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Paulo Roberto de Almeida

PRATA DA CASA
OS LIVROS DOS DIPLOMATAS

Hartford
Edição do Autor
2014
Prata da Casa
Os Livros dos Diplomatas
...................................

Prata da Casa
Os Livros dos Diplomatas

Paulo Roberto de Almeida


Doutor em ciências sociais.
Mestre em economia internacional.
Diplomata.

Edição do Autor - 2014


Direitos de publicação reservados:
Paulo Roberto de Almeida
2014

_______________________________________________________
Sxxx
ALMEIDA, Paulo Roberto.
Prata da Casa: os livros dos diplomatas
Hartford: Edição do Autor, 2014.
663 p.

ISBN: 978-85-xxx-xxx-x
1. Relações internacionais. 2. Política Externa. 3. História.
4. Diplomacia brasileira. 5. Brasil. 6. Resenhas de livros.
7. Título.
CDD
_______________________________________________________

A ser feito:
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004

Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração de Google images

6
George Orwell introduced newspeak, a language
“whose vocabulary gets smaller every year”...

O ofício da escrita é a arte de cortar palavras.


Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, John Steinbeck,
e muitos outros mais...

Dedicado a todos os colegas que – não contando telegramas, ofícios e demais


expedientes da carreira diplomática – fazem das leituras, dos livros e da escrita
atividades relevantes em suas vidas.
Paulo Roberto de Almeida

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...........................................
Sumário

Prefácio
pág. 11

Índice Geral
pág. 13

Introdução
pág. 21

Primeira Parte
Prata da Casa – Boletim da ADB
Mini-resenhas dos livros de diplomatas
pág. 29

Segunda Parte
Artigos-resenhas de livros de diplomatas
pág. 75

Terceira Parte
Livros de relações internacionais e de política externa do Brasil
Resenhas de livros interessando diplomatas e acadêmicos
pág. 299

Índice alfabético de autores e livros


pág. 647

Livros de Paulo Roberto de Almeida


pág. 659

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..............................................................
Prefácio

A julgar pelas resenhas aqui reunidas, seu autor parece ser alguém que vive com livros
e para os livros. De fato, eu não hesito em confessar a minha “loucura gentil” pelos livros,
uma espécie de “enfermidade espiritual” que beneficiaria muito a humanidade se ela por
acaso se tornasse irremediavelmente contagiosa. Tal atração por esses simpáticos objetos de
prazer intelectual, além de demonstrar sua forte propensão à aquisição de novos
conhecimentos, tem a vantagem de resultar em inúmeras resenhas, que agora tenho o prazer
de compartilhar com todos os meus leitores por meio desta coletânea.
Os colegas diplomatas descobrirão que boa parte dos livros aqui resenhados, em
formato maior ou menor, foi escrita pelos próprios diplomatas. Para ser mais exato, metade
das mini-resenhas da seção Prata da Casa é de livros publicados pela Fundação Alexandre de
Gusmão, entidade que divulga, institucionalmente, boa parte da produção feita na própria
Casa de Rio Branco. Os professores e estudantes de relações internacionais, bem como os
pesquisadores de temas da diplomacia brasileira e os próprios diplomatas também encontrarão
aqui resenhas mais longas de livros de não diplomatas, interessando a todos os públicos,
vários deles escritos por colaboradores habituais de atividades acadêmicas do Ministério das
Relações Exteriores.
Como entidade autônoma, mas vinculada ao Itamaraty, a Associação dos Diplomatas
Brasileiros começou a publicar, pouco depois de sua fundação, mais de duas décadas atrás,
um pequeno boletim trimestral veiculando matérias de interesse geral e corporativo. Nele
constam aspectos diversos da atividade diplomática e internacional do Brasil, bem como
pequenos registros dos livros que os diplomatas escrevem e publicam. Prata da Casa é o nome
dessa seção do Boletim da ADB que se dedica, por meio de mini-resenhas, à apresentação
(inclusive visual, mediante reprodução reduzida da capa) de livros publicados por diplomatas.
Nos dez últimos anos, eu assumi a responsabilidade por essa seção do Boletim – aliás, não
assinada – e nela tenho me dedicado, sistematicamente, a apresentar aos colegas e, de maneira
geral, ao público leitor do Boletim, os livros escritos pelos diplomatas, em todos os gêneros, e
não apenas aqueles dotados de “afinidades eletivas” com a carreira.
Nesse período, a Funag publicou centenas de livros, entre teses do Curso de Altos
Estudos, trabalhos do Instituto Rio Branco, transcrições de seminários por ela organizados,
obras diversas realizadas pelos diplomatas num ambiente acadêmico ou profissional, bem
11
como muitos outros trabalhos de acadêmicos voltados para o estudo de temas que pertencem
ao universo intelectual das relações internacionais e da política externa do Brasil. Ou seja, a
amostra aqui reunida é representativa do que melhor se publicou dentro e fora do Itamaraty,
nas últimas décadas, podendo, assim, servir como uma espécie de diretório da produção
especializada nessa área. A Funag também publicou obras no gênero literário (poesias,
contos, romances), que resultaram de concursos patrocinados por ela e pelo Itamaraty, dentro
e fora do Brasil. Mas esse acervo está bem menos representado aqui, em virtude das
afinidades eletivas do resenhistas com a produção na área de humanidades.

Este livro é uma pequena amostra dessa produção, intra e fora muros, e tem a
vantagem de relembrar aos pesquisadores e aos jovens estudantes da área quanto coisa ainda
precisa ser lida para se obter, ao menos pela súmula do que se publicou de mais relevante,
uma espécie de curso ex-cátedra de diplomacia prática, como também de memória histórica,
além de oferecer alguns poucos exemplos da boa literatura produzida pelos diplomatas. Nesse
sentido, ele é uma obra de referência sobre a produção acumulada nas últimas décadas que
deve interessar a todos nós, profissionais, pesquisadores e aspirantes à carreira.
Tenham todos bom proveito e, podendo, recorram às fontes originais, agora
novamente registradas graças ao amor pelos livros deste resenhista incurável.

Paulo Roberto de Almeida


Um simples bibliomaníaco...
Hartford, 16 de julho de 2014

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..............................................................
Índice Geral

Introdução
p. 21

Primeira Parte
Prata da Casa – Boletim da ADB
Mini-resenhas dos livros de diplomatas, 29

Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil


Flávio Saraiva e Amado Cervo (orgs.): O crescimento das relações internacionais no Brasil
Felipe Fortuna: Em Seu Lugar: poemas reunidos
José Vicente Lessa: O autoengano coletivo: uma crítica do ideário nacional brasileiro
Alberto da Costa e Silva: Das mãos do oleiro: aproximações
CHDD: A Missão Varnhagen nas Repúblicas do Pacífico: 1863 a 1867
André Heráclio do Rêgo: Famille et Pouvoir Regional au Brésil
Murilo Vieira Komniski: Buritizal
Raul de Taunay: Rosas da infância ou da estrela
José Augusto Lindgren Alves: Os direitos humanos na pós-modernidade
Paulo Antonio Pereira Pinto: Taiwan – um futuro formoso para a ilha?
Agenor Soares dos Santos: Dicionário de anglicismos e de palavras inglesas em português
Alexandre Vidal Porto: Matias na cidade
Paulo Antonio Pereira Pinto: Iruan nas reinações asiáticas
Milton Torres: O Maranhão e o Piauí no Espaço Colonial
Samuel Pinheiro Guimarães: Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes
João Clemente Baena Soares: Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc
Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores, 1964-1985
Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil
Vasco Mariz (org.): Brasil-França: relações históricas no período colonial
Armindo Branco Mendes Cadaxa: No Jardim de Inverno
Marcelo Raffaelli: A Monarquia e a República: relações Brasil-Estados Unidos no Império
Rubem Mendes de Oliveira: A Questão da Técnica em Spengler e Heidegger
Luís Fernando Corrêa da Silva Machado: Brasil e investimentos internacionais
Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro
Luís C. Villafañe G. Santos: El Imperio del Brasil y las Repúblicas del Pacífico, 1822-1889
Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica
13
Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo: Bolívia: a criação de um novo país
Jorge Sá Earp: O olmo e a palmeira
Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros
Secretaria dos Estrangeiros: O Conselho de Estado e a política externa do Império, 1863-67
Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2006
Milton Torres: No Fim das Terras e Andaimes
Fernando Reis: Falta um cão na vida de Kant
Flávio de Oliveira Castro: Caleidoscópio: cenas da vida de um diplomata
Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo
Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos
Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (orgs.): A Abertura dos Portos
Antonio Cachapuz de Medeiros (org.): Desafios do Direito Internacional Contemporâneo
Evaldo Cabral de Mello: Nassau: governador do Brasil holandês
Everton Vargas: O Legado do Discurso: Brasilidade e Hispanidade no Pensamento Social
Marcelo Böhlke: Integração Regional e Autonomia do seu Ordenamento Jurídico
Maria Nazareth Farani de Azevedo: A OMC e a Reforma Agrícola
Fernando Cacciatore de Garcia: O Príncipe Irreal e o Poeta Errante
Carlos Kessel: Tesouros do Morro do Castelo: Mistério nos subterrâneos do Rio de Janeiro
Roberto Campos: A Lanterna na Popa: Memórias
Alexandre Guido Lopes Parola: A Ordem Injusta
Sérgio Eduardo Moreira Lima: A Time for Change
Oswaldo Munteal Filho et alii (orgs.): Estado e Sociedade no Brasil do AI-5
Omar L. de Barros e Sylvia Bojunga (eds.), Potência Brasil: Gás natural, energia limpa
André Heráclio do Rêgo: Família e Coronelismo no Brasil: uma história de poder
José Roberto de Almeida Pinto: O Conceito de Poder nas Relações Sociais
Eugênio Garcia (org.): Diplomacia Brasileira: Documentos Históricos, 1493-2008
João Alfredo dos Anjos: José Bonifácio, o primeiro Chanceler do Brasil
Adriano Silva Pucci: O Avesso dos Sonhos
João Almino: Escrita em contraponto: ensaios literários
Vasco Mariz: Temas da política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas
Vera Cíntia Alvarez: Diversidade cultural e livre-comércio: antagonismo ou oportunidade?
Jorge Sá Earp: O Legado
Alberto da Costa e Silva: Castro Alves: um poeta sempre jovem
Sérgio Corrêa da Costa: Le nazisme en Amérique du Sud: Chronique d’une guerre secrete
Paulo Roberto Palm: A Abertura do Amazonas à Navegação e o Parlamento Brasileiro

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Tarcísio Costa: As duas Espanhas e o Brasil
Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Barão do Rio Branco: Missão em Berlim – 1901/1902
Flavio Mendes de Oliveira Castro: Dois séculos de história da organização do Itamaraty
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de 1817 e a História do Brasil
Ovídio de Andrade Melo: Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty
Jorge Sá Earp: O novelo
Geraldo Holanda Cavalcanti: As desventuras da graça
Paulo Nogueira Batista Jr. (org.): Paulo Nogueira Batista: Pensando o Brasil
Antonio de Aguiar Patriota: O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo
Luís Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati
Ciro Leal M. da Cunha: Terrorismo e Política Externa Brasileira Após o 11 de Setembro
Rômulo Figueira Neves: Cultura Política e Elementos de Análise da Política Venezuelana
Marcelo Cid: Os Unicórnios
Fernando Cacciatore de Garcia: Fronteira Iluminada
Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe: Maquiavel Revisitado
Oscar S. Lorenzo Fernandez: Três Séculos e uma Geração
Carlos Augusto de Proença Rosa: História da Ciência
Nelson A. Jobim, Sergio W. Etchegoyen, João Paulo Alsina (orgs.): Segurança Internacional
José Augusto Lindgren Alves: Viagens no Multiculturalismo
Paulo R. de Almeida, Rubens Barbosa (orgs.): Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil
Denis Rolland; Antonio Carlos Lessa (coords.): Relations Internationales du Brésil
Michel Arslanian Neto: A Liberalização do Comércio de Serviços no Mercosul
Fernando Cacciatore de Garcia: Memórias de um homossexual na infância
Marcelo Cid (org.): Priapeia: Poesia erótica latina
Celso Amorim: Conversas com Jovens Diplomatas
L. F. Lampreia, M. Azambuja, R. Abdenur, R. Ricupero: A Política Externa Brasileira
Edgard Telles Ribeiro: Diplomacia Cultural: seu papel na diplomacia brasileira
Fernando Guimarães Reis: Caçadores de Nuvens: Em busca da Diplomacia
Rubens Barbosa: O Dissenso de Washington
Daniel Costa Fernandes: A Política Externa da Inglaterra
Sidnei J. Munhoz e F. C. T. Silva (orgs.), Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI
Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil
Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul
Fernando Pimentel: Fim da era do petróleo e a mudança do paradigma energético mundial
Alberto da Costa e Silva (coord.): História do Brasil Nação: 1808-1830

15
Eugenio Vargas Garcia: O Sexto Membro Permanente: o Brasil e a criação da ONU
Gelson Fonseca: Diplomacia e Academia
Maria Theresa Diniz Forster: Oliveira Lima e as Relações Exteriores do Brasil
Sarquis José Buainain Sarquis: Comércio Internacional e Crescimento Econômico no Brasil
Ademar Seabra da Cruz: Diplomacia, sistemas nacionais de inovação: estudo comparado
Miguel Gustavo de Paiva Torres: O Visconde do Uruguai e sua atuação diplomática
José Estanislau do Amaral: A diplomacia contemporânea dos Estados Bálticos
Luiz Fernando Ligiéro: A Política Externa Independente e o Pragmatismo Responsável
San Tiago Dantas: Política Externa Independente
Letícia Frazão Alexandre: O Tratamento Especial e Diferenciado: do GATT à OMC
Fernando de Mello Barreto: A Politica Externa Após a Redemocratização
Luís C. Villafañe G. Santos: O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira
Antonio A. Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional
Felipe Hees e Marília Castañon Penha Valle (orgs.): Dumping, Subsídios e Salvaguardas
André Heráclio do Rêgo: Os Sertões e os Desertos: o combate à desertificação
Maria Feliciana N. Ortigão: O Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT)
Renato Mendonça: A Influência Africana no Português do Brasil
Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul
Adolpho Justo Bezerra de Menezes: O Brasil e o mundo ásio-africano
Vasco Mariz: Depois da Glória: ensaios históricos sobre história do Brasil e de Portugal
Gustavo Henrique M. Bezerra: A Política Externa Brasileira e a Questão Cubana, 1959-1986
Rubens Antonio Barbosa: Interesse Nacional & Visão de Futuro
Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011
Francisco Doratioto: Relações Brasil - Paraguai: afastamento, reaproximação, 1889-1954
Luís Cláudio Villafañe G. Santos: Duarte da Ponte Ribeiro: pionero de amistad Brasil-Perú
Emerson Coraiola Kloss: Transformação do Etanol em Commodity
Clóvis Brigagão e Fernanda Fernandes (orgs.): Diplomacia brasileira para a paz
Joaquim Nabuco: My Formative Years
Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução
André Amado: Por Dentro do Itamaraty: impressões de um diplomata
Manoel Gomes Pereira (org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória
Augusto César B. de Castro: Os bancos de desenvolvimento e a integração da América do Sul
Ricardo Luís Pires: A Nova Rota da Seda: caminhos para a presença brasileira na Ásia
Geraldo Holanda Cavalcanti: A herança de Apolo: Poesia, Poeta, Poema
Luiza Lopes da Silva: A questão das drogas nas relações internacionais

16
Elias Luna A. Santos: Investidores soberanos, política internacional e interesses brasileiros
Celso Amorim: Breves Narrativas Diplomáticas
Douglas Wanderley de Vasconcellos: Esporte, poder e relações internacionais
José Vicente Sá Pimentel (org.): O Brasil, os BRICS e a agenda internacional
José Guilherme Merquior: Liberalism, Old and New
Silvio José Albuquerque e Silva: As Nações Unidas e a luta internacional contra o racismo
Elisa de Sousa Ribeiro (coord.), Direito do Mercosul
Antônio Augusto Cançado Trindade: Os tribunais internacionais contemporâneos
Ronaldo Mota Sardenberg: O Brasil e as Nações Unidas
Synesio Sampaio Goes Filho: As Fronteiras do Brasil
André Aranha Corrêa do Lago: Conferências de desenvolvimento sustentável
José Vicente Pimentel (org.), Pensamento Diplomático Brasileiro, 1750-1964

Segunda Parte
Artigos-resenhas de livros de diplomatas, 75

Valdemar Carneiro Leão: A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930 - 1934)


Rubens Antonio Barbosa: América Latina em Perspectiva: a integração regional
Sérgio Bath: Maquiavelismo: A prática política segundo Nicolau Maquiavel
Paulo Roberto de Almeida: O Mercosul no contexto regional e internacional
Luiz Felipe de Seixas Corrêa: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995
R. Ricupero; João H. P. de Araújo (org.): Rio Branco: Biografia Fotográfica,1845-1995
Sérgio Abreu e Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo: Mercosul Hoje
José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil, 1492-1912
Paulo R. de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil; Mercosul
Paulo Roberto de Almeida: Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização
Paulo R. de Almeida: O Brasil e o multilateralismo; O estudo das relações internacionais
Paulo Roberto de Almeida: Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud
Fernando P. de Mello Barreto Filho: Sucessores do Barão: relações exteriores, 1912-1964
Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil
Rubens A. Barbosa, Marshall C. Eakin, Paulo R. Almeida (orgs.): O Brasil dos brasilianistas
Paulo R. de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, O Império e as repúblicas do Pacífico
Paulo Roberto de Almeida, Katia de Queiroz Mattoso: Une Histoire du Brésil
Paulo R. de Almeida: A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política
Evaldo Cabral de Mello: A outra Independência
17
Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil (2a. edição)
Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil (2a. edição)
Marshall C. Eakin, Paulo R. Almeida (eds.): Guide to Brazilian Studies in the United States
Paulo Roberto de Almeida; Rubens Antonio Barbosa (eds.): Relações Brasil-Estados Unidos
Leonardo de Almeida Carneiro Enge: A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina
Eugênio Vargas Garcia: Entre América e Europa: a política externa na década de 1920
Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil
Fernando de Mello Barreto: Sucessores do Barão, 2: relações exteriores, 1964-1985
Álvaro da Costa Franco (org.): Visconde do Rio Branco: A política exterior no Parlamento
Secretaria dos Estrangeiros: O Conselho de Estado e a política externa do Império, 1858-62
J. A. Pimenta Bueno: Consultores do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1859-1864
Suely Braga da Silva: Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo
Marcelo Raffaelli: As relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império
Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro
Demétrio Magnoli e Carlos Serapião Jr.: Comércio Exterior e negociações internacionais
Rubens Antônio Barbosa (org.). Mercosul quinze anos
Brazílio Itiberê da Cunha, Expansão Econômica Mundial
Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros
Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo
Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (orgs.): A Abertura dos Portos
Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos
Rubens Antonio Barbosa: revista Interesse Nacional
Manoel de Oliveira Lima: Nos Estados Unidos, Impressões políticas e sociais
Renato L. R. Marques: Mercosul 1989-1999: depoimentos de um negociador (1974)
Paulo Almeida, Rubens Barbosa e Francisco Rogido (orgs.): Guia dos Arquivos Americanos
Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado)
Edgard Telles Ribeiro: O Punho e a Renda
Paulo Roberto de Almeida: Globalizando, ensaios sobre a globalização e a antiglobalização
Paulo Roberto de Almeida: Relações Internacionais e Política Externa do Brasil
José Maria Paranhos da Silva Jr.; Manoel G. Pereira (ed.): Obras do Barão do Rio Branco
Manoel Gomes Pereira (org.). Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos (curador): Rio Branco: 100 anos de memória
Ângela Porto (organizadora): Barão do Rio Branco e a caricatura
Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução
José Vicente Pimentel (org.): Pensamento Diplomático Brasileiro, 1750-1964

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Terceira Parte
Livros de relações internacionais e de política externa do Brasil, 299

Pierre Renouvin (ed.): Histoire des Relations Internationales


Francis Fukuyama: The End of History?
François Furet: Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste
Daniel Yergin: The Prize: The Quest for Oil, Money and Power
Jean-Christophe Rufin: L’Empire et les Nouveaux Barbares
Francis Fukuyama: Construção de Estados
Ricardo Seitenfus: Manual das organizações internacionais
Henrique Altemani e A. C. Lessa (orgs.): Política Internacional Contemporânea
Eduardo Felipe P. Matias: A Humanidade e suas Fronteiras
Fernando Barros: A tendência concentradora da produção de conhecimento
Hervé Couteau-Bégarie: Géostratégie de l’Atlantique Sud
Vários autores: A economia mundial em perspectiva histórica
Jagdish Bhagwati: Em Defesa da Globalização
John Williamson (org.): Latin American Adjustment: How Much Has Happened?
P.-P. Kuczynski e John Williamson (orgs.): After the Washington Consensus
Ha-Joon Chang: Kicking Away the Ladder; Bad Samarithans
Paul Krugman: Rethinking International Trade
Celso Lafer: Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos
Mônica Cherem e R. Sena Jr. (eds.): Comércio Internacional e Desenvolvimento
Rabih Ali Nasser: A OMC e os países em desenvolvimento
Henrique Altemani e A. C. Lessa (orgs.): Relações internacionais do Brasil
Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno: História da Política Exterior do Brasil
A. A. C. Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional
José Honório Rodrigues e R. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil
João Pandiá Calógeras: A Política Exterior do Império
Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil
Hélio Vianna: História Diplomática do Brasil
Sandra Brancato (coord.): Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República
Henrique Altemani de Oliveira: Politica Externa Brasileira
Clóvis Brigagão: Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004

19
Moniz Bandeira: Estado Nacional e Política Internacional na América Latina
Moniz Bandeira: O Expansionismo Brasileiro e a formação dos Estados no Prata
José Luis Fiori (org.): O Poder Americano
Boris Fausto e Fernando J. Devoto: Brasil e Argentina: história comparada
Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis: Desafios de Brasil e Argentina
Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance; A Segunda Chance do Brasil
Vários autores: A marcha da integração no Mercosul
Helder Gordim da Silveira: Integração latino-americana: projetos e realidades
José A. E. Faria: Princípios, Finalidade do Tratado de Assunção
Pedro da Motta Veiga: A Evolução do Mercosul: cenários
José Maria Aragão: Harmonização de Políticas no Mercosul
Gary Clyde Hufbauer e Jeffrey J. Schott: North American Free Trade
Tullo Vigevani e Marcelo Passini Mariano: Alca: o gigante e os anões
Tullo Vigevani; Marcelo Dias Varella: Propriedade intelectual e política externa
Maria Helena Tacchinardi, A Guerra das Patentes: o conflito Brasil x EUA
Santiago Fernandes: A Ilegitimidade da Dívida Externa
João P. Reis Velloso e Roberto Cavalcanti (coords.): Brasil, um país do futuro?

Índice alfabético de autores e livros, 647

Livros de Paulo Roberto de Almeida, 659

20
..............................................................
Introdução

Es, pues, de saber, que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso...
se daba a leer...; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas
hanegas de tierra... para comprar libros... y así llevó a su casa cuantos pudo haber de
ellos. (...)
En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches
leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del
mucho leer se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio.
Miguel de Cervantes Saavedra

Não, a despeito do excesso de leituras, ainda não me ocorreu a fatalidade que se


abateu sobre o cavaleiro da Mancha. Em todo caso, meu cérebro não parece ter secado pelo
fato de também passar muitas noites na companhia dos livros ou escrevendo sobre eles. Este
livro, que fala exclusivamente de outros livros, pode ser considerado como o resultado de
algumas, na verdade de muitas noites de leitura. Não creio ter perdido o juízo com isso,
embora possa ter perdido várias noites de sono.
Mas poucos lazeres alternativos poderiam ter sido mais absorventes e mais ricos,
intelectualmente falando, do que esse ato de penetrar em outros mundos, em outras vidas, de
poder estar em dois lugares ao mesmo tempo, simplesmente ficando na companhia dos bons
livros. A eles devo tudo o que sou, e por isso tento retribuir o que ganhei de bom, à minha
maneira, fazendo resenhas de modo totalmente voluntário, sem que, jamais, alguém me
pedisse tal esforço extra.

Algumas resenhas de livros, como se sabe, têm geralmente o estranho hábito de


revelar, não exatamente o conteúdo do livro examinado ou o que diz o autor em causa, mas
mais frequentemente o que pensa deles o próprio resenhista. Este volume não pretende ser
uma exceção a essa regra não-escrita da prática do book-review, mesmo se ele a implementa
de uma maneira muita peculiar.
Com efeito, resenhistas profissionais costumam ostentar um certo air blasé ou de
détachement vis-à-vis da obra resenhada, típicos de quem se julga no direito de falar bem (ou
mal) do autor, sem outros objetivos do que os de parecer erudito ou de simplesmente
impressionar o leitor. Não tenho certeza de ter escapado a esta maldição, mas a grande
vantagem desta coletânea, em relação às antologias de resenhistas que são supostamente do
ramo, seja talvez o fato de que ela não foi concebida e elaborada por um resenhista
21
profissional, por dever de ofício ou contra remuneração, mas sim por um mero apreciador de
livros.
Estou sendo, obviamente, comedido ao usar o termo “apreciador”. Meu caso,
provavelmente, é bem mais grave, pois creio exibir aquela mesma “loucura gentil” pelos
livros, que já atingiu muitos outros leitores compulsivos. Não se trata da mesma loucura que
atingiu D. Quixote, pois o personagem de Cervantes estava direcionado unicamente a um
gênero literário, e meus interesses são um pouco mais vastos, talvez omnívoros, se a palavra
de aplica em matéria de livros.

As resenhas incluídas nesta coletânea, acolhidas pela Fundação Alexandre de Gusmão


– pelo que agradeço na pessoa de seu presidente – não foram feitas por encomenda de algum
editor ou diretor de folha literária, mas como resultado de minha livre escolha, motivado
única e exclusivamente pelo desejo de realizar eu mesmo uma espécie de “homenagem
voluntária” aos livros ou aos autores selecionados. Essa postura é tanto mais defensável e
legítima que muitas das resenhas aqui incluídas não foram escritas para serem publicadas e
nem mesmo se referiam a obras do momento ou a autores vivos. Motivou-me o simples gosto
da palavra escrita, que responde, neste caso, a meu incontrolável, constante e não tão secreto
vício da leitura.
Se a maior parte é de obras de diplomatas – às quais se agregaram várias outras obras
de não diplomatas, mas interessando a estes, assim como aos acadêmicos e ao público em
geral – é porque tenho vivido com diplomatas pelas últimas três décadas. Mas, assim como
essa convivência é menor do que aquela que mantenho com os livros, estas resenhas também
constituem apenas uma pequena parte de todos os livros que já resenhei numa vida inteira (ou
quase) dedicada a esses pouco obscuros objetos de desejo.
De fato, tenho vivido com livros, pelos livros e para os livros uma boa parte de minha
vida, provavelmente mais de dois terços de uma existência inteira passada na atenta fixação
do papel impresso (e, agora, nas telas de computadores e em vários dispositivos de leituras
digitais). Entretanto, até onde alcançam minhas lembranças da primeira infância, não se pode
dizer que o gosto da leitura constituísse uma espécie de kismet pessoal ou que ele estivesse
entranhado num certo ambiente familiar.
Não me lembro, por exemplo, que meu lar de infância contivesse muitos livros, pelo
contrário, provavelmente muito poucos. Meus pais, típicos filhos de imigrantes pobres, de
extração camponesa portuguesa e italiana, tinham sido criados entre o trabalho e a escola,
processo que conduziu, nos dois casos, a uma educação primária incompleta. Mas, como
22
todos os imigrantes, ambos davam uma importância muito grande à educação formal dos
filhos, o que, dadas as condições de penúria material em que vivíamos, não necessariamente
se traduziu em aquisição voluntária de outros livros que não, chegada a hora, os didáticos.
Lembro-me também de minha avó Nicolina, chegada ao Brasil no começo da República, para
trabalhar nas fazendas de café de Minas Gerais, e que continuava a contar em mil-réis, a
despeito de todas as reformas monetárias ao longo do século XX, permanecendo, aliás,
completamente analfabeta até o final de sua vida. Mas ela tinha um imenso orgulho de meus
estudos e de minhas leituras juvenis, assim como meus pais, que de certa forma me
“obrigavam” a tirar boas notas na escola, sob promessa de castigo se não o fizesse.
Foram circunstâncias fortuitas que me fizeram chegar aos livros e com eles passar boa
parte de minha vida. Minha casa, na então Chácara Itaim, bairro paulistano do Jardim
Paulista, ficava muito próxima de uma biblioteca infantil, que eu passei a frequentar antes
mesmo de estar formalmente alfabetizado. Na “Biblioteca Anne Frank” passei todos os anos
de minha infância e os primeiros da adolescência. Uma vez treinado nas primeiras letras, na
“atrasada” idade dos sete anos, passei a ler furiosamente: lia com avidez, não só na própria
biblioteca, como todos os dias retirava sistematicamente um ou dois livros para ler em casa, à
noite. Se não li todos os livros da biblioteca, devo ter chegado muito perto disso.
Muitos anos mais tarde, já adulto, visitei novamente a biblioteca Anne Frank, e anotei
detalhadamente todos os livros que frequentaram meus anos inocentes: infelizmente, tendo
feito essas notas num dos primeiros laptops surgidos na primeira fase das novas tecnologias, a
lista se perdeu numa dessas famosas quebras de sistemas operacionais que frequentemente
ocorriam nos primeiros anos dos novos softwares de processamento de textos. Não é difícil
lembrar alguns dos grandes autores: todo Monteiro Lobato para crianças (e alguns de adultos
também), muitas aventuras de Jules Verne e Emilio Salgari, todo Karl May e dezenas de
outros escritores juvenis, além de alguns livros sérios de história, arqueologia (consegui
decorar várias dinastias de faraós), Malba Tahan, Francisco de Barros Júnior (da série Três
Escoteiros em Férias) e muitos outros.
Alguns anos depois, trabalhando durante o dia e estudando à noite, passei a frequentar
as bibliotecas do centro de São Paulo: a pública “Mário de Andrade”, a liberal e circunspecta
da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a especializada em economia do Centro
das Indústrias, a da USIS, junto ao Consulado dos Estados Unidos, a da União Cultural
Brasil-Estados Unidos e várias outras mais. Também comecei a percorrer incessantemente as
livrarias do centro da cidade, em especial a velha Brasiliense, na Barão de Itapetininga, e a
Zahar, na Praça da República. Também tentei escrever meu próprio livro de aventuras
23
juvenis, um empreendimento que não deve ter passado das primeiras duas páginas, mas cujo
roteiro já estava completo em minha mente.
Enfim, foram anos e anos de contato com os livros, lendo em toda e qualquer
circunstância, em casa ou no trabalho, na escola e nos transportes públicos, sob chuva ou sol
quase se poderia dizer. Raramente, ou quase nunca, saía de casa sem um livro na mão ou na
pasta: qualquer oportunidade era boa para se avançar na leitura, mesmo na fila do
recrutamento militar (quando estava acompanhado de Gustavo Corção, uma leitura insuspeita
para os anos do regime militar). Ao deixar o Brasil pela Europa, no começo dos anos 70,
arrastei comigo uma biblioteca que certamente deve ter intrigado diversos agentes
alfandegários. No velho continente, como não podia deixar de ser, passei boa parte de uma
longa estada de sete anos voluntariamente encerrado em bibliotecas universitárias, sobretudo
a do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. Continuei depois esse hábito nas
demais cidades a que fui levado por força de uma vida profissional sempre nômade. Livrarias
e bibliotecas foram minhas segundas casas, e se ouso dizer, talvez as primeiras, já que
certamente teria gostado de viver em algumas delas, cercado de livros, com apenas uma boa
ducha como acessório.
Desde muito cedo, habituei-me também a fazer fichas de livros, sob a forma de notas
sintéticas, algumas compilações mais ou menos longas ou mesmo resenhas críticas, em
cadernos ou folhas esparsas. Infelizmente, algumas dessas resenhas pioneiras foram perdidas
com os papéis da juventude, entre a partida e a volta da Europa. Minha primeira resenha
“publicada” parece ter sido a de uma obra de Erich Fromm, A Sobrevivência da Humanidade
(tradução brasileira de Waltensir Dutra, para a Zahar, em 1964, de May Man Prevail?, de
1961), que saiu no jornal do centro acadêmico do Colégio Costa Manso, onde eu cursava o
Clássico (em torno dos 16 anos, portanto). Muitos outros trabalhos dessa época, que precedeu
minha saída do Brasil, se perderam: lembro-me de extensos resumos de obras políticas, de
leituras anotadas de Sartre, Celso Furtado, Caio Prado, Florestan Fernandes e muitos outros
autores brasileiros ou estrangeiros. Também se perdeu um resumo meu de uma versão
abreviada do Capital, de Marx, numa edição francesa, traduzida e publicada no Brasil: mais
de 70 páginas que, nos intervalos do trabalho, eu pacientemente datilografei, com duas cópias
carbono.
Mais tarde, durante minha estada universitária na Europa – feita bem mais de longas
jornadas em bibliotecas do que de comparecimento às aulas –, preenchi diversos cadernos
quadriculados, organizando-os por temas, ali compilando apreciações críticas e resumos de
dezenas de livros, sem considerar as simples notas bibliográficas, que tinham seus cadernos
24
especiais. Tais cadernos, divididos em áreas de estudo – sociologia, antropologia, história,
política, marxismo (aliás, dois inteiros), problemas brasileiros (três cadernos), etc. – muito me
ajudaram quando tive de escrever meus trabalhos de conclusão de curso: a monografia sobre a
ideologia do desenvolvimento brasileiro, para a licença em Ciências Sociais; a dissertação
sobre o comércio exterior brasileiro para o mestrado em planejamento econômico; e a tese de
doutorado sobre as revoluções burguesas, anos mais tarde.
Mas, essas anotações não cobrem senão uma parte de minhas leituras, aquelas ligadas
diretamente ao estudo acadêmico ou às preocupações políticas. Dezenas de outros livros,
cujos títulos se perderam em agendas extraviadas, permaneceram sem registro, sem falar dos
muitos romances, policiais ou de literatura geral, que nunca foram objeto de qualquer
tentativa de “crítica literária”. Se fosse possível fazer uma lista mais ou menos abrangente de
minhas leituras, ela certamente ocuparia dezenas de páginas e nunca estaria completa; em
todo caso, disponho de pelo menos uma enorme lista organizada que, na verdade, se referia a
um ambicioso programa de leituras, jamais cumprido integralmente.

A presente seleção de livros resenhados, portanto, não cobre senão uma ínfima parte
de minhas leituras, compreendendo as obras efetivamente objeto de avaliação crítica. Alguns
dos trabalhos aqui reunidos foram parcial ou integralmente publicados em revistas
acadêmicas ou periódicos brasileiros, muito embora diversas outras resenhas permaneçam
inéditas até aqui. E elas o são por uma razão muito simples: escrevo demais, e resenhas longas
são impublicáveis nas revistas normais, ou na imprensa diária. Durante muitos anos, quase
duas décadas, fui leitor regular, assinante, da The New York Review of Books – não confundir
com o semanário dominical de livros do New York Times – o que justamente me fez adquirir
esse “péssimo” hábito de fazer Review-articles, e não simples resenhas de livros, o que na
verdade significa aproveitar a oportunidade da publicação de algum novo livro (no meu caso,
alguns antigos também) para falar sobre os mais diversos problemas de atualidade ou de
história. O livro-objeto é, assim, uma simples escusa para uma digressão sobre temas
diversos, em outros casos quase que um exercício de estilo ou um divertissement intelectual.
Mas, ao me tornar, dez anos atrás, um colaborador do Boletim da Associação dos
Diplomatas Brasileiros, adquiri este hábito mais prosaico de fazer mini-resenhas dos livros
publicados pelos colegas, simples notas de leituras que por vezes demandam mais trabalho de
síntese do as resenhas-artigos a que estou habituado. Esta é também a razão de porque este
livro assumiu o nome da seção Prata da Casa, que encontrei mais ou menos parada quando
comecei a colaborar anonimamente com o Boletim. Não deixei de fazer, nesse período,
25
resenhas mais longas de livros de diplomatas, e sobretudo de não diplomatas, mas muito
poucas das primeiras foram publicadas no Boletim, sendo normalmente reservadas a revistas
acadêmicas ou até periódicos de interesse geral.

Aqui figuram, portanto, “pílulas” em torno das obras de diplomatas, sendo que a maior
parte foi publicada institucionalmente, pela Fundação Alexandre de Gusmão: trata-se
geralmente de teses do Curso de Altos Estudos e de monografias do Instituto Rio Branco, sem
que essas publicações tenham tido continuidade em alguma carreira acadêmica ou literária.
Mas várias obras resenhadas pertencem a essa última categoria, pois são muitos os colegas
que, por prazer ou algum vício secreto, se dedicam às infernais artes da escrita, geralmente na
prosa, na poesia, embora alguns pratiquem também o ensaio erudito, na história ou na
sociologia.
Infelizmente não figuram aqui todas as obras publicadas pelos diplomatas – ou em seu
nome, pela instituição a que pertencem – inclusive alguns livros até relevantes, na sua área de
especialização, mas por uma razão muito simples: a própria importância de certas obras me
sugeria a alternativa de uma resenha mais longa, em lugar de uma mini-resenha, como tal
colocada no pipeline de trabalhos a fazer. Se isso nunca ocorreu, deveu-se a essa outra
maldição dos leitores compulsivos e dos escritores desesperados: a falta de tempo e de
oportunidade para interromper tarefas urgentes da agenda corrente, e dedicar uma semana ou
duas a um livro realmente importante. Aos colegas preteridos, aos quais eu posso
eventualmente ter prometido uma resenha en bonne et due forme, minhas humildes desculpas,
portanto, com todo o remorso declarado em virtude da não opção pela mini-resenha imediata.
Fico devendo e anoto no pipeline...
A esse propósito, verifiquei desde sempre, e constato mais uma vez agora, que a longa
lista dos livros “separados para ler e resenhar”, ou seja, que ainda pretendo ler de maneira
anotada, supera amplamente, em quantidade pelo menos, a lista dos que eu já li, e
exponencialmente a dos resenhados efetivamente. Isso é evidente, e creio que todos os
leitores vorazes enfrentamos os mesmos dilemas. Estimo, por alto, que o tempo requerido
para “liquidar” apenas os livros “em estoque” – nas minhas estantes, ou localizado em
bibliotecas – deve aproximar os 150 anos suplementares (isso sem contar todos aqueles que
serão publicados nesses próximos 150 anos). Se eu não contar com alguma graça misteriosa e
a ajuda de alguma providência indefinida, vou ter de adotar soluções mais drásticas. Penso,
por exemplo, em acelerar a produção de novas mini-resenhas, numa série que talvez possa ser
chamada de “Leituras até o Fim dos Dias” (sem qualquer intenção macabra). Enquanto não
26
começo, permito-me, então, oferecer ao público leitor, estas mini-resenhas já preparadas, e
diversas outras de livros de diplomatas e de não diplomatas que interessem aos primeiros e a
todos os demais dessa área.
Existiam várias opções para organizar o material compilado, inclusive em função dos
grandes temas da diplomacia brasileira – multilateral, bilateral, econômico, político, meio
ambiente, etc. –ou ainda cronologicamente, seguindo as periodizações costumeiras em nossa
historiografia. Depois de bem refletir, decidi observar, para as mini-resenhas da primeira
parte, a ordem original na qual elas foram escritas, sem qualquer alteração, uma vez que elas
correspondem, digamos assim, ao espírito de cada época, sobretudo as teses de CAE. Nas
outras duas partes, tentei agrupar os livros resenhados em função de grandes blocos de
interesse, tanto cronologicamente, quanto tematicamente, embora todo o conjunto possa
aparecer mais como um “gabinete de curiosidades” do que como um ordenamento
bibliográfico profissional.

Para facilitar a busca por algum autor, acrescentei um índice em ordem alfabética de
autores e seus respectivos livros, o que permite constatar algumas constâncias, justamente,
entre elas a deste próprio autor. Neste caso, abri uma única exceção ao critério de autoria: a
inclusão do resumo – geralmente trechos do prefácio ou da apresentação – de minhas próprias
obras, deixando de lado resenhas que terceiros fizeram de meus próprios livros (que
obedecem, em todo caso, ao critério aqui retido da inclusividade, o fato de serem livros de
diplomatas ou interessando aos diplomatas e estudantes e pesquisadores da área).
O material aqui compilado não representa, volto a dizer, todas as resenhas ou
avaliações críticas que fiz a respeito da literatura pertinente, uma vez que, em alguns dos
meus livros, efetuei um exame cuidadoso da produção de diplomatas e não diplomatas no
campo das relações internacionais e da diplomacia brasileira. Refiro-me, por exemplo, aos
livros Relações Internacionais e Política Externa do Brasil (1998, 2004 e 2012) e O Estudo
das Relações Internacionais do Brasil (1999 e 2006), aos quais se acrescentam alguns artigos
esparsos em revistas especializadas. Finalmente, algumas das resenhas “longas” aqui
reproduzidas já foram por mim incluídas numa edição de autor – Vivendo com Livros, 406 p.
– que elaborei em Paris, em dezembro de 1994, da qual pelo menos uma cópia deve ainda
existir na Biblioteca Azeredo da Silveira, do Itamaraty.

Ainda tenho muitos livros pela frente, para resenhar, de diplomatas e de não
diplomatas, e por isso volto imediatamente ao trabalho, sob o olhar complacente de Carmen
27
Lícia, que lê ainda mais do que eu, em todo caso de forma mais rápida. Eu tenho essa mania
de anotar, o que pode representar alguma lentidão no estoque acumulado de leituras até o fim
dos tempos. Em todo caso, o prazer da leitura e o da escrita estarão sempre presentes, como já
estiveram na confecção de todas as resenhas aqui incluídas.
Esperando que a desgraça do cavaleiro da Mancha não se abata sobre mim, despeço-
me aqui, como se fazia nos tempos do valeroso hidalgo: Vale!

Paulo Roberto de Almeida


Hartford, 7 de janeiro de 2014.

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Primeira Parte
Prata da Casa – Boletim ADB
Mini-resenhas dos livros de diplomatas

(Boletim da ADB; ISSN: 0104-8503)


Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações
econômicas internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac; Brasília:
Funag, 2005, 680 p.; ISBN: 85-7359-210-9)
Parcialmente apresentada como tese de CAE em 1997, publicada originalmente em
2001, sai agora em edição revista e ligeiramente ampliada uma obra “fundadora” sobre os
fundamentos e a evolução da primeira diplomacia econômica brasileira, cobrindo as etapas
iniciais e o desenvolvimento das relações econômicas internacionais do Brasil no decorrer do
século XIX. Prefaciada pelo Embaixador Alberto da Costa e Silva, esta obra aborda, em oito
densas partes, as diversas vertentes da diplomacia econômica durante o Império – comercial,
financeira, investimentos, mão-de-obra, regional, multilateral, a amplitude geográfica, a
organização política, a estrutura funcional e o quadro institucional –, ademais de acompanhar
a mudança de hegemonias, da libra ao dólar, já em pleno século XX. O volume compila
ainda, do ponto de vista quantitativo, a mais extensa série de estatísticas históricas
disponíveis, além de quadros analíticos que completam a informação qualitativa sobre essa
diplomacia em perspectiva histórica. Uma cronologia do processo econômico colonial (de
1415 a 1822) completa o volume.

José Flávio Sombra Saraiva e Amado Luís Cervo (orgs.): O crescimento das relações
internacionais no Brasil (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2005, 308
p.; ISBN: 85-88270-15-3)
Trata-se de obra comemorativa dos cinquenta anos do Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais, fundado no velho Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, em 1954, e que a
partir de 1958 passou a editar a, hoje decana na área, Revista Brasileira de Política
Internacional (transferidos, instituto e revista, para Brasília em 1993). O volume compõe-se
de dez capítulos, divididos em quatro partes, cobrindo respectivamente os problemas do
conhecimento e ensino de relações internacionais no Brasil, poder nacional e segurança, os
fluxos humanos e de conhecimento entre o Brasil e o mundo e, finalmente, as estruturas
econômicas internacionais. Seus autores são quase exclusivamente acadêmicos, mas a “prata
da Casa” é representada pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, que comparece com um
extenso capítulo sobre as finanças internacionais do Brasil, uma perspectiva de meio século
(1954-2004).

Felipe Fortuna: Em Seu Lugar: Poemas Reunidos (Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2005, 248
p.)
“Alguns poderiam dizer que é muito cedo para que um poeta de 40 anos publique
uma obra reunida. Não me lembro que idade tinha Drummond quando publicou uma
coletânea chamada Fazendeiro do ar & Poesia até agora, mas a ideia de juntar num livro
coisas pensadas e escritas ao longo da vida só costuma ocorrer quando se chega à idade, senão
da síntese, pelo menos do balanço, naquela fase já quase póstuma em que avaliamos, à
maneira de Brás Cubas, se “somadas umas coisas e outras”, saímos ou não “quites com a
vida”. Esse olhar retrospectivo supõe que a obra para a qual se olha já é algo de definitivo. No
caso de Felipe Fortuna, sentimos que o objetivo da obra reunida é outro. O autor não está
olhando para trás, mas para frente, acumulando forças, pela visão do caminho percorrido, para
novos voos líricos, cujo caráter sempre incompleto dificulta qualquer balanço.” (do Prefácio
de Sergio Paulo Rouanet).
José Vicente Lessa: O autoengano coletivo: uma crítica do ideário nacional brasileiro (São
Paulo: Edições Inteligentes, 2005, 238 p.)
José Vicente Lessa se apresenta como sociólogo e diplomata, nessa ordem, o que
denota seu comprometimento intelectual com, antes de mais nada, uma análise isenta da
realidade e dos problemas brasileiros. A dificuldade em diagnosticar corretamente grande
parte desses problemas pode derivar daquilo que o autor diz ser um “autoengano coletivo”, ou
seja, visões do mundo, eventualmente identificadas com o chamado “senso comum”, que
traduzem ilusões de fundo psicológico, paradigmas convencionais no terreno econômico ou
ainda teses maniqueístas sobre a inserção internacional do Brasil. Algumas das verdades
aceitas nessas áreas podem ser confrontadas à realidade e são por ele submetidas ao bisturi
frio da Lógica. O Brasil é um país fértil para esse tipo de “experimentação” sociológica, como
revelado nos diversos capítulos desta obra que explora alguns dos “saberes coletivos” deste
país, tão propenso a triunfalismos ingênuos quanto assaltado de forma recorrente pelo
sentimento de que tudo aqui vai mal, da pior forma possível. Trata-se de uma sadia reflexão
sobre alguns dos nossos problemas básicos, por um espírito cético, mas antes de mais nada
racionalista.

Alberto da Costa e Silva: Das mãos do oleiro: aproximações (Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2005, 240)
Nosso maior (talvez único, verdadeiramente grande) africanista em plena atividade, o
historiador e acadêmico Alberto da Costa e Silva navega neste livro não apenas em águas
atlânticas, mas por todos os rios, ribeirões, mares, lagoas, charcos e enseadas aos quais sua
insaciável curiosidade intelectual o levou, ao longo de uma vida prolífica de scholar-nômade
em continentes vários, nos quais sua visão de diplomata se enriqueceu na poeira das estradas,
ao mesmo tempo em que sua mão se cobria do pó dos arquivos. Os textos são dos últimos
quinze anos, mas o período coberto vai do século XV aos dias atuais (de Colombo a Castro),
tomando formas diversas, prefaciando livros, discutindo idéias, explorando paisagens. Ele
segue os passos de Rio Branco, outro historiador-diplomata, mas também emula o itinerário
de outros colegas que o precederam no Itamaraty e na Academia Brasileira de Letras,
cultivando poesia, ensaística, crônica e tantas artes da escrita que só uma mente inquieta como
a dele saberia definir. Esse oleiro é um artista, ou um verdadeiro ourives da pluma, e de seu
ateliê saíram estas aproximações que constituem de fato finas especiarias que só um espírito
enciclopédico como o dele conseguiria produzir.

Centro de História e Documentação Diplomática: A Missão Varnhagen nas Repúblicas do


Pacífico: 1863 a 1867 (Rio de Janeiro: CHDD; Brasília: FUNAG, 2005; vol. 1: 1863 a 1865,
592 p.; vol. 2: 1866 a 1867, 508 p.)
O CHDD, dirigido de forma competente pelo Embaixador Álvaro da Costa Franco,
vem empreendendo, desde 2002, um importante trabalho de recuperação de nossa história
diplomática. Data desse ano o lançamento dos Cadernos do CHDD, cujo primeiro número
trouxe artigos anônimos do Barão do Rio Branco e os testamentos do diplomata historiador
Francisco Adolpho de Varnhagen, possivelmente feitos em Caracas em 1861 ou 1862. O
mesmo número inaugural traz ainda artigo de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos sobre
uma memória de Duarte da Ponte Ribeiro, de 1832, sobre algumas repúblicas do Pacífico com
as quais o Brasil monárquico buscava manter relações diplomáticas. Agora, o CHDD publica,
justamente, a correspondência ativa e passiva do mesmo Varnhagen sobre sua missão em
várias dessas repúblicas, designado que foi ministro residente no Chile, Peru e Equador. Essa
época foi marcada pela guerra do Pacífico, entre a Espanha e o Chile e o Peru, e pela guerra
31
da Tríplice Aliança, que aliás motivou divergências entre o Brasil e o Peru, resultando na
interrupção das relações diplomáticas. Figuram com destaque nas correspondências (ofícios
da missão e despachos da Secretaria de Estado) os problemas de fronteiras do Brasil com o
Peru.

André Heráclio do Rêgo: Famille et Pouvoir Regional au Brésil: Le coronelismo dans le


Nordeste 1850-2000 (Paris: L’Harmattan, 2005, 320 p.)
Desde Gilberto Freyre, a família entrou no campo das ciências sociais no Brasil, como
explica a historiadora greco-baiana Katia de Queirós Mattoso, no prefácio a esta tese
defendida na Sorbonne. O autor estava bem colocado para refazer a trajetória de vida e lutas
políticas dos principais chefes políticos do clã dos Heráclio do Rego, et pour cause: dinastie
oblige. Eles dominaram a política local e regional em boa parte do Nordeste, em especial em
Pernambuco e na Paraíba. Trata-se de uma saga familiar que cobre um vasto período
histórico, ao longo de transformações sociais, políticas e econômicas importantes na região e
no país. Um estudo baseado em vasta literatura secundária, sem descurar até mesmo obras de
cordel, mas sobretudo no conhecimento direto, inclusive fotográfico, dos meandros da
política dos coronéis do seu clã de origem. Aparentemente o coronelismo não morreu, mas
assumiu novas formas.

Murilo Vieira Komniski: Buritizal (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, 108 p.)
Livro de estreia, no terreno da poesia, é sempre uma incógnita. Mas, mesmo se o livro
é o primeiro de uma carreira que se anuncia prometedora, vários poemas já foram publicados
em revistas do Brasil e do exterior. Murilo tem poemas em inglês e em espanhol, além de um
e outro verso em francês, alguns deles dedicados a amigas de outros continentes, mas a maior
parte tocando mesmo em realidades universais, a partir de um olhar brasileiro. Daí o nome,
inspirado nos coqueiros das “gerais” de Guimarães Rosa. O que em primeiro lugar distingue
sua poesia é a combinação sonora e visual, antes mesmo dos conceitos, todos eles alusivos a
uma realidade fugidia, quase surreal. “Jabuticaba”, por exemplo, se refere aos olhos de uma
amada/amante, não ao fruto bem brasileiro. Ou “O Samba da minha Terra”, que é
propriamente universal. Murilo tem abundante poesia na veia: ainda bem que ele distila bem,
para nosso deleite literal...

Raul de Taunay: Rosas da infância ou da estrela [poemas escolhidos] (Rio de Janeiro: 7


Letras, 2005, 136 p.)
Poeta errante, segundo seu prefaciador e amigo acadêmico, Carlos Nejar, Raul de
Taunay é também romancista, mas estas oito dezenas de poemas esparsos nos levam a um
garimpeiro das palavras e das imagens. Outro amigo, de outras eras, Vinícius de Moraes,
escreveu em tempos remotos que Raul era mesmo um “poetinha promissor”. Dinah Silveira
de Queiroz, também longe no tempo, relembra que ele vem de “cepa ilustre”, dela trazendo o
“dom das letras”, mostrando no verso a “marca profunda de sua personalidade”. Pena que os
poemas não estejam datados, ou localizados na sua imensa geografia de remoções, de postos e
de turismo pouco acidental. Por vezes uma homenagem involuntária (“Soneto ao inverno de
Praga”, “Domingo em Roma” ou “África mamãe pátria”) nos remete ao trajeto errante do
poeta, que de outra forma expressa seus sonhos e angústias (“Pobre poetinha, solitário e tolo,
que na madrugada transforma-se em lobo...”). Mas, “qual será o [s]eu poema derradeiro, o
último, o sem erro, o perfeito refrão?”. Vale conferir...

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José Augusto Lindgren Alves: Os direitos humanos na pós-modernidade (São Paulo:
Perspectiva, 2005, 254 p.)
Depois de Os Direitos Humanos como Tema Global, publicado em 1994 e reeditado
em 2003, Lindgren Alves comparece com sua continuidade natural, neste livro que resgata
uma dezenas de ensaios escritos e publicados ao longo de sete anos. Trata-se, não apenas de
direitos humanos, estrito senso, mas também de problemas como o da discriminação racial e o
do “multiculturalismo”, no qual são evidenciadas as diferenças entre as situações nos EUA e
no Brasil. O capítulo conclusivo, razoavelmente pessimista, indica que os valores universais
associados aos direitos humanos vêm sendo atacados sub-repticiamente por vários tipos de
violadores de diversas tradições, sob argumentos de tipo “culturalista” ou supostamente para
evitar sua “politização” nos órgãos da ONU. Mais patética é a recusa pelos EUA do Tribunal
Penal Internacional, o que pode comprometer gravemente o seu funcionamento. Será que a
história está andando para trás?

Paulo Antonio Pereira Pinto: Taiwan – um futuro formoso para a ilha? (Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2005, 144 p.)
O autor é seguramente um dos maiores sinólogos brasileiros e certamente o melhor do
Itamaraty, com um conhecimento detalhado do contexto asiático, em seu conjunto, e da
situação da ilha de Formosa, em particular. O livro é sintético, mas completo, cobrindo a
delicada situação geopolítica – e até de sobrevivência enquanto Estado – da ilha que serviu de
refúgio para a “República da China” de Chiang Kai-shek depois que Mao Tsé-tung tomou o
poder no continente. Papepinto, como é conhecido, analisa não apenas as várias dimensões
envolvidas na situação da ilha – segurança, política, econômica e cultural – mas também o
interesse de Taiwan para o Brasil. A obra é plenamente didática, apresentando ainda uma
cronologia e interessantes anexos informativos sobre a história e a situação atual da
“província rebelde”, que um dia vai voltar para o “berço” continental ou ser reunificada à
força pelo gigante chinês. O autor serviu por mais de sete anos na ilha batizada pelos
portugueses do século XVI.

Agenor Soares dos Santos: Dicionário de anglicismos e de palavras inglesas correntes em


português (Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, 390 p.)
Já autor, um quarto de século atrás, de um Guia Prático de Tradução Inglesa, Agenor
Soares está plenamente qualificado para fazer uma apresentação completa da mais abundante
fonte – hoje em dia – dos estrangeirismos importados em língua portuguesa (ou já seria
brasileira?). Suplantando o francês, que durante muitas décadas reinou imperial, o inglês
fornece hoje o essencial do vocabulário em economia, informática, comunicações, ciência,
tecnologia, modismos em geral, para desespero dos chauvinistas (outra palavra importada) e
dos introvertidos. Nenhuma língua dispensa empréstimos, mas é um fato que o inglês hoje é
uma espécie de “doador universal”. Adaptamos os vocábulos em poucos anos, como
demonstra, exemplarmente, Agenor. Ou seja, ninguém precisa ser um “Sherloque” para
descobrir que em matéria de anglicismos, tudo termina em happy end...

Alexandre Vidal Porto: Matias na cidade - romance (Rio de Janeiro: Record, 2005, 160 p.)
Que diplomatas sejam homens (ou mulheres) de letras, prosadores, poetas e
romancistas, isto já se sabia há muito. Que eles também sejam capazes de assinar novelas
picantes, um pouco menos. Esta história não é especialmente pornográfica, longe disso. Trata-
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se de um relato de vida, muito comum, como deve haver milhares iguais, numa cidade como
São Paulo, mas é uma história bem contada, com uma prosa fluída, leve, que literalmente
sequestra nossa atenção. Matias é um homem casado, mas não satisfeito com as simples
“cenas de um casamento”. Prefere outras emoções, com mulheres vulgares, geralmente. É,
literalmente, um obcecado por sexo. A novela é apenas um recorte dessa vida, com
retrospectos e introspecções, apenas dele. Os demais personagens se expressam apenas por
palavras e gestos, descritos com economia de termos, em linguagem direta. Dá para ler o
romance de uma vez só, sem parar. Mais do que atenção, ele convida à reflexão...

Paulo Antonio Pereira Pinto: Iruan nas reinações asiáticas (Porto Alegre: AGE, 2004, 132 p.)
A história é integralmente verdadeira, mas se lê como uma estória, um bom romance,
com final feliz. Foram mil e um episódios, marchas e contramarchas, até que nosso homem
em Taipé, Papepinto, conseguisse trazer de volta às terras gaúchas o garoto Iruan, que quase
vira um taiwanês, malgré lui. O livro, ademais das peripécias diplomáticas, é um bom case-
study de Direito Internacional Privado, recomendável para alunos de direito e candidatos ao
Rio Branco. É também uma história de amor, da avó, e do próprio autor, pelo garoto, por seu
trabalho, pelas suas origens gaúchas, a despeito da naturalidade nordestina. Fotos, desenhos
de Iruan, reproduções de documentos notariais, decisões de justiça, démarches diplomáticas,
o livro tem de tudo, sobretudo um estilo saboroso que nos prende a cada página. A Copa de
2002, Iruan assistiu em chinês de Taiwan. A camiseta assinada por Ronaldinho deve estar
pequena, agora que ele tem onze anos, mas ele deve estar com ela, assistindo à Copa de 2006
em Canoas. Grande, Papepinto!

Milton Torres: O Maranhão e o Piauí no Espaço Colonial: a memória de Joaquim José


Sabino de Rezende Faria e Silva (São Luis: Instituto Geia, 2006, 246 p.)
O diplomata gaúcho resgatou, da poeira dos arquivos históricos portugueses, as
memórias de um magistrado lusitano que, no final do século XVIII veio ao Maranhão para
ajudar a administrar aquela província do Império – que também incluía o Piauí – segundo os
(então) bons princípios colbertistas, em sua versão pombalina. Tese doutoral apresentada na
USP em 1997, o trabalho apresenta elementos conceituais e históricos para se avaliar a
passagem do mercantilismo à fisiocracia e ao nascente liberalismo. Essas memórias podem
ser lidas, graças à sua transcrição no livro, em confronto com as ideias de outro luminar da
época, Silva Lisboa, introdutor de Adam Smith no circuito lusitano. Ambos foram
contemporâneos, escreveram ao mesmo tempo, defendendo receitas antípodas sobre como
administrar o Brasil: Joaquim Sabino estava preso, pelas ideias, ao mundo de Pombal, mas
contemplava o nascimento da nova economia, sem contudo a ela aderir. Parece que a
dicotomia continua ainda hoje...

Samuel Pinheiro Guimarães: Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes (Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006, 455 p.)
Depois do sucesso (quatro edições, ao que consta) do seu Quinhentos Anos de
Periferia (lançado em 1999), o SG-MRE volta a expor suas ideias neste livro composto já no
cargo atual. Doze grandes ensaios tratando de política internacional, de problemas do
desenvolvimento econômico, social e tecnológico do Brasil, de questões regionais e da
integração, de ameaças vindas da grande potência hegemônica e de aspectos culturais, com
títulos bizarros como “O Alquimista”, “Macunaíma”, “A Onça e o Gato” e outros inspirados
na literatura. O Brasil tem, ao que parece, grandes “vulnerabilidades externas” mas precisa
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construir seu potencial num “cenário mundial violento, imprevisível e instável”. O autor não
esconde sua oposição à política econômica do governo ao qual serve e pretende fortalecer o
Estado ainda mais. Um programa completo para fazer o Brasil recuperar sua agenda própria
de desenvolvimento, na linha de pensadores como Celso Furtado e outros representantes da
corrente nacionalista.

João Clemente Baena Soares: Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc (organizadores
Maria Celina D’Araujo et alii; Rio de Janeiro: FGV, 2006, 126 p.)
Depois de vários outros diplomatas, o ex-SG-MRE e ex-SG-OEA dá seu depoimento
ao Cpdoc, retraçando os episódios de meio século de vida dedicados ao Itamaraty, com
destaque para os seus dez anos de OEA, num período de retorno geral à democracia no
hemisfério. Em tom leve, próprio às boas conversas, Baena relata causos interessantes da
diplomacia brasileira, como o asilo concedido em 1959 ao opositor de Salazar, general
Delgado, os anos da política externa independente, as dificuldades políticas do período militar
(quando o Itamaraty, paradoxalmente, desfrutou de muita autonomia), quando ele foi SG-
MRE (gestão Figueiredo), e a longa direção da OEA. Baena foi muito sincero e direto: ele
acha, por exemplo, que política externa dispensa slogans, como aqueles que recorrentemente
se usam para classificar uma determinada gestão diplomática ou estilo de relações exteriores.
Todo o seu depoimento representa uma homenagem à profissionalização do Itamaraty e à
continuidade da política externa brasileira.

Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-


1985 São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.
A exemplo do primeiro volume desta obra, que cobria de fato o período pós-Barão,
ainda que de modo lato (1912-1964), Fernando Barreto oferece, no presente livro, uma
história das relações internacionais e da política externa do Brasil em seu sentido amplo,
cobrindo tanto os episódios diplomáticos, estrito sensu, como o quadro mais amplo da
economia e da política mundiais. A perspectiva é linear, como já tinha sido o caso no volume
precedente: são seis chanceleres, de 1964 a 1985, ou seja, durante todo o período militar,
quando cinco generais do Exército e uma junta militar ocuparam o poder no Brasil. Da
intervenção na República Dominicana à Guerra das Malvinas, do TNP ao Acordo Nuclear
com a Alemanha, passando pelos tratado de cooperação com os vizinhos (bacia do Prata,
Amazônia, Itaipu), os principais episódios da diplomacia brasileira são tratados de forma por
vezes minuciosa. Indispensável como referência para esses anos.

Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre
a diplomacia e a academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 388 p.; ISBN: 85-7238-271-2)
Dotado de uma perspectiva essencialmente didática, voltado para a pesquisa e o
ensino das relações internacionais do Brasil e especialmente focado na história das relações
econômicas internacionais, o livro oferece um panorama abrangente do itinerário seguido pelo
Brasil no contexto mundial. Instrumento de pesquisa, tanto quanto de referência cronológica e
de informação sobre a literatura disponível na área, a obra acompanha, de modo eclético,
diversas disciplinas dos cursos de relações internacionais. O livro possui capítulos sobre a
produção em relações internacionais do Brasil, com uma avaliação das obras relevantes de
1945 a 2006, bem como das tendências e perspectivas nesse campo, um estudo sobre o
desempenho econômico do Brasil no contexto mundial, de 1820 até os dias atuais, uma
análise da estrutura constitucional das relações internacionais no Brasil e textos sobre as
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periodização e a cronologia das relações internacionais, aliás desde antes da constituição do
território e da nação, a partir de 1415. Completam o livro um guia da produção em relações
internacionais e dos periódicos mais importantes da área, no Brasil e no mundo.

Vasco Mariz (org.): Brasil-França: relações históricas no período colonial (Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército Editora, 2006, 196 p.)
Cinco autores, incluindo o organizador, traçam um panorama abrangente das relações
franco-brasileiras, desde os primórdios, com os primeiros exploradores da então América
portuguesa, até a independência, com as missões culturais e científicas francesas que
começam em 1816 e se estendem à plena autonomia. Os invasores foram menos bem
sucedidos do que os artistas e cientistas: se os primeiros não conseguiram se apossar de
territórios, os segundos deixaram riquezas até hoje visíveis, na arquitetura, nas artes e na
memória coletiva. Vasco Mariz relata que, na revolução pernambucana de 1817, exilados
franceses tentaram resgatar Napoleão de Santa Helena. O livro é de leitura agradável, de estilo
literário, contendo uma seleta bibliografia ao final de cada um dos doze capítulos históricos.
Um ensaio historiográfico final compila as mais importantes fontes históricas primárias para a
pesquisa em torno da presença francesa no Brasil.

Armindo Branco Mendes Cadaxa: No Jardim de Inverno (Nova Friburgo: Ars Fluminensis,
2006, 74 p.)
Um pequeno volume de puro deleite literário, com pelo menos quatro jardins de
inverno em forma poética e os girassóis de Matisse na capa. As marcas da diplomacia estão
em vários poemas, quando o autor confessa que cansou de cruzar mares e continentes, quando
ele contempla as colunas do Peloponeso, percorre trilhas, visita catedrais e as muralhas do
Alcácer. O jardim de inverno tem orquídeas e muitas formiguinhas. Uma guilhotina
contempla a sua obra, os olhos semicerrados de espanto. Um grito atravessa portões blindados
e os deuses tentam dar vida aos mármores. As imagens são cristalinas, como a água que
escorre de uma fonte em direção de pequenas grutas. Cadaxa é um poeta, dramaturgo e
romancista premiado. Esta coletânea demonstra porque…

Marcelo Raffaelli: A Monarquia e a República: Aspectos das relações entre Brasil e Estados
Unidos durante o Império (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática;
Brasília: Funag, 2006, 290 p.)
Exemplo de síntese histórica, em sua objetividade e concisão, a compilação feita dos
despachos e ofícios trocados pelos diplomatas dos dois países com suas respectivas
secretarias de Estado compõe um relato saboroso das relações bilaterais entre os dois grandes
países do hemisfério. Organizado tematicamente, antes que cronologicamente, o livro cobre
desde o reconhecimento da independência brasileira até o fim do regime monárquico e a
inauguração da República no Brasil. A obra faz a descrição sintética dos chefes de missão e
suas respectivas instruções diplomáticas, analisa os problemas do tráfico escravo, da guerra de
Secessão e da abertura do rio Amazonas à navegação internacional, bem como as questões
políticas e jurídicas do relacionamento bilateral (arbitragens), ademais da própria visão que os
enviados mantinham sobre o povo e o país no qual residiam. Excelente resumo das fontes
primárias, com intenso apoio nos arquivos oficiais e em bibliografia equilibrada sobre essas
relações.

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Rubem Mendes de Oliveira: A Questão da Técnica em Spengler e Heidegger (Belo
Horizonte: Argumentum-Tessitura, 2006, 132 p.)
O Itamaraty abriga alguns filósofos, mais empíricos do que profissionais, ainda que
vários diplomatas tenham feito estudos e até obtido titulação pós-graduada nessa área. Mas,
certamente ele ainda não contava, entre seus quadros, com um filósofo da “técnica” (e não
apenas da ciência), com a competência e a amplidão de conhecimentos demonstrados por
Rubem Oliveira neste seu livro de estreia, que reproduz sua dissertação na UFRJ (1991). O
estatuto de Spengler e de Heidegger é diferenciado na história e na filosofia do século XX,
mas o autor soube dialogar com ambos naquilo que eles apresentaram de mais relevante para
o estudo e a discussão da modernidade e da ciência no contexto do pensamento ocidental,
remontando inclusive a clássicos (Kant). Trata-se de uma leitura comparativa que vai à
essência do problema da técnica na obra dos dois autores, amparada em sólida bibliografia de
apoio. Um livro que coloca seu autor na lista seleta dos pensadores profissionais da filosofia
da técnica no Brasil. Ele representa um subsídio relevante para os métodos de trabalho e para
um novo foco de atenção do Itamaraty.

Luís Fernando Corrêa da Silva Machado: Brasil e investimentos internacionais: os acordos


sobre IED firmados pelo País (Pelotas: Editora da UFPel, 2005, 222 p.)
A obra resulta do mestrado em relações internacionais na UnB e cobre de maneira
quase completa – faltando referência ao MAI-OCDE – os instrumentos multilaterais,
regionais e bilaterais existentes no campo do investimento direto estrangeiro e sua aplicação
ao Brasil. Depois de breve histórico e do exame das teorias e medidas práticas relativas ao
IED, no plano internacional, a obra cobre os fluxos de IED vindos para o Brasil na década de
1990 e a normativa a eles aplicada. Um capítulo trata dos protocolos aprovados no âmbito do
Mercosul, bem como dos acordos bilaterais contraídos pelo Brasil, nenhum deles aprovados
ou em vigor na atualidade. O Brasil continua relutante a esse respeito, confirmando que gosta
de capitais estrangeiros, mas detesta capitalistas estrangeiros, como ocorre em diversas outras
áreas também. A despeito do grande mercado interno, o Brasil continua recuando na
atratividade do IED. Esta dissertação mostra algumas das razões da baixa captação.

Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro:


incorporação de normas e segurança jurídica (Belo Horizonte: Del Rey, 2007, 180 p.)
Uma monografia agraciada com o prêmio Hildebrando Accioly do Mestrado em
Diplomacia do Instituto Rio Branco, o trabalho deste jovem diplomata tem tudo para
consagrar-se como uma das melhores análises acadêmicas sobre a “insegurança jurídica” do
Mercosul, a despeito de todos os instrumentos aprovados no plano formal da solução de
controvérsias. A razão disso é que os Estados membros pouco fizeram para internalizar
grande parte das normas (decisões e resoluções dos órgãos decisores) aprovadas
consensualmente (outra dificuldade). O autor não se contenta em examinar o conceito de
segurança e a natureza jurídica das normas do Mercosul, mas examina sua incorporação
(limitada) ao direito interno dos países membro e formula sugestões para o aperfeiçoamento
desse processo. A maior parte das sugestões são de procedimento, mas o autor reconhece a
necessidade de uma reforma constitucional, tarefa que se choca com a velha defesa da
soberania nacional. Assim, a integração continua a patinar...

Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos: El Imperio del Brasil y las Repúblicas del Pacífico,
1822-1889 (Quito: Corporación Editora Nacional-UASB-Funag, 2007, 168 p.)
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Trata-se da versão em espanhol do livro que resultou de sua dissertação de mestrado,
já publicada no Brasil em 2002 pela Editora da UFPR (O Império e as repúblicas do Pacífico:
as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, 1822-1889), nesta
edição com prefácio do reitor da Universidad Andina Simón Bolívar, de Quito, Enrique Ayala
Mora. O autor já tinha publicado, também, sua tese de doutoramento, um estudo sobre o
Império e o interamericanismo, cobrindo o período que se estende do congresso do Panamá,
em 1826, até a primeira conferência americana de Washington, em 1889-1890: O Brasil entre
a América e a Europa (Unesp, 2004). Num momento em que o Brasil começa a criar um novo
sistema de relações regionais que se articula em torno do conceito de América do Sul,
Villafañe se consagra, não apenas no Brasil, como o grande historiador de uma vasta região
que constituiu nossa circunstância geográfica incontornável. Ele participa, atualmente, da
“História Geral da América Latina”, imenso projeto sob coordenação da Unesco, com um
estudo sobre “As Relações Interamericanas (1870-1930)”. Ele está na linhagem direta de
Varnhagen, Rio Branco, Oliveira Lima e Evaldo Cabral de Mello.

Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica
(Brasília: Funag, 2005, 134 p.)
Este livro inaugura a coleção “Personalidades da Política Externa da República”, que
trará desde Rio Branco (a rigor um monarquista) e Rui Barbosa até San Tiago Dantas e
Renato Archer (ou seja, personagens da política externa, não necessariamente diplomatas).
Dias Carneiro foi, com Roberto Campos, um dos grandes economistas do Itamaraty, homem
de múltiplos talentos, à vontade em temas de comércio internacional, energia nuclear,
cooperação para o desenvolvimento, produtos de base e questões financeiras. Primeiro
brasileiro a obter o título de doutor em economia pelo MIT, em 1951, soba a dupla orientação
de Charles Kindleberger e de Paul Samuelson, deixou obra acadêmica de peso, na qual
ressaltam um estudo de 1965 sobre a reforma monetária internacional do ponto de vista dos
países em desenvolvimento um uma revisão da história econômica do Brasil, de 1920 a 1965,
ambos em inglês. Vários de seus trabalhos acadêmicos permanecem inéditos. Mais conhecida
é a sua atividade diplomática, em dezenas de foros multilaterais e também na frente interna,
do governo brasileiro. Sua filha caçula retraça seu itinerário de vida e diplomático, ambos
constrangidos pelo golpe militar de 1964. Poucos sabem que foi ele o desenhista da bandeira
da Coréia do Sul, solicitado por um diplomata desse país. Sua obra ainda precisa ser
divulgada mais amplamente.

Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo: Bolívia: a criação de um novo país (Brasília:
Funag, 2006, 404 p.)
Este livro difere das histórias tradicionais da Bolívia em duas maneiras: foi escrito por
um diplomata brasileiro e está centrado na história dos povos indígenas, os mesmos que
sofreram sob o jugo colonial e depois sob as elites brancas e que deram a vitória a Evo
Morales. Um longo subtítulo indica que ele pretende descrever a “ascensão do poder político
autóctone das civilizações pré-colombianas”. Uma bibliografia extensa e variada revela que o
autor, a despeito de ter estudado matemática e ciência da computação, tem gosto pela história
e habilidade no trato das fontes. Depois de um longo périplo pelo passado do altiplano e de
todos os povos indígenas que por ali passaram, ele retoma os desafios do presente. Constata
que a revolução de 1952 permaneceu inconclusa: pôs fim à ordem oligárquica, mas não
industrializou o país e conservou a mesma estrutura social. A ascensão social do índio, o fim
dos partidos tradicionais e o refluxo do neoliberalismo poderão criar uma nova Bolívia. Ou,
então, fazê-la retornar ao seu estado habitual de crise e estagnação. A conferir.
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Jorge Sá Earp: O olmo e a palmeira (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, 256 p.)
Autor de vasta obra literária, desde antes de ingressar na carreira diplomática, em
1981, incluindo um romance de 1995, Ponto de Fuga, que foi Prêmio Nestlé de Literatura,
Jorge Sá Earp apresenta em sua mais recente obra uma história passada no período colonial
português no Brasil, envolvendo estrangeiros e brasileiros. No caso é um inglês, que se
encanta com a Bahia e uma bela herdeira da família tradicional Delasalle-Castro, em meio aos
conflitos com escravos, com os índios e entre os próprios coloniais, divididos entre as
tradições e as vontades individuais. O olmo é o próprio inglês, que encontra a sua palmeira,
na figura de Ana Delasalle. Goethe, nas Afinidades Eletivas, teria dito que “ninguém passeia
impunemente sob as palmeiras”. À maneira das promenades de Goethe, o livro é um passeio
erudito pelo Brasil do final do período colonial e início da independência, com os sabores, as
cores e os modos daqueles tempos: veleiros, cavalos, escravos descendo da boleia, igrejas
com ouro, enfim, um retrato quase atual...

Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros (São
Paulo: Atheneu, 2007, 352 p.)
O governo do imprevisível (e inescrutável) Jânio Quadros durou exatos 205 dias, de
janeiro a agosto de 1961, mas foi provavelmente um dos mais “empolgantes” – qualquer que
seja o sentido que se dê a essa palavra – que a história política do Brasil conheceu. O jovem
diplomata Leite Barbosa, formado em 1959, acompanhou-o enquanto espectador privilegiado,
lotado que esteve no gabinete do presidente do começo ao fim, ou melhor, antes mesmo, pois
que participou de sua campanha eleitoral. O livro, muito bem pesquisado e recuperando no
“baú” da memória fatos e pessoas que a história documentada não registrou, oferece uma
contribuição excepcional ao estudo da política externa do sisudo chefe de Estado,
contraditório nas ações e surpreendente nas palavras. São reproduzidos alguns dos seus
famosos “bilhetinhos”, tão difíceis de cumprir quanto, na verdade, entender. Um livro de um
verdadeiro insider, indispensável, doravante, aos pesquisadores do período.

Brasil. Secretaria de Estado dos Negócios do Império e Estrangeiros: O Conselho de Estado e


a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros, 1863-1867
(Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2007,
xxviii + 444 p.)
Este volume se coloca no imediato seguimento de seu irmão mais velho, que cobria o
período 1858-1862 (publicado pelo CHDD em 2005) e retoma, como aquele, casos relevantes
que interessavam à política externa do Império levados ao aviso do douto Conselho. Incluídos
os temas consulares, todos eles informam sobre o exame cuidadoso e o tratamento sério que
os órgãos do Estado concediam às questões diplomáticas. Muitos se referem às relações com
os vizinhos, inclusive em nossa posição de credor da Argentina e do Uruguai. As restrições de
então à “internacionalização” da Amazônia parecem inteiramente atuais. Curioso registrar
que, em 1864, Brasil e Argentina ainda discutiam os termos de um tratado definitivo de paz,
depois da convenção preliminar de 1828. Naquele mesmo ano, a Grã-Bretanha continuava a
reclamar reparações por danos sofridos na revolta da Bahia de 1837. Bastante meticuloso,
sem dúvida, mas talvez um pouco lento, o nosso serviço exterior do século XIX...

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa (organizador): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2006
(Brasília: Funag, 2007, 768 p.)
Trata-se de reedição, revista e sensivelmente ampliada, da coleção de
pronunciamentos feitos na abertura de cada Assembleia Geral, já coletados previamente até o
ano de 1995, no livro A Palavra do Brasil nas Nações Unidas, comemorando então o
primeiro meio século da ONU. Seixas Corrêa teve o cuidado de recolocar no contexto
histórico essas exposições gerais sobre a postura do Brasil no cenário internacional,
examinando também as circunstâncias que presidiram à tomada de certas posições. De uma
forma geral, esses discursos expressam também os valores da diplomacia brasileira e
permitem ao pesquisador acompanhar a evolução do pensamento oficial em temas de grande
relevância na agenda mundial. Muitos temas são previsíveis: reforma da Carta, ingresso do
Brasil no CSNU, prioridade latino-americana seguida da opção preferencial pela América do
Sul, integração regional e apego ao multilateralismo e à solução pacífica de controvérsias.
Algumas diferenças transparecem no período recente, como as menções às crises financeiras e
à globalização, nos governos FHC, e a ênfase na justiça social e na correção das
desigualdades, no primeiro mandato de Lula. Um excelente instrumento de consulta e uma
boa ferramenta de trabalho para seguir a longa duração da visão do mundo do Brasil oficial.

Milton Torres: No Fim das Terras e Andaimes (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004 e 2006; 223
e 200 p.)
Dois volumes, belíssimos em sua composição gráfica e ainda mais esplendorosos em
seus respectivos conteúdos, da mais pura “poesia douta”, como classificou o prefaciador do
primeiro. Este é um passeio pela história do Brasil e pelas relações com nossos vizinhos
ibéricos e o grande irmão do norte. Poemas em espanhol, em inglês ou em português
d’antanho, evidenciando um domínio completo não só da língua como dos itinerários
respectivos desses povos. O segundo é uma verdadeira construção poética da história do
mundo, desde a mais remota antiguidade até um presente indefinido e indefinível. O autor
possui uma capacidade de viajar pelos sons, imagens e palavras raramente vista nos anais da
poesia. Recomenda-se sorver com lentidão cada um dos conceitos, meditando sobre seu
significado não aparente, tentando descobrir o que está por detrás daquelas ideias sofisticadas,
aparentemente barrocas, mas na verdade revolucionárias. Êxtase!

Fernando Reis: Falta um cão na vida de Kant (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, 251 p.)
“Há quedas que valem por uma ascensão”. “Kant, para ser Kant, teve que esperar
muito”. O livro é pleno de frases de efeito, aparentemente anódinas, mas que revelam uma
profunda reflexão sobre o sentido da existência e das ações humanas. Pode-se até dizer que,
antes de ser “kantiano”, este roman philosophique (stricto et lato sensi) é propriamente
kirkegaardiano, filósofo que também aparece nessa busca angustiante de um cão para o
professor de Koenigsberg. O cachorro é uma espécie de metáfora, para um dos romances mais
saborosos já produzidos na linhagem de Machado de Assis, outra referência filosófica e
literária constante, além de um monge chinês. São 56 capítulos curtos (mais um “em
branco”), divididos em quatro “volumes”, um “meio-tempo”, uma “prorrogação (para leitores
insatisfeitos)” e um “além-texto”, que se chama assim mesmo. Enfim, Kant achou o cão que
lhe faltava na sua vida pacata? No meio do livro aparece um basset hound, mas o seu papel na
formulação da crítica da razão pura fica para o leitor descobrir...

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Flávio de Oliveira Castro: Caleidoscópio: cenas da vida de um diplomata (Rio de Janeiro:
Contraponto, 2007, 516 p.)
Raras vezes, nos anais do Itamaraty, memórias diplomáticas terão sido escritas com
tanta sinceridade, tamanha franqueza e total liberdade de pensamento como estes souvenirs de
Flávio Castro. Ele relata, com perfeita clareza e sem as conhecidas sutilezas da linguagem
profissional – para não dizer as “travas” do politicamente correto –, os bons e os maus
momentos de uma longa carreira, de mais de 35 anos de vida ativa no serviço diplomático e
consular, com passagens pela Presidência da República (Jango) e por uma infinidade de
postos, em todos os continentes. Não são apenas lembranças de festas e recepções, mas
também passagens perigosas, implicando risco de vida, vários desastres e furacões, vencidos
com bom humor e uma excelente disposição para enfrentar mais de duas dezenas de postos,
sempre acompanhado da família. Os episódios mais marcantes talvez tenham sido seus
“entreveros” nas duas capitais: Rio de Janeiro e Brasília. Um diplomata 4x4, para todos os
terrenos...

Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, 350 p.)
Rui não foi um diplomata profissional, mas ele poderia, tranquilamente, ser
considerado o “pai intelectual” da moderna diplomacia brasileira: ele nos legou um conjunto
de posições que fazem parte do nosso corpo jurídico e que integram nossa tradição de política
internacional. Esta monografia comprova que Rui foi muito maior do que o registrado na
literatura da nossa política externa, mesmo sem ter deixado uma obra centrada nas relações
internacionais. Sua obra de ativo “internacionalista” está dispersa em centenas de artigos,
pareceres, discursos, orações e preleções jurídicas, mas sobretudo nas declarações que fez,
muitas vezes de improviso, na II Conferência da Paz da Haia (1907). Cardim selecionou os
expedientes e organizou um dossiê abrangente sobre a atividade e o pensamento de Rui em
temas internacionais; ele nos traz o defensor da igualdade soberana das nações, que ocupa
lugar de destaque na atual diplomacia brasileira. O livro tem uma saborosa iconografia com
charges dos mais famosos humoristas brasileiros de um século atrás.

Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos (Rio de Janeiro:
Record, 2007, 188 p.)
A maior surpresa destes contos do escritor, poeta, tradutor laureado e diplomata
Geraldo Holanda Cavalcanti é a de que eles são, efetivamente, fantásticos, mas...
assustadoramente normais. As situações inverossímeis, inexplicáveis, surpreendentes, que
povoam estes contos são absolutamente corriqueiras, até banais, na vida de cada um de nós,
mas o resultado é sempre uma surpresa, sem que se consiga, no começo de cada conto, prever
o seu final. O mais atraente, na escrita de Geraldo Holanda Cavalcanti, é a fluidez do texto, a
palavra atraente e certeira, mesmo quando ela reflete a ambiguidade de uma situação, e suas
palavras geralmente o fazem, transmitindo essa situação de “desconforto” e de “incerteza”
com o que pode vir a ocorrer com o personagem principal, nisso atiçando nossa curiosidade
para que logo cheguemos ao final do conto. Eles se leem, assim, rapidamente, mas a
impressão que nos fica é permanente. Com tudo isso fica a sensação de “quero mais”. A
vontade que dá, ao encerrar o livro, é a de pedir ao autor que continue a nos enfeitiçar com os
seus, novos, contos fantásticos, assustadoramente normais...

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Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (organizadores): A Abertura dos Portos (São
Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007, 352 p.)
Este livro coletivo – seis autores portugueses e seis brasileiros, entre os quais dois
diplomatas – vai muito além do título reducionista, abordando todo o contexto político e
econômico do sistema colonial, a disputa entre as potências europeias, a transferência da
corte, em 1808, e suas consequências, tanto para o Brasil, como para Portugal. Ricupero
evidencia inclusive o que ele considera serem os pontos de contato entre, de um lado, o
decreto de abertura dos portos e os tratados de 1810, e, de outro, o projeto da Alca, proposto
pelos Estados Unidos em 1994. Paulo Roberto de Almeida faz uma análise do contexto
econômico colonial e da gradual emergência de uma economia voltada para a acumulação
interna, no contexto das relações econômicas internacionais e dos processos de transformação
do sistema econômico no início do século XIX. Uma rica iconografia ilustra este livro, que
fica como um marco comemorativo destes dois séculos desde o alvará “libertador do
comércio”.

Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros (organizador): Desafios do Direito Internacional


Contemporâneo (Brasília: Funag, 2007, 460 p.)
Os textos coletados neste volume editado pelo Consultor Jurídico do Itamaraty
emanam das jornadas de direito internacional público, organizadas em novembro de 2005, das
quais participaram grandes especialistas do ramo, inclusive dois ex-consultores jurídicos do
MRE e diplomatas com experiência na área. Os temas vão da reforma da Carta da ONU, a
evolução da justiça internacional (judicial ou arbitral), as controvérsias comerciais, direito dos
tratados, direitos humanos e até a questão da taxa de câmbio e seu papel nas relações
econômicas entre Estados. As jornadas foram concluídas por uma interessante mesa-redonda
em torno do currículo de direito internacional público nas instituições brasileiras de ensino
superior. Na medida em que o Brasil é um dos países com maior número de controvérsias
internacionais de comércio, no plano regional ou multilateral, trata-se de excelente
contribuição ao estado dos problemas da área.

Evaldo Cabral de Mello: Nassau: governador do Brasil holandês (São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, 289 p.)
A biografia do príncipe alemão, convertido em administrador do mais importante
empreendimento capitalista do Brasil colônia, pelo maior historiador regional do Brasil –
talvez maior historiador brasileiro tout court – integra a coleção perfis brasileiros, que já nos
deu biografias de D. Pedro I, a de seu filho, e de alguns outros. A bem da verdade, o Brasil
não pertenceu à Holanda, mas à Companhia das Índias Ocidentais. Evaldo Cabral desmente
vários mitos em torno dessa personagem ao mesmo tempo republicana e aristocrática, cujos
anos brasileiros foram o ponto alto de sua vida. Boxer, o grande historiador do mundo
português, disse que Nassau não foi só um administrador competente, mas um homem à
frente do seu tempo, com o que concorda Evaldo. Daí a achar que um Brasil assoviando ter-
se-ia convertido numa espécie de Holanda tropical vai uma grande distância: a despeito dos
percalços, ele modernizou consideravelmente o Nordeste português. Infelizmente, as boas
sementes que ele deixou se apagaram no rastro da expulsão e da recuperação luso-brasileira.

Everton Vieira Vargas: O Legado do Discurso: Brasilidade e Hispanidade no Pensamento


Social Brasileiro e Latino-Americano (Brasília: Funag, 2007, 412 p.)

42
Fruto de uma tese aprovada com louvor na UnB, este livro retoma a tradição das grandes
releituras históricas e sociológicas, que já tinham marcado interpretações grandiosas do
passado brasileiro e latino-americano, na tradição dos grandes mestres, que o autor examina
com cuidado: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, sobretudo, mas também os
mexicanos Manuel Gamio, Leopoldo Zea, Samuel Ramos, José Vasconcelos, Moisés Saenz,
Eduardo Nicol e Octávio Paz. Se por acaso existe uma identidade latino-americana, ou
brasileira, esses autores a encarnaram em seus ensaios eruditos, permeáveis à dialética das
influências europeias, isto é, ibéricas, hispânicas e, mais adiante, americana, no sentido
hemisférico da palavra. Brasilidade e hispanidade alcançam um novo patamar de
compreensão e de apreensão histórica nesta obra que dignifica a tradição sociológica
brasileira.

Marcelo Böhlke: Integração Regional e Autonomia do seu Ordenamento Jurídico (Curitiba:


Juruá Editora, 2007, 264 p.)
O autor realiza uma bem sucedida síntese dos processos de integração na Europa e na
América Latina, depois de percorrer a teoria da integração e as diferentes etapas que esse
itinerário percorreu nas duas regiões, das preferências tarifárias à união econômica total. Ele
distingue claramente os mecanismos institucionais e seu suporte jurídico, direito comunitário
de um lado, direito da integração de outro, mostrando como ambos se diferenciam do direito
internacional clássico. A estrutura intergovernamental do Mercosul recebe um tratamento
exaustivo, numa perspectiva evolutiva. Ele acredita que a etapa atual, de construção da zona
de livre-comércio e da união aduaneira pode se apoiar no direito da integração, mas seu
itinerário em direção ao mercado comum requer avanços normativos ainda mais complexos.
Ele também acredita que o Mercosul representa um “acréscimo de poder” aos Estados-
membros, mas isto também requer um aprimoramento de sua estrutura institucional e jurídica.

Maria Nazareth Farani de Azevedo: A OMC e a Reforma Agrícola (Brasília: Funag, 2007,
232 p.)
O título não reflete exatamente o conteúdo da obra, que trata, toda ela, do princípio da
precaução e de sua aplicação no âmbito da OMC. Originário do conceito alemão de Vorsorge,
e usado por vezes de forma abusiva pela União Europeia, o princípio se desenvolveu
basicamente em resposta às preocupações com o meio ambiente e com a biossegurança, mas
veio a ter utilização plena nas regras aplicadas ao comércio de bens alimentícios, impactando
fortemente, e muitas vezes de forma unilateral, os arranjos sanitários multilaterais. O estudo
cobre exaustivamente os vários instrumentos vinculados a esse princípio, em especial o
acordo de medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), enfatizando a necessidade da prova
científica para a aplicação daquele princípio, que a UE pretende ampliar “politicamente”. O
risco que se pretende evitar acaba sendo um risco protecionista contra o Brasil.

Fernando Cacciatore de Garcia: O Príncipe Irreal e o Poeta Errante (Porto Alegre: Editora
Nova Roma, 2008, 96 p., il.)
Trata-se de uma poesia incomum, como adverte o prefaciador, Armindo Trevisan: ele
sublinha o caráter sutil da poesia de Garcia, refletida em imagens e metáforas, todas elas
evocativas de uma vida bem vivida, nos cenários sempre inéditos de uma trajetória
diplomática que o levou a cidades poeticamente significativas. No “príncipe irreal” os poemas
são dedicados a colegas de carreira e aos amigos íntimos. No “poeta errante”, são aqueles
lapidados em suas caminhadas em Buenos Aires, Rio de Janeiro, Londres, Salvador, Lisboa,
43
Brasília, Bonn e tantas outras cidades. Um quê de Mario Quintana cosmopolita aqui, uma
pitada de Jorge Luís Borges ali, nas metáforas mais elaboradas, Garcia é um artesão das
palavras bem esculpidas, revelando uma erudição adquirida em leituras refletidas, na
experiência das errâncias diplomáticas. Nem por isso descomprometida, como revela Sotto
Voce, que reflete o terror dos assassinatos sob a ditadura argentina. Uma poesia inspirada,
uma trajetória de instantâneos, de Brasília (1973), a Porto Alegre (2008), como só uma mente
rica poderia construir.

Carlos Kessel: Tesouros do Morro do Castelo: Mistério e história nos subterrâneos do Rio de
Janeiro (Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 103 p.)
Uma antiga lenda urbana, de quase dois séculos, queria que o Morro do Castelo, arrasado
pela prefeitura carioca em 1922, abrigasse fabulosos tesouros subterrâneos, deixados pela
Companhia de Jesus, ao ser expulsa do Brasil em 1759. Posto que só tivessem sido recolhidos
meros 500 mil réis com os jesuítas, o mito dos tesouros escondidos cresceu ao longo dos
anos. O historiador Kessel retraça esta incrível aventura arqueológico-fantasista, com base
numa rigorosa pesquisa de arquivo e em uma rica compilação iconográfica. Suas
“antiqualhas” e memórias do Rio de Janeiro vão muito além do Morro do Castelo, pois que
ele percorre a trajetória histórica da cidade com tanta atenção quanto aquela dedicada à leitura
de velhos papéis. O diplomata farejador foi atrás do “rastro fascinante do ouro e da cobiça,
por vezes se mostrando abertamente, por vezes oculto e envergonhado”. Nossa recompensa,
longe das míticas toneladas de ouro dos jesuítas, é a de dispor agora de um fascinante relato
sobre a formação da cidade do Rio de Janeiro. Vale um título de cidadão emérito!

Roberto Campos: A Lanterna na Popa: Memórias (4a. ed. rev. e aum.; Rio de Janeiro:
Topbooks, 2001-2004, 2 vols.)
O mais conhecido dos diplomatas-economistas, também foi um prolífico escritor e um
polêmico debatedor público, ademais de ministro do Planejamento e, nessa condição, um dos
grandes arquitetos do conjunto de reformas empreendidas pelo regime militar em sua primeira
fase. Depois disso foi embaixador em Londres e, não tendo conseguido ser chanceler, como
provavelmente gostaria de ter sido, começou uma carreira de político, sempre nadando a
contracorrente das tendências da época. Como Raymond Aron, teve a satisfação de ganhar de
seus adversários, mas já no final da vida. Vale reler, por exemplo, pois válida ainda hoje, seu
debate na TVE com Luiz Carlos Prestes, em 1985: Campos era especialista em desarmar
adversários com base na lógica mais cristalina. Esta quarta edição apenas corrige erros
menores no texto principal e agrega, tão simplesmente, discursos de posse: na Academia
Brasileira de Filosofia, na “curva” dos 80 anos (1997), o discurso de despedida na Câmara
dos Deputados e o de posse na Academia Brasileira de Letras (1999).

Alexandre Guido Lopes Parola: A Ordem Injusta (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2007, 508 p.)
“A política externa de cada país será sempre a resultante de uma diversidade de
fatores que abrange, entre outros, circunstâncias geográficas, laços históricos de amizade,
arranjos políticos internos, formas de inserção na economia internacional e, claro, a presença
dos ‘excedentes de poder’...”, diz o autor nesta tese de CAE que faz uma crítica filosófica do
realismo. Ele analisa as contribuições de Rawls e de Habermas, para se perguntar, depois, se
pode um Estado nacional não ser realista. No caso do Brasil, são utilizados, na perspectiva
dos valores, discursos presidenciais e dos chanceleres para compor uma proposta de
44
pragmatismo democrático que representaria uma alternativa à doutrina realista. Essa proposta
não-realista opera uma crítica da desigualdade no sistema internacional, faz a defesa da
democracia e afirma que o Estado desempenha um papel importante na construção de uma
ordem justa. O autor acredita que a igualdade e a justiça são mais promissores do que a força
e o poder. Seria ele partidário de uma Idealpolitik para o Brasil?

Sérgio Eduardo Moreira Lima: A Time for Change (s.l.: Gvanim, s.d. [2006], 128 p.)
Este livro, publicado em inglês, contém os escritos e conferências feitos pelo ex-
Embaixador do Brasil em Telavive durante sua permanência em Israel (2003-2006). Eles
tratam, de um lado, de aspectos da economia e da sociedade brasileira, tal como apresentados
ao público israelense, e, de outro, da política externa brasileira em relação a Israel e a questão
palestina. Os anexos contém documentos recentes sobre as relações bilaterais; a bibliografia
traz algumas referências para os que desejarem aprofundar seus conhecimentos sobre ambos
os aspectos aqui tratados. Seria, sem dúvida, uma excelente contribuição à memória viva de
nossa diplomacia se todos os embaixadores se dedicassem, como Moreira Lima, a compilar
conferências e ensaios de caráter substantivo para oferecer a um público mais amplo do que
aquele onde se está representando o Brasil, estabelecendo laços de amizade mais duradouros,
como os que ele construiu ao longo de sua profícua missão no coração dos conflitos do
Oriente Médio. A apresentação é de Shimon Peres e o prefácio de Nahum Sirotsky.

Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (organizadores):


‘Tempo Negro, temperatura sufocante’: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008; 396 p.)
O Itamaraty não passou incólume pelo mais emblemático instrumento da ditadura
militar, como revela Paulo Roberto de Almeida, num capítulo sobre o Itamaraty em tempos
de AI-5: “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante”. Na verdade, o
“enquadramento” tinha começado bem antes, em plena era McCarthy, quando vários
diplomatas foram afastados arbitrariamente por integrar uma suposta “célula Bolívar” de
orientação comunista. O golpe de 1964 produziu uma segunda onda de cassações, completada
pela ação implacável do AI-5, que representou, certamente, uma espada de Dâmocles sobre a
cabeça dos diplomatas progressistas. A despeito de alguns exercícios de “diplomacia
blindada” na região, o Itamaraty talvez nunca tenha sido tão “livre”, paradoxalmente, quanto
nesses tempos, de pequeno escrutínio parlamentar e de quase total controle da Casa pelos
próprios diplomatas, o que nunca tinha sido o caso antes. Soldados e diplomatas aprenderam a
se respeitar mutuamente, não sem algumas sequelas inevitáveis num ambiente de
constrangimentos políticos.

Omar L. de Barros Filho e Sylvia Bojunga (eds.): Potência Brasil: Gás natural, energia limpa
para um futuro sustentável (Porto Alegre: Laser Press, 2008).
Uma compilação de ensaios sobre energia e utilização do gás natural no Brasil, que
começa por um retrospecto histórico de Paulo Roberto de Almeida sobre “Monteiro Lobato e
a emergência da política do petróleo no Brasil” (dos anos 1920 aos primeiros dez anos da
Petrobrás), no contexto da economia mundial do petróleo. Na ausência de evidências
geológicas sobre a existência efetiva de petróleo na área continental, a politização da questão
leva a doutrinas conspiratórias sobre o interesse dos “trustes estrangeiros” em impedir o
Brasil de explorar o “ouro negro”, que devia estar ao “alcance da mão”, segundo Lobato. A
despeito de invocar repetidamente o complô imperialista e a conivência do Estado brasileiro
45
com os trustes – o que o levou à prisão no Estado Novo –, Lobato foi o mais consistente
defensor da autonomia nacional nesse setor estratégico; ele sequer viveu o bastante para ver
provada a tese do “imperialista” Mister Link, sobre as possibilidades de exploração off shore.
Mas ele teria certamente investido sua “fortuna” em direitos autorais na Petrobras.

André Heráclio do Rêgo: Família e Coronelismo no Brasil: uma história de poder (São
Paulo: A Girafa, 2008, 380 p.; ISBN: 978-85-7719-034-8)
Esta obra pode ser colocada na linha do clássico Coronelismo, Enxada e Voto, de
Victor Nunes Leal, e trata, como seu ilustre predecessor, do poder dos coronéis do sertão,
neste caso baseada em documentação primária, com a originalidade de ter sido garimpada em
fontes familiares. Trata-se de um rigoroso estudo sociológico sobre as estratégias familiares
do poderoso clã (categoria duvidosa, aliás, como alerta o autor), com abundante literatura
secundária e ampla contextualização histórica, cobrindo a história do Brasil desde o último
quinto do século XIX até os dias que correm. Cartas, fotografias e depoimentos familiares,
utilizados com isenção exemplar, constituem o rico suporte de uma narrativa densa, que passa
da micro-história ao itinerário político-partidário do Brasil contemporâneo. Será certamente
mais um clássico nessa área.

José Roberto de Almeida Pinto: O Conceito de Poder nas Relações Sociais (Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 2008, 120 p.; ISBN: 978-85-265-0482-0)
Esta obra só não é sociologia em estado quimicamente puro porque o autor conhece,
na prática, o que é o poder, sobretudo nas relações internacionais, vertente, aliás, muito pouco
realçada neste livro introdutório sobre a mais importante questão das ciências sociais, desde
os gregos até os cientistas políticos contemporâneos. Dois apêndices sobre o poder no
marxismo e em Max Weber mostram que ele se apoiou nas fontes principais da moderna
teoria social e conduz a sua reflexão com todos os instrumentos analíticos relevantes. O autor,
aliás, se desculpa por não ter lido este último em alemão, o que revela, antes de mais nada,
sua honestidade intelectual. Um pequeno grande livro para ser lido por todos aqueles que
estudam e, sobretudo, pelos que exercem o poder, legitimamente ou não...

Eugênio Vargas Garcia (org.): Diplomacia Brasileira e Política Externa: Documentos


Históricos 1493-2008 (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, 752 p.; ISBN: 978-85-7866-009-3)
Praticamente não há precedentes, no Brasil, para este enorme volume de diplomacia
prática, salvo dois ou três compêndios parciais e defasados no tempo. Ela compila 500 anos
de história com documentos por vezes inéditos para o público leigo e mesmo para os
especialistas da área. Não apenas uma obra de referência, ela oferece um guia seguro, por
vezes bizarro, das relações internacionais do Brasil. Assim, além de tratados “fundadores”,
figura, por exemplo, um pacto, de 1827, entre o governador de Buenos Aires e mercenários
alemães a serviço de D. Pedro I, pelo qual o primeiro “comprava” os segundos e instava-os a
conquistarem pela força a província de Santa Catarina, para ali instalar um governo
republicano. Sempre existem surpresas, num pesado volume de 750 páginas. Recomenda-se
saborear aos poucos...

João Alfredo dos Anjos: José Bonifácio, o primeiro Chanceler do Brasil (Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2008, 424 p.; ISBN: 978-85-7631-098-3)

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José Bonifácio não foi apenas o primeiro chanceler, mas, simultaneamente, o titular da
pasta do Império, equivalente à do Justiça e do Interior, e, anteriormente à independência, dos
Negócios do Reino. Inteiramente condizente com suas qualidades polivalentes e de homem de
grande densidade intelectual. Esta tese de CAE constitui o mais completo estudo da atividade
diplomática de Bonifácio, com base em fontes primárias e ampla literatura de apoio (quase
500 notas). Nosso primeiro ministro dos negócios estrangeiros preocupou-se também com as
forças armadas e via o Brasil como uma “potência transatlântica”. Com a possível exceção de
Rio Branco, o Brasil nunca teve um chanceler como ele. O livro, pelo seu valor
historiográfico e seu estilo elegante, merece uma nova edição, para o grande público.

Adriano Silva Pucci: O Avesso dos Sonhos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, 176 p.; ISBN: 978-
85-757-7547-9)
A realidade é o avesso dos sonhos, não o oposto, mas a mesma coisa, só que revirada.
É assim que este descendente literário de Michelangelo vai esculpindo seus contos, mais
exatamente vinte e três pré-histórias, como ele as define, repletas de personagens que
poderiam frequentar nosso cotidiano, especialmente nos povaréus do interior, mas também
em São Paulo, em festas de S. João ou em fábricas de chocolates. Puro deleite, com Adoniran
Barbosa, José de Alencar, Luiz Gonzaga e Machado de Assis: sim, não falta nem uma Capitu,
mas esta aqui multiplica os casos, na frente do seu Bentinho, com um final surpreendente.
Fina escrita, diálogos tão próximos da realidade que parecem gravação (ou seria o avesso?). O
livro é dedicado à Maria Chambisca e a todas as outras Marias. Mas Charles Chaplin abre a
seleção...

João Almino: Escrita em contraponto: ensaios literários (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2008, 158 p.; ISBN: 978-85-282-0148-2)
O autor do Quarteto de Brasília e de outras obras de filosofia política escolheu alguns
de seus muitos ensaios literários para compor este pequeno-grande livro que fala do mito, da
utopia, da poética do vazio, mas que também constrói diálogos literários entre o Brasil,
Portugal e os Estados Unidos. Não se trata de crítica literária, como Almino adverte em seu
Prefácio, mas de suas afinidades eletivas com autores e temas que compõem o seu universo de
leituras e de reflexões sobre a poesia e a ficção que frequentam sua vida nômade-acadêmica
(que já passou pela UNAM, pela UnB, pelo Instituto Rio Branco, por Berkeley e Stanford).
Machado, Clarice, João Cabral, eis alguns autores que comparecem nos ensaios, junto com
Goethe, quem primeiro prenunciou o advento de uma literatura universal, como a que burila
João Almino.

Vasco Mariz: Temas da política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas


(Rio de Janeiro: Topbooks, 2008, 431 p.; ISBN: 978-85-7475-162-7)
Prolífico escritor, longevo diplomata, musicólogo de renome, com muitas
contribuições à cultura popular brasileira, Vasco Mariz reuniu desta vez seus escritos mais
“sérios”, ou pelo menos todos aqueles que guardam a memória de suas aventuras
diplomáticas. Por eles ficamos sabendo de sua cotovelada em Nikita Kruschev, do dia em que
o Brasil salvou o Marechal Tito, da canhestra tentativa de Jânio Quadros de anexar Angola ao
Brasil ou de como o regime dos generais afastou a possibilidade de que Dom Helder Câmara
fosse premiado com o Nobel da Paz. Seu maior mérito é justamente o de não guardar para si
suas muitas histórias diplomáticas. Os anexos trazem retratos de personalidades políticas

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brasileiras e de artistas e escritores. Este é o seu 57o. livro: que não seja o último deste
diplomata nascido em janeiro de 1921.

Vera Cíntia Álvarez: Diversidade cultural e livre-comércio: antagonismo ou oportunidade?


(Brasília: UNESCO-Instituto Rio Branco, 2008, 292 p.; ISBN: 978-85-7652-084-9)
Originalmente uma tese no Curso de Altos Estudos do IRBr, o trabalho discute a
questão das políticas públicas em matéria cultural em face da disseminação de produtos
culturais na era da globalização. O foco central é o conflito potencial entre os mecanismos
nacionais de promoção cultural e as regras do comércio multilateral, que poderiam
impulsionar a liberalização nessa área. A autora lembra que a Unesco aprovou, em 2005, a
Convenção da Diversidade Cultural, com a solitária oposição dos Estados Unidos,
interessados, segundo ela, em ‘perpetuar a sua hegemonia’. De fato, as indústrias audiovisuais
são as de maior dinamismo nos mercados mundiais, nos quais a suposta dominação americana
poderia ameaçar as identidades culturais nacionais. Daí a tese da “diversidade cultural”, novo
nome da “exceção cultural” patrocinada pela França. O Brasil apoia a tese, mas também
promove seus interesses de mercado com base em sua grande riqueza cultural.

Jorge Sá Earp: O Legado (Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, 224 p.; ISBN: 978-85-7577-428-1)
Prolífico autor de uma dúzia de livros, entre contos, poesias e romances, Jorge Sá Earp
dá continuidade, com este novo romance, à trilogia Os Descendentes, que começou pela obra
O olmo e a palmeira (2006). Se aquele romance inaugural partia dos anos finais do período
português e dos primeiros da independência, este retoma a narrativa já no Segundo Reinado,
sempre com integrantes da família Delasalle-Castro, entre os quais Pedro, filho do inglês do
primeiro da série, jovem médico casado, que sucumbe aos encantos de outra mulher. O
cenário se divide entre Petrópolis e o velho Rio da Livraria Garnier, frequentada por Bilac,
João do Rio e outros escritores, já em pleno século 20. Em linguagem cuidadosamente
esculpida ao estilo da época, o romance traz o que se pode esperar no gênero: amores
proibidos, traições, vingança, assassinatos por arsênico. Esperemos pelo terceiro e último, de
uma saga machadiana.

Alberto da Costa e Silva: Castro Alves: Um poeta sempre jovem (São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, 198 p.; ISBN: 978-85-359-0789-6)
Os livros da coleção Perfis Brasileiros são pequenos em tamanho, mas densos em
conteúdo. Evaldo Cabral de Melo já tinha feito um Nassau; agora é o poeta Costa e Silva que
retraça, em 24 capítulos, a vida e a obra do maior poeta condoreiro, que morreu com exatos
24 anos. Abolicionista aos 16 anos, radical da liberdade, Castro Alves esteve no centro dos
debates mais importantes de sua época e, mesmo vindo de uma família de negreiros, ficou
conhecido como ‘poeta dos escravos’. A mãe pode lhe ter passado a tuberculose que a matou
com 34 anos, ele com dez anos menos. Costa e Silva o chama de “republicano, socialista,
libertário, mas acima de tudo um inimigo da escravidão”. Duelou poeticamente com Tobias
Barreto por causa de duas atrizes, e venceu a parada; mas perderia para a ceifadeira, depois de
ganhar a imortalidade, com “Vozes d’África” e “Navio Negreiro”. Poetas românticos
morriam cedo no Brasil...

Sérgio Corrêa da Costa: Le nazisme en Amérique du Sud: Chronique d’une guerre secrète
1930-1950 (2ème édition; Paris: Ramsay, 2008, 464 p.; ISBN: 978-2-84114-904-9).
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Trata-se da versão francesa do livro Crônica de uma Guerra Secreta, Nazismo na
América: A conexão argentina (Record, 2004), com pequenas diferenças formais. Diplomata
em Buenos Aires, nos anos finais da Segunda Guerra, Corrêa da Costa penetrou nos arquivos
argentinos e copiou papéis relevantes para a história passada e a segurança contemporânea do
Brasil, numa fase em que nazistas circulavam livres, protegidos por Perón e seus
companheiros fascistas. A edição brasileira tem um índice onomástico ausente da edição
francesa, que por sua vez tem notas agrupadas ao final. Observações pessoais do autor são
integradas a uma pesquisa em obras e documentos da época e à leitura da literatura
secundária. Síntese breve: Perón foi bem pior do que se admite geralmente nos registros
históricos, para o Brasil e para a própria Argentina.

Paulo Roberto Palm: A Abertura do Rio Amazonas à Navegação Internacional e o


Parlamento Brasileiro (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 100 p.; ISBN: 978-
85-7631-017-4)
O livro é o resultado de uma dissertação de mestrado defendida na UnB em 1984 e,
apesar da bibliografia não ter sido atualizada, ele conserva toda a validade como pesquisa
histórica. As premissas e conclusões se alinham inteiramente com a interpretação oficial do
processo de abertura, no qual estiveram envolvidos não só a chancelaria, mas também o
Conselho de Estado e o Parlamento. Naquela época, antes e depois da Guerra do Paraguai, se
temia tanto pela soberania brasileira na Amazônia como ainda recentemente, fruto de uma
paranoia nunca totalmente curada quanto à cobiça estrangeira sobre nossas fabulosas riquezas
naturais. Palm analisa de forma competente as pressões estrangeiras – potências e ribeirinhos
–, a reação brasileira e o conflito doutrinal no Parlamento, antes do decreto imperial de
abertura, de 1866.

Tarcísio Costa: As duas Espanhas e o Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2009, 396 p.; ISBN:
978-85-7475-174-0)
Poucas teses de CAE adotam o tipo de abordagem escolhido pelo autor em sua obra
para tratar de uma densa e original relação bilateral. Não que o exame de um relacionamento
diplomático seja novidade nas teses do CAE, ao contrário, elas são muitas a preferirem esse
tipo de enfoque. Mas raras, talvez nenhuma, o fazem pela via da história das ideias, mais até
que pelo lado dos eventos políticos e dos processos econômicos. As duas Espanhas se referem
à duas tradições mais fortes da historia moderna do reino ibérico: a direita católica, unitária e
imperial de um lado, a esquerda socialista, republicana e federativa, de outro. O Brasil
aprofundou sua relação com as duas Espanhas e nelas encontrou mercados, capitais e
parcerias diplomáticas. A leitura intelectualizada de Costa sobre essa relação constitui um
irresistível convite a servir naquele país.

Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Barão do Rio Branco: Missão em Berlim – 1901/1902
(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 140 p.; ISBN: 978-85-7631-161-4)
Este livro de história é muito mais do que anuncia o seu título e bem maior do o
número declarado de páginas: ele trata da Alemanha e do Brasil na virada do século 20, da
presença alemã no Brasil e das relações entre os dois países durante a longa gestão do Barão à
frente da chancelaria brasileira, além, é claro, de seu objeto próprio. Seixas corrige os dois
biógrafos mais importantes, Álvaro Lins e Luiz Viana Filho: Berlim foi mais que um
“intervalo” ou um breve “interlúdio” (18 meses). Apoiado nos documentos diplomáticos das
duas chancelarias, Seixas mostra como Rio Branco operou uma chefia de missão sobretudo
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pragmática e orientada a resultados efetivos. Então como agora, potências europeias
disputavam o Brasil como mercado de armas e o problema das dívidas brasileiras já figurava
no cardápio das cobranças alemãs. Em Berlim, o Barão arma a estratégia que levaria à
incorporação do Acre ao Brasil.

Flavio Mendes de Oliveira Castro e Francisco Mendes de Oliveira Castro: Dois séculos de
história da organização do Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008 (Brasília: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2009, 640 e 332 p.; ISBN: 978-85-7631-136-2 e 978-85-7631-158-4)
O que já era, na edição original – há muito esgotada – da UnB, uma história minuciosa
da estrutura evolutiva do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois Relações Exteriores,
tornou-se agora um relato completo sobre a Casa que passou a chamar-se Itamaraty já na
República. A despeito do tom burocrático, trata-se de obra absolutamente indispensável a
todo pesquisador que queira desvendar os segredos da alegada excelência da Casa na defesa
dos interesses nacionais. Os Castros, reunidos para o segundo volume e o enriquecimento do
primeiro merecem cumprimentos pelo trabalho excepcional de compilação – e apresentação,
em tom ameno – dos mais importantes documentos que balizam a construção de uma das
melhores instituições diplomáticas do hemisfério sul (e talvez, também, de várias partes do
norte).

Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de 1817 e a História do Brasil:


um estudo de história diplomática (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 352 p.;
ISBN: 978-85-7631-171-3)
Segunda edição de uma obra relevante na historiografia da revolução em Pernambuco,
cujos vínculos internacionais foram pesquisados com uma competência raramente vista nos
anais da diplomacia brasileira. Em duas partes, a obra analisa a correspondência diplomática
portuguesa e estrangeira a partir de capitais europeias, de Washington e do Prata, para
reconstituir as ligações internacionais dos revoltosos do Recife; na segunda parte, a obra
discute a opção pela monarquia no Brasil, a partir do impacto dessa revolução talvez mais
federalista do que republicana, bem como a repercussão do precedente haitiano no Brasil do
começo do século 19: a imagem de escravos eliminando seus senhores brancos deve ter
assustado as elites do Império. Poderia o Brasil ter sido um grande Haiti? Questão para uma
história virtual...

Ovídio de Andrade Melo: Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty: relatos de


política externa de 1948 à atualidade (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 192
p.; ISBN: 978-85-7631-175-5)
Em três partes, o depoimento trata da política nuclear e da recusa ao TNP, do
reconhecimento de Angola (com telegramas secretos revelados) e dos périplos afro-asiáticos
do embaixador aposentado; na quarta parte, Ovídio diz que fez a sua parte ao tentar remover
do Itamaraty ideias antiquadas e desajustadas, entre elas a decisão de se assinar o TNP. Um
dos fantasmas do passado é o imperialismo dos EUA na América Latina, um mofo muito
pegajoso, a crer no embaixador. Cabem elogios ao “simpático casal Kirchner”, referências a
“explosões nucleares pacíficas” e certa nostalgia pelas posições que o Brasil exibia no
passado. O livro é importante pelo depoimento em si, menos talvez pela mensagem que
pretende transmitir aos atuais removedores de mofo, pois caberia distinguir qual camada,
exatamente, remover...

50
Jorge Sá Earp: O novelo (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, 204 p.; ISBN: 978-85-7577-536-3)
Autor de uma já impressionante obra de poeta, contista e romancista, Earp termina
com esta novela, cujo formato é realmente o de um novelo (com perdão pelo jeux de mots), a
trilogia começada com O Olmo e a Palmeira (2006) e O Legado (2007): todo o romance se
faz sob a forma de relatos dos personagens, cada um encadeando e misturando suas
impressões e trajetórias pessoais com as dos demais. O itinerário total, de duas famílias
entrelaçadas, vai, assim, do começo do século 19 ao AI-5, em 1969. Aqui, personagens
históricos e imaginários se misturam numa trama que só pode ser seguida pelos relatos
subjetivos destes últimos, et encore: ao final, o autor confessa que servia de “ponto” para os
atores de uma longa peça de teatro, cujo enredo é a própria história do Brasil: um e outra
terminam no escuro da noite. Bravo!

Geraldo Holanda Cavalcanti: As desventuras da graça (Rio de Janeiro: Record, 2010, 384 p.;
ISBN: 978-85-01-08527-6); 2)
Uma espécie de Bildungs Roman, um livro de formação, sobre os primeiros vinte anos
do autor, que também correspondem a uma infância de catolicismo exacerbado e à gradual
perda da religiosidade na adolescência, até chegar à falta de fé do jovem formado e pronto
para ingressar na carreira diplomática. Entre anjos e mistérios da fé, o autor passeia sua
erudição pelo que se poderia chamar de cultura clássica e renascentista: somos contemplados
com passeios ricamente comentados às principais cidades e museus da Europa. Seus diários e
recordações, com algumas projeções de atualidade, são a fonte primária deste saboroso
racconto memorialístico de estilo absolutamente original nos exemplos do gênero. Depois
desta saborosa viagem iniciática, o autor fica nos devendo a continuidade da história, desta
vez na primeira fase de sua rica vida diplomática.

Paulo Nogueira Batista Jr. (org.): Paulo Nogueira Batista: Pensando o Brasil, Ensaios e
Palestras (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 336 p.; ISBN: 978-85-7631-174-
4)
Poucos diplomatas preservam, organizam e disponibilizam sua produção ao longo da
carreira, talvez porque ela seja, na maior parte, aborrecidamente burocrática. Este não é
certamente o caso do nacionalista PNB, que não apenas entregou arquivos ao Cpdoc, como
guardou suas contribuições mais relevantes ao longo de uma carreira que se confunde com a
defesa das causas nacionais, desde a era JK até o início dos anos FHC. Infelizmente
desaparecido prematuramente, ele comparece agora através desta seleção de textos,
elaborados entre 1983 (dois inéditos) até 1994, quando PNB se preocupava com o perfil do
Mercosul e seus efeitos sobre a economia brasileira. São textos diplomáticos, mas que
guardam a nítida marca de um pensador original.

Antonio de Aguiar Patriota: O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: a articulação


de um novo paradigma de segurança coletiva (2a. ed.; Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2010, 232 p.; ISBN: 978-85-7631-197-3)
Reedição não atualizada de obra elaborada em 1997 e publicada em 1998, o trabalho
preserva utilidade como análise detalhada da atuação do Conselho em casos importantes de
ameaças à paz e à segurança internacionais no contexto do novo ambiente criado em meados
dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria e o vislumbre de novos princípios para a aplicação
dos dispositivos relativos à segurança coletiva. Mesmo sem a adição de novos capítulos para
51
contemplar a situação criada com a segunda guerra do Golfo (invasão não autorizada do
Iraque), o livro teria, ainda assim, se beneficiado com uma introdução ou epílogo para
discutir, justamente, o que existe de novo no contexto do CSNU, a partir da preeminência
quase exclusiva dos EUA, da re-emergência da Rússia e da assertividade da China. Caberia
uma edição revista e atualizada, para discutir se existe, realmente, um novo paradigma.

Luís Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati (De Amanuense a Secretário de Legação)
1905-1913 (2a. ed. Revista; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008, 504 p.; ISBN:
978-85-7631-105-8).
Com uma primeira edição em 1947, para relatar memórias de cem anos atrás, a obra
tem sabor e conteúdo de amenidades fagueiras e um compreensível vieux style, inclusive na
linguagem machadiana. Tempos em que o velho Palácio do Itamaraty acolhia bailes
suntuosos – “Felizes eram aqueles que tinham os seus nomes nas listas do Protocolo, os
trezentos de Gideão...” – nos quais o autor “rodopiava sem competidores”. Os telegramas
expedidos pela Western Union eram caros, e os ofícios ainda redigidos à mão, o que
justificava o uso do tempo para afazeres mais amenos, como incursões em lancha e subidas
frequentes a Petrópolis (inclusive para escapar da febre amarela, a dengue da Primeira
República). Leitura agradável, talvez com pince-nez e algum licor caseiro, mas poucos
elementos substantivos para a história real.

Ciro Leal M. da Cunha: Terrorismo Internacional e Política Externa Brasileira Após o 11 de


Setembro (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 216 p.; ISBN: 978-85-7631-190-
4)
Originário de um trabalho de conclusão do Mestrado em Diplomacia pelo IRBr, este
livro expõe e analisa as diretrizes e ações do governo brasileiro com respeito à temática do
terrorismo, depois que este se converteu (legitimamente) na preocupação número um dos
Estados Unidos (e de vários outros países, também). O Brasil, por falta de ameaças visíveis
nessa área, atribui importância menor ao tema, e opõe-se, em princípio a medidas coercitivas,
preferindo atuar nas causas subjacentes – supostamente um problema de injustiça em
determinadas áreas e regiões – e basicamente por meio da cooperação. Em outros termos, o
Brasil é contrário ao uso da força em qualquer circunstância, mesmo no caso do terrorismo,
insistindo na tese genérica da manutenção do multilateralismo, o que pode ser problemático,
como evidenciado nos casos da Colômbia e do Oriente Médio, onde a via do diálogo tem se
mostrado basicamente insuficiente, por vezes ineficiente.

Rômulo Figueira Neves: Cultura Política e Elementos de Análise da Política Venezuelana


(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010, 152 p.; ISBN: 978-85-7631-192-8)
Outro trabalho de conclusão do Mestrado em Diplomacia pelo IRBr, o livro repassa a
longa trajetória de peripécias políticas de nosso vizinho andino, para retomar, num importante
capítulo, os episódios da história recente de construção de um regime sui generis liderado
pelo caudilho bolivariano. O sistema atual – que como os anteriores se baseia no rentismo
petrolífero, uma verdadeira maldição tanto para a Venezuela como para outros países,
acomodados numa riqueza mineral – se caracteriza pela baixa produtividade, pela presença
dos militares (que aliás é tradicional na vida do país, retirando-se o período 1958-1999, ainda
assim incluindo uma tentativa de golpe, pelo mesmo Chávez, em 1992), pelo bolivarismo
mítico (talvez até doentio) e pela radicalização dos discursos políticos (o que é evidente, com
a divisão completa da sociedade venezuelana). O futuro, provavelmente, reserva novas doses
52
de violência política num país que promete revolucionar não apenas o cenário doméstico mas
o próprio Mercosul. Quosque tandem?

Marcelo Cid: Os Unicórnios (Rio de Janeiro : Sete Letras, 2010, 168 p.; ISBN: 978-85-7577-
637-7)
A solução encontrada pelo “herói” deste livro para remediar ao desaparecimento de
sua biblioteca num incêndio exemplar não deve ser recomendada aos verdadeiros amantes
desses pouco obscuros objetos de cobiça: constituir uma nova biblioteca inteiramente a partir
de livros roubados, mas seletivamente (o que talvez introduza um pouco de razão na loucura
do larápio bibliófilo e bibliomaníaco). Por acaso esse professor universitário se torna o
principal assessor intelectual de uma pequena editora, e sai em busca do manuscrito “clássico
inédito” (sic), vislumbrado em possíveis poemas desconhecidos do poeta simbolista francês
Arthur Rimbaud. Os unicórnios são como Pilatos no credo, simples sobreviventes do
incêndio, testemunhas mudas da trajetória singular do ladrão de livros (sempre por amor,
claro).

Fernando Cacciatore de Garcia: Fronteira Iluminada: História do Povoamento, Conquista e


Limites do Rio Grande do Sul, a partir do Tratado de Tordesilhas (1420-1920) (Porto Alegre:
Sulina, 2010, 330+16 p.; ISBN: 978-85-205-0555-7)
Uma obra destinada a superar os clássicos de história das fronteiras, pelo menos no
que se refere à fixação dos limites meridionais do Brasil, ainda antes que a nação tivesse sua
atual conformação geográfica. Uma pesquisa minuciosa, uma escrita saborosa, ilustrações e
mapas originais, uma edição cuidadosa, que honra as melhores tradições de historiadores e
escritores diplomáticos. Na verdade, trata-se bem mais que uma simples história dos conflitos
lindeiros entre espanhóis e portugueses, ou entre brasileiros e uruguaios; é uma história
política do extremo sul, onde o povo optou por ser brasileiro, quando poderia ter sido
autônomo (e certamente teria motivos para afirmar sua independência, pelo menos
intelectual). Uma bibliografia exaustiva confirma o imenso volume de documentos e relatos
historiográficos consultados pelo autor, nesta construção primorosa, ela mesma iluminada.

Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe (Maquiavel Revisitado) (Brasília: Senado


Federal, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9)
Se Maquiavel reencarnasse atualmente, talvez não defendesse mais um Estado forte,
um príncipe poderoso, no limite da tirania. Ele o fez pensando libertar uma Itália
desmembrada, invadida por tropas estrangeiras e mal defendida por mercenários a soldo. Esta
releitura do livro mais famoso da teoria política, aliás o fundador da disciplina, se coloca do
ponto de vista dos cidadãos, não do poder central. O novo Príncipe segue os temas de cada
um dos 26 capítulos originais, com os argumentos adaptados à política moderna,
eventualmente brasileira. Ambos os livros foram escritos no ostracismo, que parece ser um
bom cenário para reflexões sobre o poder, sobretudo aquele discricionário, que pretende
mandar na vida dos cidadãos. Os que pensam com sua própria cabeça, costumam ver mais
longe que os imediatistas...

Oscar S. Lorenzo Fernandez: Três Séculos e uma Geração (Brasília: Funag, 2010, 368 p.;
ISBN: 978-85-7631-261-1)

53
O livro é exatamente o que o título indica: um diplomata, nascido no início do século
XX, que carregava ainda as marcas do século XIX, chega ao século XXI para relatar seu
brilhante itinerário, que é o de uma geração que pretendeu modernizar o Brasil e conseguiu,
pelo menos parcialmente. Poucos brasileiros dessa geração que atravessou o dramático século
XX possuem o estofo intelectual, a formação acadêmica, a experiência de vida, a vivência
internacional e os conhecimentos econômicos e em ciência e tecnologia do embaixador
Lorenzo Fernandez, e poucos diplomatas seriam capazes de retraçar esse itinerário, numa obra
tão rica de informações, de opiniões e de argumentos embasados na mais pura lógica e na
herança acumulada pelas civilizações ao longo do tempo. Estupendo.

Carlos Augusto de Proença Rosa: História da Ciência (3 volumes, 4 tomos) (Brasília: Funag,
2010; ISBNs: 1o.: 978-85-7631-264-2, 496 p.; 2o.: 978-85-7631-265-9, 420 p. e 400 p.; 3o.:
978-85-7631-267-3, 524 p.)
Monumental: sete capítulos, com quase duas mil páginas, resumindo todo o
conhecimento científico da humanidade desde a Antiguidade até a sociologia moderna, com
sínteses preciosas sobre o desenvolvimento de todas as ciências. O primeiro dos três volumes
vai da Antiguidade (na verdade da pré-história) ao Renascimento Científico, no século XVI; o
segundo, em dois tomos, cobre primeiro a ciência moderna, desde Bacon e Galileu até o
século das Luzes; no segundo, examina o pensamento científico e a ciência no século XIX,
quando, ao lado das ciências naturais surge a sociologia; o terceiro volume, finalmente, o
mais volumoso, trata do triunfo do pensamento científico no mundo contemporâneo, contendo
inclusive uma seção sobre a sociologia no Brasil. Não existem precedentes no Brasil de obra
tão monumental composta por um estudioso isolado: um genial diplomata científico!

Nelson A. Jobim, Sergio W. Etchegoyen, João Paulo Alsina (orgs.): Segurança Internacional:
Perspectivas Brasileiras (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, 648 p.; ISBN: 978-85-225-
0835-8)
O ministro da Defesa e o general que o assessora figuram por dever, mas o
organizador de fato é o terceiro, um diplomata, já autor de dois outros livros sobre defesa; ele
foi o “gerente” efetivo de um projeto ambicioso nas dimensões e na cobertura temática. Três
outros colegas participaram dos seminários preparatórios. Acadêmicos, altos funcionários e
alguns empresários marcaram presença em cada um dos cinco blocos: cenário global,
desafios contemporâneos, circunstância regional, perspectiva brasileira e realidades regionais.
Precedendo cada seção, uma síntese das apresentações esclarece como cada uma delas atende
às metas do projeto: aumentar a inteligência nacional nas questões de segurança e colocar a
defesa em uma situação de protagonismo cooperativo com as relações exteriores. Trata-se de
excelente começo.

José Augusto Lindgren Alves: Viagens no Multiculturalismo – O comitê para a eliminação


da discriminação racial, das Nações Unidas, e seu funcionamento (Brasília: Funag, 2010,
256 p.; ISBN: 978-85-7631-258-1)
Uma larga experiência com o tratamento multilateral dos direitos humanos autoriza o
autor a tratar com notável maestria do CERD. O discurso multiculturalista é uma criação do
Ocidente, pelo menos enquanto ideologia, diz Lindgren, que não deixa de refletir sobre os
problemas suscitados pela passagem dos direitos humanos tradicionais, isto é, individuais, aos
direitos coletivos, de minorias. O exagero das propostas pode levar a novas formas de
segregacionismo e de etnocentrismo, ou seja, ao “racismo” de todos. Uma boa visão histórica
54
e argumentos de bom-senso podem revelar como organismos bem intencionados, como o
CERD, podem resvalar para situações absurdas. O autor admite a validade de ações
afirmativas, sem um viés racial mais explícito, o que o coloca do lado dos multiculturalistas
moderados.

Paulo Roberto de Almeida, Rubens Antônio Barbosa, Francisco Rogido Fins (organizadores):
Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos
Estados Unidos (Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1)
Elaborado sob forma de um manual de ajuda ao pesquisador, este diretório de
arquivos históricos e de fundos documentais disponíveis para o estudo do Brasil em
instituições públicas e universitárias dos EUA é extremamente útil ao analista das relações
bilaterais. Em termos práticos, ele pode poupar três ou quatro meses na missão de prospecção
inicial de todo e qualquer pesquisador, brasileiro ou americano, interessado em explorar o rico
manancial de documentos que estão depositados nos EUA e ligados de alguma forma ao
Brasil. Além de relacionar fundos e coleções, o Guia instrui sobre como liberar documentos
ainda classificados como sigilosos. Um serviço de utilidade pública para todos aqueles que
investigam o Brasil a partir da visão americana sobre nossa política, nossa economia e nossa
cultura naquelas fontes.

Denis Rolland; Antonio Carlos Lessa (coords.): Relations Internationales du Brésil: Les
Chemins de la Puissance; vol. I: Représentations Globales (Paris: Harmattan, 2010, 322 p.;
ISBN: 978-2-296-13543-7; 2 volumes)
Um único diplomata brasileiro comparece nesta coletânea acadêmica de estudos (em
francês e em inglês) sobre o Brasil no cenário global. Paulo Roberto de Almeida nela figura
com um balanço da diplomacia de Lula, um período marcado por algumas controvérsias na
frente externa. O que mais se empreendeu, na verdade, foram iniciativas para popularizar a
figura do próprio presidente, com algumas brechas em princípios diplomáticos que o Brasil
sempre defendeu no campo dos direitos humanos (votações em favor de ditaduras), na
cláusula da não-intervenção (em Honduras, por exemplo) ou no terreno da não-proliferação
(Irã). Sua contribuição desvenda o estilo, os procedimentos e os resultados de uma retórica
diplomática nunca antes vista na história do Brasil. Já passou, mas atenção: pode voltar!

Michel Arslanian Neto: A Liberalização do Comércio de Serviços no Mercosul (Brasília:


Funag, 2010, 408 p.; ISBN: 978-85-7631-255-0)
Resultado de uma tese de CAE, esta obra de diplomacia negocial focaliza um setor
que constitui o futuro do comércio mundial e também regional, mas que também apresenta
inúmeros obstáculos regulatórios. Mais até do que as chamadas assimetrias estruturais ou as
diferenças de legislações nacionais, a integração nos serviços registra dificuldades especiais,
dadas a diversidade intrínseca ao setor e o fato de que muitos deles não são exatamente
comercializáveis. O autor propõe combinar a metodologia “negativa” – abolição de barreiras
– com a implementação da liberalização “positiva”, ou seja, adoção de políticas comuns. O
caminho, no entanto, é longo, como demonstrado pela distância entre a assinatura do
Protocolo de Montevidéu (1997), apenas um acordo-quadro, e sua complementação por
compromissos específicos, lentos, difíceis, quase inócuos.

55
Fernando Cacciatore de Garcia: O Ritual dos Pastores: Memórias de um homossexual na
infância (romance) (Porto Alegre: Editora Sulina, 2011, 263 p.; ISBN: 978-85-205-0605-9)
O capítulo que fornece o título deste livro do diplomata historiador constitui o relato
central de uma história intimista, sob a forma de biografia romanceada, de um garoto que
refaz a arqueologia de sua sexualidade em duas capitais brasileiras de meados do século
passado. A narrativa prende, em primeiro lugar, pela sinceridade, pela abertura e pela
coragem com que são refeitos tantos episódios marcantes de uma trajetória pessoal que é, ao
mesmo tempo, um relato da vida no Brasil quando este deixava de ser uma sociedade
tradicional, patriarcal e machista para assumir-se como uma nação urbana, industrializada e
de costumes mais livres. O romance também captura o leitor pela alta qualidade da escrita,
revelando um domínio magistral da língua, com expressões refinadas, carregadas de
significados que os entendidos decifrarão ao seu gosto. Um belo ritual de iniciação na
literatura das sensibilidades.

Marcelo Cid (introdução, tradução e notas): Priapeia: Poesia erótica latina em honra ao deus
Príapo – edição bilíngue (Jundiaí, SP: Editora Literarte, 2010, 80 p.; ISBN: 978-85-7487-
044-3).
Os latinistas ficarão com as páginas pares, onde estão os poemas originais; os
voyeurs e obcecados vão direto as páginas picantes da direita, que tratam de nádegas e outras
partes pudendas envolvidas na lascívia de poetas despudorados. O deus Príapo sempre foi
representado com um membro enorme, o desejo secreto dos homens da Grécia antiga e da
Roma clássica (não só lá). Os que conseguirem se destacar das insinuações maliciosas – quem
sabe, até, pornográficas? –, poderão comprovar o excelente latinista que é Marcelo Cid,
qualidade já revelada em uma obra anterior, Philobiblion, do erudito inglês do século XIV,
Richard de Bury, cuja versão dessa homenagem aos livros ele assegurou com notável
competência. As poesias eróticas são, talvez, um divertissement, mas podem conquistar, ou
excitar, latinistas práticos...

Celso Amorim: Conversas com Jovens Diplomatas (São Paulo: Benvirá, 2011, 600 p.; ISBN:
978-85-02-13537-6)
Estas “conversas” – na verdade palestras e aulas no Instituto Rio Branco –refletem
com perfeição o que foi a diplomacia da era Lula, oito anos de profunda transformação na
maneira de trabalhar, e mesmo de pensar, do Itamaraty, e até na política externa. Deve-se
dizer que o chanceler de Lula (e, antes, de Itamar Franco) se esforçou bastante, junto com seu
secretário-geral por sete anos, para mudar a maneira de trabalhar e de pensar no Itamaraty, em
quase todos os temas tocados por essa diplomacia (e eles foram inúmeros, incontáveis), com
especial ênfase na integração sul-americana, na tentativa de se conquistar uma cadeira
permanente no CSNU e para finalizar a rodada de negociações comerciais multilaterais.
Como são discursos de “história imediata”, provavelmente seu autor vai se dedicar a uma
análise retrospectiva qualitativa, examinando quanto se conseguiu, ou não, nesse período
“revolucionário”.

Antonio Carlos Pereira, Luiz Felipe Lampreia, Marcos Azambuja, Roberto Abdenur, Rubens
Ricupero, Sebastião do Rego Barros e Sérgio Amaral: A Política Externa Brasileira:
presente e futuro (Brasília: A+B Comunicação, 2009, 112 p.)
Palestras de seis diplomatas aposentados e de um jornalista, reunidos num encontro de
análise crítica sobre a política externa da era Lula. A principal conclusão é a de que se assistiu
56
a um “desmanche da política externa brasileira, cujo foco foi reduzido a, praticamente, um
único objetivo, no momento inatingível: conseguir uma cadeira no Conselho de Segurança da
ONU”. Crítica talvez exagerada, pois houve muitas outras tentativas – e talvez igual número
de fracassos – mas um outro recado perpassa: em oito anos, “o PT escolheu o caminho de
apoiar governos com os quais se identifica ideologicamente, deixando de lado o
profissionalismo e a isenção que sempre marcaram a diplomacia brasileira”. A diplomacia
petista subverteu a máxima de Rio Branco: “em todo lugar me lembro do partido”.
Exagerados?

Edgard Telles Ribeiro: Diplomacia Cultural: seu papel na diplomacia brasileira (2a. edição:
Brasília: Funag, 2011, 128 p.; ISBN: 978-85-7631-297-0)
Ufa! Demorou exatamente 22 anos para que fosse reeditado um livro que já nasceu
clássico, e que depois virou um clássico desaparecido, a ponto de não existir sequer na
Biblioteca do Itamaraty (algum gatuno fascinado, certamente). Felizmente, ele agora também
está disponível online no site da editora (que merece um downgrade a B minus pelo atraso na
reedição). Intensamente requisitado como paradigma dos estudos nessa área sempre
desprovida de fundos apropriados, o livro ainda promete alimentar uma longa fileira de novos
trabalhos numa área que deveria ser renomeada de diplomacia da inteligência. O autor não
ficou inativo durante esse longo desaparecimento: ele nos premiou com diversos livros de
contos e alguns romances eletrizantes no intervalo. Quem sabe ele assassina o responsável
pelo atraso num próximo romance?

Fernando Guimarães Reis: Caçadores de Nuvens: Em busca da Diplomacia (Brasília: Funag,


2011, 512 p.; ISBN: 978-85-7631-302-1)
Compêndio das aulas dadas pelo ex-diretor do Instituto Rio Branco, o livro revela toda
a cultura clássica do autor, profundamente humanista, talvez um pouco acima do que se
requer, hoje, dos candidatos à diplomacia e mesmo dos estudantes da academia diplomática.
Excelentes leituras para estudantes de relações internacionais, mas não possui a sistemática de
um compêndio de textos especializados, nem se apresenta exatamente como uma “teoria de
RI”. Mas são leituras extremamente agradáveis para o leitor culto e interessado na história do
pensamento político. O autor leu, provavelmente ao longo de toda uma vida, uma massa
impressionante de pensadores, de formuladores e de obras sobre os atores da política externa.
O livro ganharia com uma bibliografia final das obras citadas e um completo índice remissivo
e outro onomástico. Fica a demanda de revisão para uma nova edição dotada desse tipo de
aparato científico.

Rubens Barbosa: O Dissenso de Washington: Notas de um observador privilegiado sobre as


relações Brasil-Estados Unidos (São Paulo: Agir, 2011, 384 p.; ISBN: 978-85-220-1296-1)
Poucos embaixadores deixam memórias completas, e sinceras. Geralmente se trata da
justificação de seus próprios atos, quando no comando das chancelarias. Não é o caso deste
depoimento, cobrindo apenas uma pequena parte da longa carreira de Barbosa, mas uma etapa
das mais importantes na política externa brasileira, quando ela deixou de ser estritamente
diplomática para ser também, ou talvez essencialmente, partidária. Ao relato detalhado de sua
gestão em Washington (1999-2004), numa conjuntura crucial para a política americana e as
relações internacionais, há um longo capítulo final sobre a condução das relações bilaterais
com os EUA na era Lula, no qual ele não deixa de registar a mudança fundamental de visão

57
em relação aos padrões anteriores, uma “motivação ideológica que mal disfarçava a intenção
de se opor aos Estados Unidos e às políticas apoiadas por Washington...” (p. 336).

Daniel Costa Fernandes: A Política Externa da Inglaterra: Análise Histórica e Orientações


Perenes (Brasília: Funag, 2011, 136 p.; ISBN: 978-85-7631-290-1)
O império já não é o mesmo, mas algumas de suas políticas são perenes, como
demonstra este estudo sobre três períodos da diplomacia inglesa: a era Tudor (1485-1603), o
período napoleônico (que viu a Escócia já unida à Inglaterra) e o Congresso de Viena (1789-
1815) e, uma fase bem recente, a política externa do governo trabalhista, de 1997 a 2010. Em
cada um dos períodos, separados por dois séculos, o autor analisa o sistema internacional, a
situação da Inglaterra nesse contexto, o papel que ela podia exercer (a política de poder), o
processo decisório na formulação dessa política (entrado no parlamento) e o instrumento
principal para a defesa do interesse nacional (a projeção do poder naval). Nos dois primeiros
momentos, a Inglaterra estava claramente em ascensão, imperial em sua boa forma; no
terceiro e último, teve de contentar-se em ser a força auxiliar do novo império (já não tão
ascendente...).

Sidnei J. Munhoz e Francisco Carlos Teixeira da Silva (orgs.): Relações Brasil-Estados


Unidos: séculos XX e XXI (Maringá: Editora da UEM, 2011, 576 p.; ISBN: 978-85-7628-372-
0)
Um único diplomata comparece nesta coletânea de estudos sobre as relações bilaterais
por historiadores e cientistas políticos: Paulo Roberto de Almeida, com um trabalho sobre
essas relações durante os dois governos FHC (1995-2002). Ele aproveita para rever o padrão
histórico do relacionamento, examina a emergência dos contenciosos na era militar e na
redemocratização e constata a melhoria do ambiente, no contexto das boas relações pessoais
que mantinham FHC e Bill Clinton. A existência de diferenças de opinião quanto às políticas
regionais ou, por exemplo, a divergência de interesses no campo comercial não impediram
uma grande convergência entre os dois países. A era Lula-Bush, a despeito da vontade
proclamada de intensificar os laços, viu as divergências crescerem novamente. Era a
diplomacia soberana, ativa e altiva, em ação. Há que tentar outra vez...

Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil: a


diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN
978-85-216-2001-3)
Uma síntese acadêmica sobre a metodologia das relações internacionais do Brasil,
uma compilação de largo espectro sobre a produção historiográfica acumulada a esse respeito,
uma análise das diplomacias comercial e financeira do Brasil desde o final da Segunda Guerra
Mundial, sem esquecer as crises financeiras e a tendência à regionalização comercial. A
terceira parte integra estudos sobre a posição do Brasil no contexto da ordem global, com
destaque para questões de segurança, assimetrias em relação às grandes potências e a
governança econômica mundial, no contexto do multilateralismo dos séculos XIX e XX. Uma
bibliografia abrangente das obras mais importantes sobre a interface internacional do Brasil
completa essa consolidação da pesquisa acadêmica realizada por um conhecedor prático do
terreno balizado.

58
Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 368 p.;
ISBN: 978-85-7129-581-0).
Negociador que presidiu, por assim dizer, ao nascimento do Mercosul, o autor está
capacitado para contribuir com seu depoimento de testemunha de primeira mão ao
esclarecimento das principais dificuldades que rondavam – ainda rondam – a consolidação
desse bloco sui generis de integração econômica com pretensões a ser mais do que um
simples agrupamento de liberalização comercial. A maior parte dos textos, fotografias de
ocasião ou reflexões a quente enquanto o bloco era construído, é dos anos 1990, anteriores,
portanto, às crises políticas e econômicas do final da década, que não parecem terem sido
inteiramente superadas. A “nota introdutória” do ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia acha que
o livro poderia ser chamado “Presente na Criação”, numa evocação das famosas memórias de
Dean Acheson. Exagerado?

Fernando Pimentel: O Fim da era do petróleo e a mudança do paradigma energético


mundial: Perspectivas e desafios para a atuação diplomática brasileira (Brasília: Funag,
2011, x p.; ISBN:978-85-7631-308-3)
O trabalho, explícito em seu imenso título, tinha sido concluído em fevereiro de 2009,
em meio à primeira fase da atual crise mundial, com os preços do petróleo e outras matérias
primas despencando, junto com o comércio mundial e algumas dezenas de bancos nos EUA e
na Europa. O autor preparou uma introdução em julho de 2011, atualizando os dados para a
nova fase da crise, desta vez de crises de dívidas soberanas dos países europeus, mas afetando
igualmente os mercados do petróleo e de outra commodities. Entre uma e outra fase, o status
petrolífero do Brasil mudou, e agora o país tem condições de adentrar na economia mundial
do petróleo não mais como mero consumidor, mas como grande produtor. Paradoxalmente, o
mundo caminha para a era pós-petróleo, e o Brasil precisa se adaptar a essa realidade: sua
situação parece bastante confortável, mas não conviria acomodar-se nessa condição.

Alberto da Costa e Silva (coordenador); Rubens Ricupero (colaborador): História do Brasil


Nação: 1808-2010; vol. 1: Crise Colonial e Independência: 1808-1830 (Rio de Janeiro:
Objetiva, 2011, 280 p.; ISBN: 978-85-390-0275-7)
Dois diplomatas neste primeiro volume de uma coleção que está sendo preparada em
coordenação com uma equipe espanhola, focando os 200 anos das autonomias latino-
americanas: o próprio coordenador do volume, acadêmico Costa e Silva, que, ademais de
assinar uma introdução sobre as “marcas do período”, responde também por um primeiro
capítulo sobre população e sociedade; Rubens Ricupero traça o panorama do “Brasil no
mundo” nesse período, desde os fatores externos da independência até o fracasso da guerra na
Cisplatina e o envolvimento de D. Pedro I com os problemas da ex-metrópole. Ambas as
bibliografias são literatura secundária, mas dentre autores consagrados. Existem ainda
capítulos sobre a vida política, o processo econômico e a cultura. Uma obra doravante
indispensável.

Eugenio Vargas Garcia: O Sexto Membro Permanente: o Brasil e a criação da ONU (Rio de
Janeiro: Contraponto, 2011, 458 p.; ISBN: 978-85-7866-044-4)
O autor vem construindo uma obra consistente de história diplomática brasileira:
primeiro, pelo exame da participação – e espetacular saída – do Brasil na Liga das Nações;
depois, pelo exame da política externa na década de vinte, passando também por compêndios
cronológicos e de documentos históricos; agora, por esse muito bem construído relato
59
histórico sobre nossa quase aceitação como membro do CSNU, em 1945. Como para as obras
anteriores, a leitura cuidadosa dos arquivos brasileiros, a consulta a fontes externas
indispensáveis, o encadeamento dos documentos e dos depoimentos, tudo isso numa
linguagem fluída, como convém aos historiadores que escrevem para o grande público. O
poder de veto foi usado de forma preventiva, contra o Brasil; sobrou um gosto amargo que
alguns buscam hoje superar.

Gelson Fonseca: Diplomacia e Academia: um estudo sobre as análises acadêmicas sobre a


política externa brasileira na década de 70 e sobre as relações entre o Itamaraty e a
comunidade acadêmica (Brasília: Funag, 2011, 248 p.; ISBN: 978-85-7631-349-6)
Trata-se de tese de CAE, defendida em 1981, e publicada pela primeira vez com
pequenas alterações cosméticas: a temática está explícita no longo subtítulo e pode-se dizer
que a tese inaugurou a abertura do Itamaraty à academia, com a criação do IPRI, em 1985
(como sublinham os apresentadores institucionais). O próprio autor faz um posfácio de
esclarecimentos sobre como o trabalho foi construído, ainda no regime militar, mas já num
momento de abertura gradual. Num prólogo, um dos membros da banca, o embaixador
Rubens Ricupero destaca justamente o princípio democrático como o eixo central do trabalho,
mas traça também o percurso de predecessores a esse tipo de trabalho. Os capítulos 2 e 3 da
tese fazem um exame de toda a bibliografia relevante sobre a diplomacia brasileira publicada
até final dos 70.

Maria Theresa Diniz Forster: Oliveira Lima e as Relações Exteriores do Brasil: o legado de
um pioneiro e sua relevância atual para a diplomacia brasileira (Brasília: Funag, 2011, 220
p.; ISBN: 978-85-7631-331-1)
Um dos mais importantes historiadores diplomatas, senão o maior, Oliveira Lima
andava um tanto esquecido, a despeito mesmo da republicação de alguns dos seus livros nos
últimos anos. Este “embaixador intelectual do Brasil” mereceu uma bem pesquisada tese de
CAE, que, depois de traçado seu perfil biográfico, coloca em perspectiva suas contribuições à
diplomacia brasileira, tanto a de cem anos atrás, quanto a atual. A autora compulsou todas as
obras do “Dom Quixote Gordo”, leu tudo o que se escreveu sobre ele e oferece suas próprias
reflexões e ponderações sobre esse bibliófilo que morreu num exílio auto-imposto e que legou
sua preciosa biblioteca à Catholic University of America. Desavenças com figuras
importantes da República estão na raiz desse limbo: uma grande perda, para a diplomacia e
para o Brasil.

Sarquis José Buainain Sarquis: Comércio Internacional e Crescimento Econômico no Brasil


(Brasília: Funag, 2011, 248 p.; ISBN: 978-85-7631-335-9)
Poucos diplomatas são doutores em economia; pouquíssimos, se algum, dispõem de
sólido conhecimento em econometria como o autor; e provavelmente só existirá um, o próprio
Sarquis, contemplado com um prêmio pela London School of Economics pela excelência de
sua tese em macroeconomia e finanças internacionais. Estes méritos já revelam um pouco da
qualidade desta tese de CAE que, não apenas estuda as relações que existem entre os dois
conceitos do título, nos planos teórico e empírico, como também reconstitui a experiência
brasileira – comparativamente a exemplos latino-americanos e asiáticos – nessas áreas e, mais
importante, formula recomendações de política econômica externa, extremamente bem
fundamentadas em setores como comércio, finanças e câmbio. Vale a recomendação de Adam
Smith: o segredo está em educar sua população.
60
Ademar Seabra da Cruz Junior: Diplomacia, desenvolvimento e sistemas nacionais de
inovação: estudo comparado entre Brasil, China e Reino Unido (Brasília: Funag, 2011, 292
p.; ISBN: 978-85-7631-327-4)
Poucos países poderiam ser tão diferentes entre si quanto os três escolhidos por este
doutor em Sociologia pela USP, mestre em Filosofia das Ciências Sociais pela London
School of Economics, para propor uma espécie de “diplomacia da inovação” no esforço
brasileiro pelo desenvolvimento. Os exemplos selecionados são, de fato pertinentes, numa
perspectiva “schumpeteriana-marxista”, ainda que isso seja surpreendente, já que eles são
“atores desiguais e assimétricos da globalização”. No entanto, as políticas de China e Reino
Unidos são ilustrativas de estratégias coerentes de inovação; o Brasil faria bem em estudar e
adaptar certas características. Ambos, em suas dimensões próprias, têm muito a ensinar ao
Brasil. O Itamaraty tem funções a cumprir nesse processo; o autor mostra quais são: montar
redes de informação, conectar os diversos agentes nacionais e capturar parte de nossa diáspora
científica.

Miguel Gustavo de Paiva Torres: O Visconde do Uruguai e sua atuação diplomática para a
consolidação da política externa do Império (Brasília: Funag, 2011, 212 p.; ISBN: 978-85-
7631-329-8)
Paulino José Soares de Sousa teve atuação destacada nos dois momentos em que
chefiou o ministério dos negócios estrangeiros, no final dos anos 1840 e no início da década
seguinte, confrontando a diplomacia arrogante das grandes potências e o arbítrio do caudilho
Rosas, da vizinha Argentina, a quem venceu pelas tratativas diplomáticas (mentor que foi da
missão do Visconde de Rio Branco) e também com o auxílio das armas. O autor realizou
extensa pesquisa nas fontes primárias para reconstituir os principais episódios em que
Uruguai se destacou: “foi uma pedra no caminho”, escreve ele, de vários representantes
estrangeiros, tal o seu empenho na defesa dos interesses brasileiros. Uma futura edição
precisa corrigir os erros de atribuição de trabalhos a Leslie Bethell, quando este foi de fato o
coordenador da série de história da América Latina.

José Estanislau do Amaral: Usos da história: a diplomacia contemporânea dos Estados


Bálticos. Subsídios para a política externa do Brasil (Brasília: Funag, 2011, 216 p.; ISBN:
978-85-7631-309-0)
Os três países bálticos tiveram, como vários outros infelizes vizinhos da Rússia
czarista, da União Soviética comunista e da Alemanha expansionista e militarista, uma
história movimentada, feita de guerras, ocupação e de “inundação” étnica; obtida a
independência ao final da Primeira Guerra Mundial, ela foi varrida na Segunda; novamente
autônomos ao final da Guerra Fria, desta vez com a dupla garantia da OTAN e da UE, eles
confirmam a resiliência dos povos resistentes às tentativas de submissão. Esta tese de CAE
examina sua política externa e as implicações diplomáticas para o Brasil: reconhecemos a
independência de 1921 e novamente a de 1991, sem jamais legitimar a anexação soviética de
1940. São Paulo tem, depois de Chicago, a segunda colônia de lituanos no mundo. Bom
começo para intensificar as relações.

61
Luiz Fernando Ligiéro: A Autonomia na Politica Externa Brasileira - a Política Externa
Independente e o Pragmatismo Responsável: momentos diferentes, políticas semelhantes?
(Brasília: Funag, 2011, 412 p.; ISBN: 978-85-7631-348-9).
Tese de doutoramento defendida na UnB, constitui uma demonstração cabal da
famosa mudança na continuidade, que caracterizaria, segundo a quase totalidade dos
diplomatas, a diplomacia brasileira (ou, pelo menos, a do Itamaraty). Mas ocorrem mudanças
surpreendentes, como justamente os dois exemplos aqui enfocados: a PEI, do início dos anos
1960, e a política de Geisel e de Azeredo da Silveira, mais de uma década depois. A
comparação se dá tanto pelo lado dos discursos, quanto pelo da implementação das políticas,
nas diversas áreas. O exame é exaustivo e o leque de autores consultados é impressionante,
sem esquecer os depoimentos dos principais atores, direta (testemunho gravado) ou
indiretamente (arquivos do Cpdoc, por exemplo). Falta uma bibliografia consolidada nesta
edição.

San Tiago Dantas: Política Externa Independente – Edição Atualizada (Brasília: Funag, 2011,
372 p.; ISBN: 978-85-7631-304-5)
San Tiago Dantas é, por assim dizer, um diplomata honorário, tendo sido chanceler no
parlamentarismo e, antes disso, delegado brasileiro em diversas reuniões internacionais. A
utilidade desta reedição é a de não apenas compilar novamente os textos (discursos e
palestras) já editados pela Civilização Brasileira em 1962, acrescida de cinco novos originais,
dois deles de diplomatas: um do embaixador Afonso Arinos, publicado originalmente em seu
livro Atualidade de San Tiago Dantas (Lettera, 2005), e outro, precioso, do embaixador
Gelson Fonseca que introduz os “colóquios da Casa das Pedras”, reuniões de planejamento
político que San Tiago conduzia com diplomatas, em 1961, sobre temas relevantes da agenda
diplomática brasileira. Celso Amorim e Marcílio Marques Moreira também comparecem com
relatos pessoais e reflexões esclarecedoras.

Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme: O Tratamento Especial e Diferenciado dos Países
em Desenvolvimento: do GATT à OMC (Brasília: Funag, 2011, 236 p.; ISBN: 978-85-7631-
342-7)
O Brasil se orgulha de ser um país em desenvolvimento: tem direito a SGP e menores
obrigações sob o sistema multilateral de comércio. Esta dissertação de mestrado do Rio
Branco refaz toda a história da construção conceitual do tratamento especial, desde o primeiro
GATT até sua transformação na atual OMC, examinando todos os instrumentos e normas e
discutindo a questão do ponto de vista das teorias que fundamentam essa caracterização,
como por exemplo o “embedded liberalism”; também examina, do ponto de vista ética, os
argumentos filosóficos que sustentam essa posição, como por exemplo em Aristóteles, John
Rawls e Amartya Sen. Os anexos são preciosos, pois além da cronologia detalhada, traz o
sumário dos dispositivos relativos a esse mecanismo em todos os instrumentos do sistema
multilateral de comércio e finaliza com entrevistas com três especialistas na questão.

Fernando de Mello Barreto: A Politica Externa Após a Redemocratização; tomo 1: 1985-


2002; ; tomo 2: 2003-2010 (Brasília: Funag, 2012, 746 e 670 p.; ISBN: 978-85-7631-363-2 e
978-85-7631-382-3)
Continuidade formal e substantiva das duas obras anteriores, Os Sucessores do Barão
(para os períodos 1912-1964, e 1964-1985, respectivamente), os dois volumes, agora
enfeixados sob o signo da redemocratização, cobrem minuciosamente, gestão por gestão,
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todos os atos e fatos da diplomacia brasileira, segundo uma divisão temática
predominantemente geográfica (por regiões e países relevantes), mas também quanto às áreas
de política multilateral e de economia externa, terminando pelo próprio serviço exterior
brasileiro. São manuais indispensáveis para seguir o itinerário da diplomacia conduzida pelo
Itamaraty (no primeiro período: 1985-2002) e, adicionalmente (no segundo período: 2003-
2010), sob influência partidária; mais racionais do que os repertórios do MRE (uma simples
compilação de pronunciamentos oficiais), os relatos de cada gestão seguem, no entanto, o
discurso oficial, em todos os seus matizes.

Luís Cláudio Villafañe G. Santos: O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade


brasileira (São Paulo: Unesp, 2012, 176 p.; ISBN: 978-85-393-0244-4)
Na sequência do anterior, O Dia em que Adiaram o Carnaval (2010), que também se
interrogava sobre as peculiaridades da identidade brasileira, esta obra analisa as ideias e as
obras do Barão no que elas têm de relevante para a criação de uma nacionalidade brasileira,
naquilo que ela tem de mais significativo, que são os símbolos identitários da nação. Ele recua
até a própria formação da diplomacia imperial (saquarema) e analisa de modo competente
como, e com quais símbolos, o Barão veio a ser identificado com uma nova política externa,
completando, no plano conceitual e na prática, a transição da velha ordem monarquista para o
novo regime republicano. Pelo fato de ter completado o mapa do país, e de ser, também, um
historiador, o Barão moldou, até hoje, a interpretação que se há de ter sobre a política externa
do Brasil. Somos todos prisioneiros do Barão, ainda.

Antonio Augusto Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito


Internacional Público; vol. I: período 1889-1898; vol. II: período 1899-1918; vol. III:
período 1919-1940; vol. IV: período 1941-1960; vol. V: período 1961-1981; vol. VI: Índice
Geral Analítico (2a. ed.: Brasília: Funag, 2012, 304, 588, 392, 448, 428 e 288 p.; ISBN: 978-
85-7631-367-0; 978-85-7631-368-7; 978-85-7631-369-4; 978-85-7631-370-0; 978-85-7631-
371-7; 978-85-7631-372-4)
Obra única no gênero, e até agora não imitada (para os períodos anterior e posterior aos
cinco cobertos no plano da cronologia, e mais um volume de índice analítico), o excepcional
trabalho do ex-consultor jurídico do MRE, e atual juiz da corte da Haia, constitui um
instrumento extremamente útil a todos os pesquisadores que pretendam identificar e
reproduzir os fundamentos da prática brasileira do direito internacional público, ou seja, das
próprias bases da política externa, tendo em vista a forte adesão da diplomacia brasileira aos
princípios e normas do direito. Retirados da “poeira” dos arquivos do Itamaraty e dos outros
poderes, foram compilados os documentos mais representativos dos atos internacionais, da
condição dos Estados, da regulamentação dos espaços, da condição das organizações
internacionais e dos indivíduos, solução de controvérsias, conflitos armados e direito
humanitário. Magnífico empreendimento!

Felipe Hees e Marília Castañon Penha Valle (orgs.): Dumping, Subsídios e Salvaguardas:
Revisitando aspectos técnicos dos instrumentos de defesa comercial (São Paulo: Singular,
2012, 486 p.; ISBN: 978-85-86626-62-3)
Dois diplomatas comparecem neste importante livro sobre a defesa comercial no Brasil: o
organizador, que assina três densos capítulos – sobre o itinerário histórico do dumping e seus
efeitos no comércio, sobre as negociações antidumping na rodada Doha, e sobre os aspectos
técnicos na definição dos níveis de antidumping –, e que é também chefe da Defesa
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Comercial no MDCI; seu colega Eduardo Chikusa, responsável pela mesma área no
Itamaraty, que fecha o volume com um estudo sobre a legislação sobre circunvenção no
Brasil. Os outros quinze capítulos, sobre os demais temas do título, são em geral assinados
por funcionários do Decom-MDIC ou no setor privado. O livro é relevante para os
interessados nessa problemática, mesmo se, na apresentação, o ministro setorial se orgulha de
que o Brasil tenha sido o país que mais iniciou investigações antidumping desde 2010. Seria
essa uma marca de distinção?

André Heráclio do Rêgo: Os Sertões e os Desertos: o combate à desertificação e a política


externa brasileira (Brasília: Funag, 2012, 204 p.; ISBN: 978-85-7631-380-9)
Autor de várias obras sobre a dimensão da política tradicional no Nordeste, com pleno
conhecimento de causa – já que herdeiro de uma das oligarquias regionais –, André Heráclio
examina agora, nesta tese de CAE, a dimensão ecológica e política do processo de
desertificação, examinando não só toda a bibliografia relevante (30 páginas de obras) que
trata do fenômeno no Brasil e no mundo, mas também o tratamento diplomático dado ao
problema nos foros regionais e multilaterais. A atuação diplomática do Brasil e o papel das
grandes convenções multilaterais da área climática e ambiental são examinados com extrema
precisão; a temática oferece, justamente, grandes possibilidades de cooperação bilateral,
regional e multilateral, não apenas quanto aos meios de se combater o fenômeno, mas
igualmente nas tarefas de gestão dos recursos naturais, especialmente os hídricos. A obra
permanecerá como de referência nessa área, hoje um pouco “deserta”.

Maria Feliciana Nunes Ortigão de Sampaio: O Tratado de Proibição Completa dos Testes
Nucleares (CTBT): Perspectivas para sua Entrada em Vigor e para a Atuação Diplomática
Brasileira (Brasília: Funag, 2012, 462 p.; ISBN: 978-85-7631-379-3)
Metade desta maciça tese de CAE constitui uma história exemplar da questão do
armamento e desarmamento nucleares, desde as origens, em 1945, até a fase atual, de
preparação para a entrada em vigor do CTBT (o que não irá ocorrer, por falta de apoio dos
EUA), com uma análise paralela dos mecanismos e instrumentos que compõem esse
instrumento (talvez) relevante da não proliferação. A outra metade são documentos técnicos,
cuja coleta foi facilitada pelo trabalho da autora na comissão de implementação do tratado. A
análise das políticas dos países mais sensíveis (ou mais complicados) é exaustiva, concluindo
a tese pelo exame da atitude brasileira: obviamente, o Brasil apoia o esforço do CTBT, mas
também acredita na eliminação completa das armas nucleares. Pena que nem um, nem outro,
vão se realizar, mas isso a autora não diz...

Renato Mendonça: A Influência Africana no Português do Brasil (Brasília: Funag, 2012, 195
p.; ISBN: 978-85-7631-399-1)
Quinta edição de obra publicada em 1933, quando seu autor, um jovem de apenas 21
anos, passava no concurso para cônsul de terceira classe. Comemorando os cem anos de seu
nascimento, tem apresentação do Embaixador Alberto da Costa e Silva e prefácio da
professora Yeda Pessoa de Castro, especialista na área. O livro ganhou o prêmio Erudição da
Academia Brasileira de Letras, tendo sido prefaciado por Rodolfo Garcia, da Biblioteca
Nacional. Metade do texto é uma incursão, hoje datada, pela etnografia e linguística africana,
seguida de uma breve história do tráfico, da identificação dos povos importados e da fonética
e morfologia do Quimbundo, ademais de estudos sobre a influência africana na língua, no

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folclore e na literatura; a outra metade é o vocabulário, propriamente dito. Uma bibliografia
rica completa este trabalho que marcou época.

Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 371 p.;
ISBN: 978-85-7129-581-0)
Segunda edição de obra publicada pessoalmente pelo autor, em 2010, cobrindo os
anos 1989-1999, e que agora vem ampliada com capítulo inicial, elaborado em 2011, fazendo
uma síntese da trajetória do Mercosul, nos seus primeiros vinte anos. Mais do que uma
reconstituição histórica, se trata do depoimento de um negociador que teve papel destacado na
conformação do que foi o Mercosul comercial, até o bloco ser desviado para objetivos mais
políticos a partir de 2003. O texto de síntese introdutória oferece, em suas 90 páginas, um
relato das diversas etapas vencidas, das dificuldades enfrentadas e das razões pelas quais o
Mercosul adotou o seu formato de união aduaneira incompleta, de natureza
intergovernamental. Obra essencial para todo historiador que pretenda escrever a história real,
não alguma fábula ideal, sobre o Mercosul em sua verdadeira essência.

Adolpho Justo Bezerra de Menezes: O Brasil e o mundo ásio-africano (Brasília: Funag, 2012,
372 p.; ISBN: 978-85-7631-387-8)
Publicado originalmente em 1956 e legítimo predecessor da atual política Sul-Sul, o
livro em questão foi a primeira, e durante muitos anos a única, análise das duas regiões do
ponto de vista da diplomacia brasileira, não apenas circunscrita às realidades coloniais então
predominantes nos continentes africano e asiático, uma vez que também trata das primeiras
conferências (Colombo, Bogor, Bandung) que marcariam a era pós-colonial. Reconhece a
liderança americana, mas fala de uma futura liderança a brasileira, propondo medidas para a
atuação diplomática brasileira nas duas regiões, inclusive no que se refere a uma comunidade
luso-brasileira, antecipando também, portanto, os esforços atuais em torno da CPLP. São
transcritos trechos de documentos oficiais, mas também testemunhos recolhidos pessoalmente
pelo autor, o que converte o livro, na prática, em fonte primária.

Vasco Mariz: Depois da Glória: ensaios históricos sobre personalidades e episódios


controvertidos da história do Brasil e de Portugal (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012, 376 p.; ISBN: 978-85-200-1058-7);
Conhecido historiador, fino analista e alto vulgarizador da música, da cultura e da
diplomacia do Brasil, o autor teve uma carreira diplomática exemplar, desde 1945, em postos
importantes, nos quais sempre divulgou as coisas do país, para dentro e para fora. A oito anos
de seu centenário, Vasco Mariz nos brinda com ensaios já publicados em revistas e com
conferências em torno do que fizeram 18 personagens escolhidas (de Cabral a Nabuco) depois
que alcançaram fama e prestígio públicos. Muitos deles são nossos velhos conhecidos,
portugueses, brasileiros ou estrangeiros (como Estácio de Sá, Vieira ou Nassau), mas alguns
são relativamente ignotos, como o general italiano Giovanni di Sanfelice, Conde de Bagnuoli,
que salvou a Bahia dos holandeses de Nassau, justamente, mas a serviço da coroa espanhola.
Sabem os baianos que ele chegou a ser designado governador provisório de Salvador? Vasco
Mariz nos revela, essa e outras.

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Gustavo Henrique Marques Bezerra: Da Revolução ao Reatamento: A Política Externa
Brasileira e a Questão Cubana (1959-1986 (Brasília: Funag, 2012, 376 p.; ISBN: 978-85-
7631-381-6)
Poucos temas diplomáticos, ou políticos, foram, e são, tão passionais, no espectro
ideológico, interno e externo, quanto a revolução cubana e as reações do Brasil em relação
aos rumos do único regime marxista do hemisfério. Cuba é, ao mesmo tempo, um assunto
diplomático e de política interna, com todas as paixões associadas a esse dossiê, que começa
em 1959 e vem aos nossos dias. Esta tese de CAE, revista e ampliada, segue o relacionamento
bilateral, e as implicações da revolução cubana durante a Guerra Fria, desde o ano inaugural
da revolução até o reatamento em 1986, passando pelas crises de 1962 (suspensão de Cuba da
OEA e crise dos mísseis soviéticos) e pelo rompimento, em 1964. Modelo de pesquisa
histórica, e de apresentação de documentos diplomáticos, a nova obra é metodologicamente
impecável, perfeita no plano redacional e excepcional no desenvolvimento do argumento.

Rubens Antonio Barbosa: Interesse Nacional & Visão de Futuro (São Paulo: Sesi-SP Editora,
2012, 328 p.; ISBN: 978-85-8205-059-0)
Nada do que é nacional, e do que é internacional, lhe é indiferente, ou seja, quase tudo.
Consistente com o suposto de que, em face de tendências nefastas ao pensamento único,
vindas de certas áreas, quem tem algo a dizer deve justamente se manifestar, o ex-embaixador
na Aladi, em Londres e em Washington vem se expressando continuamente nas páginas do
Estadão e do Globo desde que deixou a diplomacia ativa. São 76 artigos de jornal, mais
quatro entrevistas e dois depoimentos no Senado, sobre a (des)ordem econômica global, o
comércio exterior brasileiro, a política externa, a integração e o Mercosul, bem como sobre
assuntos de defesa nacional. Um panorama importante do que vem ocorrendo nos governos
Lula e Dilma, sempre sob a perspectiva do “Interesse Nacional”, que é, aliás, o nome da
revista que ele edita desde 2008. Que fôlego!

Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011 (3a. ed.; revista
e ampliada; Brasília: Funag, 2012, 986 p.; ISBN: 978-85-7631-390-8)
A obra retoma o trabalho já conduzido nas duas precedentes edições, compilando, neste
novo e alentado volume, os discursos da fase final do governo Lula e o primeiro da atual
administração. Ademais de permitir ao pesquisador o contato com esse conjunto de
posicionamentos gerais da diplomacia brasileira no plano multilateral, a obra situa e analisa
cada um dos pronunciamentos no contexto do sistema internacional e dos desafios colocados
ao Brasil, em cada uma das 66 assembleias gerais. Os chanceleres apresentam a obra em suas
respectivas edições (Lampreia, Amorim e Patriota); mais interessantes, porém, são as
introduções gerais do organizador, em cada uma delas, e, sobretudo, seus comentários
iniciais, para cada ano, aos temas principais da atualidade internacional, regional e nacional.
Trabalho precioso de documentação e de avaliação da nossa presença diplomática e do nosso
mais acalentado desejo: a cadeira permanente no CSNU.

Francisco Doratioto: Relações Brasil-Paraguai: afastamento, tensões e reaproximação


(1889-1954) (Brasília: Funag, 2012, 552 p.; ISBN: 978-85-7631-384-7)
O autor é “quase-diplomata”, por virtudes de matrimônio e pela longa colaboração
intelectual com o MRE, de cuja academia diplomática é professor, e por sua presença em
bancas do CAE. Já renomado por outros trabalhos acadêmicos sobre o país vizinho, além da
monumental revisão historiográfica sobre a “maldita guerra” da Tríplice Aliança, o
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historiador retraça, nesta obra que é sua tese de doutorado na UnB, o turbulento itinerário
político do Paraguai, em especial no que concerne as relações, sempre ambivalentes, com
Argentina e Brasil. Publicada primeiramente em espanhol, sob o título de Una Relación
Compleja, o trabalho segue a influência política brasileira na política interna guarani, desde o
início da República até a ascensão de Stroessner, passando pelo relativo afastamento, na era
do Barão, até o adensamento das relações a partir da Segunda Guerra.

Luís Cláudio Villafañe G. Santos: Duarte da Ponte Ribeiro: pionero de la diplomacia y


amistad entre Brasil y Perú (Lima: Embajada de Brasil en el Perú, 2012, 132 p.; ISBN:
978-612-46323-0-3)
Belo exemplo de promoção cultural, a ser seguido em casos semelhantes: o relato
original, tanto diplomático quanto antropológico, num estilo de Baedecker político, que o
ministro brasileiro nas repúblicas do Pacífico, uma espécie de Indiana Jones a cavalo, fez de
suas andanças e peripécias na então Confederação Peruana-Boliviana e do que observou da
situação econômica, política, social, diplomática e militar na região andina, durante mais de
duas décadas, na primeira metade do século XIX. Ele foi um grande promotor da doutrina do
uti possidetis, que tanto assistiria o Brasil na consolidação das fronteiras nas décadas
seguintes, até Rio Branco. Ele fez mais: deixou descendentes no Peru, pois seu filho se casou
com uma peruana: alguns deles estiveram no lançamento da obra na Embaixada em Lima.

Emerson Coraiola Kloss: Transformação do Etanol em Commodity: perspectivas para uma


ação diplomática brasileira (Brasília: Funag, 2012, 232 p.; ISBN: 978-85-7631-388-5)
Não é fácil realizar o objetivo inscrito no título, e não apenas por razões técnicas ou
econômicas, e sim basicamente por motivo de políticas econômicas (comercial e industrial)
dos principais países produtores e/ou consumidores, a começar pelos EUA e pela UE. A ação
diplomática passa pelo ISO, pela OMC e por foros setoriais, ademais do diálogo e cooperação
com esses grandes parceiros. Mas não só isso: o Brasil apareceu na cena internacional, dez
anos atrás como potencial produtor e exportador do produto e terminou por se tornar um
grande importador de produtores que praticam subsídio e proteção; erros da política nacional,
sem dúvida. A diplomacia pode fazer muito pela meta declarada, mas o governo precisaria
começar não atrapalhando. Isto o autor não diz, claro, mas está implícito em sua magnífica
tese de CAE. Depois da diplomacia do café, temos agora a do etanol e dos biocombustíveis:
todos eles movem o mundo...

Clóvis Brigagão e Fernanda Fernandes (orgs.): Diplomacia brasileira para a paz (Brasília:
Funag, 2012, 292 p.; ISBN: 978-85-7631-389-2)
O livro carece de melhor ordenamento dos trabalhos, mas a contribuição dos diplomatas,
vivos ou não, é preciosa, não apenas por resgatar textos “desaparecidos”, mas também por
reunir diversas perspectivas sobre a temática do título, algumas idealistas, outras mais
realistas. Synesio Sampaio Goes começa por Alexandre de Gusmão e o tratado de Madri
(1750); Joaquim Nabuco comparece com um discurso na Universidade de Chicago em 1908;
Araújo Castro com um artigo de 1978 sobre o sistema mundial da paz (ou não-guerra); segue-
se Oswaldo Aranha, com uma conferência de 1937 na Universidade Bucknell, na Pensilvânia,
e sua abertura dos debates na II AGNU, em 1947; finalmente, uma introdução da
representante brasileira na ONU, Embaixadora Maria Luiza Viotti, em 2011, a uma nota
conceitual do Brasil sobre a paz, mas que deveria ser uma apresentação ao livro. Pode
melhorar...
67
Joaquim Nabuco: My Formative Years (Oxford: Signal Books, 2012, 204 p.; ISBN: 978-1-
908493-66-8)
Tradução de Minha Formação, por Christopher Peterson, com introdução do
historiador Leslie Bethell (Cambridge History of Latin America), um dos grandes nomes do
brasilianismo anglo-saxão. É um empreendimento que a Editora Bem-Te-Vi, associada aos
descendentes de Nabuco, vem seguindo para comemorar o centenário da morte do grande
ascendente, no seguimento da publicação dos volumes resultantes dos colóquios nas
universidades de Yale e Wisconsin em 2009, duas das muitas universidades que acolheram as
reflexões intelectuais do primeiro embaixador do Brasil nos EUA. As edições brasileiras da
obra são bem conhecidas, a última com introdução de Alfredo Bosi, pela Editora 34 (2012);
Bethell enriqueceu muito esta edição, com a contextualização da vida e do pensamento do
grande abolicionista.

Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013,
174 p.; ISBN: 978-85-02-19963-7)
Um pequeno livro, que integra um coleção para “principiantes”, justamente, mas que
sintetiza não apenas o conhecimento teórico, e histórico, sobre a formação dos blocos
comerciais, antes, e sobretudo depois, da formação e consolidação do sistema multilateral de
comércio, mas que expõe, essencialmente, a experiência prática do autor em processos
negociadores dos esquemas preferenciais de comércio, seja no âmbito do Gatt-OMC, seja na
criação do Mercosul, seja ainda no frustrado processo da Alca. A obra faz um balanço dos
aspectos positivos e dos menos benéficos da atual fragmentação do comércio multilateral, em
função da crescente multiplicação de blocos – o chamado minilateralismo – e da
discriminação implícita a alguns deles, inclusive para dentro, como demonstrado na infeliz
involução recente do Mercosul.

André Amado: Por Dentro do Itamaraty: impressões de um diplomata (Brasília: Funag, 2013,
184 p.; ISBN: 978-85-7631-425-7)
Uma boa exposição, e discussão, sobre diferentes aspectos da formação e do
treinamento dos jovens diplomatas, e sobre como é, ou como deveria ser, o processo de
socialização (alguns diriam domesticação) dos candidatos à carreira e seus novos membros.
Pode servir como uma espécie de manual para o Instituto Rio Branco, do qual seu autor já foi
diretor, embora mudar burocracias consolidadas é sempre mais difícil do que continuar do
jeito que está. O livro também poderia se chamar “Por que me ufano do Itamaraty”, pois
parece que sempre fomos excelentes em todas as frentes, desbancando até mesmo diplomatas
de algumas grandes potências. O IRBr, na ideia de seus criadores, em 1946, deveria ser um
centro de “investigação e ensino”, o que falta concretizar; mas o autor quer contribuir para tão
nobre missão.

Manoel Gomes Pereira (org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória (Brasília: Funag,
2012, 748 p.; ISBN: 978-85-7631-413-4)
Um volume dessa magnitude pede mais de dez linhas; elas permitem apenas alinhar os
nomes dos colaboradores diplomatas, junto a muitos outros da academia. Pela ordem do
índice: Georges Lamazière, Vasco Mariz, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Gonçalo Mello
Mourão, Rubens Ricupero, Celso Amorim, Luís Cláudio Villafañe G. Santos, Carlos
Henrique Cardim, Paulo Roberto de Almeida, Gelson Fonseca Jr., Synesio Sampaio Goes
68
Filho, Guilherme Frazão Conduru e Fernando Guimarães Reis. Impossível resumir suas
contribuições nesta nota; elas são, de um lado, eruditamente embasadas em materiais
historiográficos; de outro, apoiadas numa reflexão sobre a permanência do Barão na atual
diplomacia brasileira: sim, ele continua sendo um dos ídolos espirituais, certamente o maior,
nessa Santa Casa.

Augusto César Batista de Castro: Os bancos de desenvolvimento e a integração da América


do Sul: bases para uma política de cooperação (Brasília: Funag, 2011, 176 p.; ISBN: 978-85-
7631-311-3)
Resultando de uma tese de CAE, a obra é uma assemblagem um tanto desigual de
reflexões sintéticas de leituras feitas em três campos metodologicamente distintos: a evolução
da integração latino-americana, as teorias do desenvolvimento econômico e o papel das
entidades multilaterais de financiamento regional, inclusive o BNDES, no primeiro processo;
a mobilização de capitais mediante políticas adequadas forneceria as bases da cooperação,
que, por sua vez, reforçaria a integração. O autor realizou, de fato, um volume bastante
significativo de leituras, mas as premissas para sua síntese são sempre a adequação e a
relevância da política externa brasileira para o objetivo maior da integração, o que tende a
legitimar o caráter prioritário desta última nas concepções da diplomacia nacional, ou seja,
chega-se a um argumento circular.

Ricardo Luís Pires Ribeiro da Silva:


A Nova Rota da Seda: caminhos para a presença brasileira na Ásia central
(Brasília: Funag, 2011, 320 p.; ISBN: 978-85-7631-346-5);

A velha rota da sede era muito mais longa, e talvez fosse mais interessante, do que a
nova, que percorre as antigas satrapias soviéticas da Ásia central: os trechos mais misteriosos
se situavam nos mesmos territórios que hoje correspondem a essas repúblicas supostamente
pós-soviéticas: Cazaquistão, República Quirguiz, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão.
Esta tese de CAE percorre terras que eram incógnitas para a diplomacia brasileira, até uma
data ainda recente. O autor leu uma bibliografia ocidental para abordar a trajetória recente
dessas satrapias convertidas desigualmente à economia de mercado, mais esta do que à
democracia. São onze capítulos substantivos e doze anexos para colocar o Brasil na moderna
rota da seda, feita de combustíveis fósseis e de mercados ainda pouco explorados.

Geraldo Holanda Cavalcanti: A herança de Apolo: Poesia, Poeta, Poema (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012, 462 p.; ISBN: 978-85-200-1161-4)
Poesia rima com diplomacia? Talvez. A obra discorre sobre poesias e poetas em todos os
seus estados, inclusive os maus poetas e os suicidas. Impressionante o volume de citações: as
obras citadas chegam a quase 600, duas ou três por página. Sem prefácio, o livro tem um
posfácio dedicado justamente às citações: na esteira de Montaigne e de Walter Benjamin, o
autor certifica que as suas foram todas garimpadas bona fide nos inumeráveis livros que
percorreu em 50 anos de leituras, para nos oferecer o que é, possivelmente, a maior
enciclopédia do poema já publicada no Brasil. Poesia tem tradução? Talvez, mas ficou
faltando a tradução de serendipity. Em todo caso, os tradutores, para Stephen Spender, são os
“embaixadores oficiais da linguagem” (The Making of a Poem, 1962: p. 113). Bem, pelo
menos isso.

69
Luiza Lopes da Silva: A questão das drogas nas relações internacionais: uma perspectiva
brasileira (Brasília: Funag, 2013, 407 p.; ISBN: 978-85-7631-428-8)
A “diplomacia das drogas”, se ela existe, começa em Xangai, em 1909, mas o problema é
mais antigo, secular mesmo. Surgida em virtude das guerras do ópio, promovidas pelo
imperialismo inglês, até hoje ela não logrou resultados satisfatórios, mas os Estados
continuam tentando limitar os danos. Esta tese de CAE representa o esforço mais abrangente
para circunscrever a questão do ponto de vista brasileiro: do proibicionismo às soluções
alternativas, o caminho ainda é longo para se vislumbrar uma solução aos problemas do
comércio ilegal e crimes associados. O Brasil parece dotado de instrumentos adequados, mas,
como outros países da região, pouco atuou na construção dos mecanismos de controle e pode
ser vítima deles, como também da “diplomacia cocalera”. Muitos sugerem a liberalização;
seria essa a resposta?

Elias Luna Almeida Santos: Investidores soberanos, política internacional e interesses


brasileiros (Brasília: Funag, 2013, 345 p.; ISBN: 978-85-7631-426-4)
O trabalho tem qualidades inegáveis, ao apontar as inúmeras dificuldades no tratamento
dos fundos soberanos. Mas, à diferença do que diz o prefaciador, o FSB não está voltado para
o gerenciamento das reservas brasileiras (tarefa a cargo do Banco Central), e sim tem sido
usado mais para fins de economia doméstica (como a sustentação da Petrobras). O Brasil,
aliás, tem todas as condições para NÃO ter um fundo desse tipo, já que não tem excedentes
fiscais ou de transações correntes. Seja como for, esta tese de CAE ilumina o funcionamento
desses fundos e os problemas a eles associados. Se e quando o Brasil dispuser de um fundo
verdadeiro, a obra oferece desde já um panorama muito claro de como se movimentar no
intrincado cenário de ganhos econômicos e ambições políticas que caracteriza sua existência
corrente.

Celso Amorim: Breves Narrativas Diplomáticas (São Paulo: Benvirá, 2013, 168 p.; ISBN:
978-85-8240-025-8)
Dos cadernos do ex-ministro, notas sobre momentos cruciais, de 2002 a 2004 (e alguns
desdobramentos ulteriores), da diplomacia “ativa e altiva”, como ele designa a sua gestão;
mais adiante se acrescentou “soberana” à dita política externa. Trata-se de uma explicação e
uma justificativa, pro domo sua, de alguns episódios desses anos: a invasão do Iraque pelos
EUA, as tribulações do coronel Chávez, a implosão da Alca, o golpe de truco em Cancun, a
aliança com a Índia e a África do Sul, as origens da Unasul e as andanças pela África. A
história completa ainda vai ser contada, mas os escritos do ministro, entre eles Conversas com
Jovens Diplomatas (2011), podem ser fontes primárias, desde que se confronte interpretações
pessoais com análises independentes: a historiografia serve, justamente, para filtrar tais tipos
de relatos.

Douglas Wanderley de Vasconcellos: Esporte, poder e relações internacionais (3ra. edição;


Brasília: Funag, 2011, 268 p.; ISBN: 978-85-7631-319-9)
Com a Copa das Confederações já realizadas, chegando a Copa do Mundo (2014) e as
Olimpíadas (2016), nada melhor do que refletir sobre os vínculos entre esporte e diplomacia,
o que faz este trabalho antigo, mas ainda plenamente válido. O trabalho vai muito além de
uma simples “diplomacia do futebol”, o que o Brasil já fez no Haiti, por exemplo, e trata da
utilização política, no bom e no mau sentido, das competições esportivas para o atingimento
70
de objetivos estratégicos ou táticos pelos países que possuem algum peso nessa arena. Mas
mesmo pequenas ou grandes coalizões de países (os árabes, por exemplo) podem fazer
pressão “esportiva” sobre outros atores (Israel, no caso) para a obtenção de algum ganho
diplomático. O Itamaraty e o Ministério do Esporte formam um time alinhado a tal objetivo.

José Vicente Sá Pimentel (org.): O Brasil, os BRICS e a agenda internacional (2a. ed., rev.,
ampl.; Brasília: Funag, 2013, 604 p.; ISBN: 978-85-7631-427-1)
O que era Bric virou Brics, embora a expansão numérica, para incluir a África do Sul
coincidiu, na verdade, com a redução do impacto desse grupo de emergentes na economia e
na agenda mundiais, em vista do arrefecimento do crescimento em vários deles. Diplomatas e
acadêmicos trataram, em seminários realizados em 2011 e em 2012, das possibilidades e
limitações dos países membros, sob diferentes aspectos e em abordagens complementares.
Gelson Fonseca, no texto inicial, formula a questão de saber se os Brics conseguirão
influenciar a ordem mundial, e em qual sentido? Rubens Ricupero pergunta, por sua vez, se
eles não seriam os “monster countries” mencionados pelo diplomata americano George
Kennan, o que não deixa de colocar o tema da democracia. Boa questão, aliás ainda não
respondida.

José Guilherme Merquior: Liberalism, Old and New (Boston: Twayne Publishers, 1991, 182
p.; ISBN: 0-8057-8627-9)
Mais de vinte anos depois da morte do mais prolífico intelectual diplomata, vale a pena
revisitar alguns dos seus livros. Este conjunto de ensaios escritos em inglês, no México, seu
último posto como embaixador, foi publicado pouco depois de sua morte, ocorrida em janeiro
de 1991. No mesmo ano era publicada a edição brasileira, e em 1996 uma em espanhol,
quando também foi publicado um volume de ensaios em sua homenagem, Liberalism in
Modern Times: Essays in Honour of José G. Merquior, organizado por seu antigo diretor de
tese na London School of Economics, Ernest Gellner, quando ele tratou da teoria da
legitimidade em Rousseau e Max Weber (mas obviamente não restrita a esses dois autores). O
liberalismo, para Merquior, resiste a qualquer tentativa de aviltamento, tão fortes são os seus
fundamentos. Dixit!

Silvio José Albuquerque e Silva: As Nações Unidas e a luta internacional contra o racismo
(2a ed.; Brasília: Funag, 2011, 292 p.; ISBN: 978-85-7631-338-0).
O multilateralismo contemporâneo foi transitando gradualmente dos grandes temas
interestatais para assuntos humanitários, entre eles o do racismo. Esta tese de CAE analisa os
resultados da conferência de Durban (2001) sobre o racismo e a xenofobia, com ênfase na
atuação diplomática brasileira, antes, durante e depois, até a conferência de revisão, quase
uma década após. Esse período correspondeu à aceleração das próprias políticas nacionais de
caráter afirmativo, com intensa mobilização dos militantes negros, num ativismo emulado
pelo grupo africano no plano multilateral, ambos pretendendo algum resgate de “dívidas
históricas”. José Augusto Lindgren Alves, especialista na questão e favorável às medidas
especiais, acredita que essas demandas, se postuladas de forma exagerada, podem causar uma
sucessão de cobranças de uns povos contra outros, para a maior infelicidade de todos. O
racismo tem muitas faces, sem dúvida.

71
Elisa de Sousa Ribeiro (coord.): Direito do Mercosul (Curitiba: Editora Appris, 2013, 683 p.;
ISBN: 974-85-8192-208-9)
Organizado no âmbito do grupo de estudos sobre o Mercosul do Uniceub, esta
monumental obra, praticamente uma enciclopédia, cobre todos os aspectos do Mercosul, e
não apenas os jurídicos, como seu título poderia deixar entender. Um único diplomata,
professor de Economia do Uniceub, participa com não menos de quatro capítulos neste
volume de referência, Paulo Roberto de Almeida, autor, respectivamente, de: “O Mercosul no
contexto da integração regional latino-americana”, p. 51-69; “O desenvolvimento do
Mercosul: progressos e limitações”, p. 71-92; “Acordos extra-zona”, p. 343-356; e
“Perspectivas do Mercosul ao início de sua terceira década”, p. 661-676. Outros 48 autores
informam tudo o que você sempre quis saber sobre o Mercosul e não tinha a quem perguntar;
agora já tem...

Antônio Augusto Cançado Trindade: Os tribunais internacionais contemporâneos (Brasília:


FUNAG, 2013, 136 p.; ISBN 978-85-7631-424-0; Coleção Em Poucas Palavras)
O autor, eminente jurista mineiro, já foi consultor jurídico do Itamaraty (na
redemocratização), presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, e
é, atualmente, um dos juízes da Corte Internacional de Justiça, na Haia. Autor de uma obra
impressionante no campo do Direito Internacional, em várias línguas, em pouco mais de cem
páginas ele realiza a proeza de sintetizar os fundamentos e o funcionamento dos diversos
tribunais existentes no plano multilateral, nem todos de jurisdição obrigatória, mas possuindo,
cada vez mais competência para realizar uma defesa efetiva dos direitos humanos, lutar contra
a impunidade e aproximar a comunidade humana do ideal de justiça internacional. Esses
órgãos reafirmam a unidade fundamental do direito internacional e o primado do direito sobre
a força bruta. Uma síntese admirável, pelo melhor autor possível.

Ronaldo Mota Sardenberg: O Brasil e as Nações Unidas (Brasília: FUNAG, 2013, 136 p.;
ISBN 978-85-7631-448-6; Coleção Em Poucas Palavras)
O autor é, possivelmente, o mais experiente multilateralista político da diplomacia
profissional, e foi representante do Brasil na ONU em duas ocasiões, ademais de ter exercido
os mais diversos cargos na burocracia federal, inclusive como ministro. O pequeno livro
apresenta a atuação e a pauta do Brasil na ONU, depois de descrever a história pregressa, na
Liga das Nações, e o funcionamento desse órgão, que De Gaulle chamava de “geringonça”
(machin). Como ele diz, a ONU não é nem irrelevante, nem constitui um governo mundial,
mas tem competência para atuar nas mais diversas áreas de interesse coletivo e até doméstico
(com algumas restrições). A cooperação entre os Estados membros, em todas as áreas, é o
principal objetivo da ONU, mas o Brasil pretende ingressar no Conselho de Segurança, não só
por isso, mas por prestígio, também.

Synesio Sampaio Goes Filho: As Fronteiras do Brasil (Brasília: FUNAG, 2013, 140 p.; ISBN
978-85-7631-430-1; Coleção Em Poucas Palavras)
O autor é o maior especialista no tema, depois de ter escrito sobre Alexandre de
Gusmão e todos os demais navegantes, exploradores e diplomatas que aumentaram o pequeno
território conquistado em Tordesilhas. Professor de história diplomática, ele está plenamente
habilitado para apresentar uma temática que já foi tratada por antecessores tão brilhantes
quanto pragmáticos, entre eles o próprio Barão. Este, justamente, resolveu todas as questões
de limites que vinham do período colonial e tinham sido tratados, vários sem conclusão, pela
72
diplomacia imperial. Tanto a obra dos exploradores, quanto a dos diplomatas foi
impressionante, pelo fato de aumentar enormemente o território nacional pela via pacífica. O
Brasil foi “uma história que deu certo” conclui o autor, com base nos dois grandes princípios
de Alexandre de Gusmão: as fronteiras naturais e o uti possidetis.

André Aranha Corrêa do Lago: Conferências de desenvolvimento sustentável (Brasília:


FUNAG, 2013, 202 p.; ISBN 978-85-7631-444-8; Coleção Em Poucas Palavras)
Com um pouco mais de palavras que os demais livros da coleção, Corrêa do Lago se
equipara ao brilhantismo dos colegas ao propor, com notável capacidade de síntese, um
panorama completo das posições brasileiras, desde a conferência de Estocolmo (1972) até a
recente Rio+20, passando justamente pela conferência do Rio, de 1992, que consagra o
conceito expresso no título da obra, e pela Cúpula de Joanesburgo (2002), quando o Brasil
tenta concretizar o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas (ou seja, os
“mais iguais” precisam pagar a conta). Que futuro queremos? O melhor possível, mas isso
passa pelo fornecimento de recursos financeiros e pela transferência de tecnologias para
garantir o tal de desenvolvimento sustentável. Ninguém é contra, mas alguém precisa pagar a
conta, e aí começam as dificuldades, inclusive os bens comuns, mas nacionais.

José Vicente Pimentel (org.): Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes


da Política Externa (1750-1964) (Brasília: FUNAG, 2013, 1138 p. em 3 volumes; ISBN
978-85-7631-462-2)
Um projeto monumental do órgão intelectual do Itamaraty, consistindo em estudos
analíticos sobre 26 personagens relevantes das relações internacionais do Brasil, entre
diplomatas de carreira, políticos e intelectuais que moldaram o pensamento e a ação da
diplomacia brasileira ao longo de mais de dois séculos; começa com Alexandre de Gusmão,
diplomata português nascido no Brasil, e vai até o último chanceler da República de 1946,
Araújo Castro, um diplomata de carreira, passando pelo Barão do Rio Branco e Oswaldo
Aranha. Assinam as colaborações, sob a coordenação do presidente da Funag, quinze
diplomatas e treze acadêmicos, todos especialistas nos personagens ou nos períodos
enfocados nas três partes da obra. Referência doravante indispensável para o estudo do
pensamento diplomático brasileiro, o projeto merece continuar.

73
Segunda Parte
Artigos-resenhas de livros de diplomatas
O Brasil e o ‘Perigo Amarelo’

Valdemar Carneiro Leão:


A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930 - 1934): Contornos Diplomáticos
(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais –
IPRI, 1990, 360 p.; Coleção Relações Internacionais nº 10)

Não há nada que incomode mais a boa consciência dos povos do que o desafio da
alteridade e, nesta, o contato forçado com etnias e culturas diversas. O racismo, junto com a
estupidez, é provavelmente um dos fenômenos mais bem disseminados na história da
humanidade, mais entranhado, talvez, no inconsciente coletivo do que a própria religião e
muitos hábitos ancestrais.
A primeira metade do século XX ficou conhecida pela particular perversidade com
que a questão racial foi “encaminhada” em diversos países e sociedades. Os ideólogos da
pureza racial e do Apartheid nada mais faziam, no entanto, do que colocar em prática diversas
premissas “culturais” que foram sendo elaboradas a partir dos descobrimentos, tomando
impulso no racionalismo “antropológico” do século XVIII para finalmente desembocar nas
teorias “científicas” sobre a supremacia ariana no século XX. Enquanto o debate permaneceu
no terreno propriamente acadêmico, ele não chegou a causar grandes tragédias humanas,
embora suas consequências, a nível social, possam ter representado pequenas tragédias
individuais, como nos demonstrou brilhante estudo do naturalista Stephen Jay Gould a este
respeito (The Mismeasure of Man).
Mais complexa se tornou a questão quando os preconceitos legitimados
“cientificamente” foram transpostos para o terreno da ação pública e derivaram em
discriminação pura e simples, quando não em massacres e genocídios organizados. A esse
respeito, nenhuma outra sociedade (felizmente) conseguiu até aqui igualar a barbárie nazista,
em que pese o terrível custo humano e social de outras “experiências” de eliminação de
“adversários”, como o caso dos armênios sob o jugo turco ou de diversas populações asiáticas
sob ocupação japonesa. Mas, nenhum outro empreendimento humano conseguiu ser tão
cruelmente eficaz quanto a máquina burocrática da “solução final” posta em prática contra
judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias, para não falar da escravização forçada de
populações eslavas inteiras.
A ideologia racista hitlerista, porém, à diferença do holocausto, hélas conhecido
tardiamente, não era particularmente chocante no contexto dos anos 1920 e 30, quando a tese
da “inferioridade inata” de algumas “raças” parecia estar empiricamente justificada, pelo
menos considerando o contexto colonialista e eurocêntrico em que o debate era conduzido.
Ser racista não era, por assim dizer, a suprema imoralidade, sobretudo numa época de
darwinismo social triunfante.
A percepção de uma “ameaça iminente”, representada por povos diferentes, era tanto
mais realista quanto o “outro” discrepava da aparente uniformidade e homogeneidade da
dominação cultural e religiosa europeia: o antissemitismo, especialmente, tinha ampla
aceitação nos mais diversos meios sociais. Abstraindo-se o itinerário da afirmação da ideia
sionista desde finais do século XIX, o antissemitismo constitui um capítulo à parte na história
das tragédias humanas, ademais de ser uma ferida ainda aberta no imenso altar da
imbecilidade social.
Ao lado dele, e quase que num movimento paralelo à expansão japonesa no Extremo
Oriente, teve grande voga naquela época a noção de “perigo amarelo”, refletindo a
consciência da fragilidade europeia em face das “hordas ululantes” de milhões de asiáticos
querendo se projetar sobre um cenário internacional até então dominado por um punhado de
nações industrializadas. A ascensão do Japão imperial, com seu expansionismo guerreiro,
também muito contribuiu para a difusão da noção de perigo amarelo.
A angústia existencial sobre o perigo amarelo também se refletiu entre nós, no
decorrer da década de 30, quando a sociedade brasileira, mobilizada social e ideologicamente
pelo grande debate político levado a cabo pela Assembleia Nacional Constituinte de 1933-34,
tratou da questão da imigração estrangeira para o Brasil. Com efeito, o processo de
reelaboração constitucional conduzido no quadro da jovem República “liberal” deu um
inusitado destaque ao “problema japonês” no Brasil, ao colocar em debate a questão dos
limites ou impedimentos à imigração de determinadas etnias ou “raças”.
Desde o início dos trabalhos, foram apresentadas emendas tendentes a restringir ou
proibir a imigração africana e asiática, e um deputado chegou mesmo a propor que apenas
fosse permitida a imigração de “elementos da raça branca”. O objetivo aqui, mais do que
proibir a entrada de africanos – que de toda forma já não viriam mais em bases voluntárias e
muito menos como escravos –, era claramente o de impedir a entrada de povos asiáticos, ou
seja o elemento japonês, considerado “de mentalidade estranha, de língua diversa, religião
diferente e positivamente inassimilável”.
O debate na Constituinte não deixa de ser “instrutivo”, quando julgado pelos
argumentos avançados. O principal proponente da proibição, recusando a pecha de racista,
afirmava candidamente: “... se já prestamos um tão grande serviço à humanidade na
mestiçagem do preto, é o bastante. Não nos peçam outras coisas... (...) A do amarelo, a outrem
78
deve competir”. O problema era também colocado em termos de “defesa nacional”, de
“segurança da pátria”, ou mesmo de vida ou morte do Brasil: “Se não se acautelar... o Brasil
dentro em pouco será uma possessão japonesa. (…) Aqui será o Império do Sol Poente... (…)
O expansionismo japonês, aquilo que Mussolini chamou o ‘imperialismo dinâmico do Japão’,
segue uma ordem invariável: infiltração, esfera de influência, absorção, ou se quiserem,
imigração, corealização [sic], japonização (…). Nós estamos no segundo período - esfera de
influência”. Não faltavam também os que viam no “número enorme de psicopatas
estrangeiros” nos manicômios nacionais – alguns deles asiáticos, descritos como
“esquizoides” – mais uma prova “irrefutável” da indesejabilidade da imigração
indiscriminada para o Brasil.
Mas, antes mesmo da Constituinte, a questão racial já se tinha manifestado nas
tribunas da Câmara e na própria sociedade, desde princípios dos anos 20. Ao apresentar, em
1923, projeto de lei restritivo sobre a questão, e que tinha recolhido expressivo apoio na
imprensa e na opinião pública – inclusive do respeitado sociólogo e cientista político Oliveira
Vianna –, um deputado expunha desta forma o lado “estético” do problema: “Além das razões
de ordem étnica, moral, política e social, e talvez mesmo econômica que nos levam a repelir
in limine a entrada do amarelo e do preto, (…) outra porventura existe, a ser considerada, que
é o ponto de vista estético: a nossa concepção helênica de beleza jamais se harmonizaria com
os tipos provindos de uma semelhante fusão racial”.
Esses e muitos outros argumentos edificantes, se é o caso de se dizer, estão
obviamente compilados na magnífica monografia histórica de Valdemar Carneiro Leão, cujo
objetivo principal, contudo, não é o estudo do “perigo amarelo”, estrito senso, no Brasil do
primeiro Governo Vargas. O “perigo amarelo” está, bem entendido, subjacente a esse trabalho
de pesquisa, que reconstitui com mão de mestre uma importante questão hoje relativamente
descurada em nossa historiografia política: a do contexto internacional da política imigratória
nacional. Trata-se, mais propriamente, de uma brilhante análise do comportamento do
Itamaraty em face desse debate interno, na Constituinte, sobre a questão imigratória japonesa,
que logo ganhou inevitáveis contornos políticos ao precipitar uma crise diplomática nas
relações do Brasil com o Império do Japão.
O volume agora publicado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, da
Fundação Alexandre de Gusmão, foi originalmente apresentado como tese de conclusão ao
Curso de Altos Estudos, do Itamaraty, em que se distinguiu o autor, diplomata de carreira e
graduado em Relações Internacionais pelo Institut d’Études Politiques da Universidade de
Paris. Formalmente, o trabalho se compõe de 180 páginas de denso texto analítico e
79
interpretativo, seguidas de igual volume de anexos informativos, contendo alguns documentos
diplomáticos e diversos discursos e intervenções realizadas na Assembleia Nacional
Constituinte entre janeiro e maio de 1934.
O texto, em si, é dividido em cinco capítulos, tratando, respectivamente, das origens e
desenvolvimento da imigração japonesa no Brasil, do cenário político no início dos anos 30,
do quadro geral das relações Brasil-Japão, inclusive no que concerne os trabalhos da
Constituinte, os contornos diplomáticos da crise e, finalmente, a análise da ação do Itamaraty,
seguidos das conclusões. A extensa bibliografia utilizada confirma que o autor apoiou seu
relato nas melhores fontes primárias disponíveis, com destaque para os expedientes
diplomáticos do Arquivo Histórico do Itamaraty e para os Anais da Assembleia Nacional
Constituinte, ademais de fazer apelo a escritos contemporâneos e jornais da época e a número
considerável de estudos secundários (inclusive dos principais protagonistas envolvidos no
debate imigratório do processo constituinte).
Estruturalmente, os temas mais importantes do estudo estão tratados no item sobre os
trabalhos da Constituinte do terceiro capítulo, no capítulo sobre os contornos diplomáticos da
crise (com destaque para a atuação do Itamaraty) e na parte final, que analisa a ação da
Chancelaria brasileira nas diversas etapas do processo de elaboração constitucional, inclusive
no que respeita as motivações e forma de atuação do Ministério das Relações Exteriores. O
autor fez extenso uso das comunicações diplomáticas trocadas entre Rio de Janeiro e Tóquio
durante a fase aguda da crise, tanto a nível interno, da Chancelaria brasileira, como entre os
dois serviços diplomáticos.
O estardalhaço provocado pelas primeiras emendas apresentadas (“É proibida a
imigração africana e só consentida a asiática na proporção de 5% anualmente sobre a
totalidade dos imigrantes dessa procedência...”; “Só será permitida a imigração de elementos
da raça branca...”) foi contornado no plano diplomático, apesar da repercussão e da polêmica
na imprensa e de uma atuação nem sempre comedida por parte do Gaimusho, o Ministério dos
Negócios Estrangeiros do Japão. O veto (discreto, mas eficaz) do Itamaraty a qualquer
distinção entre “raças” ou nacionalidades nas emendas restritivas da imigração apresentadas
na Assembleia produziu, é bem verdade, efeitos não vislumbrados de início: descobriu-se que,
ainda assim, a cota de 2% do contingente já entrado no País atingia mais os candidatos
japoneses do que os europeus, com o que ficaram satisfeitos os inimigos do “perigo amarelo”.
Para o Itamaraty, a questão de princípio tinha sido resolvida: preservava-se o ingresso de
imigrantes, sem qualquer discriminação, mas restringia-se o número anual em função de uma
norma geral de caráter nacionalista. Restava, é verdade, aplacar os maus humores das
80
autoridades nipônicas, interessadas em preservar um acesso irrestrito em favor de seus
nacionais, o que foi feito nas duas capitais, não sem dificuldades.
Para o autor, “a forma de atuação do Itamaraty ostentava perfeita coerência entre a
vertente interna [iniciativas discretas junto a políticos próximos do Governo] (…) e sua
complementação externa [contato permanente com a Chancelaria japonesa], sem a qual
poderiam ficar a descoberto suas delicadas manobras de bastidores” (p. 162).
Releve-se apenas, como a confirmar uma velha mania do Itamaraty, a opção
preferencial pelas gestões silenciosas, com a imprensa mantida à distância, e uma aversão
declarada pela “diplomacia de praça pública”. Como diz o autor: a ação do Itamaraty “foi de
tal modo cautelosa e de tal maneira privilegiou os canais informais que aparentemente passou
indocumentada. O corolário dessa discrição observada no plano oficial traduziu-se num
comportamento igualmente silencioso perante a imprensa brasileira, à qual o Itamaraty se
absteve, ao longo da crise, de fornecer informações sobre o trabalho que realizava” (p. 175).
Tal parece ser o espírito eterno da Casa de Rio Branco: uma intensa movimentação
diplomática, dispensando as luzes dos meios de comunicação e passando por canais os mais
discretos possíveis.
Constate-se, em todo caso, que nem sempre a opinião pública mostra-se disposta a
acompanhar tal linha de atuação: no caso do debate sobre a imigração japonesa, os agitadores
do “perigo amarelo” aparentemente conseguiram colocar a Nação contra o Itamaraty. Este é
provavelmente o preço a pagar por um método de trabalho (contatos internos e démarches
externas) absolutamente escrupuloso e respeitador das normas geralmente aceitas entre
cavalheiros. O certo é que, durante o que ficou caracterizado como a “crise da imigração
japonesa”, provavelmente mais do que em qualquer outra época de sua já longa história
institucional, o Itamaraty se viu compelido a atuar de forma tão intensa no plano político
interno.
Se a ação do Itamaraty não logrou sucesso total foi devido a duas razões principais:
por um lado, o momento nacional era de clara afirmação nacionalista e de discriminação
racial (um conceito atual para explicar os ‘ares da época’); por outro, o comportamento
internacional do Japão, com sua agressiva política expansionista na região asiática, dificultou
sobremaneira o rechaço da norma constitucional restritiva que finalmente se adotou. Até onde
pode, pelo menos, o Itamaraty conseguiu trazer a retórica parlamentar de volta ao terreno das
realidades internacionais, setor onde a suscetibilidade das nações conta tanto quanto o poder
econômico e político medido em termos objetivos.

81
O mérito principal do trabalho de Valdemar Carneiro Leão não é, contudo, o de ter
mostrado que, quando preciso, o Itamaraty também é capaz de “atirar para dentro”, se ele me
permite tal expressão. Devemos lhe ser gratos, antes de mais nada, pela apreciável corveia de
ter retirado do pó dos arquivos itamaratianos uma história exemplar de “dupla ação”
diplomática, no bom sentido: sincronização perfeita entre negociação externa e atuação
interna. Seu texto é ainda precioso do ponto de vista metodológico: a monografia condensa
um trabalho original de pesquisa, constituindo-se propriamente num paradigma do gênero
“história diplomática”, vertente historiográfica pouco cultivada entre nós. Como tal, ela
mereceria uma divulgação mais ampla do que a habitualmente permitida pelos canais (sempre
discretos, lembre-se) do Ministério das Relações Exteriores.
Louve-se, em todo caso, a iniciativa do IPRI de divulgar regularmente as melhores
teses apresentadas no quadro do Curso de Altos Estudos do Itamaraty. A Coleção Relações
Internacionais já tem dez títulos publicados, mas apenas a metade desse número compõe-se de
trabalhos defendidos no CAE, sendo os demais antologias de textos resultantes de seminários
de estudos e outros temas de atualidade.
Curiosamente, o trabalho de Valdemar Carneiro Leão é, de todos os textos publicados
(e provavelmente das teses apresentadas no CAE), o que mais longe recua no tempo,
buscando no passado os fundamentos de nossa atuação diplomática contemporânea.
Terminada sua viagem histórica e de “volta para o futuro”, Carneiro Leão nos demonstra, de
forma oportuna, a permanência das instituições e a constância dos homens: a do Itamaraty,
que pouco mudou em seu estilo de atuação, e a dos constituintes, que continuam a ver no
estrangeiro uma fonte potencial de ameaça à soberania nacional.
Na verdade, descontada a tão temida, mas inexistente, ameaça de dominação
econômica nipônica, o único “perigo amarelo” em que incorremos nos dias de hoje é o de ver
os papéis dos arquivos oficiais amarelecerem nas estantes sem que o grande público possa ter
acesso a partes substanciais da memória política da Nação. O resto é conversa de “botequim”
(leia-se gabinete) diplomático.

Montevidéu, 5 de setembro de 1990.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: ano XXXIII, n. 129-130, 1990/1, p. 137-141)
e na Revista Brasileira de História
(São Paulo: vol. 11, n. 22, março-agosto 1991, p. 197-213).

82
O Mercosul pela seleção natural

Rubens Antonio Barbosa:


América Latina em Perspectiva: A Integração Regional da Retórica à Realidade
(São Paulo: Edições Aduaneiras, 1991)

O crescente envolvimento das autoridades governamentais e da própria sociedade


brasileira com o Mercosul tende a nos fazer esquecer os antecedentes e etapas anteriores do
processo de integração regional. O desenvolvimento do atual processo integracionista no
Cone Sul latino-americano apresenta características inéditas em relação às experiências mais
ou menos frustradas que o precederam. Mas, não se deve esquecer que a constituição
progressiva do Mercado Comum do Sul retoma uma longa tradição de tentativas
integracionistas no contexto latino-americano, seja de âmbito sub-regional, seja de caráter
propriamente multilateral. Pode-se inclusive dizer que o Mercosul é o resultado de um lento
processo de “seleção natural”, ao cabo do qual os “velhos dinossauros” do passado foram
dando lugar aos “mamíferos” mais ágeis do presente.
Nessa simbologia darwinista, as espécies menos aptas à sobrevivência em novos
ambientes econômicos estariam representadas pela Alalc e, num certo sentido, pela Aladi.
Seus sucessores na “árvore da vida regional” parecem ser o ciclotímico Grupo Andino e o
próprio Mercosul. Paralelamente, a especiação e a busca de novos habitats produz,
continuamente, outros gêneros e espécies de “animais integracionistas”: o G3 (formado pelo
México, Venezuela e Colômbia), a deriva geológica do mesmo México em direção a esse
continente setentrional que responde pelo nome de Nafta (North American Free Trade Area),
a lenta mutação do fenótipo chileno em direção a um “perfil OCDE”, enfim, novas famílias e
classes de agrupamentos bi-, tri- e plurilaterais.
A analogia com a história natural pode não ser a mais apropriada, metodologicamente
falando, para uma exata compreensão do rápido processo de evolução geopolítica por que
passa hoje a América Latina. Mas, ela é oportuna para evidenciar as profundas
transformações econômicas e políticas que, tão inexoravelmente como o movimento de placas
tectônicas subterrâneas, estão alterando progressivamente a cenografia ambiental a que
estávamos habituados na região.
O livro de Rubens Antonio Barbosa oferece uma visão estratégica do processo
integracionista latino-americano nessa passagem do “mesozoico” da integração
uniformemente multilateral para o “cenozoico” da integração sub-regional. Articulado em

83
duas grandes partes – a América Latina no cenário internacional e o Brasil e a integração
regional – essa obra beneficia-se da experiência multiforme de um diplomata sênior do
Itamaraty e representante brasileiro na ALADI entre 1988 e 1991. O Autor acompanhou,
precisamente, a transição operada no itinerário integracionista, da tentativa de se estabelecer
uma ampla zona de preferências comerciais para modalidades mais realistas – mas também
mais ambiciosas – de agrupamento econômico. O deslanchar dessa nova fase foi
provavelmente suscitado pela aproximação Brasil-Argentina a partir de 1985, passa pelo
Tratado bilateral de Integração de 1988 e chega ao Tratado de Assunção de 1991, que mudou
radicalmente a geografia política e econômica da América do Sul.
A decisão pela implementação e desenvolvimento do novo esquema integracionista,
que culminará com o pleno funcionamento do Mercosul na segunda metade da presente
década, foi essencialmente de natureza política, uma vez que o comércio do Brasil com seus
vizinhos imediatos, mesmo durante o período de transição, não deverá atingir os níveis já
alcançados das trocas com os parceiros desenvolvidos do hemisfério norte, onde estão nossos
principais mercados compradores, bem como os mais importantes fornecedores de tecnologia
avançada.
O livro não aborda tanto os fundamentos econômicos ou os aspectos teóricos da
integração, quanto a experiência prática da Aladi, do processo Brasil-Argentina e, ainda que
de forma preliminar, o do Mercosul. Como diz o autor, a integração regional passou da
retórica à realidade e o Brasil é em grande parte responsável por esse novo curso, mais
pragmático, do processo de aproximação entre países em grande medida unidos pela cultura
mas, durante muito tempo, separados pelas políticas econômicas.
Ademais de apresentar uma análise bastante detalhada dos principais instrumentos e
mecanismos de liberalização do comercio, tanto no âmbito da Aladi como na esfera bilateral
Brasil-Argentina, Rubens Barbosa aponta os principais desafios com que se defronta a
América Latina no novo cenário econômico internacional: atenção especial é dedicada à
experiência da integração europeia e ao impacto da Rodada Uruguai no processo de
integração regional.
A nova fase da integração regional adquire uma dimensão verdadeiramente estratégica
num continente que estava sendo progressivamente alijado das grandes correntes de comércio
internacional e dos rápidos processos de modernização tecnológica que estão alterando as
vantagens competitivas das nações. Frente a esse cenário de desafios, a América Latina não
poderia ficar indiferente às exigências do momento: internacionalizar-se, certamente, mas

84
também regionalizar-se de maneira aberta, mantendo uma crescente osmose com o mundo
industrializado.
Uma coletânea dos principais tratados e acordos do itinerário integracionista latino-
americano – desde a “velha” Alalc até o Mercosul – completa essa obra utilíssima, que passa
a servir como referência indispensável em nossa fraca bibliografia sobre esse tema.

Brasília, 15 de maio de 1992.


Publicado no Boletim de Integração Latino-americana
(Brasília: MRE, n. 5, abril-junho de 1992, p. 125-126)
e no jornal Cone Sul/Cono Sur: Jornal da Integração
(Porto Alegre: ano IV, n. 29, julho de 1993, p. 7).

85
Maquiavelismo: Fortuna e Virtù de um conceito

Sérgio Bath:
Maquiavelismo: A prática política segundo Nicolau Maquiavel
(São Paulo: Editora Ática, 1992, Série Princípios nº 216)

Se os direitos autorais tivessem extensão indefinida, os herdeiros de Niccolò


Machiavelli estariam certamente entre os seres mais ricos do planeta. Eis que não há grande
cientista político, filósofo moral, aprendiz de conselheiro do príncipe, colunista social,
político provincial, executivo-necessitado-de-um-pouco-de-verniz cultural-nos-encontros–
mundanos ou, ainda, jovem ‘jornalista’ de uma simples folha interiorana que não seja capaz
de repetir, certa ou erradamente, alguns dos preceitos retirados da obra do grande escritor
florentino. Bastaria, por exemplo, o registro de algumas frases, geralmente as mais conhecidas
– “os fins justificam os meios”, “deve-se cometer o mal de uma vez só, o bem aos poucos”,
ou ainda “é muito mais seguro ser temido que amado” – para que rios de dinheiro, na forma
original dos fiorini ou, preferencialmente, na versão mais contemporânea dos dólares, dos
marcos alemães ou dos ienes, fossem continuamente transferidos para os cofres de seus
familiares.
O próprio Nicolau, na verdade, não acumulou muita fortuna – nem sob a forma de
riqueza, no sentido literal da palavra, nem como manifestação da sorte, no original italiano –
ao longo de uma vida muito atribulada, em que foi de tudo um pouco: burocrata meticuloso,
diplomata profissional, conselheiro oferecido, psicólogo involuntário, historiador dirigido,
patriota exaltado, comediógrafo razoável e estrategista aprendiz. O fato é que, a despeito
dessas múltiplas profissões, seu filho registra numa carta testamentária: “Nosso pai nos deixa
numa pobreza muito grande”. De todas as suas ocupações, na que mais justificaria sua fama, a
do “astuto oportunista e ardiloso” que emprega a “desonestidade calculada e fria” para
alcançar riqueza e poder, Maquiavel foi um completo fracasso. Nem de copyrights de sua
própria obra ele conseguiria viver, já que suas duas obras mais importantes — Il Principe e os
Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio — foram publicadas postumamente.
Essas e muitas outras informações sobre a vida e a obra do grande pensador e escritor
florentino comparecem no denso e sintético ensaio de Sérgio Bath, especialista e tradutor de
Maquiavel. O essencial de seu livro, como indica o título, se concentra porém num exame do
significado e da importância teórica do “maquiavelismo” para a teoria social contemporânea e
numa avaliação de seus famosos preceitos para a própria política “prática”. Como esclarece
86
Sérgio Bath, há muito de injustiça na reputação do precursor da sociologia política: mais do
que propor receitas imorais para garantir a conquista e a manutenção do poder pelo Príncipe,
Maquiavel, ao escrever sobre a arte de governar, estava interessado em “abordar a verdade
efetiva das coisas e não a imaginação”. Sua grande virtude, segundo um comentarista, foi a de
nunca se utilizar das palavras para esconder os pensamentos.
Maquiavel nada mais fez senão traduzir em suas obras os comportamentos e atitudes
dos homens políticos – condottieri, patrícios republicanos, cardeais da Igreja – aos quais
estava ligado ou a cuja ação assistia: traição, crueldade, má-fé, ingratidão. Em suma,
combinar fortuna e virtù para alcançar uma situação de poder absoluto. Como reconhece
lucidamente o grande psicólogo avant la lettre que ele foi: “Raramente os homens se elevam
de uma posição modesta às de maior importância sem empregar a força e o engano”. Mais
ainda, como cientista político, Maquiavel antecipa o Marx do 18 Brumário e o Weber do
Sábio e o Político, ao descrever o dilema dos homens públicos: “os homens são escravos da
sua situação e não podem escolher o modo como vivem”. Não basta dizer: “Não tenho
ambições; não desejo a riqueza ou honrarias, mas apenas uma vida serena, longe das intrigas.
(...) Mesmo que tal escolha fosse sincera, sem o menor toque de ambição, não seria crida.
Pode-se preferir viver na tranquilidade, mas todos se esforçarão por perturbá-la”.
Outro grande cientista político, Raymond Aron, ao proferir, em 1969, uma célebre
conferência sobre Maquiavel e Marx, no Instituto Italiano de Paris, começava dizendo que
“quem quer que escreva numa página em branco o nome de Maquiavel não pode deixar de
sentir certa angústia”. A reputação de “esfinge” da teoria política, segundo a imagem
aroniana, é de certa forma justificada: apesar de escrever com clareza e limpidez, num estilo
preciso ao ponto de parecer brutal, o pensamento de Maquiavel jamais deixou de provocar
discórdia entre seus intérpretes.
O livro de Sérgio Bath constitui uma excelente introdução ao universo político de
Maquiavel, às nuances e à complexidade de seu pensamento, ademais de apresentar suas
principais obras bem como os comentários sobre elas de ilustres “maquiavelólogos” (o termo
não é dele). Os capítulos são bem distribuídos, com um saboroso esboço biográfico, seguido
de um breve racconto sobre a obra maquiavélica (no sentido propriamente bibliográfico),
excertos de seus conselhos ao Príncipe, um esclarecedor capítulo sobre o “patriota”
Maquiavel – republicano e precursor da unificação italiana –, uma exposição sobre a praxis
do “maquiavelismo” e um surpreendente paralelo com um antecessor indiano de mais de 2
mil anos atrás: Kautilya, o “Maquiavel da Índia”.

87
No capítulo sobre os exemplos históricos de “maquiavelismo” se traz à tona os
meandros e personagens do famoso Plano Cohen de 1937, um dos instrumentos utilizados
pelos acólitos de Vargas para precipitar o golpe do Estado Novo. Encerram o livro um
vocabulário crítico e uma bibliografia comentada: nesta última teria sido útil indicar que sua
obra completa foi publicada na prestigiosa Bibliothèque de la Pléiade, com uma introdução de
Jean Giono e extensas notas por Edmond Barincou. Também se poderia mencionar, ao lado
de Claude Lefort, o grande intérprete italiano de seu pensamento, Delio Cantimori, autor do
ensaio sobre Maquiavel na Storia della Letteratura Italiana da Garzanti. Apenas um reparo
nessa obra culta e precisa: dos dois Cromwell citados à página 8, apenas o segundo se refere,
de fato, ao famoso Oliver Cromwell (1599-1658), herói da revolução de 1640 que terminou
por decapitar um Stuart; o primeiro Cromwell referido se chamava Thomas (1485-1540) e
serviu como conselheiro de outro “príncipe cruel”, Henrique VIII, aconselhando-o –
“maquiavelicamente” – a afirmar contra Roma a autonomia religiosa da Igreja inglesa
(divórcio oblige), a sustentar a supremacia do Rei em toda e qualquer matéria religiosa e, last
but not the least, a confiscar em favor da Coroa todas as propriedades monásticas na velha
Albion.
Apesar de, em sua época, não ter ganho muitos royalties com seus conselhos,
Maquiavel sempre fez enorme sucesso entre os poderosos. Como diz Sérgio Bath, em 2069,
quando se comemorar o 600º aniversário de seu nascimento, “é muito provável que a
notoriedade do nosso autor continue inabalada”. Com efeito, enquanto a riqueza e o poder
continuarem a ser mercadorias extremamente escassas – e, portanto, valorizadas – tanto no
mercado econômico como na ágora política, o grande Maquiavel continuará sendo lido com
interesse pelos candidatos a condottieri nas modernas cidades-Estado. Para os sociólogos e
cientistas políticos, esses litterati da modernidade, eles sempre encontrarão em Maquiavel
matéria-prima para doutas reflexões acadêmicas e ricas ilustrações sobre a “política prática”.
Quanto aos oportunistas de diversos quilates, não convém tampouco desprezar os
ensinamentos do florentino: afinal de contas, qual é o obscuro burocrata que não gostaria de
ser elevado à condição de “conselheiro do Príncipe” ? Há um Maquiavel para todos e cada
um !

Brasília, 5 de maio de 1992.


Publicado, sob o título de “A inabalável notoriedade do conselheiro do príncipe”,
no Caderno 2, Armazém Literário, do Correio Braziliense
(Brasília: 16 de maio de 1992, p. 7)
.

88
O Mercosul no contexto regional e internacional

Paulo Roberto de Almeida:


O Mercosul no contexto regional e internacional
(São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993, 204 p.; ISBN: 85-7129-098-9)

O estudo visa, como seu nome indica, colocar o Mercosul em perspectiva regional e
internacional. A melhor forma de cumprir esse objetivo passa pela adoção de um duplo
enfoque metodológico, tanto de caráter histórico como de tipo sistêmico. Daí a razão desse
trabalho começar, não pelos aspectos teóricos do processo de integração econômica, mas por
uma aproximação empírica do sistema internacional de comércio, desde sua fase constitutiva,
no imediato pós-guerra, até a mais recente rodada de negociações multilaterais sob a égide do
GATT. Daí também um tratamento prático do problema da integração regional, por meio de
uma apresentação sumária das diversas experiências integracionistas em outros continentes,
em especial no cenário europeu, e da discussão subsequente das dificuldades que o processo
integracionista enfrentou na América Latina nas últimas três ou quatro décadas.
Essa abordagem histórica preliminar permite situar verdadeiramente o Mercosul no
contexto regional e internacional, abrindo, assim, caminho à exposição de natureza mais
estrutural ou sistêmica da segunda parte do trabalho. Depois de um capítulo introdutório,
ainda de caráter histórico, sobre os antecedentes do Mercosul, são abordadas as características
básicas da nova área de integração e discutidos os principais problemas da integração sub-
regional em sua atual fase de transição.
Este trabalho em muito beneficiou-se da experiência adquirida pelo autor no terreno
acadêmico e profissional. Ele é, antes de mais nada, fruto de vários anos de estudo de
questões relativas à economia e ao comércio internacional, desde a defesa, em 1976, de uma
tese de mestrado em economia internacional, na Universidade de Antuérpia, sobre o comércio
exterior brasileiro, até o exercício docente em universidades públicas e particulares nos anos
1970 e 80. Uma tese de doutoramento em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, em
1984, permitiu-me revisar muitos dos conceitos históricos e sociológicos sobre o
desenvolvimento do capitalismo moderno, no centro e na periferia, o que se reflete no
presente trabalho pela forte ênfase que é dada ao exame dos processos históricos de
conformação de espaços econômicos integrados, na Europa e na América Latina.
Ele resulta ainda da experiência profissional do autor como negociador brasileiro em
alguns dos foros internacionais de Genebra, no GATT (Rodada Uruguai), na UNCTAD, na

89
OMPI e em outras organizações internacionais ali sediadas, ademais de uma profícua estada
na Representação do Brasil junto à ALADI, em Montevidéu.
Mas, ele deriva, essencialmente, de uma intensa participação, no período recente, em
diversas instâncias negociadoras e de policy formulation na seção brasileira do Mercosul, em
especial nos aspectos relativos à solução de controvérsias e à estrutura institucional. Ele pode
ser escrito, finalmente, graças ao trabalho desenvolvido pelo autor como coordenador de
alguns dos sistemas de informação criados pelo Governo brasileiro sobre o Mercosul e a
integração regional, notadamente como responsável pelo “Banco de Dados Mercosul” e como
editor da publicação trimestral Boletim de Integração Latino-Americana, divulgado pela
Subsecretaria-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior do
Ministério das Relações Exteriores. Não obstante, é óbvio que as opiniões e conceitos aqui
emitidos são da exclusiva responsabilidade do próprio autor, não representando, no todo ou
em parte, posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo
brasileiro.

Brasília, junho de 1993.


Apresentação ao livro O Mercosul no contexto regional e internacional.

90
O Brasil no sistema político multilateral: uma perspectiva de 50 anos

Ministério das Relações Exteriores:


A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995
(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1995, 596 p.; introdução e comentários do Emb. Luiz
Felipe de Seixas Corrêa)

Present at the creation é como o ex-Secretário de Estado norte-americano Dean


Acheson chamou seu livro de memórias, que trata, em larga medida, da emergência do
sistema internacional no pós-guerra. A inspiração do título é retirada de famosa frase de um
imperador espanhol, segundo o qual, “se [ele] tivesse estado na criação do mundo, teria dado
alguns bons conselhos ao Criador...”
O Brasil, precisamente, fez parte do seleto grupo de países que desempenhou um
papel ativo no nascimento das organizações multilaterais do último meio século, podendo
assim, a justo título, argumentar que também deu bons conselhos a seus idealizadores. Com
efeito, embora com modestos resultados – em razão de sua reduzida capacidade de ação
internacional –, em São Francisco o Brasil participou intensamente do processo de delicadas
negociações políticas que conduziram à instituição da ONU, sucessora da malfadada Liga das
Nações. Meia centena de países estiveram presentes à criação da ONU, apesar de que seu
desenho básico tenha sido acertado reservadamente pelas lideranças políticas de apenas três
dentre eles, os Estados Unidos de Roosevelt, o Reino Unido de Churchill e a União Soviética
de Stalin, aos quais mais tarde vieram juntar-se, como membros permanentes do Conselho de
Segurança, a França de De Gaulle e a China de Chiang Kai-shek.
Uma das preocupações do Brasil – manifestada de forma recorrente durante o meio
século decorrido desde então – foi a de, efetivamente, buscar diminuir, no próprio ato de
criação, o grau de arbítrio acordado às grandes potências sobre a condução dos negócios
internacionais: em São Francisco o delegado brasileiro se posicionou contra o direito de veto
acordado aos cinco membros permanentes, muito embora o País procurasse, ambiguamente,
inserir-se – assim como em 1926 e atualmente – no inner sanctum do poder mundial. Em
todo caso, o Brasil, que a partir de 1949 passou a inaugurar o período anual de sessões da
Assembleia Geral, sempre reafirmou o primado do direito sobre a força, o da ética
universalista sobre o egoísmo do interesse estreitamente nacional. Outra preocupação básica,
inspiradora da diplomacia econômica multilateral do Brasil, é com o desenvolvimento
econômico e social dos países menos avançados, mediante o reforço do papel do Conselho
Econômico e Social e a intensificação da cooperação internacional nessa área.
91
Se houve alguma “utopia brasileira”, nestes 50 anos de participação nas assembleias
gerais da ONU, ela foi, como argumenta o embaixador Seixas Corrêa, a “utopia da justiça
universal”, uma utopia que “tem os olhos postos no porvir”, de “um país singular que busca
encontrar-se consigo mesmo, ao mesmo tempo que procura construir o seu lugar na História”.
Sua introdução ao volume, assim como as bem redigidas notas anuais de apresentação, são
essenciais para situar os discursos dos delegados brasileiros no contexto internacional e
nacional que cercou cada uma das assembleias gerais da ONU neste último meio século.
Como ressaltado pelo funcionário do Itamaraty, alguns dos discursos “são mais explícitos,
outros algumas vezes reticentes; alguns revelam-se inovadores, outros conservadores; alguns
mais acadêmicos, outros mais orientados para o plano da operação diplomática. Tomados em
seu conjunto, [os] textos constituem (...) um breviário da política externa brasileira”. Eles
também revelam, segundo o diplomata, algumas das dicotomias da diplomacia brasileira:
nacionalismo e internacionalismo, realismo e idealismo, ocidentalismo e terceiro-mundismo,
continuidade e mudança.
Na primeira sessão, por exemplo, o delegado brasileiro advertia que se o homem
não for treinado para manejar corretamente a “energia cósmica” que acabava de ser criada,
“poderá ser tragado por ela”. Em 1951, numa profissão de fé latina, se prometia “juramento
de eterna lealdade ao Cristianismo, ao império da lei e à cultura do Mar Mediterrâneo”.
Oswaldo Aranha, em 1957, deixa de situar o Brasil no universo europeu-norte-americano para
identificá-lo como latino-americano e como país em desenvolvimento. Em 1961 Affonso
Arinos expõe os princípios da política externa independente, mas recusa a caracterização de
“neutralista” para o Brasil. O movimento militar de 1964, com sua opção declarada pela
“interdependência” dos países pertencentes ao sistema ocidental, reverte o discurso brasileiro
na ONU à velha bipolaridade dos anos clássicos da guerra fria e justifica, em 1965, a
intervenção na República Dominicana. Mais adiante, todavia, o Brasil recusa o
“congelamento do poder mundial”, opõe-se ao tratado de não-proliferação nuclear negociado
exclusivamente segundo o interesse das grandes potências e passa a falar na “diplomacia da
prosperidade”.
Com efeito, enfatizando um dos temas mais recorrentes da argumentação discursiva
da política externa brasileira nos diversos foros multilaterais, o que essencialmente se ouve
nas assembleias gerais da ONU são as constantes afirmações do delegado brasileiro sobre a
necessidade de desenvolvimento como garantidor da própria paz mundial. O Brasil tinha sido
um dos principais articuladores da constituição da UNCTAD e da UNIDO e não deixa de
lamentar o fracasso de algumas de suas conferências, assim como das duas “décadas do
92
desenvolvimento”. Azeredo da Silveira saúda, em 1977, a convocação de conferências
especializadas sobre cooperação técnica entre países em desenvolvimento e sobre ciência e
tecnologia para o desenvolvimento. Saraiva Guerreiro, no contexto das demandas por uma
nova ordem econômica internacional e por uma Estratégia Internacional para o
Desenvolvimento, recheia seus discursos de conceitos que alguns identificariam com o
terceiro-mundismo.
De uma forma geral, o discurso brasileiro mantem, ao longo de todos esses anos,
suas constantes onusianas: reforma da Carta, recusa de um mundo gerido pelas grandes
potências, desarmamento universal, cooperação para o desenvolvimento, preeminência do
direito internacional e, cada vez mais, promoção dos direitos humanos e da democracia. A
retórica da descolonização e da autodeterminação chocava-se, em eras passadas, com o apoio
velado dado a Portugal, mas a condenação do racismo e do apartheid sempre foi explícita. A
ênfase pan-americana dos primeiros anos converte-se na prioridade atribuída à América
Latina no período recente, assim como a busca de uma “relação especial” com os Estados
Unidos — não tratada, obviamente, nos discursos da AGNU — é substituída pelo reforço dos
laços com a Argentina, prenúncio do Mercosul. A proposta, feita em 1986, de uma “Zona de
Paz e Cooperação no Atlântico Sul” leva o Brasil a retomar sua capacidade de iniciativa nos
foros multilaterais, algo descurado desde o lançamento, no final dos anos 50, da frustrada
“Operação Pan-Americana” no âmbito hemisférico.
Nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o Brasil se libertava de alguns
constrangimentos do passado — democracia limitada, suspeitas de proliferação nuclear,
situações de descontrole econômico e de indiferença com os problemas sociais —, o País
passa a sofrer novas pressões internacionais em virtude das questões ambiental e social: a
Amazônia e os direitos humanos inserem-se nos discursos onusianos. Preparando-se para a
acolher a conferência do meio ambiente no Rio de Janeiro, o Brasil deixa a postura defensiva,
voltando também a propugnar a reforma da Carta. Em seu discurso de 1989, o presidente
Sarney sugere a introdução de uma nova categoria de membros permanentes no Conselho de
Segurança, sem o direito de veto. Os instrumentos bi- ou quadrilaterais assinados com a
Argentina, a ABACC e a AIEA no campo das salvaguardas nucleares cumprem, para todos os
efeitos, no plano internacional, a determinação constitucional de utilização da energia atômica
exclusivamente para fins pacíficos.
Celso Lafer, em 1992, dá ênfase aos direitos humanos como valores absolutos e
Celso Amorim, em 1993, propõe a atualização dos “três D’s” expostos por Araújo Castro
trinta anos antes, substituindo a descolonização pela democracia, ao lado dos problemas
93
permanentes do desarmamento e da democracia. Amorim também apoia decisivamente, como
não poderia deixar de ser, a proposta Agenda para o Desenvolvimento e, em 1994, reivindica
abertamente, pela primeira vez, uma cadeira para o Brasil no Conselho de Segurança.
Finalmente, na 50a. sessão, o ministro Luiz Felipe Lampreia confirma o interesse brasileiro
na ampliação do CSNU e faz um balanço do papel da ONU em suas primeiras cinco décadas
de existência.
A compilação editada pela Fundação Alexandre de Gusmão constitui, assim, um
retrato fiel, mesmo se parcial, da atuação diplomática multilateral brasileira entre 1946 e
1995, oferecendo uma síntese condensada do discurso e da prática da política externa
brasileira nesse período. Como afirma o chanceler em sua apresentação, a obra passa “a
constituir uma fonte autorizada de referência histórica e doutrinária. (...) Ênfases, avaliações,
intuições e sensibilidades da política externa brasileira revelam-se com particular acuidade
nos discursos da Assembleia Geral”. A ONU sempre foi o grande cenário para o exercício das
melhores virtudes e qualidades da diplomacia política multilateral do Brasil, assim como o
GATT e a UNCTAD o foram no campo da diplomacia econômica. Tanto em 1946, presente
na criação, como em 1995, participante de seu cinquentenário, o Brasil fala da reforma da
Carta: é o tema que ocupará seus melhores diplomatas no futuro imediato.

Brasília, 24 de fevereiro de 1996.


Inédito na versão completa.
Publicado em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol.
39, n. 1, janeiro-julho de 1996, p. 182-183).

94
O legado do Barão: Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira

Rubens Ricupero; João Hermes Pereira de Araújo (organização):


José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica, 1845-1995
(Brasília: FUNAG, 1995, 132 p.)

O “pai fundador” da moderna diplomacia brasileira


O Barão do Rio Branco é, incontestavelmente, um dos founding Fathers da moderna
diplomacia nacional, ou talvez mesmo a única personagem histórica brasileira capaz de
verdadeiramente representar, no terreno da política externa, o que poderíamos chamar de –
parafraseando a imagem que Euclides da Cunha empregou para caracterizar D. Pedro II em
Contrastes e Confrontos – um “epítome vivo do Brasil”. Em sua donairosa figura talhada
num estilo belle époque, ele condensa, presumivelmente, o que as tradições nacionais em
política internacional produziram de melhor na longa história institucional do Itamaraty.
Coincidentemente, sua permanência física no primeiro Palácio que leva esse nome, no Rio de
Janeiro – excetuando-se a curta gestão inicial do Chanceler Olinto de Magalhães (1899-1901),
que no entanto nele não residiu –, confunde-se com o próprio surgimento do Itamaraty
enquanto cenário da diplomacia brasileira, que foi ali forjada ao longo de sete décadas de
regime republicano.

O homem e o mito
Figura solitária no panteão quase deserto dos 174 anos de diplomacia nacional – onde
sobressaem-se, é verdade, algumas outras fortes personalidades, vindas entretanto do mundo
político, como Oswaldo Aranha, Raul Fernandes, João Neves da Fontoura, Afonso Arinos de
Mello Franco ou San Tiago Dantas –, o Barão é, simultaneamente, uma figura emblemática e
o marco fundador de uma política externa posta manifesta e exclusivamente a serviço dos
interesses nacionais. Tendo primeiro construído, segundo suas próprias palavras, “o mapa do
Brasil”, ele pode dedicar-se depois à difícil tarefa de consolidar a união e a amizade dos
povos sul-americanos. Pragmático, antes de mais nada, no sentido de não ater-se a princípios
rígidos de atuação diplomática – privilegiando a arbitragem ou a negociação direta, segundo o
que melhor conviesse no momento em causa –, mas profundo conhecedor do direito
internacional e da história e geografia brasileiras, o Barão permanece praticamente solitário
nessa condição de demiurgo de nossa política externa, descontando-se, eventualmente, as

95
míticas figuras ancestrais, mas eminentemente simbólicas, de Alexandre de Gusmão e do
“Patriarca da Independência”, Bonifácio de Andrada.
A reverência para com ele, na Casa, é de praxe, como bem sabem os poucos
iconoclastas localizados (e provavelmente isolados pelos demais colegas): não se fala do
Barão como de um “simples” chanceler. Ele sempre foi bem mais do que isso: rara
combinação de forjador da unidade territorial brasileira e de mentor de uma diplomacia
imaginativa, afirmativa e supostamente clarividente – no estabelecimento da chamada
“aliança não-escrita” com os Estados Unidos, por exemplo –, o “mito” do Barão há muito
extrapolou o âmbito restrito do serviço exterior brasileiro e mesmo os limites geográficos do
território nacional.
Na verdade, o mito já existia antes que sua elegante figura – quase que diretamente
saída, poder-se-ia dizer, de um dos romances de Eça de Queiróz –, ocupasse durante
praticamente uma década inteira (e quatro presidências) o velho Palácio do Itamaraty do Rio
de Janeiro: sua recepção triunfal no porto do Rio de Janeiro, chegando de um “exílio” de
quase um quarto de século na Europa para ocupar o posto ministerial oferecido por Rodrigues
Alves, atestou o quanto a pátria era reconhecida ao defensor vitorioso de nossas pendências
lindeiras em casos de difícil comprovação de um direito “original” ao território contestado.
Exemplos de sua incrível capacidade em reverter em benefício do País casos de difícil solução
pelas vias “normais” de solução de controvérsias são encontrados no encaminhamento das
delimitações de fronteiras com a Argentina – com a qual um primeiro acordo desastradamente
costurado por Quintino Bocaiúva não tinha conseguido passar pelo crivo do Congresso – e
com a Bolívia, aqui envolvendo reconhecidamente cessão e compra de território estrangeiro:
combinando habilmente o recurso ao uti possidetis – em áreas cuja comprovação de posse
efetiva teria sido difícil a outrem que não o eminente conhecedor dos mais diminutos
recônditos da ocupação colonial lusa e bandeirante – com doses variadas de argumentação
diplomática e de firme persuasão, o Barão (mero Cônsul em Liverpool no primeiro caso)
assegurou para o Brasil vitórias consagradoras em dois difíceis litígios.

Carisma e diplomacia
A figura patriarcal do “velho” Barão constitui, para a diplomacia brasileira, um
excelente exemplo do que, na terminologia sociológica weberiana, chamaríamos de “liderança
carismática”, ou seja, uma autoridade inconteste dotada de suas próprias fontes de
legitimidade intrínseca, baseada na experiência e no saber. O Itamaraty como um todo, aliás,
sempre foi afirmativamente weberiano, ainda que malgré-lui: tendo começado a funcionar sob
96
uma sociedade manifestamente “patrimonialista”, a Casa adquiriu sua aura de prestígio sob a
administração decididamente “carismática” do Barão. No século XX, ela soube acompanhar o
processo de modernização do Estado, passando por diversos experimentos de racionalização
burocrática — de inspiração “daspiana” ou autônoma — para afirmar sua crescente
profissionalização, segundo o modelo da administração “racional-legal”, por intermédio do
Instituto que leva o nome do patrono da Casa, criado em 1945.
O Itamaraty passa e repassa, constantemente, toda a tipologia do mestre de
Heidelberg, combinando carisma e poder, tradição e burocracia, segundo um modelo no qual
a própria burocracia diplomática apresenta-se como carismática, em face das demais
corporações do Estado: cultiva-se muito, dentro e fora da Casa, o mito da excelência. Por
outro lado, ele tampouco deixa de ter uma espécie de iron cage: uma personalização
extremamente rebuscada das relações de poder dificulta, em última instância, a rotinização do
diplomata brasileiro, isto é, a institucionalização definitiva da carreira, esse obscuro objeto do
desejo da maior parte dos diplomatas.
Em todo caso, se alguma vez praticamos no Brasil o culto a uma personalidade
política qualquer, essa palma reverte integralmente ao Senhor Barão, já que o candidato
alternativo – ou melhor dito, oficial –, Getúlio Vargas, não pode razoavelmente ter sua
preeminência histórica derivada “geneticamente” de algum entusiasmo espontâneo das
“grandes massas”, sendo antes o resultado de um processo largamente conduzido a partir do
alto, isto é, da própria máquina do Estado, com fins claramente orientados à popularização do
estadista gaúcho.
Em contraste com a personalidade exuberante do caudilho gaúcho, o Barão foi um
“retraído” político e um homem de estudo, mais afeto aos gabinetes de leitura do que aos
ministeriais: ele nunca buscou a promoção autodirigida ou outra causa que não a da defesa
silenciosa e constante dos interesses do Brasil no exterior e no trato com nossos vizinhos
imediatos. Longe dele a propaganda pessoal ou a busca de cargos políticos: seu próprio estilo
de vida e necessidades familiares o teriam isolado em missões burocráticas do trabalho
consular ou de representação diplomática, não fosse a lembrança benevolente dos amigos e a
reputação adquirida nas negociações de fronteira a tirá-lo de postos relativamente periféricos
no exterior para guindá-lo às honras de um ministério ele mesmo colocado no centro das
atenções nacionais e regionais.
A despeito de sua proverbial oposição ao ingresso de mulheres e de um certo arbítrio
na seleção (pessoal) dos candidatos à carrière – explicáveis porém em termos de Zeitgeist –, o
Barão é parte indissociável do “inconsciente coletivo” dos diplomatas brasileiros, referência
97
incontornável da história diplomática nacional, presença obrigatória nos estudos conduzidos
em sua academia profissional – que aliás leva o seu nome e acaba de comemorar os 50 anos
da formação de sua primeira turma de alunos –, uma espécie de “espírito-que-anda” nos
salões e corredores do Itamaraty e paradigma incontestado da “boa” política externa, ainda
que segundo os padrões clássicos, e talvez algo antiquados, da prática diplomática. Na
historiografia diplomática brasileira existe claramente um AB. e um DB, antes e depois do
Barão, mesmo se o culto à personalidade não chega às raias do sagrado. Em todo caso,
nenhum “rito iniciático”, nenhuma “prova de passagem” ou teste de “idade adulta”, se pode
fazer, na Casa de Rio Branco, sem algum tipo de referência, remissão, citação ou alusão ao
velho Barão. Tanta unanimidade poderia fazer sorrir o incauto, um outsider pouco afeto a
nossas idiossincrasias diplomáticas ou algum “estranho no ninho”, mas não causa maior
espécie ou surpresa aos habitués do Itamaraty: afinal de contas, o Barão é o próprio Itamaraty
e a imagem do Itamaraty só se construiu, no século XX, a partir da figura e da gestão dessa
personagem ímpar da transição monárquico-republicana do Brasil. No dizer de um diplomata
argentino da primeira metade do século: Rio Branco “era el Brasil mismo”. Em suma, Barão
só tem um em toda a história brasileira: é Rio Branco, ponto final.

Memória fotográfica do Barão


Para comemorar os cento e cinquenta anos de seu nascimento, a Fundação Alexandre
de Gusmão, do Itamaraty, sob a presidência do Embaixador Baena Soares, ex-Secretário-
Geral do Ministério das Relações Exteriores e ex-Secretário-Geral da Organização dos
Estados Americanos, organizou em 1995 uma primorosa exposição de fotografias, cujo
sucesso se deveu muito ao entusiasmo da Chefe da Mapoteca do Itamaraty no Rio de Janeiro,
Sra. Maria Marlene de Souza. Essa rica coleção fotográfica, exibida no Palácio Itamaraty de
Brasília por ocasião das festividades do dia do diplomata (coincidentemente comemorado
todo dia 20 de abril, natalício do Barão), serviu por sua vez de suporte iconográfico ao
magnífico volume organizado pelo embaixador João Hermes Pereira de Araujo (igualmente
autor das legendas das fotos) em torno da vida de José Maria da Silva Paranhos: Barão do Rio
Branco, Uma Biografia Fotográfica,1845-1995, com texto do embaixador Rubens Ricupero.
O livro, carinhosamente preparado e editado pelos herdeiros espirituais e institucionais
do Barão, corresponde inteiramente ao que dele se anuncia no título: combina com rara
felicidade texto e imagem, para oferecer uma biografia ilustrada do assim chamado patrono da
diplomacia brasileira. Os marcos cronológicos indicados são inteiramente preenchidos, pois
que, à preciosa reconstituição do itinerário pessoal, intelectual e profissional do Barão, nos
98
limites cronológicos de sua existência (1845-1912), segue-se uma reflexão sobre a influência
de seu pensamento e ação nas décadas posteriores (o “destino do paradigma”), um capítulo
comportando uma indagação pertinente, e contemporânea (“o que faria o Barão hoje?”),
finalizando com uma avaliação global da grande personagem histórica (“contrastes e
confrontos”). O autor da excelente biografia comentada que acompanha (ou melhor, que
sustenta soberbamente) a sucessão de fotos e caricaturas coletadas especialmente para esta
edição, o embaixador Rubens Ricupero, tinha todas as qualificações intelectuais e
profissionais para retraçar com maestria a vida e a obra da “esfinge Rio Branco”, segundo ele
o “último grande representante da escola de estadistas do século XIX brasileiro”.
As “afinidades eletivas” de Ricupero com a personalidade moral e intelectual do
Barão o levam, aliás, um pouco mais além da mera reconstituição biográfica, já que foi ele
próprio professor de história diplomática do Brasil e de relações internacionais
contemporâneas, no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília. Reconhecidamente
um dos melhores idealizadores e formuladores da política externa governamental – com forte
ênfase na área americana – e um de seus pensadores mais abalizados, Ricupero completou, de
uma certa maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por meio de um arcabouço jurídico de
notória complexidade (Tratados da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica, início do
processo de integração Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da
cooperação e interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até
então, no mero reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não fosse o
arriscado e talvez o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de “George Kennan
brasileiro”, no sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo conceitual, preocupado em
não apenas enquadrar sua atuação profissional num determinado contexto filosófico e moral,
mas também em dar-lhe uma perspectiva histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa
duração” cara a Fernand Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do
Instituto de Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador
francês).
Ninguém melhor do que Ricupero poderia, portanto, apresentar de maneira inovadora
os principais lances de uma vida a serviço do Brasil, assim como os elementos mais
relevantes de um pensamento diplomático feito de rupturas e continuidades, de tradição e
modernidade. Ele não se contenta, entretanto, em recolher episódios pessoais ou exemplos de
desempenho profissional contidos nas conhecidas biografias dedicadas ao Barão – das quais
as mais conhecidas são, sem dúvida, a de Álvaro Lins e a de Luiz Viana Filho –, ou os
julgamentos por vezes peremptórios encontrados em obras como as de Oliveira Lima,
99
considerado uma espécie de “anti-Rio Branco”: segundo esse autor contemporâneo do Barão,
“se a sua alma tinha refolhos, a sua inteligência era toda banhada em luz”.
Ricupero oferece, antes de mais nada, uma reflexão pessoal sobre o papel do Barão no
contexto histórico da diplomacia brasileira em sua época, marcada pela transição entre uma
monarquia segura de si, num mundo ainda largamente dominado por realezas e sistemas
dinásticos, e um regime republicano hesitante e incerto de sua legitimidade original, desejoso
de inserir-se na supostamente “solidária” família americana e buscando exemplo e emulação
na grande República da América do Norte. Nesse particular, Rio Branco, um “monarquista de
formação e gostos europeus”, teria feito, segundo Ricupero, uma “opção preferencial pelos
Estados Unidos”, visto como o grande aliado no relacionamento com as potências
predominantes do sistema mundial no começo do século XX (não obstante o fato de um
grande amigo de Rio Branco, Eduardo Prado, ter escrito um forte libelo “anti-imperialista”, A
Ilusão Americana). Razões econômicas, ademais de geopolíticas, certamente não faltaram
para justificar a escolha do “novo paradigma” de nosso relacionamento externo: desde 1870
os Estados Unidos compravam mais da metade das exportações brasileiras de café e, na
virada do século, 60% da nossa borracha.

Atualidade de Rio Branco


O que cativa particularmente no texto de Ricupero, e o que nos interessa
especialmente reter aqui, não é tanto o itinerário pessoal de uma vida nômade a serviço do
Estado brasileiro, os lances gloriosos na confirmação (ou na própria construção) de nossas
fronteiras ou, ainda, o pensamento político de um monarquista conservador típico do século
XIX, mas, sobretudo, o significado de sua diplomacia original (mas ainda eivada de
características oitocentistas) para os problemas de nossa época e para os desafios do
momento. Deixando de lado, por dificuldades práticas e óbvios óbices políticos, a
“antecipação [talvez utópica] do futuro” consubstanciada no projeto de Pacto ABC., esquema
de não-agressão, entendimento e cooperação entre os três maiores países sul-americanos que
deveria complementar, na visão do Barão, a “aliança não-escrita” com os Estados Unidos,
Paranhos já vislumbrava para o País um importante papel mundial. Em artigo ao Jornal do
Comércio ele dizia:

Desinteressando-se das rivalidades estéreis dos países sul-americanos,


entretendo com esses Estados uma cordial simpatia, o Brasil entrou resolutamente
na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem direito pela aspiração de
sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população.
100
Muito embora território e população não sejam, hoje em dia, critérios exclusivos de
afirmação internacional, a visão do mundo do Barão tem muito a ver com o encaminhamento
dos principais desafios enfrentados hoje pelo Brasil. Ele tinha consciência do limitado poder
de projeção externa do País e por isso mesmo, ainda que recusando o militarismo, era um
“partidário ativo”, como coloca Ricupero, “da modernização das forças armadas, tendo seu
nome ficado ligado ao programa de renovação da frota”. Não proclamava, contudo, a
necessidade de “armamentos formidáveis” ou a “aquisição de máquinas de guerra colossais”:
tratava-se, tão simplesmente, de cuidarmos “seriamente de organizar a defesa nacional,
seguindo o exemplo de alguns países vizinhos”. Ele descartava as pretensões à preeminência
de alguns países latino-americanos – usando palavras como “loucura das hegemonias” ou
“delírio das grandezas” – e voltava a afirmar sua convicção íntima:

Estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a


confiar acima de tudo na força do Direito e, como hoje, pela sua cordura,
desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os
povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir.

Sua intenção de conquistar para o Brasil, com a retórica e a força da argumentação


de Rui Barbosa, uma cadeira permanente na Corte Internacional de Justiça – então em
discussão na segunda conferência da Paz da Haia, em 1907 – logo chocou-se com a proposta
“oligárquica” que defendiam as grandes potências imperiais, inclusive os Estados Unidos. O
episódio, humilhante para o País na visão de Rio Branco, não é destituído de ensinamentos,
como lembra Ricupero, para o debate atual em torno da reforma da Carta da ONU e da
eventual assunção do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. Sem
qualquer consulta prévia ou consideração diplomática, Estados Unidos, Grã-Bretanha e
Alemanha relegaram o Brasil a uma terceira categoria (membros não-permanentes), ainda
inferior a países europeus menos populosos.
O Barão, tentando de diversas maneiras salvar o prestígio e a honra do Brasil,
sugeriu várias fórmulas alternativas (indicação de um juiz por cada país membro, para seleção
ulterior em função dos casos, como num painel do GATT; designação de representantes
permanentes para cada um dos três maiores países sul-americanos, Argentina, Brasil e Chile,
e um quarto, rotativo entre os demais; constituição de um tribunal com 21 membros, sendo 15
permanentes para os países com mais de dez milhões de habitantes), sem lograr contudo
nenhum avanço; pior: essas mudanças de posição “nos estavam fazendo perder terreno junto
aos latino-americanos e aos países europeus menores”.
Atendendo então à tese igualitária, desde o princípio defendida por Rui, Paranhos
assume uma posição de rejeição a compromissos que implicassem a existência de nações de
terceira, quarta ou quinta ordem:

101
Agora que não mais podemos ocultar a nossa divergência [com as potências
europeias e com os Estados Unidos], cumpre-nos tomar francamente a defesa do
nosso direito e do das demais nações americanas. Estamos certos de que Vossência
[Rui] o há de fazer..., atraindo para o nosso país a simpatia dos povos fracos e o
respeito dos fortes.

Assim, a despeito de uma tentativa inicial de colaboração e de entendimento com os


Estados Unidos, lembra Ricupero que o “choque com a posição americana tornou-se frontal e
o Brasil assumiu a liderança dos países latino-americanos e de países menores europeus na
luta pela igualdade”. O Barão teve de constatar os limites da política de cooperação, a
primazia da diplomacia do poder e a própria “opção preferencial” dos norte-americanos pelas
grandes potências europeias.

Integração hemisférica e questão social no Brasil


Na vertente econômica, de outra parte, o Brasil do final do século XIX era mais
favorável do que os demais países latino-americanos ao projeto americano de estabelecimento
de uma união aduaneira do Alasca à Terra do Fogo, a que se opunha veementemente, por sua
vez, a Argentina, muito mais vinculada aos interesses comerciais e financeiros britânicos.
Atualmente (e não apenas no terreno econômico), parece ter ocorrido, no dizer de Ricupero,
uma “inversão de papéis”, segundo a imagem coreográfica do changez de place: a Argentina
de Menem apressou-se, por exemplo, em saudar a “Iniciativa para as Américas” de George
Bush e em manifestar-se candidata a ingressar no Nafta, de Bill Clinton, enquanto o Brasil
mantinha a natural reserva diplomática de um global trader.
É bem verdade que a dependência da exportação primária e a questão crucial do
acesso ao mercado norte-americano para nosso principal produto da pauta comercial ditavam
em grande medida, um século atrás, o interesse brasileiro nesse tipo de aproximação, situação
bem diferente da relativa diversificação geográfica e de oferta exportadora de hoje em dia.
Armado de um pragmatismo exemplar, o Barão não hesitaria em subscrever, nesse como em
outros casos, uma diplomacia adaptável às circunstâncias de cada momento, unicamente
comprometida com o interesse nacional, que ele soube encarnar como poucos no decorrer da
história nacional.
Seu biógrafo e “inimigo cordial”, Oliveira Lima, sublinha que, em Rio Branco, “o
interesse pessoal se confundia com o público, assim como sua personalidade mergulhava toda
na nacionalidade”. Longe da pátria, na Europa, o Barão – consoante seu lema Ubique Patriae
Memor, “em todo lugar lembrar-se da Pátria” – continuava ocupando-se continuamente da
terra natal, lendo e anotando livros e mais livros de e sobre nossa história. Jovem pesquisador
de história do Brasil, ele tinha sido eleito para o Instituto Histórico e Geográfico em 1867, aos
22 anos, nele permanecendo como sócio ativo até seu falecimento.

102
Seu Esquisse de l’Histoire du Brésil, destinado a integrar o volume Le Brésil en
1889, preparado para a Exposição Universal de Paris, revela muito dessas leituras cuidadosas
das obras de viajantes e observadores estrangeiros, assim como das dos cronistas portugueses
da era colonial. Consciente de uma das principais deficiências sociais brasileiras de então, ele
dedica largas passagens desse livro ao problema da escravidão e sua abolição, consumada
praticamente no momento em que o terminava de escrever. Da mesma forma como o
dramático problema social brasileiro do final do século XX, o parágrafo final dessa obra de
cem anos atrás soa curiosamente atual:

Nos últimos quarenta anos, ... o Brasil fez grandes esforços... para difundir a
instrução, melhorar o nível do ensino, para desenvolver a agricultura, a indústria e o
comércio, tirando partido das riquezas naturais... Os resultados obtidos ... são já
consideráveis. Em nenhuma parte do continente americano, salvo nos Estados
Unidos e no Canadá, a marcha do progresso tem sido mais firme e mais rápida.

A perspectiva promissora traçada pelo Barão do Rio Branco para o Brasil


monárquico de então demorou (e ainda demora) certo tempo para ser cumprida, em grande
medida devido precisamente à abolição tardia do regime da escravidão e sua preservação de
fato, ainda que em forma disfarçada, nas relações sociais de produção de regiões inteiras de
seu vasto hinterland, quando não no coração mesmo de zonas urbanas. A permanência de um
ancien Régime nas estruturas sociais de dominação e de apropriação do Brasil tem algo a ver,
aliás, com a visão conservadora da cidadania ostentada mesmo por personalidades de refinada
educação europeia como o Barão. Ainda que ele não tenha sido um positivista e muito menos
um jacobino republicano, ele certamente concordaria com o princípio inspirador do regime
então inaugurado: o progresso, sem dúvida, mas a ordem antes de mais nada.
Em que pese esse conservadorismo social, em matéria de política externa o Barão
foi propriamente um revolucionário: sua visão funcional e pragmática do relacionamento
internacional do País e seu legado inovador na prática da política externa constituem,
evidentemente, meios seguros para converter a diplomacia profissional e especializada de
nossos dias num instrumento eficaz de desenvolvimento econômico e social do Brasil. Para
isso, e finalizando com um conceito utilizado por Ricupero, precisamos ter, como o Barão,
um “grande desígnio de política exterior”, suscetível de converter-se em novo paradigma de
nossa diplomacia. Agora, como nos tempos do Barão, o critério básico matem-se o mesmo: a
inserção soberana do País na ordem econômica e política internacional. Quase cem anos
depois de concebido por seu mentor intelectual, o modelo fornecido por Rio Branco
permanece vigorosamente atual.

Brasília, 26 de abril a 2 de maio de 1996.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: vol. 39, n. 2, julho-dezembro de 1996, p. 125-135)
.
103
O Mercosul por quem o fez

Sérgio Abreu e Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo:


Mercosul Hoje
(São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1996)

Raymond Aron, arguto observador e comentarista visual dos mais importantes eventos
políticos e militares do mundo contemporâneo, se definia modestamente, para fins
biográficos, como um simples “espectador engajado”. Os dois autores deste didático e
instigante livro sobre o Mercosul, diplomatas profissionais, são bem mais do que simples
espectadores engajados do processo de integração sub-regional: eles se incluem entre os
construtores do mais importante espaço econômico do hemisfério sul, tendo não apenas
assistido a seu itinerário de sucessos, mas também participado ativamente do equacionamento
de seus principais problemas enquanto negociadores e formuladores das posições brasileiras
no âmbito do Grupo Mercado Comum e de seus órgãos assessores.
Portanto, mais do que qualquer outro observador, eles estão plenamente credenciados
para descrever as etapas de desenvolvimento do Mercosul, desde o Tratado de Assunção, que
o criou em março de 1991, até sua confirmação enquanto zona de livre-comércio e união
aduaneira em consolidação, processo consubstanciado no Protocolo de Ouro Preto de
dezembro de 1994. Mais ainda, como negociadores presentes nas mais importantes reuniões
de consolidação desse processo, eles estão habilitados a descrever, discutir e explicar os
dilemas e problemas envolvidos em cada fase, justificando as escolhas efetuadas e expondo
claramente sua racionalidade econômica e política. Como diz Winston Fritsch ao prefaciar a
obra, “sem sombra de dúvida, este é o ensaio mais abrangente e atualizado sobre o Mercosul
já publicado no País”.
Este precioso manual sobre a integração regional cobre os diferentes aspectos desse
processo, segundo uma organização clara e didática. Uma primeira parte trata dos
fundamentos da integração econômica e do desenvolvimento do Mercosul, repassando seus
objetivos, seus antecedentes e as fases cumpridas durante o período de transição. A segunda
parte, trata da estrutura propriamente dita da união aduaneira, ou seja os instrumentos
comerciais e as instituições do Mercosul, inclusive numa perspectiva comparada com a União
Europeia: encontra-se assim plenamente justificada a opção, modesta mas realista, por um
perfil intergovernamental para o esquema integracionista do Cone Sul, de preferência à
adoção de mecanismos supranacionais como é o caso na experiência europeia.

104
As partes terceira e quarta, de menor dimensão, mas não menos importantes, cobrem o
quadro econômico internacional e os resultados práticos e perspectivas do Mercosul. São
assim enfocados os fenômenos da regionalização e da globalização e as relações com a União
Europeia, por um lado, e com os processos continental e hemisférico de integração, por outro.
Redigido antes de dezembro de 1995, quando foi assinado o acordo-quadro inter-regional de
cooperação com a UE (que sucedeu a um primeiro acordo interinstitucional, de 1992), os
autores não puderam pronunciar-se sobre a modéstia de objetivos desse instrumento, algo em
recuo ante a promessa de uma zona de livre-comércio prevista na declaração solene de
Bruxelas, selada um ano antes. Em qualquer hipótese, o acordo-quadro UE- Mercosul abre
um processo negociado de aprofundamento das relações recíprocas e de liberalização
progressiva do intercâmbio de bens e dos fluxos de capitais e tecnologia entre as duas regiões,
e que contrabalança em alguma medida o outro processo liberalizante engajado no próprio
hemisfério americano, o que confronta o Mercosul (e outros países do continente) ao Nafta.
No que se refere aos resultados práticos do Mercosul, cabe registrar a plena eficácia e
o pragmatismo exemplar do atual esquema intergovernamental. Como afirmam os autores, em
lugar de “primeiro criar uma burocracia ampla e bem paga para depois procurar definir suas
funções”, adotou-se o percurso inverso: “primeiramente definir as tarefas, e a seguir criar os
órgãos encarregados de sua execução”. Como se pode verificar pelas habituais tensões
vinculadas ao caráter supranacional da integração europeia, a natureza intergovernamental do
Mercosul representa a “principal garantia de que as decisões serão implementadas
internamente, já que uma decisão de um órgão intergovernamental é, para efeitos internos em
cada país, uma decisão do governo de cada país”.
Os autores também sublinham o papel didático do Mercosul, ao combinar política
industrial e liberalização comercial. Eles desmontam as teses dos “liberais ortodoxos” e dos
“nacionalistas fanáticos”, que recusam uma e outra política, para afirmar o primado da
racionalidade econômica e o triunfo da vontade política no Mercosul. O processo de
integração não “cria” problemas, ele apenas evidencia as deficiências existentes e apressa
uma decisão interna para sua solução.
Persistem, na fase atual, duas linhas de tensão básicas, segundo os autores. A primeira
se dá “entre a consolidação dos instrumentos já aprovados e a busca de novos avanços”,
diferente portanto do dilema europeu entre “aprofundamento” e “alargamento”. A segunda se
passa “entre as políticas nacionais e o projeto comum”. Ambas as tensões poderão ser
resolvidas através do pragmatismo demonstrado tradicionalmente pelos líderes e negociadores
do Mercosul, no sentido de buscar as situações de “equilíbrio dinâmico”, suscetíveis de
105
consolidar o patrimônio já alcançado no processo de integração e de continuar desenvolvendo
o mais importante projeto político (e geoestratégico) conhecido historicamente no Cone Sul
latino-americano. A crença não é gratuita, vinda de quem participou e conhece por dentro,
como nossos autores, o processo de integração regional. Longa vida ao Mercosul.

Brasília, 17 de março de 1996.


Inédito na versão completa.
Publicado em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol.
39, n. 1, janeiro-julho de 1996, p. 175-177).

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Um roteiro de quatro séculos das relações internacionais do Brasil

José Manoel Cardoso de Oliveira:


Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do periodo colonial e varios documentos desde 1492
Coordenados e anotados por J. M. C. de O., Enviado Extraordinario e Ministro
Plenipotenciario, socio correspondente do Instituto Historico e Geographico Brasileiro e do
Instituto Geographico e Historico da Bahia
(Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., 1912; 2 volumes; Tomo I:
1493 a 1870; Tomo II: 1871 a 1912).

Edição fac-similar:
(Brasília: Senado Federal, 1997; coleção “Memória Brasileira”)
Introdução (Tomo I, pp. iii-xxxix) e Addendum (“Relação dos principais instrumentos
multilaterais vinculando o Brasil a partir de 1912”, Tomo II, p. i-lv), por Paulo Roberto de
Almeida.

Esta obra, como indica o autor no preâmbulo, tem sua origem numa compilação pré-
existente bem mais vasta e grandiosa: a monumental coleção dos “tratados, convenções,
accordos, ajustes e protocollos” que, sob a denominação de Pactos Internacionais do Brasil, o
diplomata José Manoel Cardoso de Oliveira tinha organizado, por expressa orientação do
Chanceler Rio Branco, entre 1908 e 1911. Ao permanecer inédita essa coletânea
extraordinária de mais de 6 mil páginas — cobrindo, aliás, apenas os atos internacionais
contraídos depois de 1808 —, o sucessor do Barão, Ministro Lauro Müller, decidiu, em 1912,
ordenar a publicação de uma edição mais modesta.
Cardoso de Oliveira procedeu então a uma revisão-abreviada de seu enorme trabalho
de prospecção e garimpagem de todos os atos internacionais do Brasil desde a abertura dos
portos – dos quais passou a transcrever apenas a ficha resumida e não mais o texto de cada um
– retrocedendo, porém, sua minuciosa e cuidadosa pesquisa até as próprias origens do País,
uma vez que ele dá a partida de sua coletânea pela Bulla Intercœtera de 1493. Vem assim a
público, ainda no próprio ano da morte do Barão, este Actos Diplomaticos do Brasil, que
permaneceu sem reedição desde então.
Por que esta nova edição de uma obra, na verdade uma coletânea de instrumentos
diplomáticos, editada há 85 anos? Como se justificaria sua relevância, nos dias que correm,
em face dos avanços acumulados no período recente pela historiografia e pela politologia das
relações internacionais do Brasil? Parece evidente, antes de mais nada, que a obra constitui,
ainda hoje, instrumento bastante útil, enquanto referência documental, a várias categorias de
pesquisadores ou aos simples leitores interessados no conhecimento dos instrumentos que
balizaram, entre o final do século XV e princípios do XX, as relações internacionais do
107
Brasil: ao diplomata contemporâneo como ao historiador das fronteiras, ao jurista motivado
pela “etymología” de algumas das obrigações internacionais do Brasil como ao geógrafo
curioso da formação progressiva do território, ao “guardião”, responsável na chancelaria
nacional, do registro, ratificação e manutenção dos atos diplomáticos do passado colonial ou
monárquico como aos legisladores encarregados constitucionalmente de sua aprovação no
Congresso, em suma, a consulta é esclarecedora tanto aos “garimpeiros” do passado como aos
“planejadores” do futuro. A obra de Cardoso de Oliveira oferece, a todos esses leitores, uma
visão verdadeiramente panorâmica, no sentido instrumental da palavra, do conjunto dos
instrumentos constitutivos das relações internacionais do País, antes mesmo que o Estado
brasileiro pudesse adquirir autonomia nacional e passasse a firmar, pelas mãos de seus
próprios dirigentes e representantes diplomáticos, os atos e compromissos que deveriam
moldar e pautar sua conduta no campo das relações exteriores e da política internacional.
A obra sintetiza, por assim dizer, um “cartório” diplomático – num contexto relacional
extremamente dinâmico de superposições e de anulações sucessivas – das políticas exteriores
portuguesa e brasileira, nos seus mínimos atos e manifestações respectivas: figuram aqui,
além, é óbvio, das convenções de paz e dos tratados de amizade, comércio e navegação, cartas
de escribas, notas de chancelaria, assim como, por exemplo, declarações unilaterais de
dirigentes políticos. A leitura sequencial ou ao acaso desses atos permite ao pesquisador
orientado confirmar – e ao observador minimamente desatento constatar – a extrema
densidade política e a grande variedade geográfica das relações externas de duas nações,
Portugal e Brasil, que foram, ao longo dos séculos, basicamente periféricas do ponto de vista
da política internacional – a Machtpolitik, como gostava dizer Raymond Aron – e, afinal de
contas, essencialmente marginais do ponto de vista da Weltwirtschaft.
Ao colocar em perspectiva histórica, e segundo uma linearidade diacrônica, essas
perspectiva “instrumental” das relações diplomáticas do Brasil – cuja própria política
internacional ocupa, finalmente, apenas um terço do período, mas, de fato, oito décimos do
volume de atos coberto por esta compilação – Cardoso de Oliveira realizou uma obra de
grande valia em benefício de todos aqueles que necessitam “enquadrar” as relações exteriores
do Brasil num sistema mais vasto, juridicamente reconhecido, de atos bilaterais, plurilaterais
ou “multilaterais” (para empregar um conceito alheio à sua própria época) que conformaram o
universo geográfico, econômico e político do relacionamento externo da Nação, inclusive na
sua fase pré-independente. Seu trabalho de compilação também é indicativo de um certo
“estado de espírito” de uma etapa específica da diplomacia brasileira – a “era do Barão” – que
marcou a historiografia brasileira assim como a própria história e a geografia do País. Tratou-
108
se de uma fase de brilhantes conquistas, por negociação direta ou arbitramento, todas
apontadas para a consolidação do território e das fronteiras da Pátria, empreendimento
realizado pelo próprio Barão – ajudado eventualmente por jovens diplomatas como Cardoso
de Oliveira – com base numa recapitulação histórica meticulosa, fruto de anos de pesquisa
ingente, de todos os tratados, acordos e atos bilaterais – alguns plurilaterais – que
gradualmente presidiram à formação da nacionalidade brasileira. A obra do “discípulo” e
colega Cardoso de Oliveira, ao levantar a miríade de atos demarcatórios de limites (e
retificadores de Tordesilhas), de tratados de “alliança”, de convenções de “paz perpetua” e de
acordos bilaterais de “amizade, commercio e navegação” contraídos pela diplomacia
portuguesa ao longo dos séculos, ilustra amplamente a complexidade da obra do Barão, ao
tecer argumento sobre argumento em torno da justeza das reivindicações lindeiras do
território nacional. (...)
Em fevereiro de 1907, Cardoso de Oliveira, então com 42 anos, é promovido a
Conselheiro da Legação em Londres, mas, chamado a serviço ao Rio de Janeiro em maio
desse ano, ele viaja em julho para o Brasil, para não mais retornar à capital britânica. Os
registros não revelam em que consistiu, inicialmente, esse trabalho em comissão, mas o fato é
que nesse mesmo ano ele redigiu, “por ordem do Ministro Rio-Branco”, uma Noticia
pormenorisada sobre a reunião e trabalhos do 3° Congresso Scientifico Latino-Americano,
realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1905. É de se presumir que o chanceler Rio Branco,
conhecedor de seu trabalho anterior, publicado no Relatório de 1895, em torno das consultas
do Conselho de Estado e dos pareceres dos Consultores jurídicos – em temas relevantes da
nacionalidade, nos quais tinha atuado intensamente seu pai, o Visconde – buscasse aproveitar-
se de sua reconhecida capacidade como compilador e sistematizador dos diversos
instrumentos jurídicos e dos atos internacionais das relações exteriores do Brasil.
De fato, ele permaneceria em comissão na capital da República de julho de 1907 a
julho de 1912, quando é removido para o México. No longo intervalo que se seguiu entre seus
postos no exterior, ele seria promovido e designado, primeiramente, Ministro residente na
Colômbia (dezembro de 1907) e, depois, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário
na Bolívia (janeiro de 1909), mas não chegou a assumir nenhum desses postos, permanecendo
à disposição da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro e ocasionalmente em Petrópolis (onde
o Barão tinha casa e onde se refugiavam muitos diplomatas estrangeiros, amedrontados com
os flagelos da febre amarela na capital da República. Suas merecidas promoções e honrosas
designações parecem ter a ver, justamente, não tanto com sua “extensa” folha de serviços
diplomáticos (finalmente reduzida a três postos relativamente pacatos), mas com o trabalho de
109
natureza intelectual que ele passou a desempenhar para o Barão, amante dos velhos papéis,
dos antigos tratados e dos atos internacionais que, desde a era colonial e mesmo de forma
indireta, conformaram as relações internacionais do Brasil.
Tem aí origem a magnífica coleção dos tratados e convenções a partir de 1808 que ele
pacientemente organizou, a pedido do Barão, entre 1908 e 1911, assim como esta obra mais
ampla cronologicamente, mas ao mesmo tempo mais sintética substantivamente. Atendendo
igualmente a um pedido do chanceler Rio Branco, sempre cioso do bom funcionamento de
uma Casa na qual seu pai tinha servido quatro vezes, Cardoso de Oliveira prepara, em 1911,
uma monografia tratando da Remodelação dos Quadros do Corpo Consular Brasileiro
(Petrópolis, 1911), serviço pelo qual ele tinha iniciado seu périplo internacional vinte anos
antes. (...)
Depois da morte do Barão, sua carreira, bastante nômade, é feita essencialmente no
exterior, a começar pelo México, onde pode seguir alguns dos lances mais importantes da
Revolução que agitou o País durante longos anos. Removido para lá em julho de 1912, a
partir de abril do ano seguinte e até 1915 teve a seu cargo os interesses dos Estados Unidos no
México. Encerrando sua missão em agosto desse ano, partiu a convite do governo norte-
americano em visita oficial aos Estados Unidos, onde permaneceu até setembro. 1 Novamente
em comissão no Rio de Janeiro, é designado, em 31 de maio de 1916, Enviado Extraordinário
e Ministro Plenipotenciário junto ao Império da Áustria-Hungria, mas não chegou a partir
para Viena, presumivelmente em virtude do estado de guerra e do próximo torpedeamento de
embarcações brasileiras por navios alemães nas próprias costas atlânticas. (...)
A rationale do compêndio parece ser a das relações internacionais do Brasil no
sentido lato, muito embora sua interpretação seja restrita. Não são incluídos, por exemplo, os
inúmeros contratos de empréstimos externos, pela simples e compreensível razão de que se
tratava de atos contraídos com particulares – os famosos banqueiros ingleses da Casa
Rothschild –, quando o critério de inclusividade retido por Cardoso de Oliveira é o das
relações entre Estados soberanos. Os contratos passados com companhias de colonização,
para facilitar a entrada e instalação no Brasil de imigrantes estrangeiros, ou aqueles
estabelecendo concessões públicas para a exploração de determinados serviços gerais
(iluminação), de transportes ou de comunicações também ficam de fora do compêndio, o que
reduz mais uma vez alguns outros aspectos essenciais das relações internacionais do País,
aqui em sua vertente econômica, no século XIX. O Brasil da época de Cardoso de Oliveira

1
Cf. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, op. cit., p. 2440.
110
ainda era um grande importador de braços, capitais e serviços especializados estrangeiros,
mas isso quase não transparece, ou emerge de forma muito tênue, de seu compêndio. (...)
Paradoxalmente, entretanto, uma simples consulta aos atos listados no segundo
volume da obra de Cardoso de Oliveira e sua comparação com a relação dos atos multilaterais
contraídos na mesma época por todos os demais países relevantes do sistema de relações
internacionais, inclusive suas principais potências econômicas, também ofereceria um
testemunho sobre a universalidade e a precocidade das relações econômicas externas do
Brasil, um dos poucos países ditos periféricos a ter estado presente na criação das mais
importantes instituições internacionais de cooperação econômica desde a emergência efetiva
desse tipo de instrumento multilateral. (...)
A listagem realizada por Cardoso de Oliveira em princípios deste século, tal como
reproduzida em sua forma original nesta reedição fac-similar do compêndio de 1912,
constitui, assim, o início indispensável de uma análise de larga perspectiva, que deveria nos
fazer ver o itinerário histórico do Brasil como o desenrolar de um longo processo de esforços
constantes em busca de sua autonomia política e de seu desenvolvimento econômico. O
compêndio de Cardoso de Oliveira deveria, idealmente, no que respeita os últimos 85 anos de
relações internacionais, ser complementado por uma listagem contemporânea de atos
diplomáticos, suscetível de contribuir para o conhecimento atualizado da vida internacional de
um país, o Brasil, hoje plenamente inserido no sistema mundial. Tal obra, num cenário de
facilidades informáticas e de conexões em rede como o atual, aguarda apenas a iniciativa de
seus dignos sucessores na Casa de Rio Branco: que publicada, em nova versão, ela possa
prestar uma singela homenagem ao trabalho pioneiro de José Manoel Cardoso de Oliveira.

Brasília, 19 de novembro de 1996.


Excertos da Introdução ao livro publicado pelo Senado Federal.

111
Política externa e integração como objeto de estudo acadêmico e de
reflexões diplomáticas

Paulo Roberto de Almeida:


Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização
(Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5; Coleção Relações
internacionais e Integração, 1)

Paulo Fagundes Vizentini:


A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e
construção de uma potência média (1964-1985)
(Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998; Coleção Relações internacionais e Integração, 2)

Paulo Roberto de Almeida:


Mercosul: fundamentos e perspectivas
(São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 85-7322-548-3)

As relações internacionais enquanto objeto de estudo vêm se desenvolvendo de


maneira amplamente satisfatória nos últimos anos no Brasil, com o acúmulo quantitativo e o
progresso qualitativo dos trabalhos divulgados nesse campo. Muito desse avanço é devido ao
surgimento de cursos de pós-graduação – nem todos stricto sensu – que colocam as relações
internacionais de modo geral e a inserção externa do Brasil de modo particular no centro das
preocupações de pesquisa e de elaboração de monografias. Outro tanto pode ser visto como o
resultado de iniciativas propriamente editoriais, com a tradução de bons livros publicados no
exterior e a publicação, isoladamente ou em coleções especializadas, dos trabalhos produzidos
por cientistas sociais e historiadores brasileiros.
Os dois primeiros livros aqui resenhados inauguram, precisamente, uma nova coleção
editorial, a “relações internacionais e integração” da UFGRS, ao passo que o terceiro é
veiculado por uma editora mais tradicional no campo da literatura jurídica. Os dois autores
militam, um de modo pleno, o outro em tempo parcial, nas pesquisas e na docência
acadêmica, combinando a interpretação sociológica com uma visão histórica das relações
internacionais do Brasil. Essa visão histórica é mais centrada no caso da pesquisa de Paulo
Vizentini, enfocando a política externa do regime militar no Brasil entre 1964 e 1985, e mais
dispersa no caso de Paulo Almeida, indo dos séculos XV e XVI (“diplomacia dos
descobrimentos”), passando pela emergência do multilateralismo contemporâneo, a partir do
século XIX, até o surgimento (em 1995) da Organização Mundial de Comércio (“diplomacia
do desenvolvimento”).

112
O primeiro livro, de Paulo Roberto Almeida, como revelado na Nota aos Trabalhos ao
final do volume, é na verdade uma compilação de trabalhos produzidos nos 8 anos
precedentes, quase todos publicados em revistas acadêmicas, mas se alguns são total ou
parcialmente inéditos. Eles revelam uma preocupação com a pesquisa e sistematização do
conhecimento sobre as relações exteriores do País, seja na vertente do multilateralismo
econômico – relação de atos e organizações econômicas internacionais apresentada ao final –,
seja no campo da sociologia política – o longo ensaio sobre o papel dos partidos nas relações
exteriores de 1930 a nossos dias –, seja ainda no terreno propriamente metodológico: textos
sobre o estudo e a historiografia das relações internacionais do Brasil. O autor, diplomata de
carreira com experiência na área econômica, explicita em sua introdução que ele não
pretendeu escrever trabalhos de diplomacia brasileira, mas ensaios sobre as relações
internacionais e a política externa do Brasil, demonstrando talvez certa contenção de
propósitos, que costuma caracterizar o perfil discreto dos membros da Casa de Rio Branco.
De fato, são poucos os textos que se pronunciam sobre a política externa operacional e efetiva
do Governo brasileiro, muito embora alguns revelem distanciamento crítico em relação ao
que se poderia chamar de “pensamento único” do Itamaraty. Tal é o caso, por exemplo, do
pequeno ensaio sobre a “ideologia” da política externa, na verdade uma crítica levemente
irônica sobre alguns dos “mitos fundadores” da diplomacia oficial. Outro ensaio de dimensões
relativamente reduzidas – comparativamente à longa extensão dos demais – toca na
“economia” da política externa, de fato um esquema interpretativo suscetível de sustentar um
vasto programa de pesquisa sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (o autor já
terminou uma primeira etapa: “Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações
econômicas internacionais no Império”, apresentada sob a forma de dissertação no Curso de
Altos Estudos do Instituto Rio Branco). Nessa mesma área, Paulo Almeida já investigou a
participação do Brasil nas conferências de Bretton Woods (1944) e de Havana (1947-48), mas
ainda não divulgou todos os resultados de sua pesquisa, como esclarece na nota ao ensaio
sobre “diplomacia do desenvolvimento”.
O trabalho mais elaborado, em termos de pesquisa, parece ser o relativo à “política” da
política externa, contendo uma extensa compilação de todos os elementos de relações
internacionais inscritos nos programas partidários a partir de 1930, uma discussão sobre o
posicionamento dos partidos políticos em relação à política externa oficial e, não menos
importante, uma apresentação comentada sobre temas e problemas “internacionais”
levantados pelos partidos e candidatos nas campanhas eleitorais presidenciais de 1989, 1994 e
1998. Os estudantes encontrarão no último capítulo uma sistematização há muito tempo
113
sentida das obrigações internacionais contraídas no plano multilateral pelo Brasil desde o
século XIX até a adesão ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, durante muito tempo a bête
noire da diplomacia nacionalista, defensora da “autonomia nuclear” do País. Em suma, para
os que buscam uma boa introdução ao estudo e ao conhecimento prática da diplomacia
brasileira, o livro “semi-acadêmico” de Paulo Almeida pode constituir um exemplo de
equilíbrio entre pesquisa teórica e conhecimento prático das relações exteriores do Brasil.
Paulo Vizentini, apesar de jovem, é um “velho” conhecido dos estudiosos da
diplomacia brasileira, graças, entre outros trabalhos a sua extensa pesquisa sobre o
nacionalismo e o desenvolvimentismo nas relações exteriores, entre 1951 e o final da Política
Externa Independente (PEI), em 1964 (Editora Vozes, 1995). Fechando uma das lacunas mais
evidentes de nossa historiografia especializada, ele dá agora continuidade a esse trabalho ao
levantar sistematicamente todas as etapas da política externa durante o longo interregno
militar, de 1964 a 1985. Os capítulos são lineares, cada um voltado para uma presidência, mas
a interpretação permeia o processo que o autor identificou como de “mundialização” e de
“multilateralização” da diplomacia brasileira. De fato, cada uma das etapas está identificada
aos “rótulos” pelos quais ficaram conhecidas as diplomacias respectivas dos cinco generais-
presidentes que ocuparam a chefia do Estado no período.
Assim, numa primeira parte (o “modelo ascendente”), são analisadas a política externa
“interdependente” e de segurança nacional defendida por Castelo Branco, a “diplomacia da
prosperidade” de Costa e Silva – de fato, um retorno aos padrões “desenvolvimentistas” e
“nacionalistas” da era civil imediatamente anterior – e a “diplomacia do interesse nacional”
de Médici, quando se buscou o que o autor chama de “autonomia no alinhamento”. Na
segunda parte, se assiste ao “apogeu” e ao “declínio” do modelo, o primeiro representado pelo
“pragmatismo responsável” de Geisel e o segundo pela “diplomacia do universalismo” de
Figueiredo. Em cada um desses cinco densos capítulos a política externa é colocada na
perspectiva das orientações políticas e econômicas internas, próprias a cada uma das
presidências militares – que foram bastante diversas em termos de orientações econômicas e
de escolhas política, a despeito da uniformidade mais aparente do que real do regime militar –
, e enfocados então as diversas dimensões do relacionamento externo: no plano bilateral
(sobretudo em relação aos Estados Unidos), no contexto hemisférico, no cenário internacional
e no âmbito multilateral (este tanto na vertente econômica quanto na da segurança).
O resultado é um panorama bastante abrangente do referido processo de
“multilateralização” da política externa brasileira, iniciado na era da PEI e continuado de
forma consistente na era militar, não tanto por iniciativa própria como em consequência da
114
extrema profissionalização da diplomacia brasileira. Com efeito, a diplomacia nunca foi tão
“autônoma” – dos partidos, dos grupos de interesse, da opinião pública em geral – quanto sob
o regime militar, durante o qual todos os chanceleres, com a breves exceções de Juracy
Magalhães e de Magalhães Pinto, foram diplomatas de carreira. Para isso deve ter contribuído
o mesmo sentido de responsabilidade “profissional” dos militares, que – à exceção de Geisel,
extremamente interessado em política externa – permitiu larga latitude de ação ao Itamaraty.
Paulo Vizentini descreve a multilateralização como a “busca de novos espaços,
regionais e institucionais, para além dos relacionamentos tradicionais (que não são
interrompidos), de atuação política e econômica”, processo que caracteriza, de fato, a
diplomacia brasileiro desde então. Paradoxalmente, o regime mais ideologicamente alinhado
aos Estados Unidos é o que conduz na prática a um afastamento político, econômico e até
tendencialmente tecnológico – como tentado no programa de cooperação nuclear com a
Alemanha – em relação ao aliado da Guerra Fria. São elucidados no livro todos esses passos:
a busca de novos parceiros dentre os países desenvolvidos e sobretudo o relacionamento com
as potências médias do mundo em desenvolvimento. O reatamento de relações com a China,
por exemplo, representou uma das “crises” políticas mais evidentes na ideologia do edifício
militar, mas o restabelecimento de relações diplomáticas com Cuba – patrocinadora de
movimentos guerrilheiros nessa fase – teria de esperar o fim do regime militar e a volta à
democracia.
Vizentini retraça em detalhes as dificuldades do relacionamento com os países árabes
exportadores de petróleo, assim como as diferentes fases da rivalidade com a Argentina, aliás
superada em grande medida ainda na fase militar. Ele constata o sucesso e as desventuras do
modelo de desenvolvimento econômico, a expansão das exportações e a crise externa na fase
final do regime, no quadro das grandes mudanças do cenário mundial a partir dos anos 1980,
o que levou à redefinição do próprio conceito de “interesse nacional”. Suas fontes não foram
exclusivamente as diplomáticas – cuja parte confidencial não se encontrava de resto
disponível quando da pesquisa – mas também os órgãos da imprensa escrita, o que permitiu
explorar aspectos normalmente não revelados no discurso oficial. Trata-se, sem dúvida
alguma, de uma obra de referência para uma visão fatual e dotada de interpretação própria
sobre um período relevante da história republicana, merecendo figurar em toda e qualquer
bibliografia que doravante se arrolar não apenas sobre a política externa brasileiro mas
também sobre o regime militar-modernizador de 1964 a 1985.
O último livro, também do diplomata Paulo Almeida, possui objetivos mais focados
do ponto de vista temático e um escopo mais declaradamente “vulgarizador”, qual seja, o de
115
apresentar a um público geralmente universitário, e supostamente leigo na matéria, as origens,
o funcionamento e os desafios atuais do processo de integração sub-regional do Mercosul. De
fato, os primeiros capítulos são basicamente descritivos, baseando-se em grande medida em
sua obra anterior sobre o mesmo assunto (O Mercosul no contexto regional e internacional,
1993), mas a parte sobre o “futuro” do Mercosul está longe de ser uma simples sistematização
dos conhecimentos disponíveis sobre o assunto. Trata-se de uma discussão em profundidade
sobre os dilemas e opções com que se defrontam atualmente os países-membros, confrontados
à necessidade de aprofundar a coesão econômica interna – de fato cumprir o que estipula o
Artigo 1º do Tratado de Assunção, isto é, constituir de fato um mercado comum – e de afastar
o perigo de sua diluição numa vasta zona de livre-comércio hemisférica, como promete o
projeto da ALCA, liderado pelos Estados Unidos.
Paulo Almeida conhece o funcionamento efetivo do Mercosul e por isso evita alguns
dos problemas e “ilusões” que permeiam muitas teses universitárias e artigos acadêmicos
sobre o assunto, entre eles o do aprofundamento da institucionalidade – ou, o que vem a
resultar no mesmo, o “salto para a supranacionalidade” – e o da visão “anti-imperialista” ou
“antiglobalização” incorporado numa certa concepção ingênua, em geral de “esquerda”, sobre
esse processo. Completam o livro, de concepção bastante didática, uma excelente cronologia
sobre o desenvolvimento da integração regional, desde a primeira conferência americana de
1889 até o final das negociações da ALCA (em 2005), assim como a documentação básica de
referência para o enquadramento jurídico-diplomático desse processo (Tratado de Assunção e
Protocolos de Ouro Preto e de Brasília). Seu livro também merece figurar na bibliografia de
referência sobre o processo de integração sub-regional, ainda que se possa fazer a mesma
restrição anterior em relação à postura talvez excessivamente discreta – derivada sem dúvida
de sua condição profissional – em relação a certas questões sensíveis desse processo.
Os três livros se completam e correspondem aliás aos objetivos temáticos da nova
coleção da UFRGS: o estudo sério e academicamente embasado sobre as relações
internacionais e os processos de integração. A coleção deverá abrigar, proximamente, um
livro do acadêmico inglês Fred Halliday, Repensando as relações internacionais. Dessa
forma, as abordagens propriamente brasileiras nas contribuições de acadêmicos e diplomatas
do País podem ser complementadas por trabalhos dotados de perspectiva verdadeiramente
mundial. Trata-se, provavelmente, de um exemplo de globalização editorial.

Brasília, 14 de novembro de 1998.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: ano 41, n. 2, julho dezembro de 1998, p. 165-169)
116
O Manifesto de 1848, revisto e corrigido

Paulo Roberto de Almeida:


Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização
(São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5)

O “velho” Manifesto de Marx e Engels não precisa mais ser apresentado a ninguém:
ele acaba de completar 150 anos de existência e foi devidamente festejado, no mundo todo,
tanto pela esquerda como pela direita, como um documento de indiscutível atualidade
política. É óbvio que a esquerda procurou nele resgatar a sua mensagem ainda revolucionária,
destacar seu forte conteúdo anticapitalista e anti-burguês, sua proposta em favor de uma
organização social de produção que não divida mais os homens em exploradores e oprimidos,
recuperar, enfim, o seu ainda “grande” potencial transformador da moderna sociedade de
classes. A direita, por sua vez, também efetuou uma leitura “positiva” dessa obra de Marx e
Engels, resgatando seu caráter de inegável arauto da globalização, de profeta da
universalização do modo “burguês” de produção, sua opção por uma constante transformação
das estruturas produtivas, uma defesa, enfim, de cada vez mais capitalismo, antes de se pensar
em “superá-lo” em favor de um novo regime produtivo, aliás reservado apenas para as
“civilizações” mais avançadas, não para reinos despóticos do Oriente e sociedades atrasados
do ponto de vista capitalista. Em suma, o Manifesto seria “moderno” e ainda válido, embora
de maneira especial a cada uma das correntes em causa.
Ambas as imagens do “velho” Manifesto são basicamente corretas e depende
evidentemente dos gostos pessoais e opções políticas de cada um de seus atuais leitores a
seleção pertinente de trechos que mais convenham aos fins pretendidos. O autor do presente
volume de ensaios, que se declara resolutamente “marxista”, também procedeu a nova leitura
do velho Manifesto e o encontrou supreendentemente atual, inclusive e principalmente de
uma perspectiva de esquerda, de transformação radical das atuais condições sociais
deploráveis que ainda caracterizam o Brasil, mais de 170 anos depois de sua independência
política. Apenas que, em lugar de se dedicar a cantar loas ao velho Manifesto, como muitos
ideólogos da esquerda fizeram – não sem um certo desencantamento com o fim do socialismo
real –, este autor preferiu reescrevê-lo, à luz das realidades atuais da globalização e do fim das
últimas ilusões econômicas do socialismo enquanto modo mais “racional” de produção. Essa
leitura propriamente iconoclasta de um texto considerado quase que sagrado por uma certa
esquerda ainda “religiosa” oferece uma alternativa filosófica e conceitual aos atuais dilemas
117
dos “novos” socialistas: como conciliar alguns dos ideais do passado com a moderna
sociedade tecnológica?; o que significa ser de esquerda num mundo interdependente e mais
propenso a medir resultados efetivos –sobretudo em termos de capital intelectual – do que
premiar boas intenções sociais?; como dar ao Estado o que é do Estado e deixar ao mercado o
que ele pode fazer de forma eficiente?; enfim, como separar uma atitude efetivamente
reformista e progressista do ponto de vista da esquerda, que se preocupa com a sorte dos
desvalidos do progresso social, de um comportamento repetitivo de velhos slogans do
passado, característico de uma reação basicamente reacionária apenas voltada para a defesa de
velhos monopólios de castas profissionais e de superadas reservas de mercado? Existem hoje
no Brasil muitas “viúvas” da globalização e inúmeros “órfãos” do nacionalismo econômico,
pessoas que, finalmente, não conseguiram compreender a obra teórica de Marx e seu
potencial explicativo das contradições da moderna sociedade de classes. O Manifesto
“alternativo” que se oferece ao leitor brasileiro atual é confrontado ao “velho” Manifesto
marxista, para que se possa pelo menos verificar o grau de empréstimos intelectuais efetuados
em sã consciência e restabelecer assim os “direitos morais” dos autores originais.
Aqueles que não conseguem compreender Marx, poderíamos parafrasear, estão
condenados a repetir Lênin, com seu cortejo de decisões desastrosas do ponto de vista
econômico, para não falar das tragédias políticas acumuladas em décadas de “centralismo
democrático”. O autor destes pequenos “ensaios filosóficos” acredita que há enormes virtudes
heurísticas na teoria marxista, mas ela não pode ser tomada como um a priori metodológico, e
muito menos como um corpo doutrinal cristalizado ou um receituário desprovido de
condicionalidades temporais. É possível, dessa forma, uma leitura “marxista” do velho
Manifesto, assim como é possível uma leitura resolutamente marxista de uma outra bête noire
da esquerda e dos socialistas: a exploração, a pura e dura exploração do homem pelo homem.
O ensaio provocador sobre essa espinhosa questão dormiu durante mais de uma década em
meus arquivos de trabalhos, entregue à “crítica roedora dos ratos”, como afirmou Marx em
relação à Ideologia Alemã. Ele na verdade tinha sido escrito com intuitos deliberadamente
provocadores, numa época em que eu frequentava ocasionalmente um grupo de reflexão sobre
os problemas brasileiros animado por Cristovam Buarque, então reitor da UnB. O atual
governador de Brasília é o que se pode chamar de “marxista não-religioso”, ou seja, o
protótipo do livre-pensador filosófico, unicamente comprometido com a correta resolução dos
problemas sociais, e não com a defesa “irracional” de velhas teorias supostamente de
esquerda. Ele certamente aprendeu, no curso de sua gestão à frente do Distrito Federal, que
um orçamento não é de esquerda ou de direita, mas que se trata tão simplesmente de uma peça
118
fria e objetiva, que se destina basicamente a organizar recursos escassos para dar-lhes
prioridades sociais relevantes, algo que a velha esquerda demora a aprender.
Se existe, portanto, um sentido político explícito nos ensaios aqui coletados, ele
poderia ser resumido na seguinte lição: deve-se aceitar algo da mensagem propriamente
“messiânica” do velho Marx, no sentido de continuar a acreditar que uma sociedade mais
justa é possível e que ela pode ser construída pela vontade dos homens organizados em
partidos e em associações políticas; mas deve-se recusar de igual forma o messianismo
“irracional” da vertente “poética” do mesmo Marx, no sentido de acreditar que as grandes
transformações sociais podem ser efetuadas num simples passe de mágica social. Abolir a
propriedade privada e, simultaneamente, as leis do mercado foram empreendimentos
prometéicos, que estavam acima da capacidade organizacional efetiva de um cérebro
filosófico como o de Marx: ele pode ter estudado a economia política dos velhos clássicos,
mas certamente nunca soube fechar um balanço contábil — aliás, sequer o doméstico, quanto
mais o de uma fábrica — e tinha uma visão ingênua sobre a efetiva “administração das
coisas” ou sobre como efetuar uma adequada “gestão dos homens”. Pode-se, assim, ler Marx
e utilizá-lo no debate político contemporâneo, mas deve-se fazê-lo armado daquela virtude
que o grande historiador Sérgio Buarque de Holanda transmitiu ao ginasiano que eu era em
princípios dos anos 60: preservar um “ceticismo sadio” na recepção de certas “verdades
reveladas”, o que significa basicamente manter um certo distanciamento crítico em relação
aos escritos dos “grandes homens” do passado e do presente.
Aqueles que percorrerem estas páginas devem estar armados do mesmo ceticismo
sadio e da mesma atitude crítica em relação a muitas das afirmações ousadas aqui contidas,
como recomendado pelo grande historiador brasileiro ao jovem aprendiz em sociologia e
história que eu era quase quarenta anos atrás. O percurso foi certamente sinuoso, entre as
ilusões esquerdistas da juventude e a atitude mais serena do atual estudioso dos problemas
sempre recorrentes da formação social brasileira. Em todo caso, o livro se oferece como um
convite ao diálogo e à reflexão, numa perspectiva marxista não dogmática e livre de qualquer
grilhão conceitual do passado.

Brasília, julho de 1998.


Prefácio ao livro publicado.

119
Política externa e diplomacia econômica do Brasil

Paulo Roberto de Almeida:


O Brasil e o multilateralismo econômico
(Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999)

Paulo Roberto de Almeida:


O estudo das relações internacionais do Brasil
(São Paulo: Editora da Universidade São Marcos, 1999)

Yves Chaloult e Paulo Roberto de Almeida (coords.):


Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social
(São Paulo: LTr, 1999)

Os três livros aqui apresentados sumariamente constituem contribuições adicionais do


diplomata e acadêmico Paulo Roberto de Almeida para a análise e o debate sobre aspectos
essenciais da política externa brasileira, o último deles feito em coordenação com seu colega
da UnB, Yves Chaloult, e reunindo artigos de colaboradores diversos sobre o tema mais
controverso da atualidade, a formação da Alca.
O primeiro apresenta-se basicamente como uma história do multilateralismo na área
econômica, tema pouco frequentado por nossos estudiosos de relações internacionais, que têm
preferido oferecer análises de diplomacia tradicional, sobre política externa brasileira e sobre
as relações bilaterais com as principais potências, em particular. O Brasil e o multilateralismo
econômico acompanha um século e meio de construção das instituições internacionais no
terreno econômico, sobretudo na vertente comercial (GATT e OMC) e financeira (FMI,
Banco Mundial), mas também em órgãos de cooperação econômica como a OCDE. Os
diferentes capítulos do livro tratam sucessivamente do Brasil no processo de globalização, da
inserção do País na economia mundial nos últimos dois séculos, da emergência do
multilateralismo contemporâneo, entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, da
reconstrução da ordem econômica mundial no pós-guerra, da estrutura e funcionamento das
principais instituições nessa área (FMI-BIRD, OCDE, GATT-OMC, UNCTAD), do novo
panorama econômico internacional e do problema sempre presente do desenvolvimento,
assim como das grandes forças da interdependência mundial (globalização e regionalização).
Uma série de apêndices contendo quadros analíticos sobre as relações econômicas
internacionais e a evolução da diplomacia econômica no Brasil completam a informação deste
livro.

120
O segundo livro resulta de aulas e materiais de pesquisas elaborados pelo autor no
período recente, denotando uma preocupação didática com a formação dos estudantes nos
muitos cursos de relações internacionais que tem sido criados nos últimos anos em faculdades
privadas do Brasil. O capítulo mais substantivo do livro é provavelmente o de número 4, “A
produção brasileira em relações internacionais: tendências e perspectivas”, que sintetiza
praticamente meio século de evolução conceitual, metodológica e substantiva dos estudos de
relações internacionais no Brasil, com um balanço bastante completo dessa produção.
Elaborado a pedido da ANPOCS, o trabalho apresenta-se aqui em sua versão ampliada,
mostrando inclusive o crescimento contínuo dos cursos (em todos os níveis) nessa área no
período recente. Igualmente importantes são os capítulos 1, “O Brasil no contexto econômico
mundial: 1820-1992”, que acompanha quase dois séculos de inserção econômica
internacional do País, e o 3, “A estrutura constitucional das relações internacionais no Brasil”,
uma discussão exaustiva sobre os dispositivos constitucionais que afetam as relações
exteriores do País e as lacunas ainda pendentes nesse ordenamento. O livro comporta ainda
dois capítulos metodológicos, um sobre a periodização das relações internacionais do Brasil e
outro sobre a própria cronologia dessas relações internacionais do Brasil, desde 1415 até
2000. Como no caso do volume anterior, o livro traz ainda, como informação em apêndices,
quase duas dezenas de tabelas estatísticas e de quadros analíticos que utilmente
complementam a discussão dos capítulos substantivos.
O terceiro volume, finalmente, partiu de projeto elaborado inicialmente por Yves
Chaloult, redesenhado em colaboração com Paulo Almeida, e que resultou na compilação de
estudos encomendados a diversos especialistas nos temas da integração hemisférica. Ele
oferece uma discussão não exaustiva, mas em alguns capítulos bastante completa, dos
problemas com que se defrontam tanto o Brasil como o Mercosul no processo de construção
da Alca, na qual o tema das implicações sociais (que é diferente dos chamados “padrões
laborais”, que vem sendo impulsionado de forma unilateral pelos Estados Unidos) tem sido
normalmente descurado pelos seus proponentes. Também aqui, uma cronologia relacional dos
progressos da integração no hemisfério permite colocar em perspectiva os esforços atuais em
torno da Alca, uma repetição geral de iniciativa tomada há mais de um século, na primeira
conferência internacional americana de Washington, realizada entre 1889 e 1890. Então como
agora, os Estados Unidos procuram abrir os mercados dos países vizinhos a seus produtos,
dotados de grau razoável de competitividades (economia de escala, avanço tecnológico,
facilidades creditícias), ao mesmo tempo em que buscam preservar alguns setores da

121
concorrência externa (mediante cotas tarifárias para suco de laranja, por exemplo, ou o
recurso abusivo a medidas antidumping).

Washington, 12 de fevereiro de 2001.


GEDIM (Globalização Econômica e Direitos no Mercosul),
Anuário GEDIM 2001
(Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003; p. 603-605).

122
Mercosul, com savoir faire

Paulo Roberto de Almeida:


Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud
(Paris: L’Harmattan, 2000, 160 p.; collection: Recherches et documents Amériques Latines,
série Brésil; préface de Georges Couffignal; trad. du Portugais sous la coordination de
Idelette Muzart-Fonseca dos Santos; ISBN: 2-7384-9350-5)

O sociólogo e doublé de diplomata Paulo Roberto de Almeida vem há longos anos


administrando uma carreira que, precisamente, à diferença das tradicionais funções gerenciais
no setor privado ou governamental (que são mais diretamente executivas), tem apoio nas duas
vertentes do esforço analítico e do trabalho operacional que caracterizam, de um lado, o
acadêmico e, de outro, o negociador externo. Essas duas faces são, em primeiro lugar, o
estudo sistemático de uma determinada problemática, inclusive em suas dimensões históricas,
seguido, numa fase de implementação prática, pela formulação de princípios para a atuação
diplomática que guardem conexão com o contexto geopolítico mais amplo e as implicações
gerais para a interface externa do país. Esta digressão sobre as virtudes respectivas do
universitário e do diplomata, as duas atividades em que se tem empenhado o autor deste livro,
tem sua razão de ser e estão diretamente vinculadas às qualidades (e talvez algumas
limitações) de seu livro, ora em resenha.
O observador livre ou o estudioso acadêmico, desprovidos de missões negociadoras
concretas, podem permitir-se o lazer de discorrer detalhadamente – e até de escrever livros
inteiros – sobre a natureza dos organismos internacionais e de formular recomendações
prescritivas sobre como deveriam eles ser aperfeiçoados em nome do bem comum e dos
princípios mais altos da racionalidade instrumental. Já o diplomata, pode até mesmo
concordar, pessoalmente, com muitas dessas sugestões e recomendações que fazem
usualmente os primeiros, mas ele é obrigado a atuar, por um lado, em função de instruções
precisas emanadas de sua chancelaria, por outro levando em conta a relação de forças num
determinado foro internacional e aplicando uma certa dose de realismo político sobre como
melhor defender os interesses nacionais de seu país, em vista das limitações impostas por
qualquer quadro negociador concreto, bilateral, pluri ou multilateral. A construção do “direito
internacional” num órgão como o velho GATT, a nova OMC, ou a decisão pela renúncia
parcial de soberania e assunção consequente de novas obrigações em processos de integração,
como o Mercosul ou a UE, medidas dotadas de real impacto na economia e na sociedade
nacionais, têm pouco a ver, na maior parte dos casos, com a racionalidade intrínseca desses
123
esquemas internacionais ou regionais, e mais com a composição possível de interesses
temporários de uma coalizão de forças, atuando mediante representantes de governo como são
os diplomatas.
Estas considerações, clássicas para quem se ocupa de processos decisórios, explicam
algo da essência deste livro, dedicado a explicar ao leitor francês a história e o
desenvolvimento do Mercosul, suas especificidades em relação a um suposto “modelo”
europeu de integração, devidamente circunscrito pelo autor, assim como os problemas atuais
desse bem sucedido esforço integrativo que está completando dez anos de vida. Como disse o
prefaciador, o latino-americanista francês George Couffignal, o grande mérito de Paulo
Roberto de Almeida é o de tratar das dificuldades do Mercosul com grande conhecimento de
causa, uma vez que ele esteve envolvido em diversas etapas do processo integracionista não
como mero observador externo, mas como um de seus negociadores, sobretudo nos aspectos
institucionais. Ele também não esconde, como ressalta Couffignal, suas próprias
interrogações, num capítulo final apropriadamente intitulado “o futuro do Mercosul”. As
grandes questões, como ressaltou ainda o especialista francês, são a baixa institucionalidade
do esquema e sua opção pela manutenção do modelo intergovernamental (que o autor chama
de “modelo Benelux”).
Estes não são, entretanto, os principais problemas do Mercosul, pois Paulo Almeida
tem plena consciência de que não se poderia avançar de outro modo no cone sul: ou seja,
qualquer tentativa de “empurrar” com maior força qualquer esquema mais elaborado de
organização institucional para o Mercosul – sem mesmo considerar a opção pela
supranacionalidade, que seria virtualmente impossível, segundo ele – teria provavelmente
redundado num desastre político de grandes consequências para os países membros, ao
colocar em confronto as burocracias nacionais (engajadas no esforço de estabilização
macroeconômica) e uma hipotética “mercocracia” montevideana. Não resta dúvida sobre
quem seria a parte mais fraca nos impasses que inevitavelmente surgiriam entre a tecnocracia
mercosuliana e os tecnocratas nas capitais (estes sim, dotados de poder), com o descrédito
consequente para o próprio processo de integração. Este, portanto, não é o centro da discussão
de Paulo Almeida, em seu livro, que reproduz grandes trechos de seu equivalente em
português publicado no Brasil dois anos antes (Mercosul: fundamentos e perspectivas; São
Paulo: LTr, 1998). O que está em jogo no Mercosul é a necessidade inadiável de seu
aprofundamento estrutural (ou seja, cobrindo cada vez mais áreas de liberalização no terreno
econômico e comercial, estrito senso) e um grau adequado de coordenação política entre os

124
quatro sócios para a condução da agenda externa de negociações, esta sim desafiadora e, em
última instância, potencialmente desagregadora do Mercosul.
Paulo Almeida não parece acreditar muito – e nisso reside a limitação apontada acima,
relativa ao fato de que se trata, obviamente, de um funcionário disciplinado da burocracia
governamental brasileira – que o Mercosul necessite, no momento, de maior grau de
institucionalidade ou de maior aprofundamento político. O que ele precisa, segundo ele, é de
fortalecimento interno para poder negociar externamente. O perigo maior, segundo o autor, é
que permanecendo o Mercosul como uma mera união aduaneira – e de fato como uma zona
de livre comércio dotada de níveis tarifários comuns – ele venha a se diluir na futura área de
livre comércio hemisférica, tal como prometida pelo processo de Miami, de 1994, e em curso
de croisière desde pelo menos a cúpula de Santiago (1998). Ainda que a vocação final do
Mercosul – um mercado comum, sem os exageros institucionais e os desvarios setoriais,
sobretudo na área agrícola, do esquema europeu – seja institucional e politicamente superior à
Alca, ele não poderá sobreviver, na prática, ao desafio do futuro “elefante” hemisférico , caso
este venha a concretizar-se. Estes são os principais elementos em discussão no texto de Paulo
Almeida, que merecem leitura e reflexão por parte de todos aqueles interessados no progresso
econômico e social dos países do Cone Sul.
O Mercosul é, como mostra Paulo Almeida, o mais bem sucedido dos esquemas
integracionistas latino-americanos, e o único esforço de mercado comum credível envolvendo
países em desenvolvimento (as demais tentativas atuais ou passadas, centro-americanas,
caribenhas ou em outros continentes, não se justificam como empreendimento e são
irrelevantes no porte efetivo das economias engajadas). Por isso mesmo, seus dirigentes
devem atuar com cuidado para evitar que se quebre a louça antes do casamento, que poderia
resultar de um “salto maior do que a perna” antes do tempo. Esses são os argumento
subjacentes ao livro de Paulo Almeida que devem ser sublinhados, e que já faziam parte da
edição brasileira do livro. Para a edição francesa contudo, ele eliminou quase toda a
argumentação que constava do capítulo “europeu” da versão original, brasileira, do livro, e
introduziu atualizações e modificações que devem facilitar ao leitor francês e europeu o
conhecimento acurado desses esquema sud-américain. O autor, aliás, efetuou uma curiosa
opção por um neologismo – Mercosud – que de fato não é muito comum na designação
internacional do Mercosul, que prefere reter o acrônimo espanhol. Mas, seria uma grande
incongruência pedir a um autor brasileiro que adotasse uma das versões oficiais da designação
do esquema integracionista, em detrimento da sua própria língua. A bibliografia que
complementa o livro – inclusive no que se refere aos recursos de Internet – procurou
125
congregar o que existia sobre o Mercosul à disposição do público francês, o que não é muito,
daí vários outros títulos em espanhol e em inglês. O mesmo livro mereceria, a propósito, ser
traduzido para o inglês, ou talvez pudesse seu autor, atual Ministro Conselheiro na Embaixada
do Brasil em Washington, prepara uma versão totalmente nova, voltada para o público anglo-
saxão. Será uma outra maneira de defender a causa do Mercosul frente ao desafio do Nafta e
da Alca.

Washington, 8 fev. 2001.


In: José Gabriel Assis de Almeida (org.):
Anuário do GEDIM 2001
(Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001).

126
Contribuições à história diplomática do Brasil: Fernando de Mello Barreto,
ou a volta ao factual de qualidade

Fernando P. de Mello Barreto Filho:


Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001, 364 p; ISBN: 85-219-0389-8)

Em 1954, com 70 anos, idade na qual a maioria dos profissionais prefere encerrar suas
atividades, Carlos Delgado de Carvalho, um representante do Brasil belle époque (ele morreu
em 1980, com 96 anos), aceitou dar início a uma nova fase de sua já longuíssima, e intensa,
vida acadêmica, desempenhando-se – na sucessão do ex-titular da cadeira, José Honório
Rodrigues – como professor de História Diplomática no Instituto Rio Branco. Dessa
experiência resultaria, em 1959, o livro História Diplomática do Brasil, que durante várias
décadas (praticamente até o aparecimento, em 1992, de História da Política Exterior do
Brasil, por Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno) constituiu-se em um manual didático útil
ao estudioso que desejasse adquirir uma visão ampla das relações exteriores do Brasil, em
quatro séculos de história (o Senado Federal fez uma reimpressão fac-similar em 1998, por
minha sugestão, reeditada em 2000).
Felizmente, Fernando Barreto começou bem mais cedo, razão pela qual, ao saudar o
lançamento deste livro, que pode ser considerado como um legítimo herdeiro da obra de
Delgado de Carvalho, temos o direito, e talvez o dever, de pedir-lhe a continuidade deste
empreendimento exemplar, que, como textbook acadêmico, cumpre de maneira amplamente
satisfatória o papel de informação geral e fatual sobre os eventos e processos que marcam as
relações exteriores e a inserção internacional do Brasil desde a morte do Barão do Rio Branco
até o advento da república dos generais, em 1964. Ele está desde já convocado a oferecer-nos
a suite – que estou certo existe nos working files do seu computador – deste doravante
indispensável manual de navegação sobre a política externa brasileira da era pós-Delgado de
Carvalho.
Com efeito, o que mais chamava a atenção no livro de Delgado era sua atualidade, já
que todo o passado colonial português, normalmente valorizado em obras de autores
tradicionais (como Hélio Vianna, por exemplo, que em 1959 também publicou seu História
Diplomática do Brasil), recebia apenas um tratamento introdutório com a modesta extensão
de 19 páginas. Todo o resto era Brasil independente e mais da metade dedicado ao Brasil
República. Delgado tinha feito uma opção preferencial pela contemporaneidade, às vezes até

127
pela atualidade mais imediata, como era o caso da Operação Pan-americana, iniciativa
conduzida pela diplomacia de Juscelino Kubitschek e que estava ainda se desenvolvendo no
momento mesmo do fechamento do livro. Mais atualidade, impossível: tratava-se do mais
puro exercício do que os franceses chamariam de histoire immédiate.
Havia contudo uma insuficiência manifesta no tratamento dado por Delgado à política
externa brasileira no período pós-Barão do Rio Branco: as políticas externas dos governos
republicanos eram examinadas num único capítulo, “Rio Branco, Chanceler da Paz e seus
Sucessores”, o que se revelava totalmente inadequado em razão da complexidade dos
problemas em cada época, sobretudo no período varguista, extremamente intenso em lances
internacionais (a começar pela própria depressão dos anos 30, que nos obrigou a
inadimplências eventuais, a defaults involuntários e à negociação de novos acordos para o
pagamento da dívida externa herdada da velha República e, sobretudo, em razão da Segunda
Guerra Mundial). Mais ainda, as relações internacionais do Brasil entre 1913 e 1959 estavam
comprimidas nas últimas 20 páginas desse capítulo, mas segundo uma abordagem
essencialmente biográfica dos fatos mais relevantes desse longo período, como se a política
externa dos “sucessores” de Rio Branco tivesse sido realmente determinada pelas orientações
pessoais de cada um dos chanceleres.
Na verdade, o livro de Delgado continha também uma abordagem suplementar de
algumas questões relevantes para a inserção internacional do Brasil: a doutrina Monroe e as
intervenções americanas do início do século XX, o pan-americanismo acadêmico (na verdade
um importante capítulo, cobrindo o desenvolvimento jurídico do pan-americanismo e depois
uma série de grandes temas de nossa política exterior regional), os Estados Unidos e as
“repúblicas latinas” (de fato as relações Brasil-Estados Unidos) e o isolacionismo e as guerras
mundiais (tratando inclusive do problema da Liga das Nações). O enfoque, entretanto, era
exclusivamente político, segundo a visão da história tradicional, com uma descrição da
política das chancelarias e algumas (raras) pinceladas sobre os problemas econômicos
envolvidos. Não havia, assim, um tratamento adequado da política externa no contexto de um
país agroexportador, em processo de industrialização e ocupando uma posição relativamente
marginal na macroestrutura mundial.
A obra de Delgado de Carvalho era realmente preciosa pelo que tinha de acúmulo de
fatos históricos, mesmo se muitos processos relevantes eram completamente descurados,
como por exemplo as grandes conferências econômicas do pós-guerra, de Bretton Woods às
rodadas do GATT, ou a conferência de Havana de 1947-48 e as reuniões econômicas e
comerciais pan-americanas dos anos 50, mencionadas apenas en passant. Os fatos e processos
128
de tipo econômico, como as grandes correntes de comércio, a interface externa do esforço
industrializador brasileiro e outros exemplos de inserção econômica mundial, perdiam-se no
emaranhado de acontecimentos políticos que recheavam — ou ocupavam plenamente — o
livro de Delgado.
Fernando Barreto também adota o esquema cronológico neste livro, organizando seu
racconto storico de meio século de vida diplomática republicana de acordo com as gestões
dos chanceleres que, desde Lauro Muller até Araújo Castro, sucederam-se na cadeira do
Barão. Os principais lances – senão quase todos os grandes episódios – da política externa
brasileira de 1912 a 1964 são seguidos ano a ano, em compilação exaustiva dos eventos.
Fatos, basicamente fatos, são apresentados sequencialmente, em cinco partes sucessivas: a
República velha, a era Vargas, a Guerra Fria, JK e a Operação Pan-Americana e a Política
Externa Independente.
Este livro oferece, segundo uma metodologia convencional, mas diferente do estilo
belle époque de Delgado, uma visão abrangente, quando não suficientemente completa, das
relações exteriores do país até o advento da era militar. Ele confirma as qualidades da história
fatual, e mesmo seu caráter indispensável a todo e qualquer pesquisador que pretenda realizar
a inserção desses fatos na trama mais ampla das relações internacionais do Brasil, sobretudo
em sua vertente econômica externa. Cabe com efeito destacar que, ao início de cada seção,
Fernando Barreto comparece com informações objetivas, tabelas estatísticas, gráficos seriais
ou quadros analíticos apresentando a situação econômica do país naquela conjuntura
(comércio exterior, dívida, reservas, investimentos estrangeiros etc.).
Como se situa Os Sucessores do Barão no conjunto dos trabalhos que trataram da
política externa brasileira contemporânea? Certamente como obra de referência de primeiro
plano, mas com características próprias de conteúdo e método. O livro pertence à categoria
das obras gerais, constituindo um grande esforço de síntese em relação a uma soma apreciável
de fatos, eventos e episódios que marcaram nossa história política e nossa inserção
internacional no meio século por ele coberto. Para cumprir tais objetivos, o autor exibe o
mesmo estilo inconfundível que Delgado tinha imprimido à sua obra já citada: precisão,
concisão, objetividade, num espírito propriamente cartesiano. O escopo de Fernando Barreto é
igualmente delimitado, ao pretender tão somente fazer uma síntese expositiva das grandes
marcas da política externa e das relações exteriores do Brasil, não necessariamente avançar no
terreno da pesquisa de arquivos, da discussão conceitual ou da elucidação analítica de
problemas complexos de nossa inserção internacional no período. Não é o que se pede, aliás,
de uma obra do gênero, que deve procurar ostentar, acima de tudo, clareza e sobriedade,
129
evitando julgamentos apressados e destacando, em especial, a continuidade que sempre
caracterizou a política externa brasileira.
Mesmo com um enfoque essencialmente factual, o autor oferece algumas linhas
evolutivas desse relacionamento externo em seu epílogo. Ele constata, por exemplo, o
reduzido número de países que mobilizou a atenção do Itamaraty nesse meio século: “em
primeiro plano, os Estados Unidos (aproximação), Argentina (rivalidade) e Alemanha
(confronto). Em categoria menos proeminente, ocuparam a reflexão do Itamaraty outros
países europeus, tais como a Inglaterra (atritos diplomáticos em decorrência dos bloqueios
marítimos das duas guerras mundiais), França (solidariedade na Primeira Guerra e envio de
médicos), Itália (único país em que tropas brasileiras tiveram atuação militar) e Portugal
(política de apoio ao colonialismo até a década de 1960), além de vizinhos sul-americanos,
em especial o Paraguai (Guerra do Chaco) e a Bolívia (petróleo, estrada de ferro)” (p. 275).
Outra observação refere-se ao gradual afastamento do cenário europeu e ao “contínuo
acercamento dos Estados Unidos”, triângulo em função do qual a política externa brasileira
buscava as melhores condições para o “atendimento de seus interesses” (p. 276). Como
explica Fernando Barreto, “Havia fortes razões econômicas para esse acercamento político de
Washington”, o que se traduzia praticamente num único grande produto de exportação: café.
Mais recentemente esse movimento pendular teve outros vetores, como no caso dos acordos
nucleares com a Alemanha ou, através do Mercosul, a tentativa atual de contrabalançar as
negociações em torno de uma área hemisférica de livre comércio (Alca) com processo
equivalente em direção da União Europeia.
O mesmo epílogo traz lúcidas análises sobre a orientação e o caráter geral de cada um
dos subperíodos enfocados, com apreciações das políticas desenvolvidas pelos presidentes ou
chanceleres envolvidos nos principais episódios enfocados. Cada um dos 21 ministros das
relações exteriores que sucederam ao Barão, geralmente políticos ativos em suas respectivas
agremiações partidárias, merece uma epigrafe resumindo o essencial das ações desenvolvidas
sob sua gestão, o que por outro lado serve para confirmar que “o Itamaraty tem gozado de
relativa autonomia na condução da política externa. Com exceção de alguns governos em que
o presidente exerceu sua influência direta mas mesmo assim esporádica (Epitácio Pessoa,
Arthur Bernardes, Getúlio Vargas), verifica-se que frequentemente a Casa do Barão tomava
decisões sem interferência de outros ministérios, mesmo os militares (salvo talvez no episódio
da não participação do conflito coreano) ou do Congresso” (p. 285). O abandono do
neutralismo nas duas guerras mundiais é visto por Fernando Barreto como positivo para a
inserção internacional do país: “Tivesse a política externa brasileira sucumbido a pressões
130
para manter a neutralidade, como fez Buenos Aires, talvez não tivesse atingido os objetivos
que pretendia na época, fossem estes de industrialização ou de reequipamento militar. Não
teria feito parte, desde sua criação, dos órgãos internacionais criados, como Nações Unidas,
Banco Mundial, FMI e GATT. Difícil ter precisão sobre essas consequências, mas certamente
pode-se imaginar que outra teria sido a aceitação brasileira no seio do mundo pós-guerra” (pp.
285-86). Os episódios de frustrações diplomáticas nesse período – como o da Liga das
Nações, em 1926 – foram poucos, o que habilita Fernando Barreto a terminar sua avaliação
global afirmando que “essas instâncias [de desacerto] foram menos numerosas do que as de
acerto e o balanço geral foi positivo” (p. 286).
O livro aparentemente não foi submetido pela editora a processo acurado de revisão, o
que explica a manutenção de diversos erros de digitação e de alguns deslizes de redação, o
que certamente será corrigido numa futura reedição. A informação é enriquecida por
remissões bibliográficas precisas e por notas abrangentes (dando nomes de integrantes de
delegações e resumos biográficos de personagens secundárias, por exemplo), mas lamente-se
a opção por uma longa seção final de notas numeradas de 1 a 1500, não no formato mais
cômodo do rodapé. A bibliografia é exaustiva, podendo ser complementada, numa futura
reedição, com a indicação das já numerosas e diversificadas fontes de documentos disponíveis
em páginas da Internet. Numa obra como esta, o índice remissivo deveria oferecer um
complemento útil ao leitor interessado em seguir determinadas referências temáticas ao longo
do meio século republicano, mas ele ganharia muito se fosse subdivido em conceitos
analíticos mais detalhados: assim, os Estados Unidos, que – junto com a Argentina, a
Alemanha, o café ou Getúlio Vargas – concentram uma boa fração das referências (com mais
de duzentas remissões às páginas do livro), poderiam ser objeto, em futura reedição, de
entradas específicas, do tipo: acordo comercial de 1935, negociações financeiras de 1939,
acordo militar de 1952, renovação em 1964 etc.
O prefácio do chanceler Celso Lafer destaca as principais virtudes da obra e chama a
atenção para o que vem sendo apontado como a principal característica da diplomacia
brasileira: a mudança na continuidade. A preservação das linhas básicas da política externa
brasileira ao longo das décadas deve-se a seu caráter intelectualmente reflexivo, politicamente
cauteloso, operacionalmente coordenado e essencialmente discreto em termos de mídia.
Como dizem acertadamente nossos vizinhos: “El Itamaraty no improvisa!” (talvez devesse
fazê-lo em determinadas ocasiões, para não dar a errônea impressão de lentidão ou
passividade).

131
Diversas fotos e algumas ilustrações, ao lado dos já citados gráficos e tabelas
compõem o aparato não textual deste livro, cuja bela capa traz uma foto do velho palácio
Itamaraty do Rio de Janeiro, à qual se sobrepõe um busto do próprio Barão, uma das raras
unanimidades nacionais no panteão algo rarefeito dos heróis da pátria. Nenhum dos seus
sucessores, com exceção talvez de Nilo Peçanha (que já tinha sido presidente), de Oswaldo
Aranha e de San Tiago Dantas, alcançou especial notoriedade ou relevo político especial no
“breve século XX” aqui enfocado. Em todo caso, o levantamento cuidadoso da ação dos 21
chanceleres pertencentes ao período selecionado permite uma visão abrangente dos problemas
internacionais enfrentados pelos titulares da Casa de Rio Branco ao tentar inserir o Brasil no
mundo. A tradição continua a ser seguida pelos 13 outros “sucessores” (contando o próprio
Celso Lafer) do período pós-1964, objeto de um segundo volume que Fernando Barreto está
convocado a terminar e publicar o quanto antes. A dedicação à história diplomática pode ser,
aliás, um trunfo nos meandros político-burocráticos da carreira e o próprio Barão deveu
grande parte de sua notoriedade original ao fato de que ele tinha se dedicado por longos anos
à pesquisa em velhos documentos, a uma compulsiva curiosidade livresca e ao exercício da
pena.

Washington, 18 de agosto de 2001.


Inédito na versão completa.
Publicado em formato reduzido na revista Política Externa
(São Paulo: vol. X, nº 3, dezembro de 2001-fevereiro de 2002, p. 174-177).

132
A diplomacia econômica do Brasil em perspectiva histórica

Paulo Roberto de Almeida:


Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império
(São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 p., ISBN: 85-7359-210-9)

A diplomacia brasileira é geralmente conhecida pela excelência de seus quadros e pela


notável constância de suas posições políticas. A ela são creditados ganhos políticos
importantes, tanto num passado distante, em termos de conformação do território pátrio, por
exemplo, como no presente, sob a forma da boa convivência regional, do continuado respeito
que o País ostenta aos princípios do direito internacional, da própria credibilidade política de
sua diplomacia, como, por vezes, do apoio (moderado) que o Brasil tem emprestado a missões
de manutenção da paz conduzidas multilateralmente.
Mas, como avaliar o desempenho de longo prazo dessa diplomacia num setor que toca
diretamente aos interesses maiores da Nação: os resultados na frente econômica, em primeiro
lugar no sentido de impulsionar o desenvolvimento nacional? Terá sido essa diplomacia
funcional e instrumental do ponto de vista desse objetivo, isto é, adequada aos requisitos de
progresso econômico e de bem estar social? Soube ela captar recursos externos e angariar
apoio material para a aceleração das taxas de crescimento econômico e do processo de
modernização tecnológica do País? Em uma palavra, qual foi a contribuição da diplomacia ao
desenvolvimento da Nação?
Uma avaliação ponderada desse tipo de questão passa, antes de mais nada, pelo exame
das relações econômicas externas do Brasil, considerando tratar-se de um país periférico,
dispondo de poucos excedentes de poder político e econômico e de reduzida capacidade de
projeção externa. A natureza dessas relações foi também tributária da estrutura econômica e
social do País, cuja história econômica se confunde, até há poucas décadas com a sucessão de
ciclos dominantes de algum produto de exportação. Na terminologia da economia política, as
relações econômicas internacionais do Brasil passam, entre o início do século XIX e meados
deste, de uma diplomacia do primário, comprometida com a promoção de alguns poucos
produtos de base integrando sua pauta de exportação, para a crescente afirmação de uma
diplomacia do secundário, voltada essencialmente para a grande tarefa da industrialização
substitutiva e da capacitação tecnológica nacionais, antes de adentrar, no período recente, na
diversidade de temas e de interesses econômicos que poderão conformar, no presente e no

133
futuro, uma diplomacia do terciário, isto é, da era dos serviços, a qual parece caracterizar o
mundo atual e o sistema contemporâneo de relações econômicas internacionais.
Uma avaliação desse desempenho no longo prazo da diplomacia brasileira, cuja
metodologia poderia ser identificada a um ensaio de “interpretação econômica” de sua
história diplomática, deve partir das etapas formadoras da diplomacia econômica no Brasil,
retraçando o itinerário das relações econômicas internacionais da Nação durante o século
XIX, desde a transferência da Corte em 1808 e constituição do Estado nacional, até a era
contemporânea, ou seja cobrindo tanto o período monárquico como a era republicana. Uma
visão de largo prazo como a que aqui se propõe tem necessariamente de ser apresentada de
forma sintética, mas a produção acadêmica já acumulada no campo da historiografia
econômica, bem como a excelente documentação de base disponível – em primeiro lugar os
primorosos e completos relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, sob o
Império, e do Ministério das Relações Exteriores sob a velha República – permitem um tal
empreendimento analítico.
Qual seria, em primeiro lugar, a “matéria-prima” dessa avaliação? Dentre as questões
mais relevantes para o exame da “formação” da diplomacia econômica no Brasil no século
XIX estão as seguintes: os tratados de comércio e a política tarifária, o constante recurso aos
empréstimos externos, o ingresso de investimentos estrangeiros diretos, o contencioso com a
Grã-Bretanha sobre o tráfico escravo e os problemas encontrados pelo Estado monárquico
para garantir um fluxo regular de imigrantes livres (em face da política dos fazendeiros de
manutenção do trabalho escravo ou da simples “importação de braços para a lavoura”, ainda
que colonos europeus), bem como a precoce presença do Brasil em incipientes foros
“multilaterais” (União Geral dos Correios, União Telegráfica Universal e União de Paris
sobre propriedade industrial, no último terço do século XIX). Para a primeira metade do
século XX, por sua vez, a análise certamente cobriria os problemas seguintes: tímidos
esforços de “promoção comercial” do produto de maior competitividade na economia
brasileira, o café (uma vez que a borracha, temporariamente importante no começo do século,
mais era objeto de compra do que propriamente vendida), seletividade criteriosa dos
compromissos comerciais externos (uso limitado da cláusula de nação-mais-favorecida nos
acordos bilaterais de comércio), contratação de empréstimos para fins de valorização do café
e de sustentação da moeda, política migratória orientada por critérios raciais e crescentemente
restritiva, preocupação constante com o aggiornamento tecnológico para fins de
desenvolvimento industrial, participação moderada nas principais conferências econômicas do

134
período e restrições crescentes à interdependência econômica (prática instintiva de um
protecionismo comercial que, de fiscal, se converte em instrumento de política industrial).
Não se deve ver nesse tipo de trabalho analítico uma versão economicista da já
abundante historiografia sobre a política externa brasileira, nem uma tentativa de se
reinterpretar a história diplomática do Brasil segundo uma “concepção materialista”. Com
efeito, o itinerário da política internacional do País não poderia ser descrito unicamente com
base nas relações econômicas internacionais do País, nem as relações exteriores do Estado
monárquico e as dos governos republicanos que lhe sucederam poderiam ser construídas
como se constituíssem uma espécie de sobredeterminação da ordem econômica mundial na
qual elas estariam inseridas. Mas, pode-se concordar com um eminente historiador não
marxista no sentido em que “tudo parte da história econômica”. Com efeito, como diz Pierre
Chaunu, “é à História econômica que cabe o privilégio de mudar a História, de dar
progressivamente origem a uma forma de História, a que chamamos serial, que sobrepõe suas
próprias exigências, próximas das Ciências Sociais, às exigências sempre válidas da História
tradicional”.1
Assim, mesmo ostentando uma “opção preferencial” pela história econômica da
diplomacia brasileira, uma avaliação como a do tipo proposto neste ensaio deve precaver-se
contra qualquer determinismo econômico ou desvio historiográfico: se a economia é
inegavelmente o mais importante fator na vida de uma nação, os eventos, a escolha das
políticas adotadas em casos concretos, as motivações e orientações gerais das relações
internacionais do Brasil, bem como os traços peculiares de sua política externa “efetiva” não
foram, majoritariamente ou predominantemente, determinados ou moldados pela base
material ou pelas relações econômicas internacionais do País. As grandes questões da política
externa brasileira, inclusive as de política econômica externa, sempre foram políticas e, como
tal, receberam um tratamento essencialmente político.
Um ensaio histórico sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil deve tratar,
assim, de aspectos pouco abordados nos velhos manuais de história diplomática (Delgado de
Carvalho, Hélio Vianna 2) ou mesmo nos clássicos trabalhos de história econômica (Caio

1
Cf. Pierre Chaunu, A História como Ciência Social: a duração, o espaço e o homem na época
moderna. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 69.
2
Cf. Delgado de Carvalho, [Carlos]. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1959; Hélio Vianna, “História Diplomática do Brasil” in História da República-História
Diplomática do Brasil. 2ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, s.d. [1962?], pp. 89-285 (1ª ed.; São
Paulo: Melhoramentos, 1958).
135
Prado, Celso Furtado 3): a diplomacia comercial, a diplomacia financeira (inclusive a do
Brasil enquanto credor dos países platinos), a diplomacia dos investimentos (aqui incluído o
problema da tecnologia proprietária, isto é, das patentes industriais), aquilo que
eufemisticamente se poderia chamar de “diplomacia da mão-de-obra” (continuidade,
enquanto tanto se pôde fazer, do tráfico escravo, e atração de imigrantes europeus), bem como
a emergente diplomacia “multilateral” (a exemplo daquelas primeiras “uniões” técnicas
dedicadas aos correios, à telegrafia e à patentes). Não se poderia esquecer da própria
conformação institucional do “instrumento diplomático” brasileiro no século XIX, isto é, dos
aspectos organizacionais envolvidos na formulação e execução da diplomacia econômica.
Todos esse campos oferecem interesse ao observador contemporâneo que deseje
colocar em perspectiva histórica questões ainda relevantes do relacionamento econômico
externo do País. Não é preciso, por exemplo, sublinhar a importância continuada, e mesmo
crucial, da diplomacia comercial e financeira na história do desenvolvimento brasileiro, bem
como para uma exitosa inserção econômica internacional do Brasil contemporâneo. Da
mesma forma, ninguém disputaria o papel estratégico desempenhado pelos investimentos
estrangeiros e por aportes de tecnologia avançada no aggiornamento da economia nacional. A
diplomacia da força-de-trabalho constitui o que se chamaria atualmente de “política de
recursos humanos”: se hoje o Brasil deixou de ser o grande “importador” de imigrantes que
foi até meados do século XX – tornando-se, ao contrário, um “exportador” moderado de mão-
de-obra – ele ainda necessita do concurso do trabalho especializado vindo de centros mais
avançados, assim como ele envia, regularmente, estudantes e técnicos para formação no
exterior.
No que se refere, por sua vez, à diplomacia multilateral, parece óbvio que, em sua
vertente econômica, ela vem constituindo-se no campo de trabalho por excelência de uma
política externa que deve operar cada vez mais nos limites, condicionalidades e desafios dos
processos de globalização e de regionalização: se a política externa bilateral ainda não
esgotou suas possibilidades de atuação, ela já não mais configura — salvo as exceções de
praxe — o eixo preferencial ou exclusivo da atuação diplomática do Brasil no plano global e
mesmo regional.
Um trabalho analítico desse tipo, centrado nas diferentes formas de atuação da
diplomacia econômica e enfocando o conjunto das relações econômicas internacionais do

3
Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia. 14ª ed.; São Paulo: Brasiliense, 1976;
História Econômica do Brasil. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1949; Celso Furtado, Formação
Econômica do Brasil. 14ª ed., São Paulo: Nacional, 1976.
136
Brasil no século XIX, pode, portanto, contribuir para um conhecimento mais acurado das
linhas básicas do desenvolvimento brasileiro nos dois últimos séculos. A seção seguinte
oferece, com a ajuda visual de um quadro analítico, um panorama geral dessas relações
econômicas e da atuação da diplomacia nos campos selecionados para análise: comércio
exterior e política comercial, finanças (empréstimos e créditos), investimentos diretos
estrangeiros (e a questão das patentes), mão-de-obra (isto é, tráfico e imigração) e, por fim,
organizações emergentes no campo técnico-econômico (multilateralismo incipiente).
As principais características da estrutura do relacionamento econômico externo
durante o Império, ou seja, as especificidades do modo de inserção econômica internacional
do Brasil no século XIX, os processos negociadores e o relacionamento econômico externo do
País poderiam ser assim sumariados:
a) uma política comercial “instintiva”, mais empírica do que doutrinal, marcada por uma
“diplomacia evolutiva”, desde o livre-comércio obrigatório, encontrado em sua “pia
batismal”, a uma espécie de protecionismo oportunista ou ocasional, menos motivado
por preocupações industrializantes do que de fato impulsionado pela precariedade da
base fiscal do governo;
b) na área financeira externa, uma “diplomacia dos empréstimos” que se desenvolveu ao
longo de todo o período, derivada em grande medida da irresponsabilidade do Estado na
frente orçamentária, com a dependência consequente de capitais estrangeiros; a
“diplomacia dos créditos externos” é, por sua vez, excessivamente restrita, em termos
geográficos (apenas países platinos) e em volume de recursos mobilizados, para
justificar sua inscrição como categoria específica da diplomacia econômica do Brasil;
c) uma dupla “diplomacia da mão-de-obra”, resultante da atestada incapacidade das elites
em reestruturar radicalmente a organização social da produção, e que combinou
tergiversações na questão do tráfico escravo e uma tímida política de atração de colonos
europeus;
d) a prática empírica de uma “diplomacia dos investimentos”, refletida no atento
acompanhamento dos progressos tecnológicos em curso na Europa e nos Estados
Unidos e numa prática ativa de atração de capitais produtivos e de novos inventos para
o País; ela é, no entanto, mais reativa do que proativa;
e) uma estrutura funcional-burocrática bastante eficiente na defesa de seus interesses
econômicos externos, com uma profissionalização precoce do pessoal diplomático e um
processo decisório amplamente interativo com os interesses da elite dirigente, por força
do regime parlamentarista em vigor e da presença constante, aliás exclusiva, de
representantes da classe política na chefia da Secretaria de Estado;
f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em todos os países importantes e
em foros internacionais relevantes, de molde a colocar o Brasil no mesmo plano das
demais “potências” do concerto internacional, conformando um exemplo de precoce
diplomacia do multilateralismo econômico, certamente singular na periferia.

O itinerário passado das relações econômicas internacionais e das instituições


intergovernamentais de cooperação que delas derivam, bem como suas tendências evolutivas
neste século e meio de construção de uma “ordem econômica internacional”, tal como vistos
137
pelo ângulo da experiência histórica da diplomacia econômica do Brasil, ensinam talvez que o
processo de desenvolvimento deve ser, cada vez mais, pensado em escala global e que
nenhum país pode continuar a conceber suas políticas setoriais e macroeconômicas numa
perspectiva puramente nacional. O mundo do futuro pertence tanto aos Estados nacionais
quanto às organizações internacionais: como evoluirão as relações entre esses dois tipos de
entidades é uma questão ainda em aberto, inclusive para o Brasil, que participa de um
processo de integração, o Mercosul, que poderá, em última instância, influenciar de maneira
decisiva sua maneira de se relacionar com a comunidade internacional.

Brasília, 21 de março de 1999


Publicado na revista Lua Nova, revista de cultura e política
(São Paulo: CEDEC, nº 46, 1999, p. 169-195).

138
Os estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos: a produção brasilianista no
pós Segunda Guerra

Rubens Antonio Barbosa; Marshall C. Eakin; Paulo Roberto de Almeida (orgs.):


O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-
2001
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 514 p.; ISBN: 85-219-0441-X)

O estudioso estrangeiro de temas brasileiros, usualmente identificado como


“brasilianista”, é parte integrante do processo de emergência e afirmação das ciências sociais
no Brasil na segunda metade do século XX. A designação surge em plena era da Guerra Fria e
de preocupações imperiais com a possível desestabilização do principal país do continente
sul-americano. Segundo levantamento bibliográfico nessa área, o termo “brasilianista” teria
sido utilizado pela primeira vez no Brasil em 1969, na pluma do acadêmico Francisco de
Assis Barbosa “para qualificar o estrangeiro especialista em assuntos brasileiros”. Barbosa
assim referiu-se ao historiador dos Estados Unidos Thomas Elliot Skidmore no prefácio à
edição brasileira de Politics in Brazil (1967). Mas não se tratava certamente de sua primeira
utilização, uma vez que, desde o início dos anos 1960, ao tomar impulso uma nova voga de
estudos brasileiros nos Estados Unidos, sob o impacto da Revolução Cubana, o termo já vinha
sendo utilizado por um grupo de pesquisadores americanos – entre eles Frank McCann,
Richard Morse, Robert Levine, entre outros – que passou a beneficiar-se da concessão de
bolsas de estudos e de outras medidas de auxílio pelo Governo de Washington. Para
distinguir-se de outros especialistas em temas da América Latina, os integrantes dessa onda de
estudiosos do Brasil passaram a chamar-se a si mesmos de “brasilianistas”.
Nunca tinha ocorrido, antes do desafio socialista do final dos anos 1950, um tão
rápido desenvolvimento e mesmo tal benéfica proliferação de especialistas estrangeiros em
temas do Brasil como o processo de “multiplicação” de brasilianistas permitido a partir do
National Defense Education Act de 1958 que, estabelecido por decisão do Congresso
americano, irrigou, através de seu famoso “Title VI”, as universidades dos EUA com
generosos recursos federais dirigidos à pesquisa, ao treinamento e ao ensino de questões
latino-americanas nos centros universitários e de estudo dos EUA. Durante um certo tempo,
nos anos 1970, em vista da grande proporção de acadêmicos dos Estados Unidos dentre esses
estudiosos estrangeiros, o termo cunhado em português foi muitas vezes escrito em inglês,
indicando uma natural predominância dos EUA nesse gênero de estudos. Pouco a pouco

139
porém, o termo foi libertando-se de sua conotação original, abrasileirou-se e passou a
designar os diversos representantes da categoria. Com efeito, um levantamento bibliográfico
de final da década de 1980 sobre a produção acadêmica brasilianista traduzida e publicada no
Brasil entre 1930 e aquela época revelou uma predominância, à razão de 60%, de especialistas
nascidos, formados (isto é, possuindo a nacionalidade) ou trabalhando nos EUA, seguidos de
longe por representantes do Reino Unido, da França e da Alemanha, entre os quais se
incluíam, aliás, alguns que realizaram estadas mais ou menos longas em universidades norte-
americanas (Massi-Pontes, 1992: 113-115).

Dos hispanistas aos latino-americanistas


Mas os brasilianistas não surgiram como um raio no céu azul, em plena era da Guerra
Fria e do regime militar, numa época de preocupações com os efeitos da Revolução Cubana
numa sociedade em processo de modernização econômica e social. Não é necessário remontar
aos trabalhos de um quase “amateur” como William H. Prescott (que publicou Conquest of
Mexico e Conquest of Peru em 1843 e 1846 respectivamente) ou um aventureiro militar
comissionado como o oficial da marinha William Lewis Herndon (Exploration of the valley of
the Amazon, 1854) para detectar o ato de batismo da variante americana de uma categoria de
estudiosos já existente na Europa. De fato, o surgimento da categoria pode ser datado de
1916, quando historiadores dedicados ao estudo da América Latina se congregaram num
encontro da American Historical Association e fundaram a Hispanic American Historical
Review, que foi efetivamente publicada pela primeira vez em 1918, quase 23 anos depois do
aparecimento, em 1895, da The American Historic Review.
A revista desse grupo de “hispanistas” da AHA teve existência precária em seus
primeiros 25 anos de vida, sobrevivendo graças a doações de mecenas, como as famílias
Rockefeller e Duke, com investimentos no México e em outras regiões das Américas. A
HAHR contou, entre seus primeiros colaboradores, com alguns intelectuais da diplomacia
brasileira, como Manuel de Oliveira Lima. O empenho de Oliveira Lima e outros brasileiros
depois dele não impediu que os estudos “hispânicos” ou Latin-Americanists nos EUA fossem
dominados pela pesquisa e pela publicação prioritária em torno do México e adjacências,
como ainda é caso, muito embora o Brasil figure num honroso segundo lugar. Considerando-
se a peculiar situação do México ou a condição do Caribe como uma espécie de mare nostrum
na projeção geopolítica dos EUA, torna-se compreensível tal repartição de interesses no plano
acadêmico, o que apenas reforça a posição do Brasil no conjunto dos estudos de área. O
economista brasileiro João Frederico Normano, radicado desde muitos anos nos EUA,
140
publicou, em 1931, um trabalho sobre a economia e a ideologia na América Latina (The
Struggle for South America), seguido, em 1935, de um estudo sobre o desenvolvimento
econômico de longo prazo do Brasil, centrado nos ciclos de produtos: Brazil, a study of
economic types.
Depois de exemplos pioneiros na costa leste nos primeiros anos do século XX, os
estudos latino-americanos – aqui com menor ênfase em questões brasileiras – se expandiram
razoavelmente bem na costa ocidental nos anos 30 e 40, para literalmente explodir na segunda
metade do século um pouco em todas as partes dos EUA. Passos importantes na trajetória dos
estudos latino-americanistas nos Estados Unidos (nos quais os estudos brasileiros estavam
inevitavelmente fundidos) foram dados com a constituição, em 1928, no âmbito da AHA, de
um Comitê de História Latino-Americana, que impulsionou decisivamente a criação, pouco
anos depois, do Handbook of Latin-American Studies, que pode ainda hoje ser considerado
um empreendimento bibliográfico excepcional, sem equivalentes em qualquer outra área
geográfica de estudos nos campos das humanidades e das ciências sociais.
O HLAS apareceu pela primeira vez em 1936, sob o patrocínio do Committee of Latin
American Studies do American Council of Learned Societies, com o auxílio financeiro do
Social Science Research Council de Nova York; vários números tiveram nessa época o apoio
da Rockefeller Foundation. A Biblioteca do Congresso, que passou a se ocupar de sua
publicação a partir do número 9, até hoje está encarregada de sua direção editorial, como
parte das tarefas de sua Hispanic Division. Três anos depois, em 1939, a Universidade do
Texas criava o seu Institute of Latin American Studies, que veio a converter-se no maior e
mais bem equipado dos centros de estudo especializados na região em seu conjunto, junto
com os da Califórnia, mais voltados para o próprio continente norte-americano (ou seja,
dedicando-se ao México, América Central e Caribe). O HLAS foi publicado pela Universidade
de Harvard até o seu número 13 (1948), quando ele passa aos cuidados da University of
Florida Press, em Gainesville. A partir de 1966, ele passa a ser publicado anualmente pela
Texas University Press, em Austin, alternando anos ímpares com materiais relativos às
chamadas humanities (artes, música, literatura e história, entre outras) e anos pares com a
bibliografia relativa às social sciences (antropologia, economia, sociologia, ciência política,
relações internacionais etc.). A presença do Brasil em suas páginas é a princípio modesta, mas
o historiador, economista e empresário Roberto Simonsen foi um contributing editor do
HLAS na área de economia brasileira dos números 6 a 11 (1941 a 1946).
A Segunda Guerra Mundial pode ter afetado o fluxo normal dos intercâmbios culturais
e acadêmicos entre as partes setentrional e meridional das Américas, mas ela não parece ter
141
prejudicado absolutamente o desenvolvimento dos estudos ibero-americanos nos EUA. Ao
contrário, a necessidade de atrair a boa-vontade dos governos na causa comum contra o
inimigo nazifascista e a de manter um aprovisionamento regular de produtos primários
estratégicos motivaram tanto o envio de algumas missões de boa-vontade – várias chefiadas
por especialistas universitários, como foi o caso no Brasil da Missão Cooke, voltada para o
levantamento do potencial econômico brasileiro – como convites formulados a muitos
intelectuais latino-americanos para visitarem universidades americanas e nelas proferirem
palestras sobre seus respectivos países – como também foi caso, em se tratando do Brasil, das
visitas efetuadas pelo escritor Érico Veríssimo. Essa aproximação permitiu, por exemplo, a
tradução para o inglês e sua publicação nos Estados Unidos de algumas obras clássicas do
pensamento social brasileiro da primeira metade do século XX, como ocorreu com o épico de
Euclides da Cunha (Rebellion in the Backlands) em 1945. Nesse mesmo ano Gilberto Freyre
preparava um conjunto de leituras sobre o Brasil, publicadas sob o título de Brazil: An
Interpretation, ao passo que seu inovador Casa Grande e Senzala (The Masters and the
Slaves) aparecia logo no ano seguinte.

Desenvolvimento inicial dos estudos sobre o Brasil nos EUA


No pós-Segunda Guerra os estudos latino-americanos começam a experimentar um
desenvolvimento em bases mais sólidas nas universidades americanas, