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OUVINDO OS SONS DO PASSADO NA CIDADE.

TEORIA E METODOLOGIA NA ESCUTA PENSANTE

Cleber de Oliveira Santana1

Resumo

O mundo acústico está recheado de sons tanto ditos tradicionais ou os chamados


modernos e a cultura do sensível vem a cada dia expondo trabalhos que busquem
compreender essas sonoridades trazendo elementos do sensível e do emocional
promovendo releituras de um passado, bem como propondo novos desafios à
historiografia. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo evidenciar a discussão
em torno das sonoridades urbanas existentes e como essas ambiências sonoras podem
ser recuperadas pelo historiador a partir de teoria e metodologia próprias.

Palavra-chave: Cidade; sonoridades; teoria; metodologia.

A cidade tem sido como campo fértil para os estudos sobre o imaginário social,
compreendido como sistema de ideias, imagens e representação coletiva, capazes de
engendrar realidades sociais. Nesse sentido, constitui-se também como referência para
essas abordagens, a partir do debate das práticas culturais cotidianas desenvolvidas num
determinado espaço urbano que está sempre em movimento, onde a população plasma
suas impressões e marcas de pertencimento. São esses espaços repletos de sentido que
estão na atualidade sendo objetos de investigação, onde se busca os limites do pensável,
trabalhando também nas margens e nas franjas em busca do conhecimento histórico.
Essas memórias afetivas são percebidas a partir das impressões, das pistas e dos
vestígios herdados de um passado e dessa forma, “habitar é deixar rastros”. (CARLOS,
2001, p. 5)

O cotidiano da cidade expõe uma multiplicidade de relações culturais entre os


indivíduos heterogêneos em valores, comportamentos, hábitos, linguagens e costumes, e
faz-se necessário então ao pesquisador, possuir a capacidade de captar essas

1
Mestre em História Social pela PUC/SP. Desde 2012 vem desenvolvendo pesquisas sobre sonoridades
urbanas em Aracaju nos séculos XIX e XX. E-mail: cosantanacleber@gmail.com
imagens/representações, encarando a cidade como problema a ser investigado. A vida
cotidiana é, em grande medida, heterogênea; e isso sob vários aspectos, sobretudo no
que se refere ao conteúdo, à significação ou à importância dos tipos de atividades que
são desenvolvidas, seja na organização do trabalho e da vida privada, nos lazeres e no
descanso, na atividade social, no intercâmbio cultural e na espiritualização das
expressões religiosas. (Cf. HELLER, 1985).

Com a contribuição e diálogo de vários campos disciplinares, como Sociologia,


Antropologia, Geografia e História, a cidade começou a ser vista e estudada sob
diversos ângulos, como por exemplo, preocupação sanitarista pública, espaço
modernizador dos costumes, lugar de memória, documento/monumento, categorias de
espaço privado/público e indo até a uma dimensão de sinestesia, que, além do campo
visual, onde vemos, sentimos e tocamos, também podemos atingir o espírito de cheirar e
de ouvir a cidade2. Só através do estudo sistemático de uma grade de variáveis é que as
dinâmicas do processo urbano podem ser compreendidas, sendo a tarefa do historiador
sintetizar os resultados das diferentes abordagens disciplinares num todo coerente.

Nesse sentido, a história cultural possibilitou há algumas décadas que os


elementos do sensível e do emocional, seja visual ou auditivo, promovessem releituras
de um passado e expos outras versões da chamada história tradicional propondo novos
desafios à historiografia. Portanto, pergunta-se, como ouvir a cidade através da história
e como compor um quadro de sonoridades que foram emitidos, recebidos ou repulsados
no cotidiano da urbe num passado?

O primeiro exercício para isso é entender a cidade e as sonoridades. Identificar,


mapear e interpretar o espaço urbano por meio da captura/recolha e da montagem dos
seus sons; estar atento para as suas entonações, percorrer a cidade através de um
“ouvido pensante” num exercício de escuta e na recuperação da percepção que foi
atrofiada na relação sensorial do sujeito com o ambiente. (Cf. GOLIN, 2007,
SCHAFER, 2007) Depois disso, é possível construir uma “cartografia sonora” realizada

2
Sobre sinestesia, considero os trabalhos de Maurice Merleau-Ponty (1994) como referenciais para esse
entendimento teórico. O referido autor defende a dignidade do corpo e de seus sentidos na apreensão do
mundo e do outro, onde visão, olfato, paladar, tato e audição estão em sintonia (unidade dos sentidos)
com as mudanças advindas da era moderna.
a partir da etnografia de rua, onde caminhadas, observação das práticas e dos
personagens, atenção às sonoridades, ao movimento da rua, percursos, descrição dos
ambientes, possibilitam interpretação das formas de vida social. (Cf. ECKERT &
ROCHA, 2005).

As perspectivas de pesquisa envolvendo a cidade estão nas camadas sonoras


difusas e na ambiência sonora dos espaços urbanos esclarecidos por Nelson Aprobato
Filho (2008) no seu Kaleidosfone. Ele indicou a existências de diversas sobreposições
de sons “sobrepostos e mesclados de forma contínua e crescente” e a irradiação dos
mesmos “nas ruas e nos espaços públicos da cidade” (APROBATO FILHO, 2008, pg.
27). Essas duas categorias de análise proporcionam “ver e ouvir a cidade” a partir do
que nela se produz em termos de sonoridades na percepção e imaginação que vai além
da palavra, por meio da configuração do espaço com todos os elementos presentes que
propiciam a produção de sons.

Para discutir a relação espaço/som, Murray Schafer (1991, 2001) estabelece a


distinção fundamental entre as noções de campo sonoro e paisagem sonora. Por campo
sonoro, entende o espaço acústico gerado a partir de uma determinada fonte emissora,
humana ou material, que irradia e faz distender a sua sonoridade a uma área ou território
bem definidos. A paisagem sonora seria a sobreposição de diversos campos sonoros que
a cidade em si está repleta desses registros, tanto de sons que estão em vias de
desaparecer ditos tradicionais ou ancestrais, quanto aos novos, chamados modernos,
resultando num ambiente sonoro multifacetado, cheios de sentidos, caracterizando o
lugar. E a partir disso, estabelece-se uma relação entre comportamentos sociais,
capacidade auditiva e criação de novas sonoridades ao longo do tempo, com vista a uma
educação do ouvido na contemporaneidade. Segundo Casaleiro (2008), a proposta de
Schaffer é realizar uma “limpeza dos ouvidos, para que possamos voltar a escutar,
identificando marcas e sinais inseridos no som contínuo, construído artificialmente pelo
transito, pela multidão e o som de fundo de segundo plano”. (CASALEIRO, 2008, p. 4)

Podemos perceber então que toda cidade tem na sua constituição várias
sonoridades, já nasceu sobre o manto do som e mal conhece o silêncio. A historiografia
urbana e sensorial sobre cidades nos aponta que se trata de uma incongruência exigir da
cidade silêncio. O som natural ou mecânico já está inserido dentro do mundo e do
desenvolvimento tecnológico integrado à vida cotidiana, fruto do progresso e do
resultado das inserções de novos padrões mecanicistas e fugir da produção sonora torna-
se uma utopia. Ser cidade é ter diversos sons, adquiri uma nova cultura do sensível,
fazendo parte das camadas sonoras.

Dessa maneira a heurística dos sons urbanos do passado pode ser buscada
através de duas formas nos registros documentais ou nas lembranças dos habitantes. O
registro documental e a memória de longo prazo correspondem dois caminhos
substanciados de estímulo sensorial e sonoro. Ambos possibilitam promover a
reconstituição da história cultural auditiva.

