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Psicologia Ciência e Profissão

ISSN: 1414-9893
revista@pol.org.br
Conselho Federal de Psicologia
Brasil

Fim Wickert, Luciana


Desemprego e juventude: jovens em busca do primeiro emprego
Psicologia Ciência e Profissão, vol. 26, núm. 2, junio, 2006, pp. 258-269
Conselho Federal de Psicologia
Brasília, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=282021740008

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Desemprego e Juventude:
Jovens em Busca do Primeiro
Emprego
Unemployment and Youth:
young in their search for the first job

Luciana Fim Wickert

Universidade
Federal do
Rio Grande do Sul
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 258-269


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PSICOLOGIA CIÊNCIA E
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Resumo: O texto discute os impasses da inserção profissional e seus


impactos nos modos de subjetivação de jovens de 16 a 24 anos que
estão em busca de seu primeiro emprego. Os dados, obtidos através de
entrevistas com inscritos no Programa Primeiro Emprego/RS, revelam que
o desemprego afeta os processos de filiação social dos jovens e provoca
uma produção de subjetividade marcada pelo sofrimento decorrente do
aplacamento da vontade de potência.
Palavras-chave: juventude, trabalho, subjetivação, Programa Primeiro
Emprego.

Abstract: This article discusses the professional insertion impasses and


their impact on the mode of subjectivation of young aging from 16 to
24 years old in their search for the first job. The data, obtained through
interviews whom registered in the Programa Primeiro Emprego/RS (First
Job Program), indicate that unemployment affects the young social filliation
process and provides the production of a kind of subjectivity marked by
the suffering that results from the mitigation of the will to power.
Key words: youth, work, subjectivation, First Job Program.

Jovens em Busca do Primeiro Emprego

A proposta deste artigo é apresentar os dados de trabalho, do Governo do Estado do Rio


da pesquisa de dissertação Desemprego e Grande do Sul.
juventude: jovens em busca do primeiro
emprego, desenvolvida no Programa de Pós- A partir de conceitos de Foucault, Nietzsche e
Graduação em Psicologia Social e Institucional, Castel, enfoca-se a noção de desemprego
da UFRGS, no período de 2000 a 2002. como um processo de desfiliação, como algo
que coloca os jovens à parte dos espaços de
Este trabalho discute os modos de subjetivação reconhecimento social, aponta-se para uma
de jovens de 16 a 24 anos que estão em busca produção subjetiva marcada pelo sofrimento
de seu primeiro emprego. Sua relevância centra- decorrente do aplacamento da vontade de
se no entendimento de que, apesar do aumento potência.
dos níveis de desemprego e da participação
dos sujeitos com menos de 24 anos na categoria Cenário socio-histórico da
dos desempregados, os jovens continuam a ser pesquisa
preparados/objetivados para se tornarem
trabalhadores assalariados. Nas últimas décadas, efetivaram-se
transformações em escala mundial que
Foram realizadas entrevistas abertas com redefiniram a dinâmica econômica, os modos
inscritos no Programa Primeiro Emprego, de gestão empresarial, o mercado de trabalho,
programa de inserção de jovens no mercado as condições de vida e de identidade do
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trabalhador. Esse processo tem indicado a modelo social e como uma forma de organização
constituição de um novo paradigma econômica, muitos foram os processos, os
socioeconômico, que se distingue do taylorista- esquemas de controle e os dispositivos
fordista, vigente em boa parte do século XX utilizados.
(Cattani, 1999).
Em termos de acontecimentos, o que se teve,
Tais mudanças afetam os modos de ser e de primeiramente, foi a utilização de esquemas
viver, pois, como assinala Colbari (1995), o coercitivos que objetivavam obrigar os pobres
taylorismo e o fordismo não se reduziram a a trabalhar. Diante da ineficácia de tais
simples conjuntos de princípios de caráter esquemas, estes foram, paulatinamente,
técnico e organizacional, mas exprimiram a substituídos por dispositivos científico-
racionalização explícita da produção capitalista, disciplinares, ou seja, por mecanismos de saber
consolidando a subordinação real do trabalho e poder que constituíram, ao longo do tempo,
ao capital. Essa subordinação se efetivou com uma valoração/dignificação do trabalho,
a constituição de um regime de verdade estabelecendo relações entre trabalho,
valorativo do trabalho. honestidade e dignidade. Então, o trabalho, que
até o advento do capitalismo era considerado
“A mercadoria A problematização da valorização do trabalho algo aviltante, passa a ser valorizado e
força de trabalho é fundamental à nossa discussão por remeter-
tem a considerado porta de acesso ao lugar social. Tal
particularidade de, nos aos modos de subjetivação do período
processo se fez necessário, pois, para que o
legalmente, a taylorista-fordista e da atualidade. Podemos
engendramento capitalístico vigorasse; era
partir do contrato, conceituar modos de subjetivação como a
pertencer ao preciso que suas premissas fossem assumidas
capitalista, mas
forma pela qual os homens, ao relacionarem-
pelos homens, afinal:
continuar sob o se com os regimes de verdade próprios de cada
controle físico do período histórico, se constituem sujeitos de
seu portador.” “A mercadoria força de trabalho tem a
suas próprias ações (Eizirik, 1997, Nardi, 2002).
particularidade de, legalmente, a partir do
Conforme Ortega (1999), a construção de si,
Colbari contrato, pertencer ao capitalista, mas continuar
que se dá na subjetivação, nunca ocorre de
sob o controle físico do seu portador. A adesão
modo isolado, pois inexistem auto-estilizações
na solidão, ou seja, não há a possibilidade de ao trabalho e o engajamento subjetivo do
constituição do que comumente se chama trabalhador no processo produtivo não estão
subjetividade sem a relação com o outro. plenamente assegurados pelo aspecto contratual
da relação de compra e venda da força de
É no campo das relações com o outro que o trabalho; presumem sempre a (boa) vontade do
sujeito de depara com os códigos e os regimes trabalhador de desprender-se de suas capacidades
de verdade de sua época, ou seja, com as física e intelectual e canalizá-las para a atividade
verdades construídas e legitimadas socialmente, produtiva” (Colbari, 1995, p. 12).
verdades que sustentam e caracterizam o
modo como os sujeitos se reconhecem e se Diante dessa necessidade do capitalismo, a
governam (Nardi, 2002). adesão ao trabalho e o engajamento subjetivo
no processo produtivo passam a estar sob a
Entende-se que o paradigma taylorista-fordista responsabilidade de inúmeras instituições, que
contribuiu para o fortalecimento de uma ética se organizam a fim de cumprir esse estatuto
valorativa do trabalho, que já vinha constituindo- social. O termo instituição é utilizado na
se desde os meados do capitalismo. É seguinte concepção: conjunto de normas e de
importante destacarmos que a valorização do valores instituído sob a forma de regimes de
trabalho não foi algo espontâneo ou rápido. verdade, que estabelece e cristaliza
Para que o capitalismo se efetivasse como um provisoriamente as formas de relação social.

