diz que no mundo ''não há
nada fora de um objero a, cagada. ou olhar, voz ou mamilo, que
divide o sujeito e o disfarça de dejeto, dejeto que lhe ex-sistc ao
corpo"6 •

Assim sendo, não é fácil ser o semblante do objeto; e curiosamente


Lacan nos diz que isto é mais dificil para uma mulher do que para
um homem. É o que a clínica da histeria nos mostra. o fato de que
uma mulher seja o objeto que causa o desejo de um homem não
significa que ela consinta em ocupar este lugar. É o que a moça do
batom demonstra. Desejada, cogita em perder seu homem para não
se defrontar com o cerne mesmo da angústia: o corpo desvelado em
pura carne.

Segundo seu relato, o amante indignado denuncia que há algo mais


neste batom que transcende a mascarada: afinal ele não faz nenhuma
questão de que ela se pinte, para ele é indiferente. Ela não se faz bela
para ele. Na verdade, ao se debater às voltas com o batom, ela não se faz
bela, ela procura fazer traço, traço de batom ali onde a beleza poderia
advir. ~acan, na homenagem a Marguerite Duras, designa este "limite
onde o olhar se toma beleza: o umbral do entre-duas-mortes"7•

Uma mulher, como um homem, só ganha um corpo a partir da


mortificação do significante que vem do Outro. O significante
mortifica a carne, esvaziando-a de gozo e nomeando o corpo-
significante. O gozo fálico que resulta desta operação é gozo fora-
do-corpo, anômalo em relação ao gozo do corpo 8 .
A mulher entretanto está não-toda no gozo fálico e se o gozo fálico
está fora-do-corpo, o Outro gozo, ao qual a mulher tem acesso, está
"fora-de-linguagem, fora-do-simbólico''9. Se o gozo do homem é 'todo
fálico' é porque o homem aferra-se ao significante, identificando-se a
94
Maria Anita Carneiro Ribeiro

ele ao preço de ser por ele petrificado, morto no significante. Já a mulher,


não tendo o significante que a designe enquanto ii mulher que não existe,
oscila, à deriva, entre dois significantes, entre-duas-mortes.

É este o lugar que Lacan aponta como o lugar da tragédia, ao nos


falar da beleza de Antígona, cantada por Sófocles na inexorabilidade
de seu desejo de morte'º. A morte da mulher cantada pelos poetas na
tragédia clássica nos ensina sobre este lugar entre, entre-dois-
significantes, entre-duas-mortes que é o próprio lugar da mulher.

Em Maneiras trágicas de matar uma mu/her 11 , estudo sobre a morte


das heroínas nas tragédias gregas, Nicole Loraux diz que a morte
das mulheres, ao contrário da dos homens, passava-se sempre longe
dos olhos do espectador - morte velada, que só poderia ser narrada.
É na narrativa, por exemplo no coro do Agamemnon sobre o sacrificio
de Ifigênia, na imolação de Polixena em Hécuba, que uma mulher
morre na tragédia. A própria autora considera que, longe de
justificada por argumentos sociológicos ou históricos, a morte velada
da mulher nos autores clássicos aponta para o limite que a invenção
trágica da feminilidade encontra.

Poderíamos dizer, com Freud e Lacan, que o poeta nos


antecede e nos ensina sobre algo da feminilidade nas maneiras
trágicas de matar uma mulher. Além de oculta e narrada, a
morte da mulher na tragédia clássica é sobretudo o suicídio.
Ou melhor, o suicídio é, na tragédia, morte de mulher.

Segundo a autora, o suicídio é, na Grécia clássica, a morte hedionda,


morte desprovida de andreia (coragem), palavra originária de andros
(homem): não existe coragem feminina. Que o Ajáx de Sófocles
tenha se matado, é a exceção que confirma a regra. Ajáx, rei de
Salamina, recuperando a razão após a crise de loucura na qual o
lançou a deusa Atena, mata-se encenando a morte de um bravo. O

95
A Mulher

gládio, colocado em frente a si próprio, o duplica e transforma sua


morte em assassinato pelo outro, que sua postura máscula encena:
suicídio viril, suicídio de exceção, igualmente reservado a algumas
mulheres. São estas mulheres de exceção, mulheres viris, mulheres
fálicas providas de andreia, a coragem dos homens.

A autora observa que muitas destas mulheres são mães. A


maternidade na Grécia clássica dos poetas, como em Freud, toma a
mulher fálica. O exemplo mais clamoroso é o de Jocasta. a mãe-
mulher. Fêmea, mulher no Édipo Rei de Sófocles, enforca-se. Mãe
absoluta nas Fenícias de Eurípedes, mata-se com um gládio ao ver
os filhos, Etéocles e Polinices, mortos. Morte viril, morte de mãe.

A morte da Jocasta de Sófocles é por excelência a morte de mulher.


Morte abominável - suicídio - e mais do que tudo - morte fora-da-
lei, fora-do-significante, morte feminina - o enforcamento. Na
tradição clássica, é a "mácula máxima que uma pessoa se inflige
sob o golpe de vergonha" 12 • O enforcamento é então a morte feminina.
Diz Nicole Loraux que nele a expressão da feminilidade pode
desdobrar-se infinitamente.já que a corda pode ser substituída, e o é
efetivamente na Antígona de Sófocles, estrangulada por um laço
feito com seu véu. Véus, cintos, faixas, instrumentos da mascarada
feminina, "constituem virtualmente armadilhas de morte para aquelas
que os usam" 13 •

A palavra utiliz.ada para enforcamento aiora, "liga-se à dupla imagem


de um corpo suspenso e do ligeiro movimento de balanço que lhe é
imprimido" 14 • É a mesma palavra que designa a morte por lançamento
- jogar-se de algum lugar como no caso freudiano da 'jovem
homossexual'.

Nas Suplicantes de Eurípedes, Evadne, mulher de Capaneu, morto


diante de Tebas, lança-se em sua pira fúnebre, para arderem juntos

96
Mana Anita Carneiro Ribeiro

na morte, dizendo: "Eis-me aqui, neste rochedo, como um pássaro,


por sobre a pira de Capaneu, elevando-me rápida num balanço
(aiórema) funesto" 15 •

A imagem do pássaro alçado em vôo é evocada no Hipólito de Eurípedes, a


propósitodeFedraenforcada,pássarofugidona.smãosdeTeseu,seurnarido.

Loraux nos lembra entretanto que "somente levantam vôo as heroínas


extremamente femininas" 16 • Aos homens e às mulheres que bancam
o homem é reservada a morte com os pés plantados no chão. A autora
lê neste vôo feminino uma certa relação da mulher com um lugar
impreciso: "ei-las lançando-se no ar e pairando entre o céu e a terra" 17 .
Ei-las lançando-se no ar e pairando entre: é este o lugar da mulher
feminina na tragédia clássica.

Lacan nos diz que a verdadeira mulher só está presente no ato -


Medéia, Madaleine -1 quando cai fora do significante, lançando-se
neste espaço indeterminado em que o sujeito é abolido. É este o
momento trágico em que o olhar se toma beleza, último véu antes
do horror.

Ao fazer-se bela, bela para si mesma, para um homem ou para outras


mulheres, uma mulher tenta tomar para si enquanto sujeito a beleza
que é sua, enquanto mulher, mas que no entanto lhe escapa. A
manobra de sedução pela beleza é a tentativa de adivinhar, dar um
nome, um atributo ao desejo enigmático do Outro. A moça do batom,
com seu rosto pintado de vermelho procura não saber nada d'Isso:
que é no vôo do pássaro que ela anda em beleza como a noite.

Que é no ato em que se abole como sujeito e se presta a encarnar o


semblante do objeto para um outro, que algo da verdade da mulher
pode ser vislumbrado, momento em que é recoberta pelo olhar do
desejo com o manto de estrelas brilhantes.

97
~Mullttr

NOTAS
1. LORD BYRON - The /ove poems o/Lord Byron, New York, St.
Martin' s Press, 1990, p.48, tradução nossa

2. LEMOINE-:LUCIONI, K -A mulher ... não toda, Rio de Janeiro,


Revinter, 1995, p.129.
3. MILLER, J-A. - De mujeres y semblantes, Buenos Aires.
Cuademos dei Pasador, 1994, p.62.
4. LACAN, J. -"La tercera",lnJervencionesytextos 2, Buenos Aires,
Manantial, 1988, p.82.
5. Idem, Ibidem, p.83.
6. Idem, Ibidem.
7. LACAN, J. -"Homenaje a M. Duras", Intervenciones y textos 2,
op.cit., p.71-72.

8. LACAN, J. - "La tercera", op.cit., p.90-91.

9. Idem, Ibidem, p.106.


1O. LACAN,J. -. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p.295-346
11. LORAUX, N. - Maneiras trágicas de matar uma mulher, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor. 1988, p.11.
12. Idem, Ibidem, p.30-31.
13. Idem, Ibidem, p. 31.
14. Idem, Ibidem, p.43.
15. Idem, Ibidem, p.43.
16. Idem, Ibidem, p.46.
17. Idem, Ibidem, p.45.
98
A voz na fantasia feminina
MirtaZbrun
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicand/ise.

A voz pode. ser considerada o mais humano dos instrumentos. Do


grito ao balbucio, o bebê humano, em sua prematuridade, será um
ser de linguagem. A esse grito um Outro sempre responde com um
"Que queres?" 1 Nilo é somente o grito, mas o conjunto de sons que
formam esse primeiro concerto: barulhos, ruídos, palavras. Essa troca
de necessidades e satisfações cria uma dialética definida como
necessidade-demanda-desejo.

Considerado o grito como o primeiro apelo, podemos ir além da


comwucação que esse funda, para dizer que entre dois seres que falam
se estabelece uma intersubjetividade como condição de qualquer possível
entendimento. De modo que toda subjetivação inaugura uma significação
que deixa um resto. A voz é esse resto. Nos ocuparemos aqui da fun_ção
da voz como resto sem significação na constituição da fantasia feminina,
onde a voz da mãe, como bem supremo no sentido do primeiro Outr9,
instaura a relação de alienação.

Dessa maneira, não trataremos aqui do que a mulher fala, mas do


que ela ouve na forma fantasmática de uma voz, como resto
constitutivo de uma fantasia fundamental. Aí onde a alienação deixa
preso o desejo a uma insatisfação essencial na fonna de passividade
e de narcisismo, que somente será significativa a nível da lei, diante
da qual a mulher pennanecerá não-toda submetida.

Essa voz é o que escapa ao 'princípio do prazer' freudiano e


99
A·Mulhtr

representa a relação à Coisa, a um gozo encarnado no sentido em


que este não pode ser confundido com o prazer. O gozo está
justamente no 'prazer no despra.7_,er' e conotado de uma satisfação
que busca o reencontro doloroso com uma Coisa que faz perder o
equilíbrio homeostático.

Assim é necessário não confundir este prazer com o gozo que cria a
fixidez da fantasia, porque ele está na fórmula freudiana da fantasia,
sendo a moldura dessa satisfação paradoxal. A inércia fantasmática
propicia tal reencontro doloroso, de maneira que o gozo que lhe é
próprio situa-se 'mais além do princípio do prazer'. De onde se deduz
que o desejo articulado à demanda e à necessidade não pode ser
articulável senão ao nível ético, porque ao desaparecer a demanda,
ou o grito como a forma que lhe antecede, resta ainda o corte como
o que precisamente distingue a pulsão da função orgânica que a
habita. Isto se pode compreender se pensamos nas zonas erógenas e
na delimitação que delas faz a pulsão, demarcando aí a borda onde
se dá o metabolismo do gozo.

Temos aqui um corte favorecido por um traço da anatomia que


delimita uma margem ou uma borda, como, por exemplo, a margem
dos lábios, a cavidade das pálpebras ou o cometo das orelhas; esse
mesmo traço característico do corte aparece com não menos clareza
nos objetos que na teoria correspondem à pulsão. Objetos freudianos
da pulsão aos quais se podem somar os objetos lacanianos: o fonema,
o olhar, a voz e o nada. 1 A voz do silêncio pulsional participa do
traço comum a esses objetos, que consiste em não representar senão
parcialmente a função que os produz. Por outro lado, eles não têm
uma imagem especular que os represente, no sentido de serem objetos
que não comportam uma alteridade. Mas, paradoxalmente,
concentram o máximo valor de gozo. Por essa propriedade, a voz é
passível de ser o que se situa por baixo do sujeito da consciência,
sem que por isso se constitua em seu reverso. Porque aquele sujeito
100
Mirta Zbrun

que crê ter acesso a si mesmo, aquele que diz Eu em seu enunciado,
não diz na enunciação mais que seu objeto.

Um tal objeto inacessível no espelho - em nosso caso a voz - entra


na constituição da fantasia, onde a pulsão situada como tesouro dos
significantes, conserva sua estrutura ligada à diacronia significante.
Quando o sujeito da fantasia se desvanece na demanda, advém a
pulsão como corte, com sua caraterística de artificio gramatical.
Assim, considerar a voz como objeto é considerar a voz que obedece
à fantasia, quer dizer a 'voix acousmatique ', conceito cunhado por
Michel Chion em La Voix au Cinema para a voz que soa e da qual se
desprende um sentido. A voz que conduz à interpretação é como se
tivesse som, mas na realidade não tem. É uma voz sugerida, uma
voz sem significação como o quadro do pintor Edvard Munch - O
grito - pode ilustrar, voz que tem estatuto de objeto. Uma voz
impossível, desencamada originalmente, mas todo-poderosa. Uma
voz que não se exprime mas que provoca distorção na própia
natureza; um grito atravessado na garganta, como na pe·;:a de teatro
brasileiro Um grito parado no ar.

Esse grito silencioso mostra a vinculação que na fantasia o sujeito


tem com seu gozo. Indica que ele não quer se livrar do gozo em
beneficio do Outro do Simbólico, como o faz a voz que se insere na
metáfora paterna e que se liga à lei. A voz 'acousmastique 'entra na
fantasia como um objeto que vincula o sujeito a seu gozo, por ser
uma voz sem eco que, como tal, não pode entrar na comunicação.
Nesse sentido é que se pode acrescentar o nível do ouvido, "onde se
assinala, juntamente com os níveis oral, anal e do olhar, qual é o
estatuto do desejo e da retificação que lhe é própria".1

Então a questão é saber como esse objeto separado, sem referência ao


Outro do simbólico, pode interferir na economia libidinal do sujeito e
na estática da fantasia Em que momento essa voz que conhecemos
101
A' M11/htr

bem, se faz ouvir - "sob o pretexto que conhecemos seus dejetos, que
mostra suas folhas mortas nas vozes extraviadas da psicose, e seu caráter
parasitário sob as formas dos imperativos do supereu". 3

Esta metáfora da voz que mostra 'suas folhas mortas' nos fenômenos
alucinatórios, nos serve também para falar da particularidade da
constituição da fantasia na mulher e para aproximá-la da estrutura
paradigmática da psicose. Nesta estrutura, a foraclusão de um
significante primordial cria o modelo de toda estrutura da linguagem
como delirante, onde o enunciado não responde à enunciação. Na
mulher a não-inscrição do significante Falo conduz ao delírio de
não poder haver o conjunto das mulheres.

A fantasia feminina se converte na portadora dessa voz que ligará a


angústia ao desejo, de uma falta que, no caso da mulher, não pode
ser significantizada senão ao nível da feminilidade, após ou por causa
da maternidade. Ser mãe de uma criança obtura o vazio da falta e faz
deslizar o desejo feminino e ao mesmo tempo reenvia o sujeito a seu
estado de perda irreparável, enquanto a criatividade própria da
maternidade é também da ordem de uma perda originária. Para
comprovar isso basta que pensemos nos fenômenos de dilaceração
do corpo feminino no pós-parto. Há mulheres que atravessam esta
criatividade com o sentimento de perda, gerando os fenômenos da
chamada psicose puerperal.

Para medir a significação dessas fantasias de despedaçamento, é


suficiente compará-las ao:i efeitos que a angústia provoca no homem.
Nele, a angústia fica mais bem enlaçada ao fato de não poder alguma
coisa, como no mito bíblico em que do primeiro homem tiram uma
costela e, ao mesmo tempo, não lhe falta nenhuma. Por isso se pode
pensar que a angústia está mais presente na mulher, porque ela.não
tem acesso ao sentimento de completude senão no período de
gestação do filho, o que envolve uma época muito curta de sua vida
102
Mirta Zbrun

de mulher. Por isso ela ~stá, de alguma maneira, sempre


especialmente aberta à angústia. Como se vê também no mito da
maçã, na medida em que o lugar do desejo do outro na fantasia
feminina vem ao nível do amor. Ela deseja o desejo do homem, ao
ponto de, no seu gozo de mulher, a impotência do homem poder ser
muito bem recebida, justamente por comprovar nele o efeito de sua
falta. Por tais motivos, elas estão especialmente destinadas ao
masoquismo e a colocar sempre em jogo seu sentido irônico, numa
relação de ocultamento e em aparente afastamento do Outro. Este
masoquismo encobre a ironia desse ocultamento do gozo no Ü\,\trO e
confere ao masoquismo feminino um destino particular. Isso só se
compreende colocando em primeiro lugar "que o masoquismo
feminino é a fantasia masculina" 4 • Em segundo lugar, que essa
fantasia do homem resulta por procuração e em relação à estrutura
imaginária da mulher. Desse modo se pode dizer que no homem o
gozo se sustenta de algo que, para a mulher, é da ordem da angústia.
O desejo, por sua vez, não faz senão encobrir a própria angústia, na
medida em que a angústia se relaciona sempre com o desejo do Outro.

Assim no homem há sempre a impostura e na mulher a mascarada.


Nela a angústia é mais real. Do lado do homem, sua impostura deve
permitir não ser descoberto pela mulher - ele não .pode dar a ver para
a mulher-, enquanto que a mulher dá a ver para o homem, mostra o
que ela não é.

A voz como objeto, aquela que não tem significação, aquela sem
som, elide a casn·ação. A fantasia feminina é ainda constituída de
um outro objeto, que não é senão uma mancha, o olhar, cuja projeção
da imagem elide, fazendo como se a castração não existisse. Para
aproximar olhar e voz é necessário estabelecer um ponto de interseção
entre o ponto de angústia e o ponto do desejo, e afirmar que ambos
não coincidem. O desejo é sempre ilusório e a angústia nunca é sem
objeto, de maneira que a interseção é um lugar onde não há nunca
103
,< Mu/htr

uma certeza. Desejo e ponto de angústia estão numa relação última


com esses objetos enquanto ponto-zero, onde o visível está voltado
para o invísivel, onde parece que a angústia anula a castração. Há
uma identificação do objeto, a voz em nosso caso, com esse ponto-
zero onde o desejo e a angústia coincidem, ainda que não se
confundam. O desejo aí se resume a anular seu objeto real.

Neste ponto pode ser feita uma pergunta: onde pode ser franqueado o
beco sem saída do complexo de castração? A resposta estaria centrada
no ponto de angústia e do desejo, colocando o objeto voz como o objeto
que toma explicita essa mostração da angústia de castração.

É na voz, como objeto, que se pode avançar ainda na busca desse


beco sem saída da castração. O comentário de Lacan sobre o
shofar vai permitir materializar 'a ligação do desejo com a
angústia', ou seja, a relação dialética entre a angústia e o desejo
em tomo do objeto parcial. O artigo de Theodor Reik sobre o
ritual do shofar, citado por Lacan, analisa o rito que utiliza esse
instrumento, que produz um som como de trombetas e que se
repete três vezes durante esse ritual. 3 Neste vemos o caráter
particular do aparecimento de uma emoção produzida pelos sons
nos ouvintes. No artigo de Reik se pode descobrir as relações do
shofar com o bezerro de ouro de Moisés no deserto. 5 Ambos
contém o agalma, o enigma que chama à interpretação. Quando
o profeta conversa com Deus, barulhos e ruídos se deixam ouvir.
O povo poderá subir quando escutar o som do shofar, quer dizer
a Voz da Deus. Na subida ao monte, o profeta escuta 'trovoadas
e relâmpagos numa densa nuvem sobre a montanha'.

A experiência analítica consiste então em buscar os detalhes na


presença desse objeto voz na fantasia? Mas qual o detalhe a tomar
como 'o divino detalhe' na construção da fantasia feminina? A voz
seria este divino detalhe, resto sem sentido para além da significação

104
MinaZbrun

fáLica, gozo próprio da fantasia feminina. Esta voz do rito do shofar


é a de um Deus distante e todo-poderoso, um resto sem significação
que se deixa ouvir e que está aí para ser interpretado. Na construção
da fantasia é esta voz como resto que se constitui como objeto
exemplar da relação entre a angústia e o desejo, como saída para o
impasse da castração.

E na mulher, qual será essa voz que desperte o gozo-a-mais? Qual o


som dessa voz? Trata-se de uma voz que se apresenta em potência,
única, que fará surgir a relação ao Outro. A voz da fantasia feminina
pode ser pensada em primeiro lugar como a voz da mãe, voz que se
apresenta como objeto separado, causa de um mais-de-gozar ao
inscrever-se não na oposição interior-exterior, mas na referência a
um Outro, tesouro dos significantes, onde o significante mulher,
significante da ausência do falo, não faz sua escritura. 6

O que a voz traz de novo para a estrutura do desejo da mulher? Ela


traz urna nova relação do desejo com a angústia, forma diferente de
ocultamento da falta. É introduzida com sua particularidade de objeto
separado. Se a imagem especular oculta o fato da castração, esse é
reintroduzido pelo som, pela voz do pai, na figura do assassinato do
pai, e pela voz da mãe, primeiro Outro Absoluto do sujeito. Assim a
mulher pode ser considerada também - Lacan o diz - como uma das
faces de Deus. 7 Sua voz é doce no aconchego e feroz na obediênda
que exige. Um verdadeiro rugido que embala e nina Nesse ninar se
escuta ainda o assassinato do pai, que ressoa como um rugido, como
proibição impossível de transgredir.

A fantasia feminina se constitui assim de uma voz todo-poderosa


que vem para cobrir as necessidades e estabelecer a ordem, mas o
preço desse beneficio consiste em dizer onde à mulher pode gozar e
como deve regular seu desejo. É por essa voz que a insatisfação será
essencial a seu desejo. É nas funções do desejo, da angústia e do
105
objeto onde a natureza da castração originária - representada no mito
do assassinato do pai - se presentifica na forma da voz, que constituirá
a estrutura da fantasia feminina. Uma voz que completa a relação
dos objetos, ligando-os à angústia e remetendo-os à sucção oral.
Então, a mãe diz para sua filha o que pode ser feito dentro dos limites
da lei paterna. Diz por exemplo que ela não possuirá nunca seu pai,
seu objeto de amor. Dirá a ela que o homem que entrar na lei das
trocas tirará sua virginidade e que, enfim, o filho terá o nome do pai.