A primeira forma, o registro documental, possui um teor informacional histórico,


uma marca indelével da presença das atividades humanas, evidências das experiências
sociais, testemunho dos acontecimentos. As fontes são formas de transmissão de
informação, de perpetuação, de história e de conhecimento. Possuem uma variante
quanto a sua configuração como textuais, impressos, audiovisuais, gráficos,
tridimensionais, imagéticos e tantas outras. Cada uma servindo como “prova” e cabendo
ao historiador, habilidade e capacidade argumentativa para realizar, através de uma
metodologia própria, investigação e interpretação, na recolha de indícios que
possibilitem construir um pensamento histórico científico crítico dentro dos limites das
possíveis verdades, observando os vários prismas e variantes do cenário humano.

Já a outra possibilidade de recuperação de um passado histórico sonoro está nos


depoimentos orais, também classificados na categoria de fonte. O depoimento
possibilita também ao historiador atingir uma subjetividade baseado no vínculo e na
carga de afetividade com o lugar (Cf. BALSEBRE, 2005). Além disso, os sujeitos têm
uma “capacidade para imprimir sobre os ambientes sociais que frequentam as suas
marcas ou sinais sonoros próprios”. (FORTUNA, 1998, p. 29). Com os depoimentos se
busca compreender problemáticas, histórias de vida, relatos dos acontecimentos,
maneiras de ver e sentir a história. Entretanto, como a história oral trabalha com os
recursos da memória e sabendo que a memoria é seletiva, atemporal, subjetiva, a
credibilidade e o trabalho do historiador com esse tipo de fonte deverá sempre exigir
cautela, pois o entrevistado poderá ter falha de memória, criar uma trajetória artificial,
se auto-celebrar, fantasiar, omitir ou mesmo utilizar de mentira. Porém, a cada dia são
vários os recursos metodológicos utilizados para eliminar a não-confiabilidade e os
“ruídos” existentes nos relatos orais.

Nesse sentido, coaduno com o pensamento de Edward Carr (1982) quando


afirma,

nenhum documento pode nos dizer mais do que aquilo que o autor pensava – o que
ele pensava que havia acontecido, queria que os outros pensassem que ele pensava,
ou mesmo apenas o que ele próprio pensava pensar. Nada disso significa alguma
coisa, até que o historiador trabalhe sobre esse material e decifre-o. (CARR, 1982, p.
18)

Explorar os vestígios do passado com perspicácia, curiosidade e determinação


faz com que o historiador realize um bom trabalho, investigando dentro do seu tempo as
ações do passado, revelando sua interpretação histórica por meio de uma consciência
crítica.

Sabemos que a escrita e o determinismo verbal são expressivos na cultura do


letramento e outros tipos de suportes linguísticos, como as imagens e os sons, apareciam
como secundários no processo do labor historiográfico. Contudo, alargou-se o ofício do
historiador e novos materiais e novas fontes são, a cada dia, utilizados como
ferramentas para entender o mundo e formas de recuperação de um passado e temos
muitas fontes documentais sobre a cidade, sua população e seus sons que poderão ser
peças fundamentais para estudo e elaboração de um panorama citadino.

As fontes de toda ordem num trabalho de pesquisa do historiador necessitam que


seja realizada uma crítica documental a partir de um rigor metodológico, verificando
seu conteúdo informacional e isso é realizado no confronto de opiniões divergentes e
situar a época de cada uma foi elaborada, verificando perspectivas possível de um
entendimento histórico. A contextualização das fontes se faz necessária na medida em
que se avalia não só o teor informacional, mas também como as mesmas foram
construídas, qual o “lugar da fala”, verificando quem produzindo, para qual público e o
seu processo de produção. Assim estaremos realizando um procedimento de intervenção
sobre o material selecionado. No nosso caso, as fontes relacionadas as sonoridades na
cidade.

Porém advertimos que não faz parte dessa proposta elaborar um inventário das
manifestações acústicas, tarefa ambiciosa e porque não dizer inócua e impossível,
propomos realizar uma discussão de maneiras de recuperar, através de pesquisa,
fragmentos histórico dos sons, observando as práticas culturais, descrição dos
ambientes, dos personagens e agentes, tendo uma atenção às sonoridades, ao
movimento da rua, aos percursos. Pois, mais que arrolar essas infinidades de vibrações
sonoras, cumpre-nos entender de que maneira esses sinais compuseram a tessitura
urbana de uma cidade.

