Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Dialnet TrabalhoComoMeioDeVidaOuComoPrimeiraNecessidadeDaE 3999013 PDF
Dialnet TrabalhoComoMeioDeVidaOuComoPrimeiraNecessidadeDaE 3999013 PDF
O
texto de Ricardo Antunes dialo-
próprio Aristóteles (1998:23)1, afirmando
ga com as categorias marxianas
que a duplicidade da mercadoria escon-
de trabalho concreto e trabalho
de o duplo caráter do trabalho que nela
abstrato na perspectiva de responder a
se expressa: o trabalho concreto (respon-
duas questões essenciais no debate con-
sável pelo valor de uso) e o trabalho abs-
temporâneo sobre o trabalho. Em pri-
trato (substância do valor que encontra
meiro lugar, o que marcou este autor
sua forma de expressão em um valor de
pelo pioneirismo e o tornou entre nós
troca) (MARX, s/d, volume 1, livro 1: 54).
uma referência, em resposta à afirmação
a respeito do fim da sociedade do traba- Ao realizar esta diferenciação, Marx não
lho, ou o fim da centralidade do traba- apenas vai além dos horizontes da eco-
lho, tal como expresso nas obras de A- nomia política e alcança a dimensão crí-
rendt, Habermas, Górz e outros; e de-
pois, no debate sobre a possibilidade de
emancipação humana ligado à superação Graduado em História (PUCSP), mestre e dou-
da ordem do capital através da livre as- tor em Sociologia pela FFLCH da USP. Professor
adjunto da ESS da UFRJ. É pesquisador do Nú-
sociação dos produtores e pela recupera-
cleo de pesquisas e estudos marxistas (NEPEM) e
ção do trabalho autodeterminado supe- autor de Dilema de Hamlet, o ser e o não ser da cons-
rando o estranhamento. ciência (Viramundo, 2002), Metamorfoses da consci-
ência de classe (Expressão Popular, 2006), Ensaios
As duas dimensões estão associadas ao sobre consciência e emancipação (Expressão Popu-
lar, 2007), entre outros. E-mail: mauroia-
duplo caráter do trabalho contido na
si@hotmail.com
forma mercadoria e suas implicações. 1 “Comecemos pela seguinte observação: cada
Sabemos que Marx em O Capital ao a- coisa que possuímos tem dois usos, dos quais
presentar a mercadoria como forma ele- nenhum repugna a sua natureza; porém, um é
mentar da sociabilidade subsumida ao próprio e conforme a sua destinação, outro des-
viado para algum outro fim. Por exemplo, o uso
capital lhe atribuiu um duplo caráter, o
próprio do sapato é calçar; podemos também
de ser valor de uso e portadora de valor vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão,
de troca – no entanto, vai além desta a- ou alguma outra coisa, isto sem que ele mude de
parência, aliás, já detectada pela econo- natureza; mas este não é seu uso próprio, já que
mia política clássica e, antes dela, pelo ele não foi inventado para o comércio” (ARIS-
TÓTELES,1998: 23).
16
Mauro Luis Iasi
tica que lhe imprime particularidade e cular da ação histórica e social dos seres
tornará possível desvelar a exploração humanos – mais especificamente, a for-
através da categoria da mais-valia, mas ma da sociabilidade submetida à merca-
também, à maneira como resgata Antu- doria e levada ao ápice sob a forma capi-
nes, nos permite compreender a diferen- talista de produção de mercadorias.
ça essencial entre duas dimensões do
trabalho: primeiro como fundante do ser O efeito prático desta divergência teórica
social, como categoria singular, portanto, é que a superação do estranhamento só
“à parte de qualquer estrutura social de- pode ocorrer não por um ato do pensa-
terminada” (MARX, op. cit: 202); em se- mento, mas por uma ação prática que
guida, para entrar no desvelamento de altere o sociometabolismo do capital e
sua forma particular sobre o capital co- supere a forma mercadoria, resgatando o
mo trabalho produtor de mercadorias e caráter do trabalho como produtor de
mais-valia. valores de uso, isto é, uma revolução
(MARX E ENGELS, 2007: 42)2. Ocorre
Tal distinção nos é fundamental, pois que, como assinala Antunes, estas di-
nos localiza no interior de um debate que mensões não são excludentes, ou seja,
marcará uma diferença essencial entre as não se trata do fato que, submetido à
concepções de alienação/estranhamento lógica do capital, o trabalho se converte
de Hegel e Marx. Como sabemos, para em trabalho abstrato como massa indife-
Hegel, o processo de objetivação e exter- renciada de desgaste de cérebro, nervos e
nação, próprios da ação humana no músculos, como substância do valor, ne-
mundo, levaria, necessariamente, a uma gando seu aspecto concreto. A mercado-
alienação, uma vez que toda ação é sem- ria é síntese de trabalho concreto e traba-
pre uma ação particular que realiza a lho abstrato, o que se expressa no seu
mediação concreta daquilo que Hegel duplo caráter como valor de uso e porta-
imaginava ser o Espírito Absoluto. A dora de valor de troca, de maneira que é
recuperação da unidade do ser como impossível, nos limites da forma merca-
genérico, não distanciado e estranhado doria, ser veículo de valor sem que seja
em uma forma particular, só seria possí- um valor de uso, mas, o que para nós se
vel pelo pensamento na medida em que torna essencial, o inverso não é verdadei-
captasse a totalidade, ou, como supunha ro, isto é, é possível um valor de uso que
Hegel, na manifestação de uma particu- não carregue nenhum valor que não seja
laridade que aproximasse do universal receptáculo de trabalho abstrato.