A clínica psicanalítica nos mostra isso nas análises de mulheres que


fizeram suas demandas sobre uma queixa em relação a sua
feminilidade, criaram wn sintoma em relação ao outro sexo e, enfim,
construíram sua fantasia sobre as múltiplas vozes do que significa
para uma mulher o longo caminho do narcicismo da criança
maravilhosa até o atravessamento de uma fantasia.

A clínica das mulheres nos mostra a pouca garantia que a fantasia


feminina fornece de que ela possa estar só, de que ela venha a ser
um ser cuja falta seja vivida nessa solidão. Estar só não segundo a
lei materna, mas ter alcançado a máxima garantia de sua fantasia.
Na solidão, ela fará do falo não um semblante, mas um objeto de seu
desejo, caindo na reivindicação histérica. Desse modo a primazia
do falo postulada na teoria freudiana vem a significar que o que não
existe é o significante da mulher, ou como diz o enunciado lacaniano:
'A Mulher não existe'. Esta foraclusão do significante mulher quer
diz.er que a mulher pode fazer seu delírio e que toda a espécie humana
está presa nele.

Estas considerações sobre a mulher e seu significante foraclufdo


levam a pensar que os quatro termos do grafo lacaniano, apresentado
em sua forma completa na Subversion du sujei et dialectique du
désir, significante, voz, gozo e castração, se ordenam segundo uma
lógica que lhe é própria. Na falha desse ordenamento se conjugam o
106
MirtaZbrun

gozo e a voz nas formas da estática da fantasia.

Na fantasia feminina esta conjugação é a que constitui sua inércia


dando ul!la aproximação entre o Outro do significante e o Outro do
gozo, viés pelo qual a mulher se aproxima da loucura e onde o gozo
se fixa na impossível mediação do falo, indo na direção de seu ser
de semblante.

NOTAS
1. LACAN, J. - "Subversion du sujet et dialectique du désir dans
l'inconscient freudien", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p.815.

2. Idem, Ibidem, p.817.

3. Idem, Seminário X: A angústia, inédito, (aula do dia 22/05/63 ).

4. Idem, Seminário X: A angústia, inédito, (aula do dia 29/05/63).

5. FREUD, S. - "Moisés e o Monoteísmo", Obras Completas,


Madrid, Ed. Lopez Ballesteros.

6. LACAN, J. - "Pour W1 Congres sur la sexualité féminine", Écrits,


Paris, Seuil, 1966, p. 732.

7. Idem, O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge


Zahar Editor, 1982.

107
Capítulo 3

Horsexe
De mãe para ftlha
Maria do Rosário do Rêgo Ba"os
fsicaNJlista, membro da Escola Brasileira de Psicanáll.fe. Membro do CEPPAC.

O que quer uma mulher? O que é um pai?

Estas duas questões, que Freud nos legou, se articulam de forma


bem particular para cada mulher, deixando-a sempre num impasse,
pois não há nenhum pai que responda pelo que quer uma mulher.
Cada mulher, na medida em que se submete à castração, encontra
no pai, na significação fálica que ele instaura corno princípio de
resposta ao desejo humano, uma forma de lidar com sua falta-a-ter.
Mas há algo na mulher, devido ao mistério de sua "feminilidade
corporal" 1, que escapa a essa significação, e é aí que o recurso ao pai
encontra seu ponto de impasse, e que poderíamos falar de complexo
de castração nas mulheres: quando elas encontram o limite do pai
em responder pelo seu desejo, e sobretudo pelo seu ser. É nesse
momento de decepção com o pai, que sobrevém para cada uma delas
o que Lacan chamou 'ameaça ou nostalgia da falta-a-ter'. É então,
paradoxalmente, que elas lançam mão do recurso identificatório com
eles. Freud chama esse recurso identificatório do édipo na mulher
de 'complexo de masculinidade'. Por mais bem sucedido que seja
esse recurso utilizado por elas, ele carrega consigo, de forma mais
ou menos evidente, a questão do que é urna mulher. O que elas
insistem em querer saber é o que é urna mulher para um homem,
além do que ela pode lhe oferecer enquanto falo. Elas o convocam a
responder pelo seu valor, para além da satisfação fálica que ele pode
obter com elas.
111
,f Mtdlrer

A 'Bela Açougueira', ao insistir em seu desejo insatisfeito, marca


bem seu compromisso com o que está para além do gozo fálico.
Dora, com seu sonho da caixa de jóias, que sua mãe quer salvar do
fogo, mostra seu interesse em saber o valor dessa caixa de jóias,
quando vazia2• Lacan, ao reinterpretar esse sonho de Dora3, afirma
que o desejo dela é de que a caixa fique vazia e não de que a jóia
venha preenchê-la, como pretendia Freud em sua interpretação. Com
isso, ela mantém sua posição subjetiva onde o gozo fálico é exclui do,
e sua questão sobre o que fica de fora desse gozo.
Ao mesmo tempo que urna mulher quer saber sobre o valor da caixa
de jóias vazia, isto a aterroriza, porque toca num ponto de opacidade
do desejo do homem, a saber, a posição que ela ocupa na fantasia
dele, e sobre a qual ele também não sabe responder. Este não saber
do homem sobre o lugar de urna mulher em sua fantasia, pode ser
atribuído por ela à sua incapacidade, ou à sua má vontade, o que
tennina sempre por protegê-la de verificar que se trata de um saber
impossível. Há mulheres que recorrem ao édipo do homem para
explicar o que do desejo deles permanece desconhecido. Elas fazem
isso porque não conseguem se dar conta de que uma mulher na vida
de wn homem já é em si um corte, que toma obsoleto seu amor pela
própria mãe, embora seja justamente nessa mudança de objeto que
eles incluem a mulher como seu sintoma. Somente quando uma
mulher aceita ser suporte desse ponto radical de não saber, que não
coincide totalmente com ela, pode então consentir em ser usada como
objeto de desejo e de gozo pelo homem que escolheu, e lhe servir de
sintoma. Poderá consentir em ser desejada sem saber porque, até
chegar a descobrir, que além de desejada, é amada. Este é um grande
desafio para cada mulher que inclui um homem em seu desejo.
Este impasse próprio do complexo de édipo na mulher é o que eu
gostaria de discutir, a partir da posição do pai na triangulação mãe-
criança-fa/o. Refiro-me à posição do pai como a fonna particular

112
Maria do Rosário do Rfgo Barros

pela qual cada homem, que é chamado a responder pela função de


pai, consegue ou não manter a hiância entre ele e o falo, determinando
a maneira particular pela qual cada mulher retorna inevitavelmente
à mãe para buscar uma identificação ou se queixar infinita e
indefinidamente de sua privação, responsabilizando-a por ela. Eu
falo aqui de retorno para lembrar o encontro primeiro com a mãe
que, ao mesmo tempo que oferece os objetos de satisfação, a partir
dos quais, no jogo de presença-ausência, a criança pode construir o
seu valor fálico, frustra a criança ao confrontá-la inevitavelmente
com a inexistência do objeto adequado. Esse desencontro inicial da
criança com a mãe é atribuído ao seu capricho, porque ela pode dar
ou privar o sujeito do objeto cobiçado. A descoberta da castração da
mãe, descoberta de que ela também é privada daquilo que não dá,
provoca uma decepção, que leva o sujeito a recorrer a um quarto
elemento que é o pai, que já estava lá, mas de forma velada. O
encontro com ele causará também fatalmente decepção, se ele cola
com esse objeto que se vai buscar nele.

Minha hipótese é de que o tipo de retomo à mãe depende da fonna


como cada mulher é decepcionada pelo pai. Ela retoma à mãe para
encontrar algo que lhe dê "subsistência". 4 Ser ou não "dcvastada" 5
nesse encontro parece depender, por um lado, de como no édipo de
cada meni~ se deu o encontro com um pai, com sua falta, e por
outro, da forma como ela encontrou em sua mãe uma resposta, ou
uma falta de resposta, quer dizer, uma resposta silenciosa, para a
questão do que deve ser uma mulher. Esse silêncio, difícil de
encontrar nas mães porque elas ficam excessivamente mobilizadas
pela falta fálica da filha - que reenvia necessariamente à sua própria
-, tem no entanto um valor inestimável no destino de uma mulher: o
de lhe permitir construir sua própria resposta, singular, e suportar a
ausência de um significante identificatório com a mãe. Nada que
sua mãe possa lhe oferecer resolverá sua falta-a-ser, ou evitará que

113
,,f Mulhtr

ela tenha que lidar com o que Lacan chamou de gozo suplementar.

Vejamos então, no caso da 'Jovem Homossexual', como ela se situa


no seu impasse edipiano, no momento em que se produz a quebra
do equilíbrio obtido por ela através da equivalência entre falo e
criança. É desta forma que ela se instala como mãe imaginária em
relação ao além que Lacan diz ser o pai, quando este intervém
enquanto função simbólica- aquele que pode dar o falo. O equilíbrio
al~ançado foi conseqilênciada resolução da decepção provocada pela
descoberta da castração da mãe, momento em que a menina entra no
édipo. Mas a Jovem Homossexual se encontra, segundo Lacan6, no
declínio do édipo, quando ela se decepciona, desta vez, com aquele
que lhe pode dar a criança, o pai enquanto incoruciente 1• É então
que se introduz o momento fatal, como o chama Lacan, quando o
pai intervém no real para dar wna criança à mãe, fazendo dessa
criança com a qual a jovem estava em relação imaginária, wna criança
real. Por que há decepção nesse momento? Porque ele dá à mãe o
que deveria dar a ela, ou porque ele sai da posição de dar o que não
tem, que mantinha a hiância entre pênis real e falo, entre pai e falo,
o que testemunhava sua falta, seu desejo? O pai portador do falo
não é igual ao falo. Essa decepção leva a Jovem Homossexual a ir
buscar na relação com a 'Dama' esse tipo de testemunho: dar o que
não se tem. Por não tê-lo, ela passa a ser, quando então pode oferecê-
lo sem ter. Através da Dama, ela interroga o desejo da mulher fora
da questão fálica. Ao passar em frente ao pai exibindo sua relação
com a Dama, procura seu reconhecimento do dar sem ter, do ser
sem ter, para reabrir a hiância entre ele e o falo de onde lhe poderia
ser transmitida a castração. Mas o que ela consegue é um olhar de
desaprovação do pai e uma quebra do laço com a Dama, o que a
impele a se jogar nos trilhos do trem - niederlwmmen -, deixar-se
cair. Fica vetada a ela, no caminho de retomo à mãe, a chance de
deduzir sua falta como mulher, wna falta que é de estrutura e que

114
Maria do Rostrio do R!go Banos

escapa ao falo como instrumento de satisfação. O deixar-se cair revela


talvez que nesse retomo o que ela encontrou foi a onipotência de
uma mãe preenchida, satw-ada pelo objeto que lhe teria sido dado
pelo marido, e não pelo contrário, uma mulher dividida pelo que
recebe dele. Ao deixar-se cair ela tenta reabrir, ao preço de sua própria
vida, a falta no Outro.

Pensemos agora no caso 'Dora'. Uma outra constelação familiar,


na qual um outro tipo de equilíbrio foi alcançado na relação entre
Dora e sçu pai, graças ao lugar ocupado pela Sra. K. e pelo Sr. K.,
como objetos de identificação e de investimento libidinal. O pai de
Dora.era impotente, e desde cedo ela percebeu isso. Para sustentá-lo
em sua função de pai doador do falo, ela se utiliza da Sra. K.,
introduzida em sua vida pelo seu pai. Nela estaria a causa do desejo
de seu pai. Mas, para que esse equilíbrio funcionasse, era necessário
que o Sr. K. desejasse Dora para além de sua mulher, assim como
ela mesma era desejada pelo seu pai para além de Sra. K. Este além
era indispensável na situação, porque indicava.um desejo para além
do falo, que garantia a sua dimensão de dom, ou seja, de falta. O pai
de Dora, apesar de impotente, lhe dava o que não tinha, o falo.
Entretanto, esse equilíbrio é quebrado justamente quando o Sr. K,
na famosa cena do lago, diz a Dora que sua muiher não lhe dava
nada, o que implicava, para Dora, que também ela não era nadá..
Intervenção catastrófica, pois ela faz aparecer como real um objeto
que era simbólico, objeto do dom do que não se tem. Dora perde a
referência do seu valor na falta desses homens, e a Sra. K., como
objeto de identificação para Dora, sai da posição de poder responder
à questão do que é uma mulher. O que se revela para Dora é sua
posição de puro e simples objeto. Isto fica insuportável para Dora e
ela entra numa relação de intensa reivindicação com seu pai, ficando
este em uma posição equivalente à do Outro matemo, qual seja, a de
detentor do objeto do qual priva a criança. Por que a fala do Sr. K.

115
A Mulhtr

teve esse efeito? Certamente porque ela anulou a dimensão necessária


do falo como objeto do dom, como semblante.

Dora não conseguiu nesse momento, nem posterionnente na análise


com Freud, deduzir a opacidade do desejo do Outro, a partir da qual
sua posição de objeto teria ficado suportável, e até possível de
satisfazê-la. Se não o consegue, é porque o pai, ao não manter a
hiância necessária entre ele próprio e o falo, reenvia Dora ao poder
devastador de sua mãe.

Aqui eu gostaria de lembrar o comentário que Lacan fez da peça de


Wedekind O Despertar da Primavera8: ele nos indica uma articulação
possível entre o pai real como "diferencial lógico", como "operador
estrutural''9, que no âmago mesmo da dialética edipiana faz valer o
impossível como causa de desejo, e a mulher como não toda. Ele diz
que o pai tem tantos nomes que nenhum lhe convém, senão o Nome
de Nome de Nome, ou seja, nenhum Nome próprio, mas o nome
como ex-sistência, como semblante. Entre esses Nomes ele coloca
o do 'Homem Mascarado', que no final da peça se apresenta como
uma alternativa possível para o adolescente, que estava à beira do
suicídio.
O Homem Mascarado usa urnà máscara de mulher. Lacan nos diz
que é essa máscara que ex-siste ao lugar vazio onde ele coloca A
mulher. Então, A mulher, como Outro absoluto do gozo, um mistério
insondável que atrai e captura, e ao mesmo tempo aterroriza, só existe
nos mitos, como, por exemplo, no de Medusa. Essa mulher não
,;oincide com nenhuma das mulheres que existem e que, quando são
mães e desejam seus filhos, nem tudo que elas desejam neles se
inscreve no falo. Entretanto, para que na mãe apareça uma mulher, é
preciso que o pai, do lugar em que é chamado a intervir, consinta em
se descolar do significante que representa, deixando aparecer sua
dimensão de semblante. O pai também não tem o falo que carrega
116
Maria do Rosário do Rego Barros

como marca de sua virilidade. Tanto não tem, que o busca na mulher
que tomou seu sintoma Quando essa mulher é uma mãe, ele permite,
com isso, que seus filhos se dêem conta da hiância intransponível
entre ela e eles.

No caso particular das meninas, quando elas retomam à mãe para


encontrar naquela que tem o mesmo corpo uma ancoragem para sua
identificação, torna-se mais que nunca necessário esse corte, que
permita a cada uma delas encontrar seu próprio caminho como
mulher. Caso contrário, no "segundo tempo do espelho" 1º, quando a
mãe não pode mais acreditar na equação criança = pênis, porque
sua filha, aparecendo como sexuada, revela sua castração e, numa
duplicação sem fim, a de sua própria mãe, a filha se apega a esse
corpo de mãe, numa espécie de fascínio por esse primeiro objeto de
amor. Esse fascínio, responsável pelo laço mãe e filha que parece
não desaparecer nunca, deixa inexplorável o que as separa, isto é, a
forma singular de cada uma de se relacionar com o simbólico, com
o falo e com o gozo que escapa a ele.

NOTAS

l. LACAN, J. - ''lntervention sur le transfert", Écrits, Paris, Seuil,


1966, p.220.

2. FREUD, S. - "Fragmento da análise de um caso de histeria",


Obras Completas, vol. VIL Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976,
p.61.

3. LACAN, J. - Le Séminaire, Livre XVII: L 'Envers de la


Psychanalyse, Paris, Seuil, 1991, p.11 O.

4. LACAN. J. - "L 'Étourdit", in: Scilicet n.4, Paris, Seuil, 1973,


p.21: "a este titulo a elocubração freudiana do complexo de édipo,
que aí coloca a mulher corno peixe dentro d'água, por ser a
117
,l Mulher

castração nela um dado de início, contrasta dolorosamente com


o fato da devastação que é para ela, para a maioria, a relação a
sua mãe, de onde ela parece bem esperar como mulher mais
subsistência que de seu pai, - o que não combina com ele sendo
segundo, nessa devastação".

5. Traduzo aqui o tenno ravage por devastação; utilizado por Lacan


para falar do efeito da relação da mulher com sua mãe em Sei/icei
n.4, Paris, Seuil, 1973, p.21.

6. LACAN, J. - Le Séminaire, Livre IV: La Relation d'Objet, Paris,


Seuil, 1994.

7. Idem, Ibidem, p.132.

8. LACAN, J. - "L'Éveil du printemps", in Ornicar? n.39, Paris,


Navarin, 1986, p.7.

9. LACAN, J. - Le Séminaire, Livre XVJJ: L 'Envers de la


Psychanalyse, op.cit., p.149.

1O. "Jouissance etdivision" in Scilicer n.6/7, Paris, Seuil, 1976, p.130.

118
"Não quero que ela seja como eu"
Maria Luisa Durei
Psicanalista. membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise.

"Desvia o.s olhos da mulher elegante,


Não fite.s com insistência uma beleza desconhecida
Muitos pereceram por causa da beleza feminina
e por causa dela inflama-se o fogo do desejo"
Eclesiástico

O que quer uma mulher? Freud diz que a psicanálise não responde a
essa questão, apontando assim o enigma que representa a alma
feminina. No entanto, ela não cessa de insistir, causando seu desejo,
a partir do desafio lançado pelas histéricas. Não cessa de causar
também o nosso, enquanto analistas, nesta incansável busca de querer
fazer falar aquilo que não se pode dizer.

Usando o mito como recurso, temos na origem do uni verso a dança


de uma mulher, surgida forte e nua do caos primordial. Talvez tenha
dançado uma eternidade, até tirar do caos o vento do norte, mas
como esse vento lhe causa frio, dança mais uma vez, e de seus passos
aparece Urano. Assim, pela sua dança, o mundo tem início, nos diz
o mito. E é também, pela exibição de uma mulher, com suas
reviravoltas, envolvida em um turbilhão, que a psicanálise tem início.

E se inicia a análise de uma paciente que chamarei de Sonia. Ela me


procura pedindo primeiramente análise para sua filha de sete anos,
mostrando intensa preocupação com ela. Preocupação baseada em
crises de asma que coincidem com brigas do casal e principalmente

119
/f Mulh~r

no que toca a relação dessa criança com o pai que, segW1do a mãe.
repelia a filha constantemente, sendo definido por estas palavras:
"( ... ) é um homem rude, com pouco contato fisico e às vezes
violento". Essas inquietações não se manifestam em relação ao filha,
repetindo várias vezes esta frase: "para ela eu quero o melhor, não
quero que seja como eu".

Sonia começa a relatar sua história: "sou de uma origem muito


humilde, da favela mesmo. Olha, não é para todo mundo que falo
isto. Minto sempre sobre minha origem, tenho vergonha dos meus
pais. nasci na favela da Maré. Por que você me faz lembrar destas
coisas? Não gosto de pensar nisto ... você sabe por que a favela tem
o nome de favela da Maré? Porque quando chove, aquelas coisas
horríveis, toda aquela merda, aparece ... Ah! Que nojo ... Nunca quis
morar naquele lugar, sempre tive horror. Meu contato com o sexo
começou muito cedo. Aos catorze anos, engravidei do meu
namoradinho, tive o bebê, mas ele morreu. Hoje eu sei que foi de
inanição, mas na época não sabia ... Eu não sabia cuidar dele, me
virar com as mamadeiras. Você não pode imaginar, a pobreza era
muita ... ".

Na fala de Sonia se misturam constantemente expressões de nojo,


indiferença e resolução. Assinalando o término das entrevistas,
suspira e diz: "ah, chega, depois eu continuo, por hoje basta".
"Meu pai nunca foi de dar duro", continua," a pobreza era muita
mesmo. Às vezes arrumava biscates mas também ficava em casa,
sem trabalhar. Minha mãe era quem lutava, lavando roupa para
fora. Ela tinha muito medo que ele violentasse as filhas e repetia:
'olha, cuidado! Se vocês deixarem algum homem se aproximar,
ele vai enfiar o pau pela frente e vai sair por trás', ameaçando
também o meu pai com estas palavras: 'eu enfio a faca na sua
barriga e mato você".

120
Maria Luisa Durei

"Sempre tive muitos homens. Transei e transo com homens e


mulheres. E meu marido sabe, tanto é que, nas brigas, me joga tudo
na cara, que sabe que eu o traio e ainda me diz: 'veja se quando você
sair o homem paga. Pelo menos isto!"

Sonia, em seu discurso, aponta para uma insatisfação sempre


crescente. As inúmeras relações sexuais, mantidas com diferentes
parceiros para "tentar descobrir alguma coisa diferente" são um
exemplo disso. "Saio destas relações enjoada porque já sei tudo o
que vai acontecer. Não muda". O que não muda? O que busca Sonia?

Se a insatisfação está no princípio do desejo já que é necessária à


sua manutenção, a histérica faz desta insatisfação uma condição
absoluta, fazendo com que o Outro suporte este peso. Ela espera que
o Outro deseje, mas com a condição de conduzi-lo e inspirá-lo -
"ela reina e ele não governa"'-, recusando assim o desvendar de sua
própria castração e a irrupção de sua angústia. Angústia que é o
preço a ser pago para aceder a uma verdade: se o Outro deseja, este
desejo é para o sujeito enigma radical.

Sonia nestas entrevistas, vai abrindo a boca e suas palavras deixam


assim sair o odor fétido das favelas e toda a sua náusea. Freud, em
seu sonho, faz Inna abrir a boca descobrindo uma via de acesso à
feminilidade. Comentando este sonho, Lacan nos diz em seu
seminário sobre o Eu: "há ali uma horrível descoberta, a da carne
que nunca se vê, o fundo das coisas, o avesso da face, do rosto, os
secretados por excelência, a carne de onde tudo sai, no mais profundo
mesmo do mistério, a carne no que ela tem de sofredor, no que ela é
informe, no que sua própria forma, por si mesma, é alguma coisa
que provoca angústia, identificação de angústia, última revelação
do 'tu és isso"2•

'Tu és uma mulher', significa então o confronto com o horror que

121
inspira a descoberta do feminino, na medida em que alguma coisa
da feminilidade permanece absolutamente fora da palavra.

Abrir a boca é se defrontar com o horror causado pela visão, por


exemplo, de sua mãe e irmãs, estas mulheres sem dentes: "aí, quando
alguém pergunta, eu digo que se trata de minha empregada".