Nesse sentido, nosso interesse é perceber as particularidades a partir das suas


características singulares “ouvindo a cidade”, obter a capacidade por meio dos registros
escritos ou orais, sentir possíveis manifestações sonoras e percepções auditivas, para
posteriormente transformar essas sonoridades percebidas em informação, discernindo
seu valor e significado, sem nenhuma rotulação à priori, seja de poluição sonora, ruído
ou silêncio dessas paisagens sonoras, nem tampouco subjugar a parâmetros universais,
investigando, selecionando seus ritmos, tentando entendê-las e dando-lhe sentido.
Desenvolver assim uma abordagem histórica das relações entre a cidade, sua população
e seus sons, seguindo o pensamento de Fortuna (1991) quando aponta que “através da
análise das características específicas que marcam as paisagens sonoras urbanas
podemos perspectivar a consolidação e o crescimento da cidade.” (FORTUNA, 1991, p.
111)

As análises dos registros e as ações metodológicas de investigação da vida social


a partir das sonoridades que configuram ambiências e paisagens sonoras urbanas
poderão estar em correspondências, de todoa ordem, atas, registros públicos ou
privados, relatórios, leis, resoluções, regulamentos, expedientes, processos-crime,
jornais e fotografias, bem como em crônicas, poesias, diários, relatos de viagens,
ensaios, estudos, apontamentos procurando escutar na cidade, as manifestações sonoras
e as percepções auditivas.
Além da documentação dita oficial, devemos atentar para as considerações de
Walter Benjamim (1993) sobre a existência de textos, folhetos, brochuras e cartazes,
como materiais indicativos ou pistas que caracterizam a feição estrutural da cidade,
constituindo sinais expressivos de uma totalidade histórica. (Cf. BENJAMIM, 19930)

Tentar reconstruir, em código escrito, fenômeno que por essência existiram de forma
imaterial e fugaz; assim como tentar recompor, em conjuntos interpretativos,
segmentários e particularizados (o som dos sinos, o som dos automóveis etc.)
manifestações sonoras que eram emitidas em múltiplas camadas difusas, sobrepostas
e perturbadoramente intricadas são correr o risco, aterrador e angustiante, de
aproximar-se mais do peso e das certezas que geralmente acompanham as idéias e
práticas do legislador, do que da leveza, bifurcações, questionamentos,
instabilidades, provocações e infinitas possibilidades de interlocuções que na maior
parte das vezes proporcionam as obras literárias. (APROBATO FILHO, 2008, p. 40)

A multiplicidade de fontes documentais, uma bibliografia especializada,


consulta, pesquisa e procedimentos metodológicos poderão capturar as sonoridades
históricas da cidade e reconstituir narrativas de vida social e fragmentos do cotidiano e
seus diversos aspectos culturais. Conhecer histórias de outro tempo e contribuindo com
as referências bibliográficas sobre as sonoridades urbanas que estão sendo produzidas
no Brasil.

Com essa capacidade de extrair das fontes informações necessárias para o


processo de elaboração do conhecimento, realizado a partir dos fatos concretos
ocorridos que são transformados em experiências reais, que possivelmente existiram
empiricamente e que são descritos nas fontes, podemos apresentar alguns exemplos de
como realizar essa busca das sonoridades citadinas. Como transformar texto ou
depoimentos em sons e depois reelaborá-los em informação na forma de novos escritos,
transformando o pensamento histórico subjetivo em ciência escrita.

Utilizaremos como experiência a cidade de Aracaju. Ela tem sua origem


enquanto cidade e capital, em 17 de março de 1855, quando o então Presidente da
Província de Sergipe D’El Rey realizou através de um ato administrativo a transferência
da capital de Sergipe, de São Cristóvão para Aracaju. Nesse sentido, irei por meio da
pesquisa das fontes disponíveis interpretar como se processou a transformação e a
expansão de Aracaju, a partir de dois tipos de fonte onde as sonoridades estarão
presente.
A primeira trata-se do Relatório do Presidente da Província de Sergipe Del Rey,
Luiz Álvares D’Azevedo Macedo, publicado em 1872. Nele se apresenta uma
caracterização da feira aracajuana. Descreve o cenário da feira popular afirmando que
desde logo cedo, “pela manhã centenas de pessoas de ambos os sexos, à pé, à cavalo e
em carroças, chagavam à cidade”. Segundo ele, “invadindo a rua do comércio, pelo cais,
pelo centro da cidade e pelas calçadas.” Por último, pronuncia sua preocupação onde diz
que os comerciantes “faziam o seu comércio no meio de gritos descompassados.”

Nesse pequeno trecho da descrição acima do século XIX, podemos subjetivar


diversas sonoridades existentes na cidade, desde os passos apresados dos transeuntes no
vai-e-vem nas ruas e nas calçadas, o lufa-lufa da população, os trotares e os relinchares
dos cavalos, os chiados e as frenagens das carroças, os gritos dos vendedores e o
falatório durante o processo de compra e venda dos produtos. Todos são indícios fortes
das sonoridades presentes nas feiras livres. Nessa ambiência sonora diversos sons
estiveram presentes e nos proporcionam perceber a dimensão do cotidiano aracajuano e
seu processo de expansão e estruturação enquanto cidade em formação.

Sobre o funcionamento das feiras de outrora na cidade de Aracaju, o artigo 2 do


Código de Posturas de 1858 prevê que a mesma “terá lugar nas segundas-feiras de cada
semana das 7 horas da manhã até às 3 da tarde, e nella se exporão á venda quaesquer
mercadorias, e especialmente farinha, feijão, milho, arroz, legumes, frutas, assucar,
café, azeite, aves, ovos, e peixe”. Em Aracaju, nessa época, a questão das feiras e do
comércio miúdo de todos os gêneros, quinquilharias e bugigangas, era vista como “um
comércio de réis dos mais pobres, porque os ricos satisfaziam as exigências gustativas
comprando nos armazéns atacadistas e varejistas”. (SANTOS, 2008, p.26).

A feira constitui um local privilegiado nas cidades, o local do mercado onde se


misturam, por um lado, a conversa diária rotineira e, por outro, as chamadas e o
discurso sedutor dos vendedores. A conversa diária corresponde à comunicação
ordinária, palavras de natureza puramente comercial, ou não, entre os vendedores e
clientes. Já as chamadas são também conhecidas como pregões, uma criação sonora de
profissionais livres – vendedores e compradores dos mais variados objetos, Por último,
temos o discurso sedutor que por sua vez, tem por objetivo principal chamar a atenção
da clientela para a mercadoria e incitá-la a comprar. Esses processos de comunicação
oral e o uso de recursos verbais e linguísticos fazem parte de uma estrutura sociológica
e histórica na transmissão de saberes e de uma tradição nascida nas ruas. (MASSIN,
1978 apud LINDENFELD, 1999)

Já os gritos dos vendedores ambulantes, nas ruas cidades, datam de época muito
antiga. Eles são a primeira forma – oral – da publicidade, além de promover
comunicação. “Num tempo onde a cultura era reservada a uma classe de privilegiados e
onde a proporção dos iletrados continuava considerável, a “gritaria” de suas
mercadorias era o único meio de que dispunham os comerciantes para informar a sua
clientela.” (MASSIN, 1978 apud LINDENFELD, 1999, p. 33).

Nesse sentido, vimos que as fontes apresntadas foram realcionadas a outras


informações que não se encontram nas fontes trabalhadas, por meio de um processo de
apreensão interpretativa no presente. A descrição da feira popular permitiru extrair da
mesma diversas outras informações que não estavam no texto descritivo. Essa
percepção que foi além da fontes, além do texto escrito nos dá a capacidade e a
sensibilidade auditiva.