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O processo institucional não consegue abarcar e identificadora do trabalho, entre elas, a família e
o fluxo de forças que constituem o que se a escola. Como escreve Colbari, “a preparação
entende por poder. As instituições são práticas, para o trabalho e para o desenvolvimento de papéis
são mecanismos operatórios, que tentam fixá- sociais determinados é um componente do
lo sob uma função homogenizadora e processo de sociabilização que ocorre no interior
reprodutora, mas que não obtêm êxito total no da família...” (1995, p. 114). Diante de um
seu intuito (Deleuze, 1988). Essa impossibilidade processo de sociabilização que prevê a filiação
1
de total controle do poder se deve às suas social atrelada ao processo de trabalho assalariado,
características de produção, de positividade, cabe à família preparar os seus membros para essa
pois, quando nos referimos ao poder, inserção. Cumpre à família “...uma função
remetemo- nos à conceituação foucaultiana, estabilizadora, que complementa a função
que o entende como diagramático, isto é, como socializadora de adequar as personalidades ao
campo de forças dispersas que mobiliza matérias desempenho de papéis padronizados
e funções não-estratificadas. Caracteriza-se por culturalmente” (Cooper apud Colbari, 1995, p. 133;
não ser essencialmente repressivo, visto que Rodrigues apud Colbari, 1995, p. 133). É
incita, induz, produz; não ser possuído, imprescindível que tenhamos claro que não
somente exercido, passando tanto pelos devemos considerar a família exclusivamente como
dominantes quanto pelos dominados, existindo
mera reprodutora dos padrões sociais, pois também
na relação, mas não localizável. Como coloca
apresenta possibilidades de singularização e
Deleuze “...um exercício de poder aparece
diferença. É ela que, perpassada por inúmeras
como um afeto, já que a própria força se define
instituições, tem-se encarregado de sustentar os
por seu poder de afetar outras forças” (1988,
processos de sociabilização, ficando sob sua 1 A noção de desfiliação,
p. 79). Dessa forma, a relação de poder é ação para Castel, “pertence ao
responsabilidade desacelerar o avanço do
sobre ações, é “condução de condutas” mesmo campo semântico
individualismo, ao mesmo tempo em que o articula que a dissociação, a
(Foucault, 1988). desqualificação ou a
com as necessidades coletivas. Como coloca Ariès, invalidez social” (1998,
“é como se a família moderna tivesse substituído p. 26). Refere-se à
O exercício de poder não é um dado situação do sujeito que
as antigas relações sociais desaparecidas para não mais encontra
institucional, tampouco uma estrutura que se proteção e tutela nos
permitir ao homem escapar a uma insustentável
mantém ou se rompe, pois não tem esse processos de