A partir destas entrevistas, algo se tomava claro para mim: a demanda


de análise não era dirigida para sua filha, com quem se identifica
nos maus tratos e na precocidade sexual.

Em um momento que considero uma virada para o pedido de uma


análise, Sonia chega muito deprimida, com a seguinte fala: "você
tem que me ajudar, não posso mais continuar a fazer isto com meus
filhos. Fico expondo-os ao perigo".

Intervenho, indagando a que perigo ela se referia: "Estava em S.


com as crianças, comecei a beber e quando me dei conta estava no
apartamento com um homem, não sei se transei com ele. Será que
transei?" Interrompe e me olha como se buscasse uma confirmação
através da pergunta, na verdade, sobre o que vem a ser a relação
sexual. Continua: "acho que não. Ele ficou me acusando de haver
roubado sua pulseira de ouro. Acabei indo embora e quando fui me
encontrar com as crianças já era noite, eles estavam sozinhos, na
piscina e morrendo de frio. Poderia ter acontecido alguma coisa com
eles. No dia seguinte, encontrei a pulseira. - (pausa) - Acho que sou
eu quem precisa vir".

O que se evidenciava neste relato então era da ordem de um não


saber, de uma falha que se traduzia por um pedido. "Transei ou não
transei?" Ao se apossar da pulseira de ouro de seu parceiro, penso
que Sonia na verdade buscava um adorno fálico para revestir seu
corpo, sentido como um corpo morto. Sabemos que, do corpo
feminino, alguma coisa é deixada à morte, ao mutismo -
principalmente aquilo que concerne seu sexo, na medida em que ele
122
Maria Luísa Durct

se oporia ao falo que, este sim, é fundamentalmente falante.

O perigo ao qual Sonia se referia era exatamente o horror causado


pelo não reconhecível, o Outro sexo, e a própria morte - ela que,
também se negando ao discW'So, quebra a espada da palavra.

Ela continua expondo o nojo que sempre se segue a todas as relações


mantidas com homens e mulheres, relatando um sonho que teria lhe
provocado muita angústia: "no outro dia tive um sonho terrível.
Depois de uma destas saídas, sonhei que minha casa pegava fogo e
estava num inferno. Só que-o inferno era muito colorido. Podia ver
meus filhos mas não tocá-los, o que me trazia um grande pavor".

Não pude deixar de estabelecer uma ligação com o primeiro sonho


de Dora que aqui transcrevo: "Uma casa estava em chamas, meu
pai encontrava-se de pé ao lado da minha cama e me despertou.
Vesti-me rapidam~nte, mas papai disse: recuso-me a deixar que eu
e meus dois filhos sejamos queimados por causa de sua caixa de
jóias. Descemos apressadamente as escadas e logo que me encontrei
fora da casa despertei" 3 .

Não pretendo aqui me deter na análise da estrutura deste sonh~,


mas citar um comentário de Freud em sua análise do mesmo: "não
pode haver fumaça sem fogo" e em duas citações em cartas a Fliess:
"a chave da histeria se encontra realmente incluída no sonho" (carta
de 03/01/1899) e "não é apenas o sonho que é uma realiz.ação do
desejo, mas também o ataque histérico". 4

Uma das vertentes deste sonho aponta para um inferno, mas não se
trata de um inferno em chamas, e sim de um inferno colorido. A cor
sugere o olhar. Ela associa o colorido à visão do sangue expelido
por sua mãe quando tossia. Ela sofria de tubercúlose.

A mãe é revestida de um valor fálico - tem o trabalho e a faca - e o


123
A Mulher

pai impotente: "enquanto ela ia à luta ele era um descansado; ficava


lá deitado e me recordo que quando eu manifestava desejo de
comemorar meu aniversário, ainda dizia: 'comemorar para quê? Se
tem saúde e comida, está bom".

Quando sua mãe aponta para o fato de que o pai pode violentá-la, na
verdade faz wna enunciação: "eu não sou nada para ele", tomando-o
sedutor e devorador. No caso Dora, lembremo-nos da cena do lago
quando o Sr. K. diz: "minha mulher não é nada para mim". Lacan, no
Seminário 4, nos aponta que"( ... ) ele não diz que sua mulher nada é
para ele, e sim que, pelo lado de sua mulher, não há nada"'.

A sua relação com o corpo é constante motivo de queixa: "meu


marido tirou meu retrato e colou na geladeira. Meu Deus, como estou
gorda e disfonne". Sentir-se como um lixo, manter o corpo disforme
parece ser paradoxalmente mais seguro do que se defrontar com o
inapreensível do feminino.

Ao longo das entrevistas, trazendo como um tema sempre presente


o fato de se deitar, diz: "um dia sei que vou, mas ainda não tenho
coragem ... ".

Coragem que lhe falta, segundo suas próprias palavras para continuar
a análise, alegando que "antes não se sentia triste assim". Queixa-se
de depressão, afirmando: "há quinze anos, não há um dia que não
ouço a palavra puta. Não é possível mais. Tenho que descobrir, o
que vem a ser a mulher... ". Descoberta que a leva a wn confronto: o
furo enigmático, a falta de significante.

Além do caso aqui apresentado, alguns outros fragmentos clínicos


de sujeitos do sexo feminino confirmam isso: "sempre me senti
atraída por pessoas como lideres estudantis, daquela época de 1968,
calabouços ... mas sempre fiquei escondida, nunca coloquei meu

124
Maria Luisa Durei

nome em nada". "Tenho pavor de ser enterrada como indigente".

Então, neste corpo que somos, alguma coisa permanece


inapropriável: aquilo que nos faz sexuadas. Dizendo de outra forma,
não há paz com a carne.

NOTAS
1- LACAN, J. - O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.

2- Idem, O Seminário. livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica


da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

3- FREUD, S. - "Um caso de Histeria", Obras Completas, vol.VII,


Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969.

4- Idem, "Extratos de documentos enviados à Fliess", Obras


Completas. vol.I, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969.

5- LACAN, J- O Seminário, livro 4: a relação de objeto, Rio de


Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994.

125
Capítulo 4

Loucas, mas não


todas
"Nasci nua de minha mãe" 1
Graça Pamplona
Psicanalista. membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

"Bom dia, Francisca" - cumprimenta-a o psiquiatra antes de exarninâ-


la na enfermaria, na manhã seguinte à sua internação. - "Bom dia, o
sol nasce. Bom dia, o sol nasce ... ".

Perguntas sem resposta, respostas lacônicas, repetitivas e sem nexo.


"Qual o motivo de sua internação?" Ininterruptamente: "O sol nasce,
o sol nasce ... ".

Francisca tinha dezoito anos. Chegara ao setor de emergências


psiquiátricas trazida por amigos da igreja evangélica por ela
freqüentada, que se chamam entre si, irmãos de fé. Francisca despira-
se na garagem do prédio de sua ex-patroa, na frente do porteiro e do
garagista, repetindo tal gesto, no mesmo dia, diante de todos os
irmãos de fé, na igreja. Tinha insônia e recusava alimentação há
alguns dias. Andava automaticamente para um lado e para o outro,
os olhos estáticos, arregalados, friccionava as palmas das mãos como
em prece, repetia com insistência frases desconexas, de cunho
religioso. Alternava esse comportamento com momentos em que
permanecia esticada no leito, rígida, mãos cruzadas sobre o peito,
olhos cerrados, imóvel.

No Setor de Emergências foi medicada com Haldol e Fenergan. Na


enfermaria, o psiquiatra da equipe suspendeu, de imediato, a
medicação, para melhor observação do quadro. Havia recomendação
expressa para que não fizesse uso de neurolépticos. O exame
129
,<Mulher

neurológico e o eletroencefalograma revelaram-se sem


anormalidades.

Atendi Francisca, pela primeira vez, no seu terceiro dia de


hospitalização. Encontrei-a esticada no leito, olhos cerrados, imóvel,
as mãos cruzadas sobre o peito. Chamei-a. Abriu os olhos, mantendo-
os estáticos, arregalados. Apresentei-me dizendo-lhe o meu nome:
"Graça" e minha função na equipe: "psicóloga". De forma
esteriotipada, esfregando as mãos em prece, ela repete sem parar:
"Graça, amém. Graça, amém". Perguntei-lhe: "o que está te
acontecendo?"- "Nosso Senhor Jesus Cristo, amém. Nosso Senhor
Jesus Cristo, amém". Indaguei: "por que tahto amém?" -
"Congregação Cristã do Brasil, três vezes Santo ... ". Nesse momento,
tornou-se inquieta, rígida, sentou-se e deitou-se algumas vezes
automaticamente, repetindo a frase. Comentei o quanto ficara
inquieta, de novo indaguei sobre o que estava acontecendo que a
deixava assim, nesse estado. Ela retrucou, esfregando as mãos: "Jesus
Cristo salva! Jesus Cristo salva!". Repeti sua frase em indagação:
''Jesus Cristo salva?". Ela repetia a frase sem parar, friccionando as
mãos, mais excitada. Insisti: "está bem. Jesus Cristo salva. Mas do
que Jesus Cristo salva?". Francisca parou de falar, mas voltou a deitar
e sentar ininterruptamente. Encerrei a entrevista nesse momento,
dizendo-lhe que eu voltaria no dia seguinte pela manhã para atendê-
la. Despedi-me, dizendo-lhe: "até amanhã, Francisca". Nesse
momento, ela tem um comportamento absolutamente diferente do
quadro apresentado até então: vira-se para mim, olha-me pela
primeira vez, ajeita os cabelos e diz: "tchau Graça, até amanhã". E
não repete a frase. Saindo, observo que ela se deita de lado, os joelhos
dobrados, e fecha os olhos.

No dia seguinte, soube que Francisca levantara-se, lanchara, pedira


para tomar banho e dormira toda a noite.
130
Graça Pi1111plo1111

Encontrei-a no pátio deitada no chão, abraçada a um paciente, homem


alto, de compleição forte. Beijavam-se e trocavam carícias. Chamei-
ª· Francisca olhou-me e parecia não me reconhecer. Identifiquei-
me. Ela levantou-se, sorriu ajeitando os cabelos e me disse: "Graça,
não me lembro do seu rosto, mas lembro-me de seu nome e da sua
voz. Eu fiquei repetindo seu nome o tempo todo ontem, quando você
foi me ver, não foi?"

Nessa entrevista, Francisca discorreu fluentemente sobre a crise que


motivou a internação. Tecia comentários sobre a estranheza do que
se passara consigo: "o que aconteceu é que eu queria morrer para
libertar o mundo da malícia. Fui visitar minha ex-patroa. Ela me dá
conselhos, mas é judia. Na minha Congregação dizem que os judeus
são os maiores inimigos dos cristãos. Cheguei no elevador e me vi
no espelho. Eu estava sozinha. Tudo começou com o espelho rachado.
Não sei o que foi. Foi muito esquisito. Eu me vi no espelho e resolvi
tirar a roupa e fiquei nua. Eujá tinha me visto nua antes, mas dessa
vez foi diferente; de.ssa vez me vi como Eva, mas não era Eva que
eu via, não. Era eu que era Eva". Insisto para que esclarecesse melhor
sobre esse ponto. "não sei - (sorri) -, não era Eva que eu via. Era eu
como se eu fosse Eva, nua com os cabelos compridos, caindo na
frente. Eu pensei que, sendo Eva, tinha o poder de ficar nua e que
todas as pessoas passariam a andar nuas e isso seria normal...".
Indago: "isso o quê?" - "Isso, das pessoas verem o corpo, tocarem o
corpo (faz gestos se acariciando). Vesti minha roupa e fui até a
garagem. Lá, fiquei nua onde tinha homens. Quando tirei a roupa,
pensei: eu nasci nua da barriga de minha mãe e vou voltar nua para
a barriga dela. Isso é morrer, não é, Graça? Na minha terra a gente
vivia livre, aqui nessa cidade tudo é prisão. Namoro não é proibido
na Igreja, mas quando um homem está interessado numa moça, não
pode tocar o corpo dela. Tem que buscar a palavra". Pergunto o que
é buscar a palavra. - ·'Tem que ir lá no culto, na frente de todos e

131
~Mullttr

apenas falar que gosta dela na palavra de Deus. Antes de ficar nua
na Igreja, eu estava pensando em Sansão. Ele era um homem forte,
grande. As mulheres gostavam dele. Ele amava e protegia. Dalila
era a rainha. Mas houve uma traição entre Dalila e Sansão".

Em associação, diz que, após se ver no espelho como Eva e o episódio


da Igreja, foi dormir na casa de wna irmã de fé. Deitou-se na mesma
cama que a filha de sua amiga. Entretanto, não adormecia: - "eu
tinha sensações estranhas no meu corpo, parecia elétrico, quente.
Quando vi, estava de mãos dadas com a moça. Subia um calor pelo
meu corpo. Ela dormia, sua unha estava cravada na minha testa.
Senti minha testa sendo serrada. Pensei que minha cabeça estava
sendo serrada por Deus. Ele ia me penetrar. Eu era a Virgem Maria,
ia nascer outro Jesus. Deus serrava a minha cabeça para me penetrar
e colocar o bebê na minha barriga". Nesse momento de seu relato,
Francisca ri muito e comenta: "que maluquice, eu estava doida. Mas
é claro que o bebê ia nascer pela xoxota!" Acrescenta: ''depois senti
meu nariz crescendo, inchando, awnentando de tamanho, minha
barriga crescendo, crescendo, meu corpo todo. Senti que ia explodir.
Olhei pela janela e vi que o sol estava nascendo. Senti wn alívio e
pensei: o sol nasce".

O que acontecera antes com Francisca? Como fora sua vida até então?
Francisca trabalhava como empregada doméstica desde os doze anos.
Era a quinta filha entre onze irmãos; nascera em wna região muito
pobre. Seu pai, desde que era bem pequena, vinha para o Rio de
Janeiro trabalhar. Retomava quando conseguia juntar algum dinheiro.
A cada vez, deixava grávida sua mulher.

Francisca, aos doze anos, resolve acompanhar seu pai quando este,
mais uma vez, veio para o Rio de Janeiro. Muito breve, ele retomou
para o vilarejo. Francisca ficou, não regressando mais a sua casa.
Aos treze anos, após uma tentativa de sedução de um patrão,
132
Graça Pamplona

ingressou em uma congregação evangélica caracterizada por normas


extremamente rigorosas e proibitivas.

Após a entrevista que relatei, Francisca teve sessões diárias comigo


durante um breve período de internação, prosseguindo em tratamento
ambulatorial. Ainda hospitalizada, passou a alimentar-se
normalmente, apresentando, às vezes, insônia inicial e vômitos
ocasionais. Conversava com todos, trocava carícias com um paciente
da enfermaria masculina. Quando perguntavam seu nome, às vezes
dizia Francisca, em outras Lúcia, seu terceiro pré-nome. Comigo,
falava de seu tempo de criança: a vida livre do lugar, os passeios
com a mãe à igreja da mesma congregação a que se filiara no Rio de
Janeiro, as brincadeiras com os irmãos - "eu brincava até de namorar.
Mas eu era criança. Minha irmã é que namorava de verdade. Ela
ficava se agarrando com o namorado no quintal, atrás da árvore,
pelos matos".
Na sessão seguinte narra um sonho: "eu estava no quintal brincando
com minha irmã mais velha. Corríamos juntas. De repente, ela se
transformou numa gata, saiu correndo para o mato. Fui atrás e vi
que ela estava com muitos gatos; vinham todos para cima dela. Voltei
e encontrei o meu irmão. Pedi-lhe que me ajudasse a fazer os deveres
do colégio, deveres que eu não sabia. Ele ia ajudar, mas ficou alisanqo
minhas coxas, passando a mão em mim".
Certa vez, ao início de uma sessão no ambulatório, não sabia o que
dizer. Em silêncio, percorria com os olhos as paredes da sala, passava
a mão pelos cabelos, pelo peito, pelo corpo. De súbito, fala excitada:
"antes de eu me olhar no espelho como Eva, uma irmã de fé me
falou que Pedro, que é um irmão de fé, me amava e queria buscar a
palavra e dizer na palavra de Deus que queria casar comigo. A irmã
insistia que eu devia casar com ele, essa era a palavra de Deus. Eu
não gosto dele como homem, gosto como irmão. Casar com ele não
é a minha palavra. Eu quero casar sim, mas com um homem que eu
133
,r Mulhtr

goste como homem". Assinalo: "casar com Pedro não era sua
palavra?" Ela continua: "quando vim trabalhar no Rio, o patrão queria
me namorar. Uma noite, eu já estava deitada, ele foi no meu quarto,
co_meçou a me fazer carinho. Eu também fiz nele. Ele queria ter
relação sexual comigo, mas eu não queria. Ele me acariciava e eu
dizia: não, não faça isso, não faça isso, eu gosto de você como um
pai. Mas ele insistia, insistia. Aí eu pensei que só ficando parada
como se fosse morta, não fazendo mais nada nele, ele ia parar. Fiquei
toda parada, pensando: meu Deus me salve, meu Deus me salve, até
que ele foi embora". Digo-lhe: "Jesus Cristo salva? Casar com Pedro,
irmão defé, não era sua palavra!" Francisca conclui: "é preciso buscar
a palavra de outro modo. Eu não tinha pensado isso antes. Mas aqui,
com você, eu encontro uma outra palavra".

Algum tempo depois, sua mãe, avisada de sua internação, veio ao


Rio de Janeiro. Pediu urna entrevista. Preocupada, pensava que a
filha enlouquecera.

Sucintamente disse-lhe o que se passara e exemplifiquei com o gesto


de friccionar as mãos. A mãe riu, dizendo: "ora, eu quando fico
nervosa esfrego as mãos assim". Francisca, presente, retrucou: "eu
estava muito nervosa naquele dia".
Pode-se pensar que a presença de um analista veio aqui instalar a
dialética na experiência, questão prevalente quanto à natureza da
transferência. A psicanálise é urna experiência dialética, mas nem
todo sujeito dialetiz.a sllA fala em discurso. Da certeza delirante à
crença que equivoca, demarca-se a estrutura, dirige-se a cura.
O estabelecimento do diagnóstico diferencial entre neurose e psicose
impõe-se, desde o início, para o analista. Função aas entrevistas
preliminares, determina a orientação a ser dada na condução do
tratamento, apontando o lugar para o analista no manejo da
transferência. A função diagnóstica implica a questão: como está
134
Graça Pamplona

esse sujeito em relação às leis da linguagem? De onde responde, no


registro simbólico?

A Bejahung primordial prévia a qualquer simbolização,


estabelecendo a primeira dicotomia significante, antecede e ao
mesmo tempo condiciona para o sujeito a instalação da ordem
simbólica. Instalado o primeiro par de significantes Bejahung-
Verneinung, o sujeito já se encontra dividido. Nessa divisão,
assenta-se a crença correlativa da não-crença, própria ao
neurótico. Não hã certeza, não há garantia. O neurótico aposta
no Outro porque pode perder.

No jogo desse par de oposição (Sl-Sl), o significante vem, para


o neurótico, como recurso de que dispõe e, no desdobramento da
cadeia simbólica, permite-lhe decifrar aquilo que, como retorno,
desvela o recalque.

No Rascunho K 2, Freud demonstra que a retirada da crença na auto-


recriminação primária confere à paranóia o sintoma primário de
desconfiança em relação ao Outro. Desacreditado, o Outro retorna
no Real através das vozes alucinadas que insultam, comentam. O
gozo não barrado retorna no corpo nos fenômenos de
despedaçamento. O Outro toma-se exterior, surge a certeza radical
experimentada pelo psicótico.

À Bejahung primordial. que sustenta a dialetização significante na


neurose, Lacan vai opor a Verwerfung3. Na psicose, a zerificação do
significante do Nome-do-Pai impõe a autonomia da cadeia
significante que fica assim desarticulada. Os significantes se
congelam e ganham sentido particular.

No diagnóstico diferencial entre histeria ~ psicose, fenômenos


alucinatórios, distúrbios de linguagem, fenômenos corporais e idéias
delirantes não podem ser tomados como apanágio exclusivo da
135
,<Mulllu

estrutura psicótica, como tão bem o atestam as histéricas, desde


Charcot. É no registro simbólico que será buscado o diagnóstico.
Diante de Francisca, o florido espetacular dos fenômenos
apresentados poderia conduzir ao diagnóstico de psicose, como
atestam vários registros de seu prontuário: "episódio
esquizofreniforme agudo", "síndrome catatônica", "psicose reativa
tipo agitado", que levavam a equipe médica à decisão de iniciar urna
série de eletrochoques.

Jacques-Alain Miller' diz que a clínica psicanalítica é a clínica das


perguntas. Certamente, é no dito do sujeito e como este se localiza
em seu dizer, que o psicanalista se orienta em relação ao diagnóstico
e à condução da cura. Seja como Sujeito suposto Saber - em cuja
presença o neurótico vem decifrar seus sintomas no desfilar da cadeia
significante -, ou como testemunha, lugar para o qual nos convoca
Lacan frente ao psicótico, que tenta a cifra impossível em busca da
estabilização no relato de seu delírio.

À frase "Jesus Cristo salva", o analista opõe a pergunta "Jesus Cristo


salva?", introduzindo a possibilidade de dialetização do discur~o. A
uma pergunta cabem duas respostas: sim I não. Se estamos na ordem
do discurso de um sujeito dividido pelo significante fáJico, instala-
se a dúvida - neurose. Francisca, histérica, dialetiza sua frase no
discurso, muda de posição, instalando-se na presença do analista
para o deciframento de seus sintomas através da cadeia significante.
Articula, no relato da cena com o pai-patrão, aquilo que, da ordem
do encontro traumático com o sexo, aponta o desejo incestuoso
recalcado e ameaçado de se consumar no pedido de casamento do
irmão de fé. "Meu Deus, me salve!", idêntico na diferença da frase
"Jesus Cristo salva", é o mesmo apelo ao Deus - garantia da Lei
simbólica que interdita.

Francisca traz a marca da Bejahung primitiva na negação de sua


136
Graça Pamplona

frase em resposta à interpretação do analista: "eu não tinha pensado


isso antes". Ela encontra uma "outra palavra" para seu sintoma.
Considere-se que o sintoma motor - ficar deitada, rígida, olhos
cerrados, imóvel, com as mãos cruzadas sobre o peito - traduzia a
sentença "fiquei toda parada como se fosse morta".

A frase inicial "o sol nasce", tomada pelo psiquiatra como para-
resposta, era entretanto a resposta própria à pergunta sobre o motivo
da internação: "O sol nasce" - alívio que o significante traz, barrando
o gozo que ameaçava invadi-la. A fricção das mãos, nada mais que
um traço de identificação à mãe. Traço que marca o nervosismo
mas que não responde à questão d' A Mulher.

Francisca, diante do espelho, interroga /Ã Mulher. Diante do espelho


rachado que fraciona a imagem, a questão histérica: o que é uma
mulher?

A questão histérica é uma pergunta que se dirige ao saber. Saber


sobre o sexo. Saber que o sexo é rachado, furado, não-todo.

Francisca, rachada em sua imagem, se despersonaliza. Pedro,


irmão de fé, é um homem. Um homem que a deseja como mulher.
A pergunta "o que é uma mulher?" desdobra-se em "o que sou,
como mulher, no desejo de um homem?". Objeto de desejo 1
Francisca não sabe mais quem é: sou Eva? Dalila? A Virgem
Maria? A Mãe Imaculada que engravida pela cabeça e pare pela
xoxota? Francisca ou Lúcia? Como sujeito, anuncia seu desejo:
"eu quero casar sim, mas com um homem que eu goste como
homem" - ambigUidade que aponta para o fato de que é como
homem que uma mulher pode desejar.

Seu sonho fala do desejo: gata no cio deseja o desejo dos gatos.
Mas, não fala da questão que, vislumbrada no espelho, lançara-a na
crise que emulava o surto psicótico. Nua, surge a pcrgwlta: o que a
137
mulher mascara sob o véu? "Eu nasci nua da barriga de minha mãe
e vou voltar nua para a barriga dela. Isso é morrer, não é?"

Na falta de um significante que a designe, wn dos nomes d' A Mulher


pode ser A Morte.

NOTAS
1. Trabalho realizado a partir de caso atendido no Instituto Philippe
Pinel, Rio de Janeiro.
2. FREUD, S. - "Rascunho K", in: Correspondência Completa de
Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, Rio de Janeiro, Imago, 1986.

3. LACAN, J. - O Seminário, livro 3: as psicoses, Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 1988.

4. MILLER, J-A. - "A entrada em análise", in: Falo n.2, Salvador,


Ed. Fator, jan/jun 1988.

138
Quando a máscara cai: a devastação
Elizabeth da Rocha Miranda
Psicanalista, membro aderente da &cola Brasileira de Psicanálise.

Em Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre


os sexos, de 192 5, Freud nos fala da relação da menina com seu pai,
que norteava o Édipo feminino, como uma transferência de uma
relação inicial à mãe. Nessa data Freud introduz a noção de uma
pré-história do Complexo de Édipo feminino. Mais tarde nos diz
que mesmo quando uma mulher escolhe seu parceiro nos moldes do
pai, repete com ele a relação que tinha com sua mãe.
Todo bebê estaria submetido à experiência de sedução primária. A
mãe é esse primeiro Outro primordial a quem a criança está entregue.
Ela está entregue passivamente ao desejo do Outro que a alimenta,
lava, troca, acaricia e a quem a criança fornece um gozo, um gozo
que ela não sabe ser sexual e que dela se apodera nesse primeiro
vínculo. Essa coisa-gozo se institui por estar perdida, dado que se
encontra encoberta pela ordem simbólica da linguagem e da fala.
Sob o golpe do significante esse gozo se perde, mas algo aí resta.
Esse resto Lacan o condensará no objeto a, do qual fará causa de
desejo.

Quanto a esse ponto de falta é o significante fálico que vem dar wna
significação sexual onde reina o fora do sentido do gozo.
No texto La signi.ficación dei Falo de 1958 sobre a sexualidade
feminina, Lacan coloca a relação entre os sexos como o que gira em
tomo do ter ou ser o falo.
139
AMulha

O falo enquanto significante da falta, do desejo, se inscreve no Outro


a partir da operação da metáfora paterna. Nessa operação o Nome-
do-Pai deve substituir o desejo da mãe. Mas o sujeito não tem acesso
ao que ele deve reconhecer como desejo do Outro, já que o falo no
Outro desempenha seu papel velado.

Inicialmente a criança imagina que a mãe tem o falo, mas a mãe não
o tem pois ela também está submetida à função do significante.

A partir do reconhecimento da castração materna, essa relação com


falo vai desempenhar um papel para o homem e para a mulher.

Ainda nesse texto, Lacan nos diz que "o significante fálico tem o
efeito de dar realidade ao sujeito nesse significante", ou seja, ele
pode se nomear a partir daí. É a partir da dialética dos desejos (da
mãe e do pai), que o sujeito pode ser brindado com o significante
fálico, mas Lacan continua dizendo "que por outro lado ele irrealiza
as relações entre os sexos"', pois do que se trata é de um 'parecer', é
de fazer semblante.

Já que os seres falantes não são seres naturais, desde que não são
seres da necessidade e sim do desejo, não podem ser homens e
mulheres no sentido instintivo, e a ambos os sexos, o que o resta é
'parecer'. Parecem homens e mulheres.

Cito Lacan: "Isto pela intervenção de um parecer que se substitui ao


ter para protegê-lo de um lado e para mascarar a falta de outro e que
tem como efeito projetar as manifestações ideais ou típicas do
comportamento de cada um dos sexos, até o limite do ato da
copulação na comédia''.2

Essa comédia se dá na medida em que o falo está aí em jogo. O


cômic.o, podemos colocar na conta de uma certa enfatuação do lado
do homem, nos seus esforços para ter o falo, e no lado da mulher. no
140
Elizabcth da Rocha Miram!&

seu faz de conta de se desacreditar, bancando a tonta, a


excessivamente desvalida.

O homem faz semblante de ter o falo, já que ele tem o suporte


imaginário, o pênis, e a mulher corno não o tem é mais acessível a
sê-lo. É porque ela não tem o falo que pode sê-lo.

Mais adiante, Lacan diz que é pelo que a mulher não é que ela quer
ser amada e desejada. Lembro aqui, a fala de algumas jovens
analisantes que no seu afã de buscar um ser que as defina como
mulher dizem: "eu quero que ele me ame pelo que sou e não pelo
meu corpo"; ou ainda: "cu sei que ele não me ama por mim, mas
porque eu sou a melhor aluna da turma". Até chegar a pergunta: "o
que ele ama em mim? O que é uma mulher para um homem?".

Na ordem de ser o falo, temos a mascarada, que Lacan chama


'paraêtre ', ou 'parêtre ', para ser e por ser, o que Geneviêve Morei
diz que lhe evoca um 'parapluie 'diante do ser. De qualquer forma,
ser o falo é esse jogo da mascarada a qual é condenada a mulher
para agradar ao homem e causar seu desejo. O que introduz a
dimensão da mascarada é um parecer de nenhum ser.

Mas a mulher é não-toda, não-toda na ordem fálica. Ela tem wn


gozo que escapa a ordem do ter e do ser o falo. É o que apareceria na
devastação, termo usado por Lacan no L 'Étourdit onde ele nos diz:
"a este propósito a elocubração freudiana do Complexo de Édipo
que ai toma a mulher peixe na água, porque a castração já está com
ela no princípio, contrasta dolorosamente com o fato da devastação
que é na mulher, para a maioria a relação com sua mãe, de quem ela
parece esperar como mulher maior subsistência de que seu pai - o
que não combina com ele, sendo segunçio nessa devastação". 3

No Seminário O Sintoma Lacan diz que uma mulher para o homem


é sintoma, e um homem para urna mulher é tudo o que se queira,
141
..( Mulhrr

uma aflição pior que um sintoma, é um estrago, uma devastação. 4


Devastação quer dizer destruição de um lugar ou de um espaço vindo
de um Outro invasor, um estrago violento.

A mãe está fadada a incorrer na censura, em razão do lugar que


ocupa na estrutura Ela é o primeiro Outro da demanda incondicional
do amor, por isso será necessariamente um objeto decepcionante;
vem dela a primeira decepção.

Ela está encarregada de introduzir a criança no discurso e de civilizar


o corpo de seu filho. É a tomada do discurso sobre o corpo. Primeiro
objeto de amor, primeiro lugar de gozo ela é também o lugar das
primeiras decepções. Lacan diz que a mãe tem 'efeitos de
inconsciente' já que é ela quem introduz a criança no discurso.

O homem é para uma mulher uma devastação, assim como a mãe é


uma devastação para a filha.

Freud já havia insistido sobre a parte da libido que ficava fixada às


primeiras experiências sexuais com a mãe, estas relativas a toda a
manipulação do corpo do bebê que ocorre com os cuidados maternos.

Notamos essa fixação ao laço arcaico com a mãe na eterna queixa


da histérica sobre as agressões e sofrimentos que lhe foram infligidos
por sua mãe na infância.

O laço pré-edipiano que é conservado pelas meninas às suas mães é


designado por Freud em 1931 com o termo 'catástrofe'.

É o que nos mostra urna jovem de dezessete anos a quem chamarei


M. Essa moça me procura com sua mãe após uma última cena de
espancamento cm que agride a mãe e um vizinho resolve chamar a
polícia. As duas, mãe e filha, se colocam desorientadas.

Marco uma primeira entrevista com M., que passa a falar sempre
142
Elizabcth da Rocha Miranda

chorando muito de sua relação com um rapaz do qual não consegue


se separar. Já não vive mais, diante de todas as concessões que faz a
ele. Não fala ao telefone, e se angustia quando alguém na casa o faz,
porque caso ele ligue, o aparelho não pode estar ocupado. Não tem
amigas, não vai à escola, porque ele não gosta das meninas de lá,
ficando todas as manhãs na portaria da casa do namorado, enquanto
esse vai para suas aulas, e ainda lhe dá toda a sua mesada. Não sabe
mais quem é, nem o que quer. Não entende porque se submete aos
maus tratos que ele lhe inflige. Todas as suas tentativas de
rompimento não duram mais que minutos, e nem sequer são ouvidas.
Ele lhe diz: "você é um nojo, um resto, me irrita, vai embora". Ela
chora, chora e não sai do lugar. Ele só lhe trata como gente quando
quer manter relações sexuais. "São esses momentos que me fazem
estar com ele".
Sua mãe é muito distante, e elas mantêm um relacionamento onde
cada uma cuida de si. M. mora com sua avó materna que é viúva e
com sua mãe, que em determinados períodos tenta ter sua própria
casa: "mas ela não consegue, não serve para nada; é uma inútil e
sempre volta". Diz que toda sua família é muito seca e indiferente.
Ninguém se beija ou abraça.
Passa a falar das agressões à sua mãe, o que ela própria não entende.
Esta não gosta do rapaz, mas na verdade não se mete no namoro.
Tudo começou quando há dois anos após a primeira relação sexual,
o namorado rompe com ela. Era Natal. M. chega em casa e
desesperada, chorando muito, procura sua mãe e lhe conta o ocorrido,
mas esta não tem o que lhe dizer. M. diz: "eu esperava uma palavra,
uma só! Tentei me jogar pela janela, elas me seguraram, e eu então
me joguei para cima dela e bati até não poder mais. Não sei direito
como aconteceu, me contaram".
Desde então, sempre que o namorado briga com ela, "quando ele
me manda embora, eu, po1: qualquer motivo, me jogo para cima dela.
143
É alguma coisa mais forte que eu. Não quero fazer isso, tenho
pena dela".

Um homem pode ser para uma mulher não só o significante que a


falicize, ou seja, que a tome desejável, colocando-a no lugar de ser o
falo para ele, mas pode ser também aquilo que a remete a esse laço
primordial com a mãe, lugar onde a função fálica não reabsorveu
totalmente. Esse laço, não sendo do lado do significante fálico, é o
que resta fixado ao gozo, à letra.

Lembramos que a metáfora paterna tem os mesmos efeitos tanto


para o homem como para a mulher, mas para esta algo resta, já que
ela não tem o suporte imaginário do falo, ficando assim não-toda na
ordem fálica

A devastação estaria do lado da não-toda, assim como o sintoma


estaria do lado da castração. É esse gozo que resta, que traz algo
desse primeiro gozo na relação com o Outro primordial, que torna a
mulher louca, perdida em si mesma, ausente, pura dor. É isso o que
se pode colocar na conta da devastação. É o que nos mostra a nossa
jovem, com o seu ato fora do significante.

M., ao se lançar pela janela, ou para cima da mãe, se toma puro ato. Ou
cai como a 'jovem homossexual', ou cai contra o corpo da mãe,
espancando-a. Cai como objeto não falicii.ado. Como objeto é colocada
no lugar da falta de um significante que lhe diga de seu ser.

Em Televisão, Lacan nos diz que"( ... ) as mulheres são loucas( ... ).
É justamente por isso que elas não são todas, isto é, não são loucas
de todo, antes conciliadoras: a tal ponto que não há limites às
concessões que cada uma faz para um homem: de seu corpo, de sua
alma, de seus bens. (... ) Ela se presta, antes, à perversão que eu
sustento como sendo a d'O homem. O que a conduz à màscarada
que se conhece e que não é a mentira que os ingratos (... ) lhe imputam.
144
Eliubcth da Rocha Miranda

Antes o para-o-que-der-e-vier de preparar-se para que a fantasia d'O


homem encontre nela sua hora da verdade. Isso não é exagero, pois
a verdade já é mulher por não ser toda, não toda a dizer-se". 5

M., nas suas concessões feitas ao namorado, não se presta, como faz
a mascarada, usando de seus semblantes. Ela dispõe seu ser nas mãos
do outro, desde que ele lhe dê a ilusão de amor no ato sexual. Isso
falha e ela cai como puro objeto.

Lília Mahjoub no seu artigo Une douleur sans symptôme publicado


na revista L 'Autre Sexe. sublinha a importância da palavra
subsistência na citação de Laca.n no L' Étoudil e nos diz que "se a
mulher não existe a não ser bancando o homem, ela pode ter mais
ou menos subsistência, o que dependeria do laço primeiro à mãe e
não a seu pai". Subsistência etimologicamente é o que resta, dura,
resiste a.

M. me diz: "eu estava desesperada, eu contei para ela; esperava uma


palavra, uma só". Estaria aí a busca desse significante que desse
conta dessa dor, a busca da subsistência? Por outro lado, sua mãe,
tratada por ela da mesma forma que o namorado a trata, volta sempre
para a própria mãe, a avó.

A devastação estaria aí nessa geração de mulheres, avó, mãe e filha,


numa referência a esse laço pré-edípico de puro gozo. Para M. o
homem entra no lugar dessa mãe, com o qual mantém uma relação
de desvalia, tal como ela própria o faz com sua mãe.

M. nos mostra a alienação em que se encoptra nesta relação. Não é o


seu desejo, ou a sua demanda que estão em causa. Para ela o que
importa é a demanda, o desejo, ou o gozo do Outro. É um objeto à
mercê do Outro.

Colette Soller nos diz que "a devastação surge quando saímos da
145
A Mulller

mascarada, quando a mascarada que ficou sobre uma cena, transborda


e realiza-se como sujeição real, sujeição realizada". 6

Podemos dizer que quando o significante fálico falha, quando a


mascarada de ser ou ter o falo cai, quando os semblantes desse jogo
não se sustentam, temos a devastação.

A mulher não-toda faz ve/ da falta. Não vela a falta nem se identifica a ela
Oculta na falta o gozo feminino heterogêneo à ordem castração-falo.

Na devastação o ser do sujeito se reduz ao ser do sintoma que é para


o Outro. Isso leva a um gozo aniquilante.

A mulher estaria na castração como um peixe na água, desde que se


trate da tentativa de completude pelo amor.

M., em sua dor, chora, procura no Outro (mãe-namorado) uma saída


pelo amor, ou ainda um significante que sustente seu jogo de
semblantes, pelo qual ela possa vir a parecer, ser, mulher.

NOTAS
1. LACAN, J. - "La significación dei falo", Escritos, vol. 2, México,
Siglo Veintiuno Ed., 1975, p.673.

2. Idem, Ibidem, p.674.

3. LACAN, J. - "L'Étourdit", in: Scilicet n.4, Paris, Seuil, 1973.

4. Idem, Seminário XXII/: O Sintoma (1975-76), inédito.

5. Idem, Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, p.70.

6. SOLER, C. - Variáveis do fim da Análise, Campinas, Papirus,


1995, p.127.

7. LACAN, J. - O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 1985.
146
Quem come não está só ...
Eliane Schermann
Ps1canalis1a, membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

Porque a anoréxica insiste em seu gozo se come nada? 1 O sintoma


anoréxico, mais do que todo sintoma, contém um gozo que demmcia
um apetite de inércia e morte. Mas a demanda da anoréxica é muda,
pois sua mãe a esmagou pela engorda, empanturrando-a 2 De boca cheia,
não se fala O que dizer então da anâlise de uma jovem anoréxica que
faz existir a Outra mulher na mãe, da qual, ser o falo, ainda que um
tanto magro, coloca-a frente ao enigma: com que corpo poderia recobrir
o nada, velando-o?
Quando Felícia chegou ao consultório nos seus dezessete anos, com
seu 1m e 58cm de altura, pesava 28 kg, dando a ver um corpo
descamado e indiferente. Nas primeiras entrevistas, ela vai revelando
aos poucos sua falta de ânimo que a levaria a fazer duas tentativas
de suicídio. Na primeira, sentara-se na beirada da janela como se
não se desse conta de que queria "cair fora". A ela antes nada faltava.
Era uma das primeiras alunas de um colégio muito exigente, primeira
bailarina e pianista de grande talento musical. Preenchida em tantos
aspectos, o que lhe faltaria? Sua resposta era a recusa do alimento
que repercutia sobre a nadificaçào de seu ser: dizia não se reconhecer
em nada.
Felícia nos indagava em que condições a vitória da morte sobre a
vida a conduzia às suas tentativas de suicídio, em lugar de cristalizar
seu sintoma neurótico como uma questão. Na segunda tentativa
ingere muitos comprimidos e me telefona. Neste momento, o que
147
;f Mullltr

antes havia sido uma passagem ao ato, revela-se como um acting-


out endereçado à analista. Na impossibilidade de fazer de seu sintoma
uma pergunta, Felícia faz enigma de seu ato.

Seria o 'âmago do ser' que visava Felfcia nos seus atos suicidas?
Esse mais além do sujeito apoia-se no gozo, constituindo assim o
objeto de reencontro - o nada. Embora podendo ser recoberto pela
identificação, essa menina-mulher não encontrava wn significante
onde se apoiar.

Um dia revela um jogo que representava para as pessoas de casa:


escondia-se num armário deixando todos enlouquecidos buscando-a,
para depois surpreendê-los com sua súbita aparição. "Como um
poltergeist, um fantasma que suga". O quê? O nada, o vazio, fonna
muda de apelo ao ponto de inseminação de uma ordem simbólica
revelado no jQgo de Fort-Da.

Felícia relata que esconde a comida. Não consegue comer à mesa


com ninguém. Sua vontade de comer existe mas é anulada para dar
lugar à recusa do objeto da necessidade para, assim, introduzir através
da privação real, um furo pelo qual pudesse fazer eclodir um desejo.

Não há alimento algum que satisfaça a pulsão oral. A pulsão é o que


resta da demanda quando já não há mais nada a demandar. É pulsão,
na medida em que a demanda se reduz a wn corte. A pulsão deixa
wn resto que não satisfaz nunca, mas que impulsiona pelas beiradas
pois não há nada além das bordas, onde a borda se satisfaz em si
mesma.

Traz da escola uma folha de papel com uns pontos que, se fixados
num olhar, revelavam uma imagem de Cristo que dizia amedrontá-
la. ''Na minha casa, ninguém está no seu lugar. São muitas mulheres,
minha mãe, eu e mais três innãs. Todas tomam conta umas das outras,
vigiando-se mutuamente. Meu pai sempre pede a opinião de minha
148
F.I ianc Schcrmann

mãe para decidir qualquer coisa. Ela é que é a dona da casa. Quando
ele tem raiva, ameaça-nos com abandono, dizendo: 'não posso morar
sob o mesmo teto com vulgaridades". O que seria uma vulgaridade?
Um nome de mulher? Esperar em vão do pai um signo de Amor,
deixava-lhe como única opção permanecer no ser, uma vez que ficava
impedido o acesso ao ter.
Felícia estava presa na posição de rebatalho à hora do Outro. 3 No
mais além da vertente homem, e aí colocamos a mãe fálica,
evidenciava pela amenorréia, decorrente da anorexia, sua captura
por um gozo assexuado, desatado de um véu. Assim, emprestava-se
ao sacrifício, aprisionada à fantasia da mãe fálica. Do real que resistia
a passar pelo corpo, tentava reconstruir, ao enquadrar pelo olhar a
imagem de Cristo, um possível nome de seu gozo, não mortificado
pelo significante.
Desde Freud sabemos da indiferenciação entre o corpo da mãe e da
filha, não aparecendo de imediato o emblema do traço delimitador
de separação corporal entre as duas. Como ser falante - pari 'être -
, a mulher está inserida tanto quanto o homem no gozo fálico, mas
sem acesso a um traço distintivo que a diferencie como mulher. O~de,
então, irá a mulher encontrar algo, se o pai falha? A que sintoma irá
se agarrar se não há uma insígnia que a diferencie como mulhe~?
Uma mulher pode preferir ficar col_ada a uma Outra na busca desse
traço ou de um nome, como fonna de se questionar sobre o gozo
Outro - gozo este vinculado à apreensão da inconsistência e
incompletude do Outro.
Decifra-me ou te devoro. A demanda que alcança um bom ponto é a
que obtém, não a satisfação do gozo, mas um signo da presença
simbólica do Outro. Demanda esta que teria chegado retroativamente
a um limite, ao ponto de impossibilidade do Outro em responder.
Felícia poderia obter desse Outro matemo um signo daquilo que
não tem, isto é, de sua impossibilidade como A. Mas, sua mãe sabia
149
j( Mulhtr

de tudo, antecipando-a em todos seus 'dizeres e quereres'. Receber


um signo de amor teria implicado na invenção de um novo recurso
sobre a incidência, no real, do gozo feminino.

Mais além do real do objeto, do falo que falta à mãe, a menina


demanda, ao mesmo tempo que quer realizar com seu ser, o que
espera do Outro. Se o objeto não é nada de real, espera do Outro
um objeto como significante do amor, para que possa servir-se
dele, dialetizá-lo e, assim, fabricar uma imagem que vista o ser.
Mas a satisfação real da necessidade, que tal como um ideal
inscrito entre mãe e filha, supria-se pelo alimento, colava também
a satisfação ao gozo.

Desprender-se dessa relação mortal, transformando o alimento em


dom de amor, faz Felícia questionar-se sobre o enigma da
feminilidade.

Pela dimensão do amor, a mulher é faltante mas, à mãe da anoréxica,


nada falta. Se no amor, a mulher é privada do falo, pode fazer uma
opção pela fetichização de seu corpo para suplementar o defeito do
sonho de completude. A fetichização invoca a nmção de véu, pois
ser o falo mascara a falta materna. Diante da hora da verdade do
Outro, a escolha da menina poderia ter sido no sentido de encarnar o
significante faltoso do desejo matemo no lugar de alcançar o Outro,
e furá-lo, através da consistência do objeto. Mas, para Felícia, na
vacilação da mediação fálica, a anorexia surge como uma resposta
contra o gozo mortífero. Felícia pede passagem pelo objeto - nada-
ao se deparar com a impossível fusão universal do Um da condição
feminina. E como a anorexia não lhe bastasse, ela se sacrificava a
um absoluto mortal.