Outra fonte informativa são os testemunhos e as memórias daqueles que


vivenciaram as sonoridades aracajuanas. Nesse outro exemplo, iremos nos debruçar
sobre uma das festas mais populares no Brasil: os festejos juninos.

Os primeiros registros sobre os festejos juninos em Aracaju datam do final do


século XIX e o primeiro decênio do século XX, onde já se tem a presença de dois
momentos singulares: o primeiro dedicado aos rituais religiosos com início nas igrejas
e/ou residências e depois o segundo momento, ganhando as ruas, de caráter popular que
são as celebrações de terreiro. Conforme SANTOS NETO (2004) recuperou uma
informação do Jornal O Município de 1893,

a festa junina fora animada, pois a população armara fogueiras em penca,


comera manauês e milho verde aos cachos; canjica aos alqueires e bebera
vinhos em quantidade. Além de arrasta-pés e fogos de salão ‘para glorificar o
Santo Batista’.” (Aracaju, O Município, 23 de junho de 1893, p. 1)

As novenas e trezenas dos rituais religiosos já se realizam naquela época e


indícios disso podem ser observados na descrição abaixo quando apresente que,
na primeira década do século XX, eram rezadas novenas na casa de duas
velhinhas (irmãs) moradoras de um sítio que ficava numa região chamada
Matinha dos Caboclos. As duas irmãs tinham uma imagem de São João, a
qual chamava de São João de Deus. A rua em que moravam recebeu o nome
de Rua de São João, quando ainda não tinha calçamento nem luz elétrica e
era cheia de casas de palha. A novena terminava com uma procissão pelas
principais ruas do bairro (Santo Antônio) e após a procissão os vizinhos se
presenteavam com comidas. As ruas eram enfeitadas com bandeirolas, os
candeeiros e as fogueiras eram acesos e a conversa varava a noite. (GRAÇA,
2005, p. 115).

Além disso, após os rituais religiosos fala-se que as pessoas “iam dançar nas
casas uma espécie de coco de parelha (...) O coco era tão animado que às vezes, ao fim
das noite, ou se quebrava o tamanco ou o tijolo da casa” (ALENCAR, 1990, apud
GRAÇA, 2005, p. 116).

Mário Cabral (2002), relatando sobre os festejos juninos dos anos 20 e 30 do


século XX, diz que “à tarde começavam as danças ao som das sanfonas e os samba ao
ritmo das batucadas. A cuíca gemia sem parar, vozes, em coro, tiravam um estribilho
famoso” (CABRAL, 2002, p. 57). E o romancista vai mais além, dizendo que “há quem
recorde com saudades, os sambas de parelha, os batuques e as emboladas executadas
por João de Dona, Mané Nata, Adolfo do 41 e Ciro Grande”. (CABRAL, 2002, p.58).

Alguns depoimentos do livro Minha Vida tem História, uma coletânea de


transcrição de relatos de contadores de histórias em Aracaju – fruto de um projeto com
mesmo nome realizado pela Prefeitura Municipal de Aracaju/SEMED, nos anos de
1999 e 2000, promoveu o Circuito de Contadores de Histórias, com relatos de
experiências de vida de cidadãos da terceira idade –, apontam para uma “lembrança de
tempos passados”, permitindo captar passagens significativas dos festejos juninos de
outrora, tanto oriundos do interior sergipano quanto da própria capital, Aracaju.

Maria Carmelita dos Santos, 74 anos, nascida e criada no Município de Capela e


depois de adulta vindo com a família residir em Aracaju, durante seu relato de vida,
disse, “aprendi a dançar zabumba que meu pai fazia em casa, com as meninas. Tinha
novenas de São João, São Pedro e Santo Antônio e ele tocava nos povoados... tocava
nas igrejas e nas casas das pessoas religiosas, depois tocava em nossa casa”. Outro
depoimento, agora de Maria de Lima Barros, como 88 anos, relatou que “às vezes tinha
uma festa, chama-se pagode, fazia um leilão3. Pagode era uns tambores, uns pandeiros e
a gente dançando e cantando aqueles versos.”

Através desses depoimentos podemos perceber que duas sonoridades estiveram


presentes e com caráter distinto, apesar das duas fazerem parte da mesma festa: as
sonoridades religiosas e as sonoridades das batucadas. Esses relatos nos dão uma noção
de como se processavam, nas noites frias, as festas juninas aracajuana em épocas mais
antigas.

A primeira relacionavam-se as litanias, as orações, os ritos litúrgicos, as


ladainhas e os cânticos que invadiam as casas proporcionando uma atmosfera cristã,
onde votos de piedade e fé eram a tônica. Louvação e preces ao santo devoto e a
padroeiro da novena estiveram presentes nessas sonoridades. Além disso, as ruas
também recebiam essas sonoridades da fé na medida em que “uma procissão pelas
principais ruas do bairro” faziam lembrar a todos que aquele dia era dia de louvar, dia
de pagar promessa e acertar contas com o santo.

A musicalidade da parte profana da festa era representada pelos sons do famoso


tríduo composto pela sanfona, triângulo e zabumba, ou por uma batucada com viola,
pandeiro, querequexés, ganzares, flauta, cuíca e tambores, instrumentos na sua maioria
ligados à percussão. Todos eles ‘atroavam os ares com sua orquestra tão do agrado da
alma nortista, enchendo as noites de São João de vozes e batuques”.4 Os ritmos eram
acompanhados por música e dança como samba de parelha, samba de coco, típico de
região litorânea, batuques, emboladas, repentes, toadas e muito forró. Homens e
mulheres em roda, em pares ou sozinhos, saracoteavam, sapateavam, ziguezagueavam,
redemoinhavam, agachavam, davam umbigadas, trotes, pisavam forte no chão, batiam
palmas, “cantando e tirando os motes próprio dos sambas”5 (SOBRINHO, 1942 apud
BITTENCOURT, 1947, p. 127/28).

3
Sobre a existência de leilão nos festejos juninos, encontramos uma notícia no Jornal A Tribuna, de 27 de
junho de 1931, que informa que “a colônia de pescadores desta capital, festejará na sua sede, o dia de São
Pedro, realizando hoje a noite um animadíssimo leilão e mandando celebrar amanhã às 5 horas uma missa
campal”. Geralmente a realização de um leilão era para cobrir as despesas realizadas para a festa.
4
Sergipe-Jornal, Aracaju, 30 de junho de 1931.
5
Sergipe-Jornal, Aracaju, 23 de junho de 1932.
Nesse sentido vimos que a partir das fontes vamos extraindo as informações que
ela própria não pode formular no que diz respeito as sonoridades e modelos de
interpretação por meio do resíduo, transformando o pensamento histórico em ciência.

A partir de processos concretos ocorridos no passado extraímos informações que


na realidade são experiências de um possível real, ou seja, existe empiricamente como
resquício/resíduo no testemunho empírico das fontes.

Essa apreensão da pesquisa é interpretativa bem como se utiliza de uma


subjetividade que vai além da fonte exposta. O historiador detém a capacidade através
do seu presente capturar essas ressonâncias de sonoridades do passado, por meio de
uma crítica depurada, verificando as distorções, erros, incongruências, ou falhas, que
podem ofuscar a sua compreensão dos fatos de outrora. Nessa interpretação histórica
ponderam-se os fatos sob a ótica dos seus significados e do seu contexto narrativo.

Nesse sentido, investigamos os signos urbanos do século XIX ou do século XX,


compreendendo o processo de emissão e recepção das sonoridades urbanas na cidade,
tendo como exemplo dois parâmetros de fonte, dando um dimensão de também perceber
a formação cultural e sensorial da cidade de Aracaju.

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