caráter localizável; está sempre em processo solidão moral” (1981, p. 274). sociabilidade primária e
secundária (com
intermediação de
de transformação, de elaboração, de i n s t i t u i ç õ e s
organização, provendo diferentes Cabe aqui destacarmos a função social das específicas), ou seja,
procedimentos de acordo com as circunstâncias organizações escolares, visto que estas foram que se encontra sem
respaldo social. O autor
que se apresentam (Foucault, 1988). São essas estruturadas para atender as necessidades de utilizou esse conceito
expansão do capitalismo, tendo como foco para analisar os
características de positividade de poder que mecanismos de suporte
possibilitam rupturas nos regimes de verdade. central a preparação dos futuros trabalhadores. social relacionados ao
assalariamento,
Como problematiza Nardi (2002), as verdades Por essa razão, faz-se relevante discutirmos destacando o papel das
servem como justificativa para as formas de brevemente a instituição escolar, principalmente instituições públicas que
configuram o Estado de
dominação e de resistência que marcam os ao analisarmos que, “em situação ideal”, Bem-Estar. Nesta
pesquisa, a
modos de subjetivação de cada contexto crianças e adolescentes precisam de, no conceituação de filiação
histórico. Desse modo, “o regime de verdades mínimo, onze anos para completar o nível social é utilizada de
maneira mais ampla.
próprio do capitalismo nos seus diferentes médio de ensino. Entende-se por filiação
social os processos que
períodos permite explicar e justificar as posições legitimam/reconhecem
de classe, o lugar dos sujeitos na estrutura social, Nesse aspecto, a contribuição de Foucault em os sujeitos sociais, sendo
que tais processos não
as possibilidades e as restrições à mobilidade “Vigiar e Punir” (1987) deve ser retomada, pois necessariamente se dão
social” (Nardi, 2002, p.22). o autor enfatiza o processo de disciplinarização pelo assalariamento,
apesar de este ainda
e hierarquização das escolas como um dos persistir como um
facilitador de maior/
É importante destacarmos a ação de algumas dispositivos de docilização dos corpos melhor inscrição/
instituições no fortalecimento da ética valorativa necessários ao capitalismo. Nos inserção social.
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estabelecimentos de ensino, através de Diante desse quadro, a dúvida sobre como


mecanismos disciplinares e hierárquicos, ocorre construir os caminhos futuros e sobre os riscos
uma distribuição serial de lugares sociais, visando que valem uma aposta promove ansiedade. A
a um maior controle das atividades e a uma produção de si encontra-se diante de um
preparação subjetiva dos futuros trabalhadores. impasse: uma produção de subjetividade que
O controle do tempo, do espaço, das atividades não responde às exigências contemporâneas e
nas escolas prepara as crianças e os jovens para à necessidade de inserção social e de fazer parte
a inserção no mercado fabril através da do mundo. A questão da adolescência é um
interiorização da disciplina. bom exemplo de tal complexidade e paradoxo,
pois, nos jovens, há a exigência de inserção e
O discurso da instituição escola se fortaleceu de mudança de estatuto social – assunção da
socialmente pela atrelagem entre educação e adultez – pelo trabalho, num mercado que, ao
preparação para o trabalho. A família enviava fechar suas portas, lhes nega esse lugar.
seus filhos para que estes fossem educados
para uma inserção social e profissional. Por É possível que, na impossibilidade de cumprir a
longo tempo, as escolas cumpriram suas norma social pró-trabalho assalariado, a
funções de disciplinarização e docilização, ansiedade e o sentimento de fracasso atinjam
características necessárias no regime taylorista- níveis por demais estressantes. No intuito de
fordista que imperava nas fábricas. No entanto, dar conta dessa situação, o jovem busca outros
com as modificações nos modos de gestão, pontos de apoio. Alguns dados, como o
com a implantação e a difusão da aumento dos níveis de gravidez na adolescência,
informatização e dos novos processos o aumento dos índices de violência, de
tecnológicos, as empresas passaram a fazer vandalismo e de uso de drogas talvez denotem
outras exigências de contratação. Flexibilidade, tentativas de inserção num modelo social liberal
capacidade de resolução de problemas, que convoca a um trabalho não mais tão
criatividade, autonomia, tornaram-se requisitos
disponível. Existem estudos que apóiam essa
das empresas à contratação, além da
hipótese, como o de Pochmann (2000), que
experiência profissional e da qualificação
destaca que o contexto de desemprego fragiliza
escolar formal, o que conduz a crises de função
a percepção do jovem de que, através do
e de ação nos ambientes escolares, pois o
trabalho, possa superar suas dificuldades.
modelo construído para o capitalismo taylorista-
fordista não mais atinge seus objetivos primeiros
Com baixas perspectivas de futuro, o jovem
de preparação para o trabalho.
passa a conectar-se a outros valores, como a
violência, a drogadição, o individualismo. Aqui
Nos últimos anos, configurou-se um modo de
podemos tomar a discussão feita por Robert
trabalho mais flexível. No entanto, apesar do
Castel em uma entrevista proposta por François
ataque à burocracia e uma certa noção de que
Ewald (1997) acerca do “individualismo
o novo modelo permite maior liberdade às
negativo”. Este ocorre quando as pessoas se
pessoas, tem-se claro que essa flexibilização
desligam da proteção geral ou da participação
impõe novas relações de poder e de controle,
em coletivos, tornando-se, cada vez mais,
ao invés de simplesmente abolir as regras do
indivíduos sem suporte, portanto, desprovidos
passado (Sennett,1999). Essas mudanças
de proteção social.
atingem o modo de viver e de se constituir.
Um movimento diferente das forças de
subjetivação emerge com o advento da Como enfatiza Sennett (1999), temos uma
flexibilização, do subemprego e do geração à deriva. A incerteza, a dificuldade de
desemprego, substituindo, parcialmente, o planejamento a longo prazo tornaram-se
processo de vida linear que era sustentado pela corriqueiras. “O que é singular na incerteza de
premissa da garantia de inserção social. hoje é que ela existe sem qualquer desastre