propiciando o famoso “reencontro do
sujeito com o objeto”. Desta forma, criti- Ora, tal constatação é explorada por An-
ca Marx, o grande filósofo alemão acaba tunes para resgatar a afirmação marxiana
por generalizar e naturalizar o estra-
nhamento que, segundo a afirmação 2 “Tanto para a criação em massa desta consciên-
marxiana, não seria de forma alguma cia comunista quanto para o êxito da causa faz-se
necessária uma transformação massiva dos ho-
uma manifestação genérica, mas, ao con- mens, o que só pode realizar por um movimento
trário, seria próprio de uma forma parti- prático, por uma revolução” (MARX E ENGLES,
2007: 43).
17
Trabalho como meio de vida ou como primeira necessidade da existência?
segundo a qual o trabalho como produ- tempo em que ele é imprescindível para o
tor de valores de uso é imprescindível ao capital, ele é um elemento central de sujei-
ção, subordinação, estranhamento e reifi-
capital, mas a forma capital não é insu- cação. O trabalho se converte em mero
perável na perspectiva de uma sociedade meio de subsistência, tornando-se uma mer-
produtora de valores de uso. Sintetica- cadoria especial, a força de trabalho, cuja fi-
mente, o capital precisa do trabalho em nalidade precípua é valorizar o capital.
sua dimensão genérica, mas o trabalho, (ANTUNES, 2010, p. 11)
Isso nos permite chegar a uma primeira A dimensão particular (trabalho sob a
conclusão: se podemos considerar o traba- forma capitalista de produção de merca-
lho como um momento fundante da socia- dorias) traz em si a dimensão genérica (o
bilidade humana„ como ponto de partida do trabalho concreto produtor de valores de
processo de seu processo de humanização, tam-
uso), porém subsumida e degenerada em
bém é verdade que na sociedade capitalis-
ta, o trabalho torna-se assalariado, assu- mero meio de vida. A mediação da mer-
mindo a forma de trabalho alienado, feti- cadoria e inseparavelmente dessa da
chizado e abstrato. Ou seja, ao mesmo forma do dinheiro como equivalente ge-
18
Mauro Luis Iasi
ral, passam a constituir em uma media- dotar o trabalho de uma teoria que o de-
ção necessária a satisfação das necessi- fina como não estranhado, mas de um
dades humanas. Trabalhamos para con- ato prático, uma revolução. E, assim, ca-
seguir dinheiro para comprar as coisas be perguntar: por quê? Pelo simples fato
para viver. O trabalho não é a atividade de que as determinações do trabalho es-
através da qual nos tornamos seres soci- tranhado – ou, mais precisamente, do
ais e históricos (portanto adquirimos a trabalho estranhado sob as relações cons-
singularidade propriamente humana), titutivas do capital – não podem ser eli-
mas um mero meio precário, desumano, minadas pela mera intencionalidade, por
degradado, insalubre, que devemos su- um ato de vontade. O capital é uma rela-
portar para viver. Como diz Marx, “o ção social e como tal encontra suas bases
trabalhador só se sente junto a si fora do em determinada materialidade, a saber, a
trabalho e fora de si no trabalho; está em necessária separação dos produtores di-
casa quando não trabalha, e, quando tra- retos de seus meios de produção e a
balha, não está em casa” (MARX, 2004: transformação destes meios em proprie-
83). dade privada dos capitalistas ao mesmo
tempo em que a força de trabalho só
É neste sentido que Antunes, na mais possa se realizar ao vender-se como mer-
cara tradição marxista, relaciona a possi- cadoria aos proprietários capitalistas.
bilidade de emancipação humana à su-
peração da forma capitalista de sociabi- No entanto, tal separação entre os produ-
lidade e, por sua vez, relaciona isso à tores diretos e seus meios de produção
superação do trabalho abstrato na recu- não se produz espontaneamente. Assim,
peração da dimensão do trabalho produ- diz Marx:
tor de valores de uso. Diz o autor:
A natureza não produz, de um lado, pos-
[...] Depreende-se que, não só possível, suidores do dinheiro ou mercadorias, e, de
mas absolutamente necessário conceber-se outro, meros possuidores das próprias for-
uma forma de sociabilidade que recuse o ças de trabalho. Esta relação não tem sua
trabalho abstrato e assalariado, resgatando origem na natureza, nem é mesmo uma re-
o sentido original do trabalho como ativi- lação social que fosse comum a todos os
dade vital. Por isso cremos que um desafio períodos históricos. Ela é evidentemente o
imperioso de nosso tempo é construir um resultado de um desenvolvimento históri-
novo sistema de metabolismo social, um co anterior, o produto de muitas revolu-
novo modo de produção e da vida fundado na ções econômicas, do desaparecimento de
atividade livre, autônoma e auto determinada, toda uma série de antigas formações da
baseada no tempo disponível para produzir produção social (MARX, s/d, livro 1, vol 1:
valores de uso socialmente necessários, contra 189).