Mais além de todo eco do alimento, de toda necessidade de alimento,


há algo que se insta~a no sujeito e q1,1e não o apaziguará jamais. É o

150
Eliane Schmnann

buraco, o furo daquilo que se cortou do Outro. Isso será mais


importante para o destino da pulsão oral do que saber se comeu
muito ou não. Se só nas bordas a pulsão tem sua permanência, o
corpo se veste pela imagem tecida pelos significantes, introduzindo-
se assim na economia do gozo, para não se reduzir somente ao corpo
mortificado e nadificado.

Na imagem narcísica, Felícia mal se reconhecia. Magérrima e exilada


de seu próprio corpo, exibia um gozo à flor da pele: "preciso sempre
ir dormir na cama de minha mãe, vê-la ali, senão sou tomada por
uma angústia terrível". As palavras de Felícia evocavam o despertar
da falta fundamental que, detrás do espelho insistia, empurrando-a
ao pior, última palavra do gozo, o qual ainda a aprisionava ao Outro
matemo. Ao sonho de uma relação sexual impossível entre mãe e
filha, essa menina-moça respondia encarnando o real do interdito
que retroativamente a apresentava como semblante possível do nada,
mas que por outro lado localizava-a no Outro gozo. Electra, sendo
filha amada por Clitemnestra, foi aquela que "inexplicavelmente"
sua mãe um dia deixou cair".

·'Minha mãe tem um grilo muito forte com peitos. Diz que sair com
blusa colada é vulgar. Ela não me amamentou e quer que eu use
soutien, mesmo em casa ou para dormir. Peito eu não tenho". Fabricar
um ser com o nada é a questão feminina cuja solução não estaria em
tamponar o furo, mas sim metabolizá-lo através dos semblantes. Ao
ser o esquálido falo, essa menina-moça ensaiava reduzir o ter do
Outro a um semblante. Se Felícia, com sua anorexia dava consistência
ao furo, por outro lado atacava a cor1~plctude do Outro - mãe fálica.

Uma mulher busca a vertente homem a título de significação, via


sintoma. Sob este aspecto podemos enfocar o sintoma como
fazendo barreira à devastação, da qual nos fala Lacan ao abordar
o que resta de intocável na ligação da menina com a mãe. O

151
A Mulher

retorno a esse ponto só pnrle conduzir a wna catástrofe.i

Se a histérica se interessa pelo sintoma do Outro, sendo isso o que


tem para oferecer por sua identificação a ele, é como significante de
um desejo insatisfeito que o articulará no discurso. Felícia então se
utiliza do corte de cabelos tão curtos "como os de um menino", sob
a forma de bancar o homem, após mostrar-se incômoda com o brilho
agalmático de sua magreza que até então exibia. Ela vai, passo a
passo, reconstruindo uma imagem que, se ainda viril, nela a beleza
agora desponta para recobrir a castração, da qual seu corpo, antes,
era a imagem.

Um dia, Felícia comenta sobre os trapos e vestidos que escolhi-a


pelo pior aspecto para cobrir o corpo. Que corpo poderia atrair um
homem? Se o narcisismo responde a uma divisão e a uma
dependência ao Outro, a máscara que daí se constitui erige wna
imagem do eu, comum aos dois sexos. Felícia que, antes, exibia o
corte dos cabelos ao jeito homem, começa a se angustiar, quando na
rua perguntam-lhe se é homem ou mulher. A pergunta histérica
retorna pela voz do Outro estabelecendo uma ruptura na sua posição
de objeto. Felícia vestida em seu corpo pela imagem fetichizada e
viril, tenta agora, como menina-mulher, reinventar o real do sintoma
fazendo-se como menos uma, num verdadeiro empuxo ao desvario.
Ela ri do bom senso materno.

Se em relação ao gozo feminino, o homem divide a mulher, cria


uma aflição pior que um sintoma. Felícia parecia ter um certo saber
disso. Neste momento da análise, no caminho do distanciamento da
anorexia, surpreende-se ao se deparar com sua sedução aos jovens
rapazes dos quais tenta escapar. Um homem pode ser para a mulher
não só um significante que a falicize e que a tome desejável, mas
uma devastação. A vertente homem poderia conduzi-la à sedução
primeira da ligação exclusiva com a mãe, evocando aquilo que a
152
Eliane \chcrmann

função fálica não absorveu completamente mas que, por outro lado,
é o inevitável da condição feminina. Essa devastação refere-se a
esse gozo enlouquecido que faz da mulher uma ausente dela mesma.
Sua dor de existir não se refere totalmente ao destinatário da letra do
sintoma A espera ou sofrimento sem sujeito revela um outro registro
para além do imaginário. Se as mulheres têm o privilégio de uma
maior intimidade com o real do gozo que lhes permite levantar o
véu da castração, então, estão prontas a tudo sacrificar para ser o
falo, realizando-se no não-ter.

Com o decorrer da análise, Felícia consegue estabelecer uma nova


forma de lidar com o Outro como sexual que não fosse fazendo-se
de nada. Ela adquire um certo humor, mascarando-se, o que se toma
nela o suficiente para se fazer desejar pelo Outro, como suplemento
da não relação sexual. Surge então, a mascarada feminina como
falsamente falsa. Finge que não tem o que, na verdade, não tem.

Acompanhar o passo desse ser de complemento ao suplemento foi a


questão que se conduziu nessa direção de cura Felícia fazia-se passar
de ao-menos-uma para um a um, através de seus relatos e devaneios,
em relação aos jovens homens.

De arrebatado ser ferido, na sua não-toda-loucura, exilada das coisas


que não se ousa tocar, vem dando a ver um corpo de mulher
encantadora. Embora ainda a intimidem os rapazes, que nela evocam
o limite no qual o olhar se transforma em beleza, escapa daquele
lugar de infelicidade devastadora: "no descaminho do nosso gozo,
há o Outro para situá-lo mas somente na medida em que dele estamos
separados6".

NOTAS

1. LACAN, J. - "La dirección de la cura y los principias de su poder",


Escritos, vol.2, Buenos Aires, Sigla XXI Ed., 1975, p.259.
153
~M"lher

2. Idem, O Seminário, livro 4: a relação de objeto, Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 1995, p.188.

3. Idem, Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, p.33.

4. Idem, Seminário X Angústia, inédito.

5. Idem, "L'Étourdit", in: Scilicet n.4, Paris, Seuil, 1973

6. Idem, Televisão, op.cit., p.58.


Capíti,lo 5

Ato Analítico
e Não-Todo
Mulher e interpretação: adeus significante
Gloria Sadala
Psicanalista, membro aderente da Escola Brasileira de Psicand/ise. Coordenadora,
professora e supervisora do Curso de Psicologia da Universidade Santa Úrsula. Mestre
em Psicologia - UFRJ.

Freud sugere perguntar aos poetas para se saber mais sobre o que
não se sabe. Cecília Meireles, em Encomenda, dá sua resposta:

"Não meta fundos de floresta


nem de arbitrária fantasia ...
Ndo . . neste espaço que ainda resta.
ponha uma cadeira vazia ". 1

Lacan transforma o poeta em 'Poata'. 'Poata' analista que, com seu


ato, sempre aponta a falta.

Retomarei neste texto recortes do trajeto em análise feito por uma


mulher que, de início, fez um pedido aflito, urgente e autoritário.

A partir da lógica do não-todo, tentarei formular pontos ~e


aproximação entre a posição feminina e a posição do analista. A
mulher e o analista, ocupando o lugar de objeto causa do desejo,
relacionam-se com o significante da falta do Outro - S( A). Ambos
situam-se em relação à falta. Nada se pode dizer d' A Mulher. Do
Outro não se pode dizer, assim como nada se pode dizer da
interpretação.

Esta mulher, que chamarei Márcia, diz não ter mais nada: não tem
mais o marido, a casa onde mora não é mais sua, não tem filho.
Durante os vinte anos de casamento, dominava falicamente a cena.
157
A Mulhtr

Agora, ninguém a quer. Assim constituiu-se o pnmeiro momento


de sua análise: apresentava suas queixas, sua tristeza e suas dúvidas.

Num segundo momento, diz não ter opção. Não lhe interessa o porquê
da situação em que se encontra. Análise, só para "desencargo de
consciência". No entanto, aí aparecem sinais de uma transferência
em jogo. Ao convite para deitar-se, responde de duas maneiras: por
um lado, a indiferença e, por outro, já no divã, passa a falar
principalmente da sua adolescência.
O terceiro momento marcou-se pelo aparecimento do desejo de
reconciliação com o marido, mas ainda prevalecendo um não querê-
lo mais. A partir daí passou a vir sempre para dizer: "não querq
nada. Não, não e não". Até dizer que não iria continuar. Interrompe
e só retoma algumas semanas depois.
Na retomada da análise houve um momento crucial que considerei como
wna escansão: não q~er mais nada. Quer morrer. Após o relato de wna
tentativa de suicídio, digo que volte nesse mesmo dia. Reage com
enérgica negativa e na hora marcada, lá estava ela Ao voltar, Márcia
questiona sobre dar a si própria uma possibilidade. Conta da inf'ancia,
da relação conjugal conflituada e decide deixar a porta aberta.
Nestas duas vertentes, a da mulher e a do analista, aquilo que falta
faz enigma. A mulher tenta recobrir a falta pelo amor. Na psicanálise,
surge a interpretação.
Não há como compreender o amor, wna criação. Do lado do analista,
quer ele se cale, quer fale, não compreende os efeitos do que faz e nem
sequer sabe quando seu ato foi wna interpretação, a não ser por retroação.
O ato de mandá-la voltar naquele mesmo dia, foi urna interpretação?
E o que caracteriza urna interpretação analítica, se não é compreender
os seus efeitos?
Lacan diz que "urna interpretação da qual se compreende os efeitos
158
Gloria Sadala

não é uma interpretação analítica. Basta ter sido analisado ou ser


analista para saber disto" 2• O que não quer dizer que a interpretação
pertença ao registro do delírio, do desvario ou da banalidade. Trata-
se de uma causalidade não linear.

Às demandas do analisante, demanda de amor, de palavras, de


interpretação para seus sonhos, de sentido para seu sofrimento, o
analista responde com o avesso. Não interpreta os sonhos, se cala,
faz surgir a aparência do sentido. Interpreta para causar enigma e
põe o sujeito a associar.

No entanto, o avesso é assonante com a verdade. Formam uma rima


imperfeita. E a interpretação tira sua eficácia daquilo que não rima,
da imperfeição, do mal-entendido. Por isso se diz que no ato, o
importante é o que lhe escapa. Af, há algo da verdade. E a verdade
se enuncia como pode, o que lhe dá um caráter de estranheza.
Estranha, fora do discurso, não é atingida por jargão ou verbalização.
Interpretar é reconhecer esse estranho, o gozo. Verdade, irmã do
gozo. Encarnada pela mulher, perseguida pela teoria. Ao ser não-
toda, sempre escapa.

A psicanálise, renovando a questão sobre o saber anteriormente


colocada por Descartes, aponta para um saber do qual não se quer
saber. Lacan, em Mais, ainda, 3 pergunta: "quem é que sabe?". No
lugar da verdade, é o Outro quem responde. O Outro, suposto saber,
constitui-se naquilo que Lacan denominou um corpo sem rosto, por
só fazer semblante de um objeto que não existe.

No curso da análise, Márcia insiste repetidamente não querer manter


sua relação conjugal atual. Que Outro é esse para quem ela tanto
repete? Na transferência, traz sua negação, seu vazio, a raiva. Sua
tentativa de suicídio é dirigida ao analista. Nesta situação sem saída
em que Márcia se coloca, resta instigá-la ao saber, à associação livre.
É o que lhe demanda o analista.
159
,( Mulhtr

Mais, ainda também é o que demanda a mulher, na busca do


significante que lhe falta. Entretanto, Márcia é uma histérica e, como
tal, não tolera sua posição feminina. Se por um lado, interroga-se
sobre a falta de significante para a mulher, por outro, ela diz "não,
não e não" à posição de objeto de desejo de um homem. Sua tentativa
de suicídio fala disto: a tentativa de 'cavar' um lugar no Outro,
escapando, caindo fora da cena. No seu ato, o analista produz 'uma
vacilação calculada da neutralidade' que permite Márcia retornar
para falar. Há ainda um percurso longo a ser feito por esse sujeito
entre a posição histérica e a posição feminina.

Márcia, sem entender a demanda do analista, fala. Interroga sobre o


seu lugar no Outro, que permanece como enigma. A regra analítica
funciona como demanda para que o analisante fale sem restrições.

Segundo Colette Soler4 há três respostas do analista em seu


dispositivo. Primeiro, a promessa. Em segundo lugar, a demanda de
dizer que causa um texto. Por fim, a interpretação. No caso da
interpretação, seu objetivo é a decifração, o que corresponde a fazer
reaparecer os significantes que estavam no inconsciente. Isto, no
entanto, não resolve a questão quanto ao desejo do sujeito.

Naquele momento da análise de Márcia, o ato foi crucial. Produziu


enigma, para o analista e para a analisante. Teve o caráter de surpresa.
Tal surpresa, equivalendo a uma posição de ignorância, mostrou que
o ato provocou algo novo. Uma interpretação? Um dizer sem dito?

Não há dito da interpretação porque um dito representa sempre um


sujeito e, no caso da interpretação analítica, o sujeito analista se
subtrai de seu próprio discurso,já que seu dizer faz conexão ao dizer
do analisante.

Não é tão simples responder se aquele ato foi uma interpretação.


Considerando as interpretações, uma a uma, são muitas as perguntas
160
Gloria Sadala

a serem feitas: quanto ao estilo, ao momento em que ocorreu, ao


tempo de construção, à sua qualidade e principalmente seu efeito.

Lacan aponta várias intervenções interpretativas: a pontuação, 0


corte, a alusão, o equivoco, a citação e o enigma. O que há de
comum em todas essas modalidades é a introdução de um dizer,
mas um 'dizer nada' que provoca efeitos. Opera, através da
interpretação, o desejo do analista.

Ao dizer para a analisante voltar, operou tal desejo. Desejo que


voltasse e para se analisar.

Nestes princípios da interpretação, onde não há lugar para o


verbalismo e o jargão, e onde se introduz algo de súbito, inesperado
e novo, o significante perde espaço.

Por esta raz.ão, Mulher e Interpretação: adeus significante.

A passagem para a posição feminina implica num adeus ao


significante, ou seja, adeus a essa busca incessante de wn significante
que represente A Mulher. Numa sessão, diz Márcia: "talvez eu possa
viver sem ele".

A posição do analista também implica num adeus ao significante.


Seu dizer interpretativo é 'dizer nada', um silêncio ativo, distinto do
não dizer nada.

A partir daquele ato, a analisante não fala mais em se matar. Fala de


seu ciúme, conta da sua inf'ancia e da única pessoa que lhe deu amor.
Já se sabe que a interpretação não é a palavra, mas incide sobre a
palavra do analisante.

A interpretação, como dizer do analista, é causa. Tal como a mulher


o é. /Ã. Mulher indica a sua inexistência e se coloca como o objeto
causa de desejo do homem.

Tendo como referência as fórmulas da sexuação, é do lado da mulher


161
,{ Mulher

que está a causa. Na análise, é do lado do analista que está a causa


de todo o processo.
Lacan, ao falar da interpretação, toma o equívoco como paradigma.
Através dele, torna-se possível a liberdade do sentido. Sua
operatividade é fundamental, já que apenas o equívoco significante
opera no inconsciente, seja ao tratar da conexão entre os sexos, entre
o sujeito e o gozo, e entre o sujeito e o objeto. O equívoco produz a
revelação de que wn significante esconde outro e que, portanto, há
no enunciado muito mais do que é percebido. Sendo assim, o
equívoco aponta o impossível de saber e o impossível de dizer. Ao
analista, cabe 'dizer nada'.
Ao final de wna análise fica um resto impossível de dizer, cuja
denominação é objeto a.
A interpretação, correlata à lógica do não-todo, revela a consistência
lógica do objeto que se refere ao impossível de dizer. A mulher,
pennanecendo como semblante do objeto a, recobre este impossível
com o amor.
Analista, resto, o que fica ao final de uma elaboração.
Mulher, resto que fica da Coisa, com a perda do objeto.
Ambos, enigma.

NOTAS

1- MEIRELES, C. -Antologia Poética, Rio de Janeiro, Ed. do Autor,


1963, p.23.
2- LACAN, J. - O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, ,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
3- Idem, O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1985.
4-SOLER, C. - "Interpretação: as respostas do analista", in: Opção
Lacaniana, EBP, n. 13, São Paulo, 1995.

162
Medusa: castração e ato apotropaico
Ne/isa Guimarães
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de PsicQlld/ise.

ELE&ELA
.. (. ..) ela acha ele tarado
ela acredita no amor ele a coloca de lado
ele sente muito calor ( ..)
ela quer ir ao cinema ela diz que ele é um número
ele já viu esse filme ele prefere ela de quatro
ela só quer agradá-lo ela se descabela C(?m o despreza
ele toma coca no gargalo ele se penteia com arrogância
ela diz que corta os pulsos ( ..)
ele apresenta a gilete ela diz que se rasga toda
ela quer prova de amor ele diz que isso não é justo
ele não sai do arpoador ela chora
ela diz que ele sonha acordado ele é duro".
ele sonha com ela no escuro
ChacaP
Atualmente, muitas mulheres atribuem o afastamento dos homens
ao medo de se envolver. Muitos homens admitem o medo de não
corresponder às expectativas das mulheres, que fazem muitas
cobranças e parecem sempre insatisfeitas. Eles se distanciam, não
estão nem aí para o sofrimento delas. Sem o tabu da virgindade como
fator de valorização no mercado sexual e de ocultação da castração
- valor substituído por um belo corpo exposto ~ pela capacidade
pessoal de ser independente-, e ainda sem a estabilidade da instituição
matrimonial para respaldar uma definição da prática da sexualidade
e de um lugar de co-responsabilidade no desempenho das funções
sociais, as mulheres livres são sedutoras e assustadoras. É impossível
escapar e manter tal posição. O medo de não ser assim e de continuar
163
A Mulhtr

assim revela o medo dos homens que com elas se defrontam - medo
do que vêem de próprio nelas, e do que não suportam ver porque os
ameaça. A atualidade do mito de Medusa e o ritual de recontá-lo
reabrem os impasses deste desencontro sexual contemporâneo, e de
tantas situações clínicas que podem ser evocadas.

Seguimos do impasse ao mito, e à abertura dos temas que levam do


ato apolropaico ao ato psicanalítico.

A Mulher e a Castraçãt.

Freud, em seu pequeno artigo sobre A cabeça de Medusa ( 1922),


propõe a eqwvalência decapitar= castrar. Escreve ele: "o terror
da Medusa é assim um terror da castração ligado à visão de alguma
coisa( ... ) quando um menino, disposto a acreditar na ameaça de
castração, tem a visão dos órgãos genitais femininos, rodeados
por cabelos". 2

Os cabelos-serpentes de Medusa serviriam como mitigação do terror


da castração por substituírem o pênis, cuja ausência é a causa do
terror - "uma multiplicação de símbolos do pênis significa
castração". 2 No terror, há também um enrijecimento corporal que se
aproxima da ereção. A cabeça de Medusa é uma representação de
horror, presente em várias máscaras da Grécia antiga, inclusive na
máscara da deusa virgem Atena usada para tomar-se inabordável,
como um ser feminino que assusta e repele. Exemplo de ato
apotropaico - citado por Freud - como sendo aquele ato em que se
mostra o que desperta horror, para defender-se de algum perigo.

Além da oposição castrado-fálico, em que se pode apoiar a diferença


das posições feminina e masculina na sexuação, Lacan indica3
elementos fundamentais que desdobram as considerações necessárias
para situar a posição feminina: como objeto a na fantasia masculina
(na relação ~om ~); como objeto a causa de desejo portanto; como
164
Nclisa Guim,ml.cs

radicalmente o Outro, aquilo que tem relação com o Outro como


significante do que não se pode dizer ou do que só se pode dizer do
inconsciente; e como apoio imaginário para o narcisismo. Miller
comenta4 : enquanto objeto a é um semblante; enquanto Outro
absoluto, na dialética falocêntrica, trata-se de inconsistência porque
pode-se dizer qualquer coisa (Lacan observara que tudo se p~de pôr
na conta da mulher'); enquanto apoio imaginário, trata-se de uma
consistência para tudo que gira em tomo do significante imaginário
do falo - a relação sexual, a clínica, a natureza das coisas.
Se há duas posições distintas no modo de habitar a linguagem, a
relação sexual não existe porque ela só pode ser inter-dita6 • A resposta
que leva à repetição dos encontros é o Real. Localizado um limite -
a impossibilidade de dizer o Real na lógica incompleta do
inconsciente - é ele que o discurso do psicanalista toca: toca o Real
como impossível. Uma experiência de atordoamento que pode, em
nossa tentativa de recontar o mito de Medusa destacando o ardil de
Perseu e a função das máscaras de Gorgó, situar o horror numa
abertura para o Real. Pode abrir a possibilidade de não petrificação
na resistência e de relançamento do desejo, sem fuga - na atualidade
de nossas vidas e de nossa clínica, nas metamorfoses atuais que
transfiguram a impossibilidade e desafiam qualquer abertura.
Recontaremos o mito, em sua narrativa ficcional de um tempo
primordial, uma origem, em sua criação de verdade na apreensão de
algo real na existência humana. Presença universal no mito:
reatualizá-lo é exercer um ritual de confrontação com o mistério, o
não-saber a causa e a origem das coisas. 7
Seguimos a recomendação de Freud: investigar melhor as
modalidades dessa imagem-símbolo de terror na mitologia grega
para abordar o tema da castração, da angústia de castração e do
horror, não apenas pela vertente da falta na castração da mãe e
das mulheres, mas também pela vertente do excesso. E retomamos
165
,( Mulhtr

a indicação freudiana de que "uma multiplicação de símbolos do


pênis significa castração". 2

O Mito
A expenência que os gregos tiveram do Outro absoluto, da alteridade
radical (por oposição ao Mesmo; em Platão: to héteron), expressava-
se no indizf vel, impensável, puro caos, confronto com a morte em
representações que a evocavam': máscara monstruosa de Gorgó
(ref~rida à Górgona Medusa), mascarada e disfarce na embriaguez
de Dioniso, fronteira entre selvagem e civilizado na eterna virgem
Ártemis. São três modos dessa experiência da alteridade radical entre
os gregos, em sua mitologia antiga.

As Górgonas são filhas de Fórcis e Ceto - duas delas imortais, Esteno e


Euriale, e uma mortal, Medusa. Habitam as proximidades dos infernos
- o Hades -, e têm uma aparência monstruosa: cabeça grande, cabeleira
de serpentes, dentes longos, olhos faiscantes que penificam quem as
olha nos olhos. São temidas por mortais e imortais. As máscaras de
Gorgó representam as Górgonas, sendo Medusa considerada a Górgona
por excelência. Foram encontradas máscaras esculpidas em vasos, em
moedas, em escudos; decorando vários tipos de objetos em residências,
ateliês e templos. Surgiram no início do século VII a.C. com a função
de evocar um poder de terror, um medo original, medo em estado puro,
e ainda um furor guerreiro, um poder de morte, o controle do mundo
infernal, uma referência ao insólito e ao estranho. São representações
evocativas e não objetos de culto.

Medusa é também freqüentemente chamada de Górgona. O mito


faz alusão a sua beleza anterior, ornamentada pela moldura de seus
cabelos maravilhosos. Poseidon unira-:se a ela, possuindo-a
sexualmente dentro do templo de Atena. Por isso, ou por alguma
rivalidade entre a deusa e a mortal Medusa, Atena teria lançado sobre
ela um castigo, que resultou na metamorfose. Impedimento de
166
Nclisa Guimarlcs

admiração. Com aparência horrorosa, passou a provocar a morte


daqueles que a olhavam, morte por petrificação. A própria deusa
teria desviado os olhos durante a transformação (Ovídio,
Metamorfoses). Medusa, depois de ter causado muitas desgraças,
acaba sendo morta por Perseu. Ao ser decapitada, de seu pescoço
saíram seus filhos gerados com Poseidon, Pégaso e Crisor. Atena
colocou então a cabeça de Medusa em sua égide, e Perseu recolheu
o sangue de propriedades mágicas: da veia esquerda, saiu um veneno
fatal, e da direita, um remédio ressuscitador.

Nos textos atribuídos a Homero, ora Medusa é associada ao poder


de afugentar os inimigos (Odisséia), ora à presença controladora na
entrada do país de Hades - reino dos mortos, donúnio da noite e das
trevas (Ilíada). As irmãs protegiam-na, e as Graias, irmãs das innãs,
vigiavam seu território, com um olho que compartilhavam. Perseu
teve de enfrentá-las para chegar até Medusa.

Um oráculo anunciara que Perseu, filho de Dãnae e neto de Acrísio,


mataria o avô. Para escapar ao destino, Acrísio lançara ao mar uma
arca com Dânae e Perseu. A arca chegou à ilha de Serifo e foi
recolhida pelo pescador Díctis, que criou Perseu. O tirano Polidectes
cobiçava Dânae, e Perseu protegeu-a oferecendo ao tirano a cabeça
de Medusa. Orientado por Atena e Hermes, precisava obter das
Ninfas os instrwnentos da vitória: o capacete de Hades, as sandálias
aladas e a foice. Conseguiu seu objetivo:

• primeiro privou as Graias do olhar, roubando-lhes o olho, na


passagem que efetuavam de uma para outra;

• tomou-se invisível com o uso do capacete;

• seu escudo polido serviu como espelho para ver Medusa sem fitá-
la e para que ela se visse na sideração do horror, desviando seu olhar
no instante de matá-la.
167
A Mlllhtr

Um Encontro Impossível

Perseu, com seu ardil, operou um corte, rompendo o fascínio que mata.

"O mau-olhado é ofascinum, é aquilo cujo efeito detém o movimento


e literalmente mata a vida. No momento em que o sujeito pára
suspendendo seu gesto, está mortificado". 9

;'No fundo, quem olha o sexo de uma mulher nua, coxas abertas,
está diante de Medusa, da eflgie terrível, da cabeleira de serpentes,
desse rosto que é uma boca sem mentira e sem verdade, boca de
sombra mortal, rosto em abismo, olhar encarado". 1º

"( ... )vi exatamente na vagina felpuda de Simone, o olho azul pálido
de Marcelle, que me olhava chorando lágrimas de urina". 11

O ardil de Perseu é uma saída do ponto de vista para o ponto de fuga,


um movimento de retorsão que faz funcionar ao contrário a máquina do
olhar. Há wna saída da sideração, do fascínio, do horror de ser capturado
num gozo mortífero. Se o sujeito procura no espelho do Outro, ou do
Outro sexo, uma referência de identidade que o sustente, encontrará
urna imagem estranha ou um vazio estranho que o reenviará ao mais
estranho de si mesmo, estranho mais íntimo que causou o movimento
de procura. Esse vazio de existência que tanto o aproxima da morte.
Para escapar do vazio, volta a encontrá-lo, depois de passar pela captura
de uma relação dual, relação de imagens, de representações, em que um
se faz representar para o outro. Saindo do espaço fechado dos dêiticos
(cu-tu) para entrar no espaço aberto da narrativa (como na narrativa do
mito), o sujeito escapa do espelho, do eco, da petrificação. O mito de
Narciso narra a paixão como encontro impossível: lá está o mesmo <.
como outro, o outro como mesmo. O mito de Medusa narra o terror
como encontro fatal: a alteridade radical do que fascina pela bele.za é o
fascínio pelo terror, a repulsa que atrai e petrifica. O narcisismo
tematizado nos dois mitos funciona como índice de uma aderência real
168
Nclisa Guimarlcs

do sujeito a si mesmo, como representação em que o sujeito só pode


naufragar, perder-se.

O mau-olhado de Medusa vira-se contra ela mesma. No espelho,


num instante oco e vazio, congela-se de medo, nesse terrível vaivém
de seu próprio face-a-face. Antes da morte, quase morta. Como no
instante pintado por Caravaggio, onde a face de Medusa corresponde
a seu auto-retrato quando jovem. Nesse instante, Medusa não é carne
nem pedra: é a máscara do terror. Daí a cabeça cortada como emblema
de auto-representação na referência à angústia, figura de proa no ato
apotropaico contra o Outro ameaçador.

Ato Apotropaico e Ato Psicanalítico

Ato apotropaico:

• para conjurar os males, para sair de um perigo, para afastar o terrível


ameaçando-o com o terrível;

• apotrophos = estranho, educado longe dos pais (apo = de, a partir


de, vem de trophos = cultivo);

• apotropaico = tutelar , expiatório, abominável (verbo: afastar,


apartar, sair de um perigo, ação de prevenir· um mal, de conjurar).

Poderíamos dizer aqui que, com Lacan, fazemos o sujeito do ato


apotropaico receber sua própria mensagem de forma invertida.

"Se a cabeça de Medusa toma o lugar de uma representação dos


órgãos genitais femininos, ou melhor, se isola seus efeitos
horripilantes dos dispensadores de prazer, pode-se recordar que
mostrar os órgãos genitais é familiar, sob outros aspectos, como um
ato apotropaico. O que desperta horror em nós produzirá o mesmo
efeito sobre o inimigo de quem estamos procurando nos defender". 12

Como efetivação do duplo e referência narcfsica 13, a cabeça de


169
,( Mullrer

Medusa também evoca o olhar capturado na especularidade. Como


apresentação da crueldade do supereu, evoca a tirania e o horror de
um suposto Outro absoluto. Como representação que prenuncia a
pulsão de morte, evoca a petrificação, o inumano, o nada. Como
abalo terrível que contesta a premissa universal do Falo na sexuação,
evoca a castração da mãe e das mulheres.

A cabeça de Medusa, segundo as breves e fecundas indicações


freudianas, segue, como mito, a mesma lógica do Umheimlich, que
Freud extraiu de Schelling: tudo aquilo que, devendo permanecer
oculto, acabou se manifestando. Retorno do recalcado nas formações
do inconsciente? Retomo no real de uma foraclusão no simbólico?
Estranho, sinistro, inquietante, apavorante, horrível... Como é o
registro da castração para cada sujeito?

Do mito de Medusa, extraímos duas séries: uma série de objetos


parciais: cabeça-olho-boca= falo(serpentes); e uma série de ações:
decapitar-cegar-petrificar = castrar. Os objetos parciais, como
fetiches, tentam recobrir um vazio, com a aparência de um excesso:
como máscaras de Gorgó num ato apotropaico. Fica o vazio como
origem do Umheimlich e do Terror - onde mais sobra e excede, menos
a falta pode ser escondida.

Se Freud evitou o face-a-face com o uso do divã, tentava


escapar do fascínio terrível.

Se Lacan disse que o psicanalista tem horror de seu ato, então é


porque o ato psicanalítico ultrapassa a mediação de qualquer ato
apotropaico.

Notas

l. CHACAL - Ponte Poética, Rio de Janeiro, Editora Sette Letras,


1995, p.85, (trechos).

170
NcliJa Guimarlcs

2. FREUD, S. - "A cabeça da Medusa" (1922), Obras Completas,


vol.XVIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, p.329.
3. LACAN, J. - O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1982.
4. MILLER, J-A. - De Mujeres y Semblantes, Buenos Aires,
Cuademos dei Pasador,1993.
5. LACAN, J., Écrits, Paris, Seuil, 1966, p.711.
6. Idem, ''L 'Etourdit", in: Scilicet n.4, Paris, Seuil, 1973.
7. ELIADE, M. - Mito e realidade, São Paulo, Perspectiva, 1972.
8. VERNANT, J-P. - A Morte nos Olhos, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1988.
9. LACAN, J. - O Seminário, livro I /: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1979, p.114.
10. Denis Rache citado por DUBÔIS, Ph., in: O Ato Fotográfico,
Campinas, Papirus, 1994, p.154.
11. George Bataille citado por DUBOIS, Ph., in: op. cit., p.154.
12. FREUD, S. - ''A Cabeça da Medusa", op. cit .• p.330.
13. Idem, "O estranho" (1919), op. cit., vol. XVII.

171
Capítulo 6

A Mulher na Arte
"Dorotéia"
Elza Marques Lisboa de Freitas
Psicanalista, membro aderente da Escola Brasileira de Psicandlise.

"Donc, dis-je, /'intérét pour /'ánamorphose esl décril comme /e point tournant
ou, de cette il/1,sion de / 'espace, l 'artiste retourne completement / 'úlilisation, et
s 'ejforce de /afaire entrer dans le hui primitif. à savoir d'enfaire comme tel/e /e
support de cette réalité en lant que cachée - pour autant que, d'une certaine
façon, il s 'agir toujours dans une ouevre d'art de cerner la Chose ".

Jacques Lacan 1

Alguns autores da literatura, para além de sua excelência em


qualidade, para além da colocação em texto do suporte fantasmático,
pelos recursos do simbólico que elevam o horror da Coisa à dignidade
da arte - onde muitas vezes ao modo de um sonho, o autor é cada um
de seus personagens no jogo das posições no discurso -, alguns
autores, dizia eu, produzem em seus textos um efeito de emergência
~~~~-d~fafan~--.-~udeestruturãs q~_e ~ constituem. - .... -··

A belíssima obra de Marguerite Du~ por exemplo, nos mostra a


mulher, em seu avesso, pelo olhar de uma mulher. Uma mulher pode
ser lida por seus textos. Ela nos fala desde esse enlace permanente
da linguagem com um corpo (mais) marcado pela falta (do que outro).
A mulher em Duras é todas e assim mesmo cada uma. Nos fala de
uma estrutura, a meu ver daquela da linguagem, roupagem inevitável
para ambos os sexos, aqui uma segunda pele da mulher, ultrapassando
a obtenção decalada, adiada, do possível de seu gozo impossível.

175
Escolhi entre autores de textos literários, no entanto, o olhar ~e um
homem sobre a vida e principalmente sobre as mulheres, na tentativa
talvezdecon-tinuar-na diferença.lnurnera:S- foramas-abordagens de
Freud em relação à literatura. Seus seguidores tampouco se privaram
da letra, nem das letras. Da tragédia grega a Shakespeare, de Sade a
Claudel, de Dostoievsky a lbsen, um grande número de referências
de fundo, para nós psicanalistas, veio do texto para teatro. Talvez
porque na dramaturgia temos a cena evidente. Do papel ao palco os
personagens se materializam. A exigência da exposição ao olhar -
cm alguns trabalhos mais modernos apenas aos ouvidos, pois temos
atualmente peças que se desenrolam em parte no escuro - , da imagem
em ato, enxuga a própria letra da trama de tal forma que a estrutura,
que velada seria subjacente, sobrepõe-se em sua constância.

É inesgotável a possibilidade de leituras da obra de Nelson Rodrigues.


Medula da dramaturgia moderna brasileira, cenógrafo do cotidiano
urbano, rasga a banalidade tediosa e constante de nossa existência
de massa e mídia com o raio da tragédia.

Para nós psicanalistas, rico prato do qual escolho uma porção. Nas
cores fortes, o mote: sexo, vida e morte. Os temas da psicanálise.
Freud com Lacan: desejo, vida e morte - e em muitas peças o incesto
explicitado e deslizante.

Tomarei como tema a pe~ [!orotéiE.1 da obra de Nelson Rodrigues,


autor que alcança em seu trabalho a excelência da transmutação do
drama sensível do cotidiano em aspereZA trágica em busca de uma
ética. Mais do que tudo, a meu ver, avança a um ponto raro no enfoque
da relação da mulher~om sua falta. Entre Antígona, Justine, Diotima,
Medéia ou Fedra, a mulher rodrigueana buscaum·a~er-dade. A sua.
Fãlfa. Nesta peçã-Õs dÜis únicÕs personagens masculinos não
--..::$.
aparecem em cena. Todas as personagens são mulheres e, ao modo
de Sade, em seu desfile de personagens femininos, configuram algo
176
Elza Marques Lisboa de Frc11es

da estrutura d' A Mulher. Todas usam. por determinação do autor,


máscaras hediondas, que criam o distanciamento necessário à
configuração do simbólico. O possível moralismo do í;lUtor, numa
leitura apressada, é ultrapassado pela arte que o eleva a uma crítica
da moral. Do despojamento desta transformação o saldo é um texto
contundente, classificado por ele como 'wna farsa irresponsável'.

· Num casarão sem quartos, vivem quatro primas, que jamais


·--·- - - ·
dormem para jamais sonhar. Uma delas é adolescente ainda e
noiva .. Nessa casa chegará Dorotéia, após a morte do homem
amado e da perda de um filho. Bela em contraposição à f eiura
das outras, perdida por amor a um homem, vestida de vermelho
como uma prostituta, em busca do reconhecimento pela família
de seu parentesco. Vem em busca do Nome-do-pai. Que nesta
estória é: nada.

"Aquela casa de chão frio, sem leito, é bem o símbolo da morte, que
se tomou a herança da estirpe, desde que a bisavó traiu o amor. Ela
amou um homem e se casou com outro, e, na noite do matrimônio teve
a náusea - fatalidade familiar que passa de uma mulher a outra, (... )"3•
Não é esta a única fatalidade a atingir estas mulheres. Todas têm um
defeito de visão que as impede de ver homem. Elas se casam com
maridos invisíveis - assim como o noivo de Das Dores -, a
adolescente também é invisível. Esta invisibilidade da presença
masculina se manifestará pela materialização de um jarro iluminado
no palco, sempre que as personagens são tocadas pelos impulsos do
desejo, evocando as abluções de Dorotéia antes e·depois do pecado.
Também se fará presente pela referência a Nepomuceno, portador
dos meios de castigo e redenção para as mulheres mas que não surge
em cena. E surgirá, como pivô da ação e de seu desenlace, pelas
botinas desamarradas que 'são' o noivo de Das Dores e que, desde o
momento em que entram em cena, exercem efeito pertubador e
sedutor sobre todas as personagens. D. Flávia, a mais velha, toma
177
A Mulhtr

para si o dever de matar cada uma das primas na medida cm que o


efeito da presença das botinas desabotoadas sobre elas é "( ... ) um
extemporâneo impulso sexual de Maura e Carmelita".

Em enlevo com seu noivo invisível, Das Dores afirma a sua mãe
que não vai experimentar a náusea e nem a quer. Quer estar com
o noivo. ''Diante desta obstinação só resta a D. Flávia revelar à
filha que ela não existe, pois nasceu de cinco meses e morta."
Manda-a embora. A filha no entanto não deseja voltar para o seu
nada, e sim para a mãe: "não existo mas quero viver em ti".
Pretende nascer viva e ser mulher. Estando morta, não precisa
ser destruída pela mãe. Apenas coloca sua máscara sobre o corpo
de D. Flávia. Esta máscara da filha, agora presa à carne da mãe,
tenta atraí-la, arrastá-la para as botinas.

Dorotéia arrependida da vida que levara até então, deseja se livrar


de suas anomalias. Ou seja, do fato de que desde pequenina sempre
enxergou os meninos, gosta dos homens e do prazer que com eles
obtém, portanto não tem a náusea e, mais do que tudo, ostenta uma
beleza afrontadora. Reedita a traição do desejo a partir das perdas
que sofreu, como o fez a bisavó e, em seu trabalho de aniquilamento
do desejo, destruindo seu rosto e seu corpo com as chagas que
Nepomuceno lhe dá, encerra com D. Flávia o ciclo da maldição.·
Fechada no casarão com a prima, após a eliminação de todas as
outras, ao perguntar à matriarca, mensageira da morte, o que
acontecerá com elas duas, recebe como resposta: "apodreceremos
juntas". As botinas tendo sido levadas pela mãe do noivo, e o jarro
tendo desaparecido, a estirpe de mulheres não se reproduzirá mais.

A questão da mulher e seu desejo é réspondida aqui pela


invisibilidade do homem. Aquele nada a que se refere Jacques-Alain
Miller em seu livro De muj_e'!.~)!.... !.~'!_l!'_~t:~1!s4, que em tradução
minha, cito a seguir : "~_ggç-~!!!~S semblante? Cha~amQ.~ de
-------- - .- ~

178
Elza Marques Lisboa de Freitas

semblante ao ~ç_t~!!!~-ª~~.!~. QJJª~ª· NifilO Q véu é..QJJ..[Ín~~iro


~------ -_..,______
semblanteeifato .. que, com__E__!~§~~a---··-·-· história e a---
é uma pre~C_\!~Ç_ã~ __c_O!:)SJan.~cia hu~~-i~~xelar.,_cobrir_ªs.
antropologia:
- - ----·

m.Ülh.~re.s
---- p.orq_u~ -~ !!!!,llher
- .
não se _pode de~c~}?rif.
---··--- - De tal maneira
·que há que inventá-la. Neste sentido chamamos mulheres a estes
sujeitos que têm uma relação essencial com o nada. É uma expressão
prudente, de minha parte, porque todo sujeito, tal como Lacan o
define, tem uma relação com o nada. Mas de cef!.9~~~<?? es_~~s
sujeitos que sã__Q_.!!!..l!!h.~res
•---::.. _______ --
. -
·--,.,_.
têm -·-·
urna·- relação mais essencial, mais
- · - - - - ---· - - - ... ·------
próxima, com o nac!.~'~ _
----------··· . --·
As botinas e o jarro são ainda semblantes do homem, este invisível.
Uma vez banidos de cena, restam as mulheres, sustentando com a
máscara inscrita na carne, pelas chagas e pelos furos, este nada.
Botina, jarro, máscara e palavra ocupavam ainda o lugar apontado
por Jacques Lacan como o do Outro barrado. Como todos os seus
personagens, nesta<; mulheres Nelson aponta, na mediocridade de
um cotidiano, o mesquinho, o patético e, nos melhores momentos, o
trágico. Em sua cultivada cegueira, em seu horror cravado na carne,
a elas não é dada a saída mística. Apodrecerão sem remédio na falta
de um Outro absoluto por cuja mediação a degradação da palavra
lhes salvaria a vida. Repudiam, junto com a visão do homem, até
mesmo aquilo que sendo nada poderia cindi.-las. Ka frase
ªf!..odreceremosjun~f!!...E.ãO há mais gozo, nem de~~jo.

Vejamos Çolett_ç__fu,~r em seu livro Variáveis do fim de analise 5:


"na relação com a castração, as mulheres recebem o valor fálico do
Outro, mas não podem se apropriar desse valor. (... ) Ela não se
apropria como mulher, mas sim como mulher na relação .com o
homem, passando pelo Outro barrado". Na verdade Nelson
Rodrigues, entre outras coisas, denuncia nesta peça este ponto de
estagnação que pode ser escolhido, onde frentt; --
--- - -·-a- --,~--
vacilação
fantasia, sacrificando,até mesmo a maternidade, um sujeito pode
-· ---
da.
-. .

-----·· -- ·-- ·----.---- - -- . -. .. •. .

179
..r Mulhtr

trair o amor. to~ando por ~a~da ~ e!nparedame~to na ".'irtude.


Há sem dúvida wna trágica e equivocada busca de wna ética por estas
mulheres. Busca que se equivoca no pathos, no sensível. Impasse. A
castração se consentida por elas, no reconhecimento do Outro barrado,
num paradoxo, as exclui do micro universo simbólico onde se isolam e
se reconhecem. Na verdade este paradoxo é nossa perplexidade e falta
de escolha frente a não existência do Outro absoluto. Situa-se na beira
da falha abissal, do abismo. A busca do autor, por muitos aproximado
em seu estilo do expressionismo alemão, do parhos, destinado a mobilizar
o espectador, se lança ao ethos. Mediação da razão neste caso pela fo1ma
de obra literária, Teatro.
Desta ética porém só podem as personagens - que como nós não se
sabem enquanto tal - chegar perto por duas vertentes. A do
velamenteo pela máscara fálica em sua obscenidade, breve contra a
• - -z- - - . ~-· . - ---

1ux úria da qual emana, vazio. semblante sustentando o desejo


denegado, e pela chaga. putrefação da beleza. mortificação, queda
enquanto objeto para o olhar do homem. O homem na peça traveste-
se com a invisibilidade, que resulta como resto do impossível da
relação sexual e de sua inapreensibilidade pela linguagem.
1"0TAS
l. LACAN, J. - Le Séminaire. Livre VII: L 'Éthique de la
Psychanalyse, Paris, Seuil. 1986, p.169.
2. RODRIGUES, N. - .. Dorotéia", in: Teatro completo de Nelson
Rodrigues, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1981.
3. MAGALDI, S. - "Prefácio'', in: op. cit., vol.2.
4. MILLER, J.-A. - De mujeres y semblantes, Buenos Aires,
Cuadernos dei Pasador, 1993, p.85.
5. COLEITE, S. - Variáveis do.fim da análise, Campinas, Papirus
Editora, 1993, p.207.
180
"Do amor e da letra": recortes de duas
histórias
Vera Pollo
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise

O amor e o desejo

À que~ão_ o que é um~mul_h_er para um homem, Freud nos dá algumas


respostas. Ela pode ser a mulher do_ amor, ou seja, ~ - que o
alimentou, e a quem ele dirige um amor profundamente narcísico. A
mulher do mundo, como o século XVIII denominava o gozo
feminino. Ou ainda, a mãe-terra, a morte em cujos braços ele
encontrará a satisfação, finalmente, plena'. Ao indagar o que é um
homen:i. p_~!l. uma_mulhe_~!_ Freud encontra no laço entre o filho-
homem e a mãe-mulher o mais isento de ódio de todos os amores,
bem como no laço entre a mulher-mãe e o homem-fi)bo, espécie de
resolução da inveja do pênis via maternidade, o que lhe parece ser o
modelo de um matrimônio feliz.

Da tendência masculina universal à depreciação do amor, Freud


deduziu um movimento centrífugo, divergente: a dificuldade para
~~~!!!~~-~e__ç<1n~iliM,_Qllll!ªJiº- mulher,.Ji~J:io..~ ~1_n~E ou amor e
~ozo. Mas, as histéricas parecem ter lhe ensinado mais. -Pois,. em
1899, já escrevia a Fliess que "a histeria (e sua variante, a neurose
obsessiva) tem sua principal trajetória na identifica~~~~Q.m_a p~ssoa
.amada"2• Posterionnente, Freud verificou duas nuances na mola da
de ter o gue §e ama e
identificação, diferenciando-as entre o desejo ;:::a
o desejo de ser.Q..IDle se o.d,eia, mas que é amado pelo outro. Verificou
que, numa mulher, desejo e amor podiam aparecer quase
indiferenciadas. Ou melhor, como nos diz Freud, o sintoma hi~térico
181
,r Mulhtr

poderia ser a expressão em ato do desejo de estar na situação de


quem recebe algo equivalente a uma, 'carta de amor', no exemplo
que se tornou clássico d~§,i.Q,.vens d{É6nsio~ato. Identificação direta
com o sintoma, enunciou Freud. O path-;;:lbe seria então posterior.
Desejo de desejo, traduziu Lacan, desejo que é do Outro, em cuja
presença o inconsciente se faz sintoma.

Elevando à dignidade de homenagem as palavras de pura poesia


que escreve para Marguerite Duras, Lacan nos lembra que ·~
~-~!!~-t~-~-aj~~ ~<_? !-11!_º! C?rtês cobria na ~erdad~_~m déficit: __o
~~_prC?_~i~~u~~~d! do casame_nto,,~. Forma de amar que, por outro
viés, lhe ensinara que dar o que não se tem - a verdadeira cortesia
amorosa- era possível aos homens e mulheres, como para a' Jovem
Homossexual' de Freud. Subversivo, Lacan nos dá a entender que o
verbo 'dar' conjuga-se sobretudo no masculino, pois, identificado à
mulher, um homem 'cria': aparência, falo imaginário, semblante de
criação no mundo. Do1
Arrebatamento de Lo/ V Stein, Lacan deduz
não apenas uma demonstração de que o amor é "a imagem de si de
que o outro nos veste e que nos reveste e que nos deixa quando nos
despem"\ a nudez se impondo em conseqüência da perda desta
imagem, mas também de que a realização do fantasma de um §Ujeito
pode implicar três personagens que se atravessam uns aos outros.
Isso porque o desejo é uma espécie de 'ser a três', quando, entre o
sujeito que desaparece, no momento mesmo em que é representado,
. -
e o Outro, cujo objeto é o que se sustenta como causa, algo faz as
vezes do Um, que pode ser o imaginário do amor ou o significante
fálico, sempre ímpar.

Recortes de duas histórias

Hilda Furacão é personagem do romance homônimo de Roberto


Órummondl, que a quer uma "versão moderna de Cinderela". O
primeiro capítulo é sobre "um homem morrendo no quarto". Trata-
182
Vera l'ollo

se do pai do narrador, que, confonne ele diz, "está morrendo, e ri".


Há uma mulher, de quem se suspeita que seja o demônio e há wna
referência aos deuses, porque"( ... ) o rio é um deus castanho ... ".

Embora tendo início num jogo de non-sense, em associações_ entre a


morte e o riso ou entre mulheres, demônios e deuses, a história gira
fundamentalmente em tomo do desejo de um personagem masculino
de decifrar o que lhe parece uma mudança inexplicável na vida de
uma mulher.

Trata-se do enigma da Garota do Maiô DourC1do, que trocou as


missas dançantes do Minas Tênis Clube pelo quarto 304 do
Maravilhoso Hotel na Zona Boêmia. Tudo se passa na antevéspera
do golpe militar de 31 de março de 1964. Ficamos conhecendo o
perfume preferido de Hilda: o Muguet du Bonheur e também que,
nessa boa hora, um séquito de coronéis do interior estava em fila,
com seus charutos feitos de notas de mil.

Hilda será exorcizada, mas, aos moldes da metáfora freudiana do


encontro entre o moribundo vendedor de seguros e o confessor que
deveria Lhe dar a extrema-unção e que sai do quarto com uma apólice
nas mãos, ela não sairá de seu lugar, ao passo que o jovem seminarista
que pratica o exorcismo, sairá dali completamente transtornado.
Rouba-lhe um sapato, embriaga-se de seu perfume e começa a
chicotear-se todas as noites, até o momento em que abandona o
hábito; hábito que decide o que é ser monge. Após um período de
hesitação, resolve marcar um encontro com Hilda, quando então
fugiriam para viver juntos. Não se dará o encontro entre Hilda e o
jovem seminarista, chamado por seus amigos de Santo. O local e a
data haviam sido combinados e ambos compareceram, mas o tempo
de espera foi longo demais para Hilda, que partiu quinze minutos
antes da chegada de Santo. Ao ir embora "um calafrio tomou conta
de seu corpo, mas ela não pensou".
183
Outro jovem - seu colega, repórter de profissão - do lugar do Um,
que se auto-excluiu da lista dos que sofrem do 'mal de Hilda', faz,
ele próprio, a contabilidade que é dela: "um mínimo de trinta homens
por dia". Atribui-se também a tarefa de decifrar o enigma da jovem.
Sua forma de fazê-lo é obter de Hilda a promessa de que um dia ela
o revelará.

Levanta, no entanto, duas suspeitas. A primeira é de que Hilda sentiria


---··----
necessidade _ge_ ser__amada por um maior número de homens. A
s~g~da de que "~ua úni~-~~han_f~ber-o que uma mulher sente
- --- -- - -- ·- - - ..
quando faz amor com o homem que ama, era ganhar a disputa com
-:iesus Cristo". ------------ ------· ---------- - -- --_ - - ~ -- - -- -

"Esquecida da velha promessa de revelar o segredo de seu enigma"


- como nos diz o texto -, Hilda responde ao amigo: "porque você
não diz aos seus leitores que, tal como você escreveu em seu romance,
eu, Hilda Furacão nunca existi? Porque não diz isso?"

Espécie de Don Juan de saia, ela é simultaneamente a criação e o


desmentido do enigma da mulher, aquela que faria o gozo de todos
os homens. Sob a aparente infidelidade de Hilda - necessidade de
amor ou disputa com Jesus Cristo?-pode-se ler uma certa fidelidade:
no mesmo chapéu, no charuto sempre igual, na parceria-rivalidade
com Cristo. O leitor fica sem saber se ela possui ou não a chave de
seu gozo, aquela que desvelaria seu enigma.

A segunda história é a de Merinha, que age diferentemente.


Personagem da epopéia lírica de João Ubaldo6, Viva o Povo
brasileiro, o autor a situa para nós: "nove anos se passaram, talvez
dez, certamente mil e mais cem, e Merinha sabia que seu semblante
de Penépole não era só dela, era parte da vida das mulheres".

Nessa conjunção do simbólico e do imaginário, em sua oposição ao


real e não ao ser-como define Jacques-Alain Miller7 o semblante - ,é
184
Vera Pollo

a fidelidade que se faz ver e que se opõe ao não visto. Budião, seu
homem, "preferia sempre chegar de noite e currichiar como um
pássaro noturno junto ao portãozinho dos fundos, até que ela viesse
atendê-lo". Amavam-se às escondidas.

Ela sofre da "lembrança da memória do corpo todo". Mas que corpo


todo? Budião pede-lhe força e "( ... ) encosta a cabeça e a cara no
lugar do amor, abrindo-lhe a racha delicada( ... )".

Merinha, por outro lado, diz saber: "ah, eu sei, eu sei, a mulher sabe
dessas coisas, é uma coisa que vem no peito, uma sensação que dá
de noite, um negócio que vem de manhã cedo, um apertume que
ataca no meio do dia, uma vasca que chega na hora de dormir. Eu
sei! Eu sei que ele nem está morto e nem me largou!"

O que faz a "mulher guerreira" nesse texto é menos sua espera do


que uma espécie de crença no "homem belo", belo ''como um
brinquedo novo" e que ela sabe "cobiçado pelas outras''.

A narrativa nos diz ainda "que as mulheres fiéis haverão sempre de


existir, fiéis até a loucura, a insensatez, a falta de juízo, isto porque
são leais a seus ventres".

Mas o que representa a fidelidade de Merinha, se transando com "o


homem belo" é antes com a lembrança de sua raça que ela transa?
Assim, ensina-lhe por exemplo "a mais velha número um": "a
(mulher) que vem do povo plantador de pomares e hortas, acha belo
aquele (homem) cujos braços desde o avô que se vêm alongando
para colher o fruto e rapar a terra".

Merinha encontrará a angústia do desejo do Outro, reconhecendo seu


homem num 'vulto'(tiquê), espécie de retomo do mesmo, déjà vu.

Não importa que 'o vulto' lhe diga estar chegando naquele instante.
185
A' Mulher

Tampouco que fique de pé sem saber como, que apure a vista e não
enxergue "nenhum dos traços do homem, cobertos pela sombra do
chapéu". Nunca ouvira aquela maneira de falar, aquelas ''palavras
pronunciadas como se tivessem mais sons". Um sentimento a afeta:

"Que coisa esquisita - ela já não tinha estado num acontecimento


igual a este, fazia muito tempo? Virou-se para onde ele apontava,
viu um vulto contra a luz dos farolins, um homem desmedido, de
botas de cano alto, chapelão enterrado testa abaixo, um pano pesado
que lhe descia em pontas ondulantes lhe cobrindo o tronco até a
cintura, metais faiscando nas botas e pantalões".

A certeza, que arranca o sujeito da angústia, virá logo a seguir. Apesar


da quase compl<:ta impossibilidade de identificar os traços do homem
e da sonoridade exuberante de sua fala, "mesmo assim não se
enganou, porque logo sentiu que aquele embuçado brotado da
escuridão, ali postado como um tronco de árvore grande, era Budião,
regressando da luta e vindo ter com ela".

O que encontramos nesses dois recortes de histórias são dois


semblantes de mulher, que se situam em pólos opostos: a pura
infidelidade e a fidelidade máxima. O que se revela no avesso de
ambas é um indecidível entre a fidelidade e a infidelidade. Fiel a
significantes imaginários do falo, como o chapéu ou o charuto, Hilda
se mostra infiel aos homens. Mostrando-se fiel ao 'homem belo',
Merinha, por seu lado, não visa senão ao filho belo. Dois semblantes
~e mulher, duas máscaras de gozo.

Pode-se dizer que _ambas são fiéis a um mais além do parceiro


masculino - seja o Cristo ou araça-e que são portanto infiéis,.embora
. \ .de forma difere~_.

~ O caminho da feminilidade
Em seus últimos textos sobre sexualidade feminina, Freud ponderou
186
Vera Pollo

que "um~ repetida alternância de períodos, em que predomina ora a


masculinidade, ora a feminilidade" - como no mito de Tirésias -
''explicaria parcialmente o enigma da mulher"ª. Apontando, desse
modo, para a existência de dois gozos, não abriu mão, no entanto,
de reconhecer, na his~ria, uma 'neurose feminina' e no desejo de
pênis, um desejo par exéel/ence feminino.

No mesmo caminho, Lacan9 formulará a histerya ~..orno suste~ta~ão,


no disçurso, da questão sobre o que vem a ser a relação sexual, sobre
as modalidades que encontram os sujeitos falantes na impossibilidade
de sustentar a dita relação, guiados que são pelo significante ímpar.
No ato sexual; por outro lado, o sujeito se faz acompanhar não apenas
pelo parceiro real, mas também por suas identificações. De certo
modo. o sujeito no ato sexual nunca está sozinho, pois não é enquanto
sujeito que ele aí se encontra, mas enquanto o objeto que caiu do
Outro.

Se o caminho da feminilidade, como propõe Eric Laurent 1º, é


Japrender a fazer alg_o_~~~-~_n_a_da1_1_,_ com a falta do significante que
\ diria o Outro,2_e_ ele_e~~tis_s~ ~t~!J{I!1_9= ~~_riho, qu(?, se~uin_do
j Freud,_~-~~ explic!~u, "da co_n_ye~~ên~!~entr~~ ~~~o inc~~_sc~~nte
e a prática da letra"'i.V

( Se existe alguma feminilidade, mais afastada ~p referencial fálico


'') simplesmente imaginário, ela se encontra n~~â-~c~,:~e no que

l
ele, como a interpretação analítica, con~~uz "d.~ue perdura de Pl:l.!}l.
perda ao que só aposta do pai ao pior'0, 1

É a letra que fomin;z:u~~ujei;:, conjugando, à diferença do


semblante, o real e o simbólico, em oposição ao imaginário.

NOTAS

l. FREUD, S. - "O tema dos três escrínios" (1913), Obras


187
.<Mulher

Completas, vo/. XVJJ, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969.

2. Idem, "Extratos dos documentos dirigidos a Fliess", carta 125,


op. cit., v. I, p.177.

3. LACAN, J. - Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, Lisboa,


Assírio e Alvim Ed., 1989, p.129.

4. Idem, Ibidem, p.126.

5. DRUMMOND, R. - Hilda Furacão, São Paulo, Editora Siciliano,


8ª edição, 1991.

6. RlBEIRO, J. U. - Viva o povo brasileiro, Rio de Janeiro, Editora


Nova Fronteira, 14ª edição, 1984.

7. MILLER, J-A. - De mujeres y semblantes, Buenos Aires,


Cuademos dei Pasador, 1993, p.8.

8. FREUD, S. - "A Feminilidade" (1932), op. cit., vai. XXI, p.180.

9. LACAN, J. - O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise,


Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.

l O. LAURENT, E. - "Posiciones femeninas del ser", in: Sexualidad


Femenina, Buenos Aires, Edita E. O. L., 1994.

11. Ou seja, o que se distingue do vazio imaginário da demanda,


onde o sujeito histérico se agarra.

@)LACAN, J. - Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, op. cit.,


p.125.

(g. Idem, Télévision, Paris, Seuil, 1974, p. 72.

188
"Mulher é desdobrável" - a mulher e o
semblante
Ana Martha Wilson Maia
Psicanalista, correspondente da Seçdo Rio - Escola Brasileira de Psicanálise.
Mestrando em Psicologia Clinica, PUC-RJ

Eu gostaria de introduzir o meu trabalho com uma poesia de Bruna


Lombardi 1, intitulada Fantasia:
"Resolvi, raspei as pernas e as axilas
um vestido vennelho decotado
batom borrado
e fui pro teu apê
sentindo um calor de cio
o tempo todo um arrepio
tesão de gato selvagem.
Resolvi, tomei coragem
dois copos de dry martini
sapato de salto alto
e toquei a campainha
sentindo um frio na espinha
um medo de não agradar
ele há de me dizer te quero
ele há de me querer pra alguma coisa
já que ninguém me tira pra dançar."

A personagem deste poema é uma mulher que se prepara para um


encontro amoroso revestindo seu corpo com signos identificatórios
femininos: o vestido vermelho, o batom, o corpo depilado, o sapato
de salto alto. Uma mulher que se mascara para se oferecer a um
homem, ansiando dele"'···--receber
-··-----·...__... amor. Mas mesmo com toda essa
- .... - .. ·-

189
tf Mulher

produção é preciso tomar coragem e 'dois copos de dry martini',


porque há o 'medo de não agradar', o medo de que mais uma vez
ninguém a convide para dançar.

Em 1932, Freud colocou a feminilidade como um enigma qu~ a


psicanálise não se propõe a desvendar, mas "se empenha em indagar
como é ~ a mulher se forma, como a mulh~senvo_lve desde
~riança dotada de disposição bissexual" 2• Freud tinha em vista q~e
essa· procu"ra de se dizer sobre a especificidade do feminino se
encontra como impossível. O feminino permanece como enigma
justamente por não ser passível de definição a partir de si próprio:
não há uma insígnia propriamente feminina. Freud, então, coloca a
feminilidade como uma conquista a ser realizada pela menina que,
diante da castração, escolhe um dos seguintes caminhos: a neurose,
o complexo de masculinidade ou a feminilidade, onde o tomar-se·
mulher equivale ao tomar-se mãe. O vir-a-ser feminino na teoria
freudiana é paradoxal, na medida em que a menina precisa
transformar o desejo de pênis em desejo de ter um filho.~
considera gue ness~uacão
~C:- =-=- p_ênis-filho alguma coisa fica de for'!_
no _q_ue se refere ao de~ejo feminino. que não é obturado pelo desejo_
de filho. Justam_ente por não ter o falo, a mulher ~e faz dele. A mulher
y~.er o gue ela não tem.
A relação sexual é uma relação de parecer, de fazer semblante,
onde o homem está no registro do ter e a mulher no registro do
ser. O homem, na verdade, não possui o falo. Ele tem um pênis
que é investido com valor fálico. Ele faz máscara de Ter, enquanto
a mulher
a:
faz máscara
........
de s,r. No âmbito jmai:ináu,p, a homem_
.~tege 9 que po.ssuLe..aJ!lulher se mascara para.encobrir o QUe
não tem, fazendo-se de falo.

Se 'ser o falo' e uma fundamental invenç~o de Lacan da época dos


Écrits 3 (1958), em re9no J:!ais, gindq 4 ele oferece a sua
190
Ana Martha Wilson Maia

contribuição para a questão do que quer uma mulher através da idéia


de 'a mais' e de 'não-todo'. É a existência do gozo fálico que faz
crer num gozo para além dele mesmo, o__Eozo-a-mijis, ~
suplementar ao_fá,ljçq, gozo in~es~ritíve~, do qual algumas mulheres,
os poetas e os místicos testemunham, mas ninguém sabe dele. Apenas
uma parte do gozo feminino é passível de ser dita pelas palavras,
aquela em que se trata do gozo fálico. A outra parte é a que para
Freud se fez enigma: a sexualidade feminina se situa, com a sua
outra parte, num mais além do falo. Por isso, na partilha dos sexos,
Lacan diz __9E_U-IDJ,1lher__~st~ na posição do não-todo. Isso traz
- - - --·-· --·-· -·- -- · - ·- -----
~onseqüência~ para a mulher, COI1)9 a fallt1_ de uma id~gtic!_a<!~
feminina. Daí ela recorre às máscaras, se faz de falo, denunciando
--------·-
que para além do véu, do batom, do esmalte, há o que se constitui
como o seu maior mistério: o gozo feminino. Não eIÇi~tindoA.rowher
e~- modelo feminin<?._9~ identificaçãoJ é_p~cj_s<;>_q1_.1_e _~_a.d~ urna,
c~-d~ Ill_lllh_~r, procure crjar .mna imagem_de..tn_ul_~r .Q~_a si.

Ao aforismo lacaniano '1_,mulher não existe' podemos acrescentar


uma colocação de Miller que diz que isso "não ~_gnifica que_Qll!W
dc1._E1ulher}1]0 e~ist,a,_ s~n!9_~~ esse _h!g~~rmanec~ ~~s~_nci~ente
vazj-9~...E_C!.Jª-to de_ g_~e__~sse lugar fique v_aziQ, 11ãc_> imQe~q!,l~ _se
pQ_s~ª en~trar algo ali. Nesse lugar se encor1:~AID SOI!!.e11Je f!l!iscaras;
m~~car~~9ue são máscaras de nada, suficiente_s para j_t.ls_g!icar a
conexão entre mulheres e semblantes" 5 • Para Miller, ao contrário do
que se acredit~:- ;~- ~Ülherei-não são a melhor forma de
exemplificação do semblante, mas sim os homens com seus
semblantes culturais, tão necessários para protegerem o que possuem
- 'o pequeno ter'. Miller, então, coloca as mulheres do lado do real,
elas são 'amigas do real' como ele diz, porque não aceitam bem a
idéia de se tapar o real com o significante, como se intuíssem que o
real escapa do simbólico. E_ntão, as_l!l~~e_r~~-- C<,J~O inimig~~ d()s
semblantes
..
culturais estão do lado
- -- -
do real
--
sempre- denunciando
- -- - - -· . - -
essa

191
A'Mulll~r

impossibilidade
- - --
-· .
de se recobrir
- - - ----- - --
. .
.
o real com o simbólico,
-- - - - . --· --·· . .
de encobrir a
falta, já que por trás do véu pennanece o buraco. Uma outra definição
de Miller: "o semblante é aquilo que tem função de velar o nada''6. E
no caso da mulher,a relação com o nada é mais estreita porque a
mulher necessita ser coberta, velada; não se pode descobrir A mulher,
somente inventá-la. A melhor solução para a mulher está do lado do
ser: ser o buracQ,_ fabricar wn ser a partir do nada, saída que se
dist~cia da matemi~po~~e~plo, que está do lado do ter, a
saí<lac:Tássica paraFreud. - --- - - - - . -- - - -- - -

Essa relação da mulher com__o semblan!e aparece constantemente na


clinica da histeria, como no caso de wna jovem atriz que quase recua
ao ser chamada para interpretar a principal personagem feminina de
wna peça, uma mulher cheia de encantos, uma mulher maravilhosa
que ela acredita ser impossível de interpretar. Ela pensa que não
pode fazer A mulher. Eu digo que ela quase recua porque ela acaba
aceitando o papel: é escolhida, entre outras atrizes, pelo diretor, com
quem está vivendo um romance, sem entender bem por que ele a
escolhe tanto para a peça, quanto para ser sua mulher. Ao final, ela,
insegura, encarna a personagem no palco, mas não suporta sustentar
essa imagem na cama. Sem as vestes, toda nua. o corpo da mulher
se revela, é o segredo, é o mistério. O que faz, então, um homem
desejá-la? Tomada de angústia, sem a máscara da mulher ideal que
usa no palco, minha paciente não suporta ficar no lugar de objeto ao
qual o desejo do homem a reduz.

Na literatura, essa poesia de Bruna Lombardi 1 exemplifica como a


mulher recorre às máscaras, como faz semblante para inventar A
mulher.1'."las ~u!_el~-~-~1!1 _11ão acredita 110_ semblante e escolhe a
1saída do ter. Esp~~eber alguma coisa do homem e como fica na

espera, não é à toa que ninguém a tira para dançar.


