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Brasil
Uma nova geração de pesquisadores destrói mitos e revela o
verdadeiro passado do Brasil: um país mais forte, mais complexo e
bem mais humano do que ensinaram na escola
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279
Junho de 2010
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POR Redação Super
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Leandro Narloch*
Até que, nos anos 90, historiadores descobriram dados que não batiam
com a teoria. Registros dos portos do Rio de Janeiro e de Salvador
mostravam que, em épocas de crise econômica europeia, quando os
preços de açúcar e algodão desabavam pelo mundo, no Brasil eles
mudavam pouco. Mesmo quando as exportações do Rio de Janeiro
diminuíram, a compra de farinha e charque do Rio Grande do Sul
aumentava. Esses dados sugerem que havia um bom mercado
consumidor no Brasil. Além disso, o testamento dos homens mais
endinheirados mostrava que a maioria não fez fortuna exportando
cana-de-açúcar, mas fabricando ferramentas ou emprestando dinheiro.
Eles compravam fazendas só depois de ricos, para ganhar status de
proprietários de terras e eventuais títulos de nobreza.
O mais recente estudo com essa nova visão virou o livro História do
Brasil com Empreendedores, de Jorge Caldeira, lançado em 2009. Ele
mostra mais um mito do Brasil colonial: a ideia de que só havia por
aqui uma enorme massa de escravos e seus senhores. Em 1819, os
escravos eram um quarto da população total, de 4,4 milhões de
pessoas. E, entre os brasileiros livres, 91% deles não tinham escravos.
"Com essa população, o Brasil tinha uma economia maior que a de
Portugal", diz Jorge Caldeira.
Mito 1
"A sociedade brasileira se dividia entre senhores e escravos"
Havia mais pessoas livres do que se imagina. No século 18, 40% da população
era de escravos. No começo do 19, 25%. E alguns senhores trabalhavam com
os negros, já que tinham poucos escravos.
Mito 2
"Portugal apenas sugava nossas riquezas"
A montagem de engenhos e a exploração de ouro trouxeram riquezas para cá,
criando um comércio ativo no Brasil. No fim do século 18, nossa economia
era maior que a de Portugal.
Mito 3
"Os latifundiários eram as pessoas mais ricas"
Um navio negreiro valia mais que um engenho inteiro. Só 25% dos maiores
testamentos eram de fazendeiros, o resto era de comerciantes, banqueiros e
traficantes de escravos. Esses homens, para ganhar status, compravam terras
no fim da vida.
Mito 4
"A Inglaterra fez o Brasil destruir o Paraguai"
Ao contrário do que se imagina, a diplomacia britânica tentou evitar o
conflito. O país tinha investimentos no Brasil e no Paraguai, que ficariam em
risco em caso de guerra.
Mito 5
"Aleijadinho era um deficiente físico grave que fez centenas de estátuas
sozinho"
As famosas esculturas são provavelmente fruto de vários e talentosos artistas,
que dividiam o trabalho entre si e tinham ajudantes. E a imagem dele como
um homem desfigurado pode ser uma criação literária.
Mito 6
"Lampião lutava contra coronéis e latifundiários"
O rei do cangaço prestou favores a grandes coronéis do sertão. Ao mesmo
tempo, ameaçava famílias pobres e executava operários que construíam
estradas pelo interior do Nordeste.
Mito 7
"O Paraguai era uma potência latente"
Era o país mais atrasado do Cone Sul. O comércio exterior era 6 vezes menor
que o do Uruguai, que tinha a metade da população.
Mito 8
"Canudos era uma sociedade igualitária"
A cidade de Antonio Conselheiro não pregava a reforma agrária. Como fora
dali, havia miseráveis e pessoas mais ricas.
Mito 9
"Santos Dumont inventou o avião"
O inventor brasileiro foi um gênio. Mas os irmãos Wright voaram 3 anos antes
dele e, em 1906, quando o 14 Bis decolou, já tinham um avião bem melhor. A
grande aeronave do brasileiro é outra: o Demoiselle, de 1908, primeiro
ultraleve da história.