a produção heterodeterminada (baseada no
tempo excedente para a produção exclusi- Da mesma forma que as relações que
va de valores de troca para o mercado e constituem o sociometabolismo do capi-
para a reprodução do capital). (ANTUNES,
tal são produtos históricos que pressu-
2010, p. 14)
põem uma série de desenvolvimentos e
Como vimos, tal superação não é um ato superações anteriores, sua superação
do pensamento, isto é, não se trata de exige, da mesma maneira, condições ma-
19
Trabalho como meio de vida ou como primeira necessidade da existência?
teriais. Para chegarmos àquilo que An- de compra e venda da força de trabalho,
tunes denomina de uma sociabilidade isto é, uma revolução social que destrua
baseada na “atividade livre, autônoma e as bases da sociabilidade capitalista,
auto determinada” seria necessário uma Marx alerta que a distribuição ainda teria
série de superações na objetividade e na que respeitar o critério de troca de uma
subjetividade humanas. certa quantidade de trabalho oferecido
por uma determinada quantidade equi-
Em seu Crítica ao Programa de Gotha, texto valente de bens necessários.
de 1875, Marx comenta criticamente a
proposta de programa apresentada por Desta constatação, o autor conclui que:
Lassale que pregoava que a emancipação
exigia que o trabalhador ficasse com o Aqui impera, evidentemente, o mesmo
princípio que regula o intercâmbio de
“fruto integro de seu trabalho”, afirman-
mercadorias, uma vez que este é um inter-
do que a distribuição da riqueza coleti- câmbio de equivalentes. Variam a forma e
vamente produzida nos marcos de uma o conteúdo, porque sob as novas condições
sociedade que superou a propriedade ninguém pode dar senão o seu trabalho, e
privada dos meios de produção, ainda porque, de outra parte, agora nada pode
passar a ser propriedade do indivíduo, fo-
teria que percorrer um caminho até su-
ra dos meios individuais de consumo.
perar os marcos do “direito burguês”, ou Mas, no que se refere à distribuição destes
seja, até que a distribuição pudesse ir entre os diferentes produtores, impera o
além da mera pretensão de igualdade mesmo princípio que no intercâmbio de
entre seres desiguais e chegar à verda- mercadorias equivalentes: troca-se uma
quantidade de trabalho, sob uma forma,
deira fórmula comunista: de cada um,
por outra quantidade igual de trabalho sob
segundo sua capacidade, e para cada outra forma diferente (MARX, [1875], s/d:
um, segundo sua necessidade. 215).
revolução com toda sua dramaticidade e vital; quando, com o desenvolvimento dos
relevância ainda é um ato político- indivíduos em todos seus aspectos, cresce-
rem também as forças produtivas e jorra-
jurídico, isto é, no campo das condições rem em caudais os mananciais da riqueza
subjetivas que marca a ação histórica dos coletiva, só então será possível ultrapassar
seres humanos e como tal deve encontrar totalmente o estreito horizonte do direito
nas condições objetivas as circunstâncias burguês e a sociedade poderá inscrever em
dentro das quais poderá ocorrer esta a- sua bandeira: De cada um segundo sua ca-
pacidade; a cada qual, segundo suas neces-
ção subjetiva.
sidades (idem: 214-215).
21
Trabalho como meio de vida ou como primeira necessidade da existência?
produção capitalista gera as condições pode medir seu intercâmbio pelo critério
materiais para a possibilidade e necessi- da necessidade, ou seja, pela dimensão
dade de sua superação, não gera por si do valor de uso e do trabalho concreto
só as condições que nos permitiriam o que lhe corresponde.
estabelecimento de uma sociedade sem
classes e, portanto, sem Estado, uma so- Como vemos, a contribuição de Antunes
ciedade fundada na livre associação dos no texto apresentado, assim como no
produtores livres. Tais condições devem conjunto de sua vasta e importante obra,
ser criadas pela ação humana consciente como bom comunista, nos provoca para
no processo histórico que Marx denomi- além das querelas de um mundo cindido
nou de transição e que acabou por ser pela exploração e o estranhamento, na
conhecida vulgarmente como socialismo. busca consciente de um mundo pleno de
sentido e emancipado.
É só neste cenário de uma fase superior
da sociedade comunista, fruto desta
transição, que a sociabilidade humana
22