--------- ------- - . - ·-

Para finalizar, eu gostaria ainda de tecer alguns comentários sobre


192
Ana Martha Wilson Maia

uma poesia de Adélia Prado que se chama Com licença poética1. Na


-r. -----
verdade é um diálogo que ela estabelece com outro autor, um poeta
do sexo masculino, como faz de hábito. O poema com que Adélia
dialoga se intitula Poema de sete faces 8 e é de autoria de Carlos
Drummond de Andrade, onde ele diz:
" Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos, ser gauchc na vida.

As casas espiam os homens


que correm atrâs de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta o meu coração.

Porém meus olho5 nlo perguntam nada.

O homem atrâs do bigode


é sério, simples e forte.
Tem poucos, raros amigos
O homem atrâs dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é o meu coração.

Eu não devia te d.izer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo".

A esse poema, responde Adélia:


193
A Mulhtr

"Quando nasci um anjo esbelto,


desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfügios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, cn:io em parto sem dor.
'.::. t-i.§JL~U~$irLto e5qe'{O. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree
já a minha vontade de .alegria,
sua raiz vai ao mm mil avd.
Vai ser coxo na vida, ~ maldiçAo pra homem.
Mulher é desdobravel Eu sou•.

Enquanto o personagem de Drummood. Carlos, é fraco, ganche,


tem poucos amigos e fui anunciado por lDll anjo torto, a personagem
de Adélia teve seu destino ammciado com trombeta, por um anjo
esbelto. A posição da mulher diante da astração é outra. Só o homem
pode ser coxo, só o homem sofre ameaça de perda. Já a mulher, ela
não tem desde sempre. Essa é a bandeira que carrega, um •cargo
muito pesado pra essa espécie ainda envergonhada' que acredita que
pode casar, queaJguém vai desejã-la, que vão tirá-la pra dançar diria
Bruna. E a personagem segue sua vida escrevendo, inaugurando
linhagens - vale lembrar que a matanidade é tema constante em
Adélia, assim como casamento, familia, religião e vida quotidiana.
A ,identifi~~nli~ se dá pelo enlace com o significante
'alegria', cuja origem está no •mil avô'. Mas coxo 'é maldição para
homem'. Ela não tem nada a penice e se coloca do lado do ser:
'mulher é desdobrável. Eu sou'. Mulher ~ela ,eara muitas
identificações, aoeita os subb:rfilgios que l h e ~ que lhesão
impostos.· PÔ~ fu aiblant.e sem pn:cisarmentir. A mulher não
acredita nas
·-------
máscaras, apesar de
-··
preéisar -
-·--
delas. Nesta disti~ção da
- . -
194
Ana Martha Wilson Maia

relação do ho_El~Il] ~ e.ia m1,dh.e_rç_çm1_9~mblante, podemos dizer


com Drumrnond_~e-~ ho_mens se _~condem -;tisdos-ócÜlo; ~·do
bigode. Etfo" séri~_um homem atrás dos se~blantes!-Séri~ f~nclo
série, pois faz parte do conjunto dos homens, é contável. Já a mulher,
como não existe um significante que a identifique com as outras
mulheres, a mulher não faz série com elas. Não faz conjunto e neste
sentido é incontável, mesmo quando inaugura linhagens ou funda
reinos, porque cria linhagens que não carregam o nome dela._As
mulheres não fazem série, por isso n!o_são sérias.
J·-----·------- -
NOTAS

l. LOMBARDI, B. - O perigo do dragão, Rio de Janeiro, Recorei,


1984, p.38.

2. FREUD, S. - "Novas conferências introdutórias à psicanálise",


'A Feminilidade' (1932), Obras completas, vol. XXII, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1976.

3. LACAN, J. - Écrits, Paris, Seuil, 1966.

4. LACAN, J. - O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor., 1982.

5. MILLER, J-A. - De mujeres y semblantes, Buenos Aires,


Cuademos dei pasador, 1994, p.84, nossa tradução.

6. Idem, Ibidem, p.85.


\ -\

V(0 PRADO, A-Poesias reunidas, São Paulo, Siciliano, 1991, p.11.


8. ANDRADE, C. D. - Reunião: Dez livros de poesia, Rio de
Janeiro, José Olympio Ed, 1978, p.3.

195
A Mulhu

A escrita feminina e o semblante


Ange/a Batista
Psicanalista. membro aderenle da Escola Brasileira de Psicanálise

"Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário"

Clarice Lispector

"Escrever não posso. Ninguém pode. É preciso escrever. Não se pode. E se


escreve".

Marguerite Duras

A obra literária como ato criador supõe um fazer subjetivo que


apontaria para wna opacidade da letra, e nos remete ao objeto
enquanto causa de desejo.

Partamos da tese segundo a qual o feminino seria o que se quer


escrever, do mesmo modo que é o que mais resiste a se inscrever;
seja no corpo anatômico, seja no campo simbólico da linguagem.
Podemos assim destacar que a obra literária, em sua função de causa,
ressalta algo do que nos propomos pensar relativo ao feminino e IA
Mulher.

IA Mulher representa o Outro absoluto, fazendo girar tudo em tomo


do falo imaginário, estando em posição do Outro que não tem.
Portanto é do lado da mulher que a incompletude se faz marcar. "A
mulher não existc" 1 é o aforismo criado Lacan para mostrar que o
significante que viria representar o sexo feminino como tal é faltoso.
196
Angcla Ba11s1a
.,-,
Lúcia Castelo Branco, em seu texto Para além ---
- - do- sexo - -
da- --escruJi)
diz que não devemos entender o feminino como relativo às mulheres.
-, .

Entretanto, ao escolher o adjetivo feminino para caracterizá-lo, admite


que algo relativo A Mulher esteja aí presente. Ressalta nesta escrita
o excesso de linguagem, priorizando mais a voz, o som que o sentido,
mais o como se diz que o que se diz, mais a coisa que o signo. E é
especialmente aí que o feminino e A Mylh~i;_se iI!_terligam, uma vez
~J1ª_m_ulher ~_!}a escrita femininiu;,_ ç_Q!"QQ _o~UP..ª-.J!m lugar
privilegiado.
------------ Ainda-·---
se referindo
---. --
à especificidade desta escrita,.,......__
-- . - --- - ------·-- - . -
.
ela ..

diz que "esse percurso pela materialidade da palavra que procura


faier
--
·do signo a própria
--- -------- co1sa e ni~ uma iepresentação
------- --- - -----· -· - -- - --
da ~o isa
- - - - . -
é
.

típica da escrita feminina" 3 •


Nos perguntamos com Lacan se esse apontamento para tal
especificidade, não diria respeito ao que está indicado na Função do
,scrito: "tudo o que está escrito parte do fato de que será para sempre
impossível escrever como tal a relação sexual"•. Não será justamente
este o apontamento do discurso analítico?
Podemos diferenciar no ensinofa-L~can dois momentos cruciais
com relação ao nosso tema. Err(_l 958.Jlo escrito La sig_!}_if}Ea~g_ruj_~
p~s, quando se refere à masêãiada feminina e nos anó(7?_:.·º
conceito de semblante. Assim sendo, em 1958, nos dá a noção a
partir da intervenção de um parecer para ambos os sexos. No caso
da mulher, ele diz: "por mai~_Earac!_ox~l que ~ssa parecer essa
fonnulação,
----- - - ·-dizemos
-
que
-
é para ser o falo, isto é, o significante do
-··--· ·-- -·- ---·- .. - - ..
desejo do_Qu!fg_que a mul_her v~i r~jeit~__ uma paT!_e essencial d~
feminilidade, principalmente todos os seus atributos na mascarada" 1.
Mascarada feminina que enc~b;e ~-R~al. A -mulh~; se faz passar
por aquilo que não é, fazendo de conta que é, modo de dar
consistência ao seu ser. -~ pelo viés de um semblante que podemos
~itl!~-ª-e~cri!ª_Ht~ráriª-com~ _te_n_do relaçã~_cQÍn Ãlviulb-er, e~ffãltã·
de um significante próprio à feminilidade.
- -- ---
1
-~ , , f(_-., -==-~ ~í _y ~i-/ 1) '._ i: ev-.---i: 197
Lacan, em Televisão, nos dá uma indicação quanto a esta questão:
"não há discurso que não seja do faz de conta, do semblante"\~. .
escrita literária tece um semblante da relação sexual que não pode
ser escrita. A trapaça significante viria~ aí se apoiar na materi~frd~de
da Têtr~:-para dizer então o que não pode ser dito. Será portanto do
lado mulher que o feminino na literatura insistirá em se inscrever
ainda que não todo, dando uma vestimenta ao Real como impossível.
No semblante é o Simbólico que vem encobrir o Real. Entretanto
resta sempre na abordagem da feminilidade um Real não subjetivável.
A Mulher é, no que concerne à função fálica, à castração, não-toda.
Há algo nela que escapa ao discurso'. Lacan assim procura abordar
o gozo a partir de uma divisão entre um gozo fálico e um outro
suplementar, heterogêneo ao significante. E será na interseção desses
dois campos que a questão da feminilidade irá se colocar, revelando
onde estes dois gozos se recobrem ou se disjuntam. É do lado mulher
que a questão fálica encontra seu limite, onde a sexualidade não
pode ser pensada como uma totalidade. A Mulher não faz conjunto;
ela é o que vem fazer objeção a que haja um todo.

O feminino na literatura nos interroga sobre o que vem a ser uma


mulher. A diferença dos sexos não faz a diferença por si. Algo é
sexual enquanto opera a diferença, sendo que essa entra na língua
pela função da linguagem. Pela linguagem IA Mulher não tem
universalidade, é o significante com o qual se designa a possibilidade
de dizer a contingência.

O estilo da experiência literária é o que viria colocar um limite na


universalização. Destacaremos na literatura, duas escritoras,
Marguerite Duras e Clarice Lispector, para ressaltar tanto o lugar da
escrita como causa de desejo quanto o gozo feminino, que abre o
espaço para uma redefinição da verdade que IA Mulher encarna

Marguerite Duras escreve sobre personagens femininos que se


198
Angcla Dathta

defrontam com questões relativas ao vazio, havendo uma certa


'mulheridade' que insiste em seus textos na falta de um significante
que inscreva A Mulher. Há uma fonna de escrever que nos traz a
idéia do véu, que vela do mesmo modo que mostra, ao estilo noveau-
roman.

Será a partir de 1964 através d' O Deslumbramento de Lo/a V. Stein,


que podemos destacar o desaparecimento de uma direção controlável
e a impressão que temos é a de que não é mais Marguerite que escreve
seus textos, mas são os textos de Duras que se escrevem; ela é apenas
o lugar da escritura. Assim, ela nos diz: "( ... ) estou incapacitada de
dizer como escrevi Lola (... ). Me é impossível dizer como isto foi
feito. Não se é responsável por aquilo que se escreve" 8•

Lola V. Stein é abandonada por seu noivo, Michael Richardson.


Vê-se diante de urna outra mulher, Anne Marie, que dança com ele
sem mais se separarem. Lola extasiada, arrebatada por esta cena,
segue-os pelo jardim e quando não mais os vê, cai no chão desmaiada.
Não há nenhum sofrimento, é um sofrimento sem sujeito - ela olha,
mas não vê - "( ... ) faltava alguma coisa a Lola, ela já era
estranhamente incompleta, tinha vivido sua juventude como uma
eterna solicitação do que ela seria, mas que não conseguia tomar-
se.( ... ) Lola escapa a qualquer definição, nada saber de Lola já era
conhecê-la"9 •

Assim Marguerite Duras, ao nos indicar em Lola urna indetenninação


quanto a algo que pudesse representá-la, ressalta o que dizemos sobre
A Mulher. Lola, ao confrontar-se com a falta de significante que
designe a mulher, vai em direção a uma outra mulher, Tatiana, em
busca de um acesso à feminilidade. É através do amante desta,
Jacques Hold, que Lola ama aquele que deve amar Tatiana. Assim,
é Lola que nos traz a questão das identificações e de sua
indeterminação. Lacan já nos havia apontado para esta questão
199
A Mullltr

dizendo que "o índice de um sinal que captaria o desejo do Outro, as


mulheres não cessam de rastreá-lo nas Outras" 1º.

Lacan faz uma homenagem a Duras sobre O Deslumbramento de


Lo/a V Stein que parece-nos interessante sublinhar. Assim ele diz:
"o que eu ensino, esta mulherzinha sabe" 11 •

A escrita de Clarice Lispector também nos remete para a presença


do Real em jogo. Trata-se de uma escrita onde o furo, o vazio, o
nonsense transborda. São os pontos de aparente desequilíbrio ou do
sem sentido que introduzem a dimensão da beleza enquanto aquilo
que vela ao mesmo tempo em que surgem possibilidades de novas
significações. Em A paixão segundo GH: "Por não ser, eu era".
"Enfim quebrara-se realmente o meu invólucro e sem limite eu era".
GH é a personagem mulher - "quero encontrar em mim, a mulher
de todas as mulheres" 12 •

A história parece simples, a de uma escultora de classe média que


resolve arrumar o quarto da empregada que teria ido embora. Supõe
que o quarto da empregada seja o quarto mais sujo do apartamento.
Constata que não é verdade. O quarto é límpido e claro e ao abrir a
porta do guarda-roupa, vê-se diante de urna barata que ela com muito
susto. mata e come. "Tenho medo desta desorganização profunda";
"arrumando as coisas eu crio e entendo ao mesmo tempo".

E dando palavras ao sujo e ao feio diz: "eu fizera o ato proibido de


tocar o imundo. Não quero a beleza quero a identidade".

Adentrar o fundo deste ·espaço e encarar o vazio dessa vida


solitária faz emergir algo novo. Neste enfrentamento lhe é
revelado um outro lado, uma espécie não de gozo, mas de desejo
em um apontamento para uma 'felicidade diflcil'. Texto cujo
percurso é de uma insistência em dar forma, dar sentido ao não
sentido, oscilando entre o desnudamento das máscaras por onde
200
Angcla Ballsta

o Real comparece, ao mesmo tempo em que insiste o desejo


indicando a criação de um novo modo de apreensão do Real.

Se a pulsão é o que faz comparecer o desejo, a pulsão de morte


enquanto pulsão destrutiva é o que quebra o sentido do discurso,
colocando em questão tudo o que existe, mas é também vontade de
criação a partir do nada, vontade de recomeçar como nos diz Lacan
no Seminário sobre a ética da psicanálise 13 •

A paixão segundo Gl-19 coloca-nos frente aos paradoxos do gozo, e


mais ainda, trata-se de um gozo, como apontamos, para além do
gozo fálico que tem relação com a incompletude do gozo do Outro,
ou melhor, com a inexistência do Outro.

Finalizando, ressaltamos que a escrita do feminino por mostrar a


falta ou a dor da falta, pode ser entendida como um apelo ao Outro
no sentido de causar desejo, uma estratégia feminina de manter um
véu sobre a verdade que ela própria encarna, ainda que não toda.
Duas posições diferentes frente a mesma impossibilidade. E será
em tomo desta estratégia que o homem sempre amarã o que ocupar
o lugar da falta, embora ali só haja um véu. E A Mulher amará o
an10r que faz de Eros Um, ainda que avisada de sua fugacidade.

NOTAS

1. LACAN, J. - O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 1982, p.141.

@BRANCO, L. C. - "Mulher e literatura", in: Revista Associação


, Brasileira de Literatura Comparada, Niterói, agosto/91, p.211.

3. Idem, Ibidem, p.213.

4. LACAN, J., op. cit., p. 38.

201
A'Mullltr

5. Idem, "La signification du Phallus" (1958), Écrits, Paris, Seuil,


1966, p.694.

6. Idem, Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993, p.66.

7. Idem, O Seminário, livro 20: mais, ainda, op. cit., p.139.

8. DURAS, M. - Escrever, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994,


p.19.

9. LACAN, J. - Joyce. Shakespeare, Duras: homenagem a


Marguerite Duras, Rio de Janeiro, Editora Portuguesa, 1990,
p.22.

10. ANDRÉ, S. - O que quer uma mulher?, Rio de Janeiro, Jorge


Zahar Editor, 1987, p.17.

11. LACAN, J. -Joyce, Shakespeare, Duras: homenagem a


Marguerite Duras, op. cit., p.17.

12. GOTLIB, B. N. - Clarice: uma vida que se conta, Rio de Janeiro,


Editora Ática, 1995, p.357.

13. LACAN, J. - O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Rio


de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p.259.

202
Entrevista
Gennie Lemoine
Paris. outubl"J dt! 1995

Ps1canal1sta, membro do Cartel do Passe da École de la Cause Freudienne. Critica


litcrâria i: tradutora, é autora de inúmeros livros, dentre os quais: Partage desfemmes -
Mulher nllo-toda, Rcvintcr Editora-, lu rêve du cosmonaute e la robe.

P - Gostaríamos que a senhora definisse, brevemenle, o que é a


condição feminina?
GL - Distingo posição feminina de condição masculina. Um homem
pode ocupar uma posição feminina. Do mesmo modo, o analista.
A condição é dada no nascimento pelos caracteres sexuais declarados
masculinos ou femininos, que Lacan qualifica de secundários para
significar que eles são apenas marcas simbólicas inscritas no corpo
como efeitos da sexuação. Enquanto tais, aguardam ser assumidos
subjetivamente.

P - Lacan formulou: 'A mulher não existe '. Anteriormente, tinha


compaarado Madeleine Gide e Medéia à 'verdadeira mulher'. O
que a senhora pensa sobre isso?
GL - 'A mulher não existe' significa apenas que, enquanto não-toda,
ela não pode se universalizar em um gênero, como o homem. Ela é
fálica, mas também tem um outro gozo. Madeleine, como toda
'verdadeira mulher', só ama o pai simbólico, e se recusa ao homem
que ela ama como este pai. Medéia reencontra esse amor ao encontrar
Egeu, após ter destruído os frutos do seu amor por Jasão, tal como
Madeleine. destruiu as cartas de Gide.
203
P - Qual é a relação entre a estrutura perversa e a posição feminina
na mulher homossexual?
GL - A mulher habitualmente não é perversa como o homem, salvo
raras e terríveis exceções, na medida em que ela não faz naturalmente
do outro o objeto de seu gozo, como faz o homem. Ela 'ama'.

P - Em seu livro A mulher não-toda, a senhora afirma que a cultura


força a passagem do parto ao regime do sublime, por não
suportarmos a animalidade com relação à mãe e à criança. A
senhora concorda que a mulher está mais próxima do real?
Gostaríamos que nos falasse um pouco sobre isso.
GL - O fato da civilização impeli-las ao sublime não coloca em
questão'a eventual apreensão por elas do real.

P - Nwna entrevista, há algum tempo, a senhora falou sobre a 'língua de


Lacan '. Disse também que as mulheres, por estarem entre uma língua e
outra. ocupam corifortavelmente o lugar de tradutoras. Então, teriam as
mulheres uma facilidade a mais para aprender Lacan? Se assim é, como a
senhora explica a te,u/ência à eco/alia, ao slogan, ao clichê?
GL - Os homens, assim corno as mulheres, lacanianos ou não, são
passíveis de ecolalia. O que caracteriza as mulheres é que elas
permanecem atadas à língua dita 'da nutriz'. Mas elas devem
descobrir a língu .. comum, oficial.

P - A senhora disse, em algum momento: "(. .. ) e La Robe, todo


mundo sabe, é minha paixão". A senhora poderia especificar o que
está em questão nesse livro?
GL - É a 'mascarada', ou seja, a ostentação do que não temos.

P - A alta costura praticamente desapareceu. O prêt-à-porter. ao


contrário. está em plena ascensão. Quem mudou· o mundo. as
mulheres ou o modelo de beleza?
204
íiennic Lcmo1ne

GL - A roupa é também wna linguagem. O que mudou foi o mundo.

P -Após ter dito que as mulheres quase não têm supereu, Freud, em um
texto dei 932, afirmou: "( ..) Uma mulher da mesma idade (30 anos),
ao contrário, nos assuta pelo que nela encontramos de fixo, de imutável;
sua libido - tendo adotado posições definitivas - parece. doravante,
incapaz de mudá-las. Aqui, nenhuma esperança de ver se realizar
qualquer evulução; tudo se passa como se o processo estivesse
concluído, abrigado de toda influência, como se a dolorosa evolução
para afeminilidade tivesse exaurido por completo as possibilidades do
indivíduo". Gostaríamos que a senhora comentasse este trecho e nos
falasse um pouco sobre o supereufeminino.
GL - O supereu feminino deve ser posto em relação com sua libido.
(ver segunda resposta)

P - A senhora analisou mulheres no seu consultório por várias


décadas. Seria otimista a sua visão da mulher do século XXI?
GL - Não acredito no progresso e não sou otimista. Tento perceber
as modificações para além e apesar da repetição. Por outro lado, não
analisei mais mulheres do que homens.

P - Numa entrevista a senhora chamou a supervisão de 'diális~ ·.


Disse também que,. na 'diálise ', o analista se vira pelo avesso. A
senhora poderia nos/alar um pouco mais sobre isso?
GL - A diálise é uma análise em seguno grau. O trabalho da diálise
restitui ao analista em supervisão seu verdadeiro lugar na relação a
dois que foi a análise do 'caso' em questão (ou que deveria ter sido).

Versão e tradução de Vera Ave/lar Ribeiro.

Entrevista de Mme. Gennie Lemoine via fax ao Conselho Editorial do presente


volume.
205
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10
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formubção a t111c chegou JaclJUCs
Lae;in para rcspomkr ;1os impJsses
tia posição feminina, continente
opaco Ja psicanfüse. F6rm11la-
choque lksigmmdo a niio-cxisrêm:ía
de um significante cap:iz de definir
A Mulher como representação do
l:ÍO idcali;,~1do cremo feminino. A
Mulher encontra-se 11;1 origem tio
mal-estar das mulheres e tios
homens. Elas estão .sempre m bmca
de uma identidade que lhes seria
própria, em,1u:mto eles, ao hlL~c:í-l.1,
recuam horrorizados por se
depararcm com A Mãe 011 sc
lkcepcionam ao v,;-la rc..·dw.ida a 11111
objeto de gcno ljllC se lhe csc:ipa por
dentre os dedos.
A co11sel1iicncia Je "A mulher nfo
cxíste" (A Mulher) é a impos-
sibilidade de se escrever tlc mancir.1
estável e ddinitiva a rclaç.ío entre os
sexos.
A clínica psic:1nalític1 a parrir Je
Freud nos cnsin.1 quc a ttuc.~tiio sohn:
A Mulher só imdc ser rcspondic.h n;i
partirnlaridadc de cada .~ujcito e ljllC
a posição feminina só potlc ser
aborJ.1da a partir do fa7. de conta,
do "scmhlantc", quando a mulhc,-,
através da ma~carnda do fal~amcntc
fulsn, exihc sua falta para c:m~ai· u
desejo.
Amonio Quim:r

Capa:

Esculturas de Be11c P.1iva Kal.,chc


forogr:ifaclas por Mid1ad Trcvillion.
ProjclO Gr:ífico: Jorge Marmho

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