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POR UMA GEOPOLÍTICA DO URBANO NAS “MARGENS DO ESTADO”: ALGUMAS

NOTAS PRELIMINARES

Resumo: o presente capítulo objetiva debater, em caráter introdutório, algumas questões voltadas para a
construção de uma abordagem geopolítica sobre os temas da segurança pública e violência urbana no
Brasil. Tal perspectiva toma as cidades como espaços crescentemente delimitados por territorialidades a
primeira vista beligerantes, onde a necessidade em garantir maior controle sobre territórios e populações
alimenta uma série de tensionamentos sócio-espaciais urbanos. Quando se pensa em tal dinâmica nas
“margens do Estado”, uma outra abordagem torna-se possível, dada as relações transversais de poder
que animam os conflitos presentes em tais territórios. Neste sentido, o presente capítulo está dividido em
duas partes além de uma introdução e as considerações finais. Na primeira, ele propõe um resgate e
delimitação do campo de interesses tradicionalmente ligado à geopolítica e o debate sobre dois
pressupostos fundamentais da geopolítica urbana: a (para)militarização dos conflitos e o consequente
alinhamento das agendas de segurança pública e nacional dos Estados. Na segunda parte, o texto
esboça um primeiro movimento de construção teórica acerca da geopolítica urbana na perspectiva das
“margens do Estado”, tendo em vista seu papel como ferramenta para uma outra leitura dos
tensionamentos sócio-espaciais das cidades brasileiras.

Palavras-chave: segurança; território; violência; biopolítica; cidade;

Introdução
“A formação que temos é voltada para a guerra, no modelo de combate convencional e com
armamento pesado, como canhões. Hoje, o conflito é entre a população, com um inimigo
não definido, com armas e equipamentos diferentes e com uma grande atuação
interagências. Nesse tipo de guerra é fundamental o apoio da população. O choque entre as
forças é, na realidade, um confronto de vontades para ter a população a seu lado.” (grifo
meu)1.