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histórico iminente; ao contrário, está Essas informações apontam um grande


entremeada nas práticas cotidianas de um contingente de jovens à procura de seu primeiro
vigoroso capitalismo. A instabilidade pretende emprego, este último compreendido como a
ser normal...” (Sennett, 1999, p.33). Isso se relação de trabalho assalariado formal (com
visualiza, no campo do trabalho, nos dados carteira assinada), e que, portanto, se encontram
destacados por Pochmann (2000b), quando este alheios à proteção social e aos processos de
enfatiza que o jovem atualmente consegue inserção/inscrição sociais.
trabalho em “bicos” ou estágios rápidos, nada
que aponte a um futuro profissional ou a uma Para corroborar a importância de discutirmos os
estabilidade. Tal cenário acaba confirmando a efeitos desse cenário social, esse mesmo autor
condição de vulnerabilidade social em que se informa que, apesar de existir uma queda na
encontra com relação à inserção e à taxa de expansão da população entre 15 e 24
continuidade profissional. anos, está previsto que teremos o ponto máximo
em termos de quantidade absoluta de sujeitos
Se, em décadas passadas, o trabalhador nessa faixa etária ainda na primeira metade da
conseguia vislumbrar o trabalho como um década de 2000 (Pochmann, 2000b).
norteador da vida ou como algo que
Devido a essa situação, urge que se conheçam
possibilitasse uma certa construção atrelada à
as estratégias que esses jovens estão
mobilidade social, hoje o jovem, pelas “...esquecemos
encontrando/utilizando para tornarem-se rapidamente os
características de flexibilização e precariedade
sujeitos de suas próprias ações, pois como velhos poderes
do trabalho assalariado, por vezes se vê à deriva, que não se
afirma Deleuze:
sem referenciais claros, sem rumos a priori. Não exercem mais, os
velhos saberes que
há mais padrões de estabilidade. A instabilidade
“...esquecemos rapidamente os velhos poderes não são mais úteis,
passa a ser algo bastante presente e a engendrar mas, em matéria
que não se exercem mais, os velhos saberes que
modos de ser diferentes dos tempos anteriores. de moral, não
não são mais úteis, mas, em matéria de moral, deixamos de
não deixamos de depender de velhas crenças, depender de
É possível que essa instabilidade enfraqueça o velhas crenças,
nas quais nem mesmo cremos mais, e de nos
dispositivo de mobilidade social. Dados da nas quais nem
produzirmos como sujeitos em velhos modos mesmo cremos
Organização das Nações Unidas - ONU mais, e de nos
que não correspondem mais aos nossos
informam que a juventude brasileira se encontra produzirmos como
problemas...” (1988, p.114).
em segundo lugar no ranking de pessimismo sujeitos em velhos
modos que não
no que tange a trabalho. Sete em cada dez Sucintamente temos, então, um arranjo social correspondem
brasileiros não acredita que terá um futuro com que entra em crise devido às sérias modificações mais aos nossos
problemas...”
condições de viver e trabalhar melhor que seus sociais nas últimas décadas, pois prepara-se o
pais (Pochmann, 2000). homem, ou melhor, o futuro trabalhador, para Deleuze
algo que não mais existe nas mesmas
Para tornar esse cenário mais complexo, condições: o pleno emprego.
conforme Pochmann, na década de 90, a taxa
de desemprego juvenil apresentou uma Esse cenário nos coloca diante de algumas
tendência de elevação sistemática. A título de questões que se foram configurando num
comparação, nos anos oitenta, a taxa de desejo, aqui tomado como algo que impele à
desemprego juvenil era 4,6%, três vezes menor ação de pesquisa. Por trabalhos realizados
que a taxa de 16% de 1998 (Pochmann, 2000) anteriormente com desempregados e com
Em outro trabalho, complementa que 48% (nível jovens, crescia a vontade de saber – sentido
nacional) dos desempregados estão na faixa nietzschiano – como se davam os processos
etária dos 15 aos 24 anos (Pochmann, 2000b). de subjetivação de jovens que, disciplinados
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por inúmeras instituições para um dever ser p. 774). Mas, a seguir, agregamos a
trabalhador/adulto, encontravam um mundo problematização feita por Michel Foucault sobre
que lhes negava esse lugar? Será que essa outra o termo:
configuração social mobiliza forças disruptoras?
Promove outros movimentos de subjetivação? “O enunciado não é uma unidade do mesmo
gênero da frase, proposição ou ato de linguagem;
Quais os processos de resistência e de
não se apóia nos mesmos critérios; mas não é
subjetivação frente ao cenário de desemprego?
tampouco uma unidade como um objeto material
poderia ser, tendo seus limites e sua
Encontrando jovens em busca do independência. (...) O enunciado não é, pois,
primeiro emprego uma estrutura (isto é, um conjunto de relações
entre elementos variáveis, autorizando assim um
Para responder a essas questões, buscamos número talvez infinito de modelos concretos), é
encontrar jovens que estavam à procura de seu uma função de existência que pertence
primeiro emprego. Para tanto, viabilizamos uma exclusivamente aos signos e a partir da qual se
pode decidir, em seguida, pela análise ou pela
parceria de pesquisa com o Programa do Estado
intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo
do Rio Grande do Sul – Primeiro Emprego, ação
que regra se sucedem ou se justapõem, de que
governamental de inserção de jovens de 16 a
são signos e que espécie de ato se encontra
24 anos, sem relação formal de emprego
realizado por sua formulação (oral ou escrita)”
anterior (Lei n° 11.363, de 30 de julho de 1999). (Foucault, 1997, pp. 98-99).