Mito 10
"Os bandeirantes eram desbravadores europeus"
Os bandeirantes eram filhos de índios com brancos, andavam quase nus e
seguiam a cultura tupi-guarani.
Mito 11
"A banana e o coco são nativos do Brasil"
Essas frutas, assim como a jaca, a manga e o abacate e alguns animais, como
os cães, não existiam no Brasil. Chegaram aqui a bordo das caravelas
europeias.
Mito 12
"A feijoada foi criada com restos da Casa-Grande"
Ao contrário do que muita gente acredita, a feijoada tem origem europeia.
Vem da tradição de misturar legumes com carnes, como o cassoulet, francês,
feito com carne de porco e feijão branco.
Mito 13
"Os índios do Sudeste foram praticamente extintos "
Enquanto milhares de índios eram dizimados, outros decidiram deixar as
aldeias e ir para as cidades, assimilando-se à população. Hoje, na média, 8%
do genoma dos brasileiros tem origem indígena.
Mito 14
"Os índios não foram escravizados"
Principalmente durante os séculos 16 e 17, milhares de índios de todo o Brasil
e do Paraguai foram levados a São Paulo como escravos. Como outras regiões
também precisavam de trabalhadores, começaram a trazer escravos da África.
Mito 15
"Os quilombos lutavam contra a escravidão"
As comunidades lutavam pela liberdade de seu grupo. Mas é provavel que os
membros poderosos tivessem escravos próprios.
Mito 16
"A Inglaterra foi contra a escravidão para criar um mercado consumidor"
A luta contra a escravidão na Inglaterra partiu de um movimento religioso e
popular. Não passava pela cabeça dos homens de negócio ingleses acabar com
a escravidão nas colônias britânicas na América.
Mito 17
"A maioria das fazendas tinha dezenas de escravos"
Os engenhos com muitos escravos eram raridade. No século 18, a maioria
estava, em média, em plantéis pequenos, geralmente de 4 ou 5 pessoas.
Mito 18
"Os africanos viviam em tribos selvagens"
Enriquecidos com a venda de algodão, ouro e escravos, alguns reinos
africanos ficaram poderosos. Havia por lá exércitos e cidades grandes.
Mito 19
"O samba é um ritmo puramente brasileiro"
O ritmo tem influências que não são do Brasil nem da África. Donga, o
músico que gravou o primeiro samba, em 1917, montou bandas de jazz.
Sinhô, o "rei do samba" nos anos 30, usava melodias europeias em suas
canções.
Esse modo de ver a história cria um vício: tudo passa a ser visto de
forma parcial. Se alguém do seu país consegue mesmo um grande
feito, tende a ganhar uma aura de herói. E ai de quem questionar seus
feitos. A aura em torno de Santos Dumont no Brasil é um dos maiores
exemplos disso. Aqui ele é o pai da aviação. E ponto final. No resto
do mundo, engenheiros e historiadores consideram os irmãos
americanos Orville e Wilbur Wright mais importantes para o
pioneirismo das máquinas voadoras. E é fato. Não se trata apenas de
esforço dos EUA em vender seus heróis. Ao contrário do que muita
gente acredita no Brasil, os irmãos americanos voaram na presença de
testemunhas antes de Santos Dumont apresentar o 14 Bis ao mundo.
No dia 5 de outubro de 1905, fizeram um único voo de 39 minutos,
percorrendo 38,9 quilômetros. Já o 14 Bis, em novembro de 1906,
voou 220 metros de distância a uma altura máxima de 6 metros. E foi
abandonado 5 meses depois, quando sofreu uma queda lateral e teve
uma das asas despedaçadas. Se as últimas linhas despertaram em você
alguma emoção mais quente, tenha calma. Ao contrário da história do
século 19, a atual não se preocupa em criar ícones de heroísmo
nacional e descrever grandes feitos. Na verdade, uma parte dos
intelectuais de hoje se dedica a investigar como grandes lendas da
história ganharam forma - e esse trabalho tende a destruir mitos
consagrados.