O trecho acima foi parte de uma entrevista concedida pelo capitão Flávio Américo ao portal
“G1” de notícias. O relato do capitão expressa as preocupações externadas pelo Exército sobre a
necessidade de uma nova formação e atuação das Forças Armadas (FFAA) dentro do âmbito das
suas ações. Um termo ali aparece como o alicerce sobre o qual se fundam tais preocupações: a
população. Desde pelo menos o século XVIII, Foucault (2008) nos mostra que o controle social do
Estado passou a tomar o fator biológico enquanto problema. Em outras palavras, a população
assume um papel de protagonismo enquanto objeto de conhecimento e recurso fundamental para a
própria vida dos países. O controle exercido sobre os corpos – em sua dimensão individualizante e
disciplinar (FOUCAULT, 2010) – passa a atuar em conjunto com os chamados “mecanismos de
segurança”, que miram a população em sua diversidade como “alvo” preferencial do biopoder. Tal
mudança teve profunda relação com novas formas de governo empreendidas pelo Estado desde
então. Pensar políticas e formas de administrar e controlar uma determinada população, de maneira
a estabelecer mecanismos regulatórios capazes de manter um padrão “ótimo” de funcionamento,
são algumas diretrizes que surgem a partir daí. Obviamente, a questão da criminalidade também se
insere neste debate. A segurança passa a se estabelecer através de uma matriz não somente punitiva,
como também preventiva, apoiada em todo um arcabouço de conhecimento teórico e estatístico
sobre o crime. A punição e a vigilância continuarão a ser operadas, mas com base num corpo de
conhecimento amplo o suficiente para um salto de qualidade na repressão e na prevenção. A
segurança nos moldes da biopolítica (FOUCAULT, 2008; 2008a), diz respeito a saber como manter
o crime dentro de certos limites que sejam social e economicamente viáveis, de maneira que ele se
mantenha em níveis aceitáveis para a vida de determinada população.
A biopolítica reforça também uma outra tese hoje presente no pensamento militar (e não
somente brasileiro). Ela defende a existência de mudanças no formato sobre o que se entende por
guerra, oriundas de novas estratégias de combate e controle a um possível “inimigo” que não pode
ser definido claramente. Diferentes autores como Klingaman (1988), Del Olmo (1994),
Enzensberger (1995), entre outros, apontam para uma mudança substantiva na “arte da guerra” após
o fim dos tensionamentos oriundos da chamada “Velha Ordem Mundial”. A flexibilização de uma
1
Entrevista disponível em http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/08/exercito-corta-aula-de-guerra-antiga-e-foca-
terrorismo-e-conflito-em-cidades.html (visitado em 12/03/17).
ordem bipolar engendrada pelos EUA e a ex-URSS abriu caminho para a emergência de uma série
de novos conflitos, que não têm o embate entre “Estados-nação” como seu motor geopolítico. Por
vezes em disputa (e não em substituição), por vezes em cooperação com o Estado, novos atores que
sobrepõem suas fronteiras passaram a animar diferentes tensionamentos por todo o mundo, em
especial no tocante aos novos “inimigos” do Ocidente pós-Guerra Fria: o tráfico de drogas e, mais
recentemente, também o “terrorismo”2. Na perspectiva defendida por Foucault (2005, 2008, 2008a),
é possível sugerir que tal mudança possui relação também com a própria maneira como se delimita
hoje a soberania de um Estado. Ela passa de uma jurisdição exclusivamente territorial (enquanto
território contíguo delimitado por suas fronteiras nacionais), para o crescente “gerenciamento da
vida” da sua população, nos moldes sugeridos pela biopolítica. É claro que este gerenciamento
possui também uma espacialidade no tocante ao controle, como veremos mais adiante noutro ponto
do capítulo.
Seja como for, o controle exercido sobre territórios e populações em diferentes escalas passa
também pelo tratamento militar dispensado na resolução de conflitos. Dos peace keepers das Nações
Unidas, até mesmo a algumas ações locais de combate à violência urbana pelo mundo, percebe-se uma
série de iniciativas que se articulam e complementam a necessidade do Estado em garantir sua própria
soberania. Assim como o controle territorial de países do Oriente Médio fora fundamental na “Guerra ao
Terror”, a “(re)conquista” de territórios controlados por traficantes ou “terroristas” em cidades como
Medellín, Rio de Janeiro, Bagdá ou Kandahar fazem parte de um mesmo quadro beligerante, cujo ponto
de fuga direciona o olhar dos Estados para um interesse comum à sua política interna e externa: a
necessidade de cuidar da sua própria “segurança”3. Mesmo tratando-se de contextos políticos,
geohistóricos e culturais distintos, existe aí uma “unidade na diferença” costurada pelo problema do
exercício do poder (do Estado, mas também de outros atores) sobre o espaço. Na perspectiva aqui
defendida, o processo de administração (violenta ou não) de conflitos toma o espaço urbano como lócus
principal da sua reprodução. A maioria da população mundial hoje vive em cidades e a tendência é de
aumento da população urbana mundial. No caso brasileiro, a despeito da polêmica sobre o debate “cidade
X campo” ou “rural X urbano” (VEIGA, 2002; FANI, 2003; entre outros), a maioria da população
também vive em cidades ou possui um modo de vida crescentemente ligado a ela. O aumento da sensação
de insegurança e dos índices de criminalidade violenta, em certo sentido, redimensionam os atos de
planejá-la e gerí-la, uma vez que eles transitam cada vez mais da prancheta de urbanistas e prefeitos para
os batalhões das polícias e das FFAA (assim como, nunca é demais lembrar, para suas respectivas agências
de inteligência!). Contudo, os problemas ligados à segurança e violência nas “margens do Estado”, no
sentido empregado por Das & Poole (2004), apontam não somente para dinâmicas de disputa entre o

2
Chama a atenção o recente caso, para ficarmos com um exemplo brasileiro, do capitão do Exército Willian Pina
Botelho. Ele infiltrou-se em grupos de ativistas e movimentos sociais contestatórios em São Paulo, no intuito de
investigar possíveis células de “terrorismo” em nosso país. Tal iniciativa, longe de ser um caso isolado, parte de um
exercício de longa data, praticado por amplos setores das FFAA e das polícias que consiste em criminalizar ativismos e
movimentos sociais. O próprio capitão em questão, lotado no setor de Inteligência do Exército, assina um artigo datado
de 2013 onde externaliza suas preocupações sobre as possibilidades de um ataque “terrorista” em solo brasileiro. Ele
reforça a necessidade de criação de um setor de Inteligência integrado entre as FFAA e as polícias, dado o novo papel
de protagonismo do país na conjuntura geopolítica internacional (ASSIS et alli., 2013). Todavia, os alvos preferenciais
de tais ações, dada a ação do capitão Botelho, parecem indicar a continuidade do uso político que as FFAA fazem de
termos como “terrorismo” para reprimir movimentos e ativismos sociais.
3
Como nos mostra Grossman (2011), os EUA somam, de 1890 até o ano de 2011, 144 intervenções militares diretas em
países estrangeiros – em especial na América Latina e na Ásia após a 2ª Guerra Mundial. Autores como Graham (2010)
chamam a atenção para o fato de questões primordiais de segurança nacional dos países centrais já influenciarem, direta
e indiretamente, as estratégias de “segurança” também nas grandes cidades europeias e principalmente estadunidenses.
A título de exemplo, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, o departamento de polícia de Nova York possui
uma força especial de inteligência e ação em práticas de “contra-terrorismo” – que inclusive foi acionada para investigar
o movimento “Occupy Wall Street” ao longo de 2011. A categoria de “inimigo interno”, aplicada comumente pelos
EUA aos traficantes de drogas e “terroristas”, foi na ocasião ampliada para a investigação e posterior repressão a um
ativismo social urbano insurgente. É importante sublinhar, desde já, que a estratégia de dar vida a um “inimigo” comum
nas questões de política interna e externa dos Estados será um dos pilares fundamentais que ligam questões geopolíticas
de segurança nacional e pública no mundo contemporâneo. Discutiremos esse ponto com maior profundidade mais a
frente.
Estado e outros atores pela legitimidade do controle armado de diferentes territórios. Eles apontam, de
maneira distinta, para outras relações transversais de poder, que possibilitam uma leitura diferente e mais
complexa deste mesmo Estado no tocante à administração de conflitos urbanos.
Diante disso, o presente capítulo propõe um esforço teórico inicial para pensar elementos ligados à
seara da segurança pública e violência urbana sob uma perspectiva geopolítica. Com isso, o que se busca
aqui é a realização de um exercício realizado através de dois movimentos simultaneamente distintos e
complementares. O primeiro, de caráter horizontal, diz respeito ao mapeamento das territorialidades entre
diferentes atores que configuram as assimetrias, descontinuidades e conflitos no urbano, dentro de um
processo de redefinição contínua das “dobras” do legal e ilegal na cidade (TELLES, 2010). Já o segundo,
dentro de uma lógica vertical, procura compreender as escalas de ação inerentes a tais processos, dentro do
caráter supralocal que o local muitas vezes assume (SOUZA, 2000 p. 85 e segs). O capítulo está dividido
em duas partes além desta “introdução” e das “considerações finais”. Na primeira, o texto propõe um
resgate e a delimitação do campo de interesses tradicionalmente ligados à geopolítica e os dois
pressupostos fundamentais da sua dimensão urbana: a (para)militarização dos conflitos e o consequente
alinhamento das agendas de segurança pública e nacional dos Estados. Na segunda parte, o texto esboça
um primeiro movimento de construção teórica acerca da geopolítica urbana na perspectiva das “margens
do Estado”, tendo em vista seu papel como ferramenta para uma outra leitura dos tensionamentos sócio-
espaciais das cidades brasileiras.

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