Foram realizadas 20 entrevistas com inscritos Desse modo, o enunciado pode ser tomado na
no Programa, sendo 15 com jovens que sua função de “elucidação” da existência de certos
estavam candidatando-se a uma vaga e as discursos. Cabe aqui destacar que entendemos
restantes com jovens que haviam sido que a linguagem não é um simples meio de
contratados através do mesmo. transmitir pensamento, comunicar; ela faz bem
mais do que isso, pois insere-se como uma
A fim de pesquisar os modos de subjetivação prática individual e coletiva, historicizada, marcada
dos jovens de 16 a 24 anos, optamos por pelo tempo e pelo espaço (Briggmann, 1996).
entrevistas semi-estruturadas, pois estas
Pela análise dos dados, algumas categorias se
permitem-nos melhor acessibilidade às
configuraram por sua recorrência e poder
percepções, sensações e entendimentos dos
enunciativo. São elas: relação familiar,
sujeitos entrevistados. Buscávamos enunciados
qualificação, consumo, independência e
que elucidassem a experiência da busca do “qualquer coisa, alguma coisa”. Tais categorias
primeiro emprego. são apresentadas ao longo da discussão dos dados
da pesquisa.
As entrevistas foram gravadas em áudio-tape e
transcritas. A análise destas se efetivou a partir Jovens tentando entrar no mundo
do referencial arquegenealógico foucaultiano,
do trabalho
que nos aponta a importância da análise do
contexto socio-histórico e do poder enunciativo Os dados da pesquisa apontam uma produção
de certas falas. de subjetividade marcada pela confrontação dos
ideais éticos pró-trabalho assalariado e o
Primeiramente, o entendimento de enunciado contexto social de desemprego. Os jovens
foi tomado na sua significação latina entrevistados buscam a inserção social por
“enunciatu”: “expresso, declarado... resultado motivos de ordem moral e financeira.
da produção discursiva, levando-se em conta o Compreendem que atingirão sua adultez
contexto em que ocorreu...” (Ferreira, 1999, quando forem capazes de sustentar-se

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financeiramente e sofrem diante do contexto de moral e a distinção entre ação e reação. A


social de desemprego que dificulta a inserção moral aristocrática identifica-se com um tipo
no mundo do trabalho e a assunção de novos predominantemente ativo e afirmativo,
papéis sociais. enquanto a moral escrava é identificada pela
reação a estímulos externos, pela negatividade,
O contexto de desemprego é tão presente que, não existindo a espontaneidade da ação.
para responder à objetivação social/familiar, o
jovem está a ponto de aceitar “qualquer coisa”. Trazemos essa distinção à nossa discussão, pois
Com o transcorrer das entrevistas, despertavam nossos dados apontam o prevalecimento da
a atenção expressões do tipo: “qualquer coisa, moral escrava e, em conseqüência, de tipos
alguma coisa”, que apontavam uma certa ressentidos. “O tipo ressentido é aquele no
ausência de possibilidade de escolha. Por qual ocorre uma inibição ou bloqueio na
exemplo, diante do questionamento de que capacidade de descarga de energias e afetos
“...o ressentimento
tipo de emprego/trabalho ou remuneração em direção ao exterior” (Giacóia, 2001, p. 83). é um processo
estavam pretendendo, ouvíamos: “Agora, para O tipo escravo tem dificuldade na elaboração reativo, que
mim, qualquer coisa. Qualquer coisa que dê ativa dos estímulos externos, o que o leva a pressupõe a
vivência de
para melhorar as coisas. Hoje em dia não dá processos de ressentimento. Seu modo de
2 sofrimento e a
para ti escolher emprego” (Tábata, 21 anos) . descarga de afeto e de alívio da dor é a necessidade de
“Como a gente não tem experiência, então intensificação de uma outra espécie de desembaraçar-se
não dá para exigir muito. Mas se fosse, eu dela por meio de
sofrimento psíquico: o automartírio da uma descarga
gostaria de trabalhar em escritório, como consciência de culpa (Giacóia, 2001). súbita de um afeto
secretária...” (Nair, 22 anos). O “mas se fosse” vigoroso, como
denota a vontade de poder sonhar, quem sabe meio de
São os processos de autoculpabilidade que
narcotização da
escolher/planejar um futuro. Algo que parece evidenciam as relações com a moral gregária. consciência. O
distanciar-se a cada dia. Quanto mais tempo Os jovens acham que não fizeram cursos entorpecimento é
ficam a procurar por uma colocação laboral, suficientes, que não se qualificaram, que não o elemento
positivo e principal;
maior é a renúncia a suas vontades, a seus estudaram em locais adequados, que não a busca de um
sonhos, a si próprio. atingem individualmente as exigências do culpado e a
mercado. Porém, por vezes, percebem, numa própria descarga
são efeitos
No caso dos jovens pesquisados, a dominação posição mais crítica, que, mesmo quando secundários,
do modo capitalista de pensar tem se mostrado procuram fazer as coisas certas, cumprindo as reação à
tão efetiva que mina os processos de resistência, normas do mercado, ainda assim não são experiência de
levando os jovens a uma espécie de renúncia sofrimento”
contratados. Ressentem-se com o sistema, um
de si mesmos, em nome do ideal de inserção sistema que não os auxilia na inserção, amarram- Giacóia
no sistema. Nesse processo, é claro que o se pela negatividade. Como aponta Giacóia:
sofrimento se faz presente, pois há o
“aplacamento do desejo/da potência”. “...o ressentimento é um processo reativo, que
pressupõe a vivência de sofrimento e a
O sofrimento decorre da impossibilidade/ necessidade de desembaraçar-se dela por meio
dificuldade de o sujeito dar sentido a sua força. de uma descarga súbita de um afeto vigoroso,
Como salienta Nietzsche “...antes de tudo o como meio de narcotização da consciência. O
vivente quer dar vazão a sua força – a própria entorpecimento é o elemento positivo e principal;
vida é vontade de potência” (1885/1999, a busca de um culpado e a própria descarga são
p.305). Nesse ponto, é interessante efeitos secundários, reação à experiência de
pontuarmos a discussão nietzschiana sobre a sofrimento” (2001, p. 84).
moral aristocrática (dos senhores) e a moral
gregária (dos escravos). Giacóia (2001) chama Os sujeitos dessa pesquisa ora sentem raiva, 2 Os nomes dos
entrevistados são
a atenção para a relação entre esses dois tipos ora desânimo – vontade do nada –, ora culpa. fictícios.
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É no interjogo da moral escrava que vão/estão do trabalho remunerado buscavam outros


se constituindo. Em um texto de Brusotti, pontos de apoio social (voluntariado, grupos
temos a seguinte afirmação: “A crueldade religiosos de jovens, etc) como forma de
deve, de algum modo, descarregar-se: por falta resistência social. Entretanto, os dados da
de algo melhor, para o interior, contra o pesquisa denotam um empobrecimento das
próprio sujeito. A vontade deve, relações, um afastamento dos processos
necessariamente, querer algo, por falta de algo coletivos. Esses resultados vêm ao encontro da
melhor, o nada” (2000, p. 6). discussão feita por Castel (1997) sobre o
individualismo negativo.
“Nietzsche pensa o sofrimento pela ausência
de sentido, de acordo com o modelo de Os jovens parecem restritos ao ambiente
sofrimento da força que não se pode familiar. “Eu saio de vez em quando. Eu gosto
descarregar para fora” (Brusotti, 2000, p. 7). muito de ver TV (...) Eu moro com a minha
A impossibilidade da ação da vontade de avó; então ela é muito: ah, vamos ficar com a
potência leva ao sofrimento. família. Tem uma tia que mora junto de nós.
Tem janta em família, almoço em família,
Para Nietzsche (apud Giacóia, 2001, p. 89),
aniversário em família” (Nair, 22 anos). “Levanto.
“o homem moderno é fraco, porque é
Tomo café. Arrumo a casa. Quando tem que
puramente artifício, porque em sua alma não
levar o meu irmão no colégio, eu levo. Depois
vibram mais as forças vitais autênticas. ”O
refinamento da consciência moral, marca da eu busco. E depois eu fico em casa, nada...”
modernidade, resultou “...numa intensificação (Joana, 18 anos). “Fico em casa vendo TV. Às
patológica do sentimento de culpa, que vezes, saio, jogo uma bola, alguma coisa assim”
hipnotiza o psiquismo e esteriliza o agir” (José, 18 anos).
(Giacóia, 2001, p. 89).
Nardi (1999), discutindo as relações entre
Numa teorização foucaultiana, poderíamos adoecimento e trabalho, afirmou que a vivência
inferir que os processos de subjetivação do adoecimento profissional é marcada pela
contemporâneos estão marcados por uma individuação da doença e que um dos
preponderância das forças de objetivação/ elementos que constitui tal processo é o
escravidão, que se efetivam pela restrição das isolamento. Este, por sua vez, caracteriza-se
possibilidades de escolha.
pelo retorno ao espaço doméstico e pela perda
do referencial do trabalho como elemento de
A restrição das possibilidades de escolha afeta
inscrição social, levando ao enfraquecimento
a liberdade, que, por sua vez, afeta os
dos relacionamentos fora do âmbito familiar.
processos éticos, pois, ao afirmarmos que a
Guardadas as particularidades das populações
ética é a prática reflexiva da liberdade e que
esta última é marcada por possibilidades, a pesquisadas e as diferentes vivências em relação
constrição do leque de escolhas leva a um ao mundo do trabalho, nossos dados também
empobrecimento dos processos reflexivos apontam o isolamento social.
(Foucault, 1985). Então, a crítica que se faz
quotidianamente aos jovens, dizendo que eles Retornando à afirmação de Ariès (1981) de que
não pensam, não criticam o mundo, a família moderna parece substituir as antigas
responsabiliza-os por algo que de fato é uma relações sociais a fim de permitir ao homem
construção social. escapar de sua solidão moral, esses jovens
parecem confirmar que o espaço familiar é o
Em princípio, entendíamos que os jovens que ambiente de socialização que faz frente, ou
não conseguiam sua inserção social pela via seja, que opera como resistência à desfiliação
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social de seus membros. Os jovens, se ainda fala de uma jovem que afirmou que, por ter
não são trabalhadores, precisam encontrar na família, ainda não precisava submeter-se a
família algum espaço de reconhecimento social, entregar panfletos na rua (Manoela, 16 anos).
mesmo que este se dê na categoria de filhos. A acolhida se materializava em frases familiares
do tipo: “Ah, a próxima vez tu consegue. De
Apesar da existência de uma rede discursiva na repente, não era... Eles diziam muito que não
fala dos familiares que convoca ao era para ser meu, que quando chegasse a hora, “A saída da escola
eu ia conseguir” (Paula, 18 anos, empregada). supõe para o
assalariamento, formulados em enunciados do
jovem um período
tipo: “tu tem que ter teu dinheiro” ou “quem de transição. Sai
não trabalha é vagabundo”, cabe à família Entre a convocação discursiva feita pela família de uma instituição
continuar provendo a sustentação subjetiva e para que o jovem assuma o lugar social de organizada e
organizadora para
material de seus jovens que ainda não trabalhador e a realidade de desemprego deste,
um espaço social
trabalham. encontramos um tensionamento paradoxal que no qual o tempo e
configura e altera a própria convocação pró- a atividade não
assalariamento. A mesma família que objetiva estão tão
Isso se torna mais complexo com a saída da estruturados. O
escola, pois esta representa um espaço de o assalariamento precisa dar suporte ao jovem papel, antes do
socialização. O ambiente escolar oferece a quando este não consegue corresponder a essa aluno, torna-se um
norma subjetivante. papel confuso e
possibilidade de reconhecimento de um sujeito
pouco definido.
social – o aluno. Sarriera et alli (2000, p. 45), Esse novo espaço
referindo-se ao jovem que termina o ensino Em algumas entrevistas, observa-se um certo de transição é
médio, afirma: misticismo, uma religiosidade que aplaca a chamado de terra
de ninguém, isto é,
angústia das buscas sem resultados pela
nenhuma
“A saída da escola supõe para o jovem um explicação de que existe uma hora certa, um instituição social se
período de transição. Sai de uma instituição destino. Talvez estas possam ser compreendidas responsabiliza pelo
como um resquício católico de que o céu está jovem nessa fase.
organizada e organizadora para um espaço social
Nesse momento, o
no qual o tempo e a atividade não estão tão garantido pelo sofrimento. Uma jovem já jovem passa a ser
estruturados. O papel, antes do aluno, torna-se empregada relembra a sensação de quando saía pressionado pela
um papel confuso e pouco definido. Esse novo a procurar emprego: “A sensação que eu tinha família para
mostrar a sua
espaço de transição é chamado de terra de era que...seja o que Deus quiser...porque tinha capacidade de
ninguém, isto é, nenhuma instituição social se gente que tinha muito mais curso que eu, né?” conseguir um
responsabiliza pelo jovem nessa fase. Nesse (Diana, 19 anos, empregada). “Às vezes, eu trabalho que
complemente a
momento, o jovem passa a ser pressionado pela fico com medo. Às vezes, eu fico pensando:
renda familiar”
família para mostrar a sua capacidade de ah, vai ter bastante gente qualificada, né? Vai
conseguir um trabalho que complemente a ter bastante gente com faculdade. Vai ter Sarriera et alli
renda familiar” (2000, p. 45). bastante gente que não é qualificada. Mas, eu
acredito em Deus. Eu rezo todos os dias. Eu
Os dados desta pesquisa concordam em parte acho que uma hora vai aparecer um serviço
com essa afirmação. Como já afirmei acima, as pra mim. Não sei. Eu acho que uma hora vai
entrevistas demonstram que a família incentiva acontecer. Se não foi ontem, vai ser amanhã
a inserção no mercado de trabalho, mas que ou depois, não sei” (Joana, 18 anos). Parece,
também é ela que está fazendo frente a esse aos jovens que buscam o primeiro emprego,
não-lugar. Explico: são os laços familiares que que existe um Deus que escreve certo por linhas
sustentam/filtram a sensação de não-inserção. tortas, sendo que esse misticismo se apresenta
como defesa contra o sofrimento, uma crença
Ficou bastante evidente nas entrevistas que os necessária que consola.
jovens com “melhor” relacionamento familiar
sentiam-se acolhidos e menos pressionados a Quanto à utilização da remuneração, apesar
aceitarem “qualquer coisa”. Como evidencia a de a maioria dos jovens ser proveniente de
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Desemprego e Juventude: Jovens em Busca do Primeiro Emprego

famílias com pouco recurso financeiro, a Pela via do “consumo”, capta-se um ideário social
perspectiva de receber algum dinheiro não que paira: quem tem dinheiro consome. Para
estava particularmente atrelada a um auxílio ter dinheiro, é necessário trabalhar... Quem
das despesas domésticas. Isso não significa dizer trabalha pode decidir o que, quando e como
que os jovens não auxiliariam no orçamento comprar. Uma jovem chega a dizer, ao comentar
familiar, mas que as falas destacavam que o sobre os amigos que trabalham: “Quando eu
objetivo do salário não era subsistência saio com eles, eles colocam: ah, que eu tô
imediata. Esta parecia estar a cargo das famílias, trabalhando, que eu tô ganhando, claro que
ninguém comenta salário, mas que eu tô
enquanto, ao jovem, cabia encontrar maneiras
trabalhando numa coisa que eu gosto, tenho a
de sustentar seu consumo individual. “Ai. É
minha independência, quero morar sozinha. Daí
porque assim oh: os meus pais trabalham, né?
pode planejar um futuro, sabe? Quem tá
Só que tem necessidade. Às vezes, eu quero
trabalhando, acho que tem pelo menos o direito
sair, dar uma volta, aí tem que pedir pra minha
de tu... de tu achar o teu futuro. Porque tu não
mãe. Qualquer coisa assim. Não é a mesma tá dependendo de alguém” (Nair, 22 anos).
coisa que tu trabalhar, ter teu dinheiro e poder
sair. Claro que eu posso comunicar ela, mas O trabalho, para esses jovens, é a porta de
daí eu não preciso ficar pedindo dinheiro. Às entrada em um novo mundo: um mundo de
vezes, eu quero vir ao centro, comprar uma consumo. Parece-lhes, no contexto atual, que
calça, daí tem que ficar pedindo dinheiro pra mais importante do que ser um trabalhador é
ela, então é mais ou menos pra isso. E pretendo ser um consumidor. Isso se efetiva pela
fazer um cursinho e ingressar na faculdade” dificuldade de inserção profissional, que prejudica
(Joana, 18 anos). “Porque eu gostaria de ter a realização dos planos de vida e um certo
meu próprio, pra quando eu quiser sair, não planejamento de futuro. O ato de trabalhar acaba
depender do meu pai, pra ter as minhas coisas. restringindo-se a um possibilitador de consumo.
Em geral, pra mim comprar as coisas que eu Para esses jovens, o sonho de se realizarem como
quero” (Renato, 16 anos). sujeitos se vê enfraquecido. Fazem o que lhes
mandam. Aqui retomamos o entendimento da
Com os dados até aqui apresentados, podemos escravidão. Não há proposições novas. Buscam
pontuar a relação entre “capacidade de ser aquilo que pensam que os outros querem
consumo” e uma certa sensação de que sejam. Para ser contratado, precisa saber
“independência”, que se mostra fundamental inglês, então tenho que estudar inglês. Tem que
saber informática, então preciso matricular-me
nos discursos no que tange à motivação pela
num curso de informática. Tem que estar bem
busca laboral. Vetor importante na
vestido e saber falar bem, então me comportarei.
movimentação por um “emprego/trabalho” é
A escravidão os empurra à fraqueza, à renúncia,
um certo desejo de “independização”, que,
ao aplacamento de si.
por vezes, vem atrelado à questão do
“consumo”. “Olha a minha vontade é ser
Para finalizar...
independente. A minha vontade é não
depender desse dinheiro” (pensão que recebe Abordar a temática do desemprego juvenil
do pai falecido) (Salete, 20 anos). “Porque eu constitui desafio que permanece pela sua
não posso ficar a vida inteira dependendo de atualidade. A dificuldade de inserção laboral dos
alguém, né? Eu tenho que saber... (...) então jovens em busca de seu primeiro emprego
um emprego pra mim é aprender (...) Pra ganhou destaque em jornais e telejornais nos
pensar no futuro. Eu pretendo fazer uma últimos anos. Trata-se de um problema social
faculdade. Eu quero fazer fisioterapia. Até para que repercute nos modos de ser de uma geração.
ajudar a pagar, né? É muito caro. Mais é pra
isso, né? Pra ter o meu dinheiro. A minha Os dados desta pesquisa evidenciaram uma
independência” (Nair, 22 anos). parcela da população jovem que encontra sérias

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dificuldades de inserção profissional e que não Nesse cenário, os programas de inserção


tem mais o trabalho como algo que norteia profissional se fazem necessários. Entretanto,
positivamente a vida. Encontram-se à deriva entende-se que o campo de ação destes não
profissional. Agarram-se a quaisquer pode restringir-se exclusivamente ao
possibilidades de inserção. No contexto de financiamento de uma parte da remuneração
quebra da linearidade profissional e de do jovem. É preciso que, no rol de suas ações,
mobilidade social, amarram-se à negatividade estejam incluídas atividades de reflexão e de
do não ter. Ressentem-se com a não-inserção aprendizagem de outros modos de trabalhar
e encontram dificuldades de constituírem como, por exemplo, o trabalho cooperativado
outros modos de engendrar a existência. e de economia solidária.

Luciana Fim Wickert


Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS.
Av. Protásio Alves, 7149, ap. 201. Alto Petrópolis
Porto Alegre/RS CEP: 91310-003
Fones: (51) 33517262 – 8111.8885
E-mail: luwickert@uol.com.br

Recebido 22/06/04 Reformulado 26/05/06 Aprovado 29/05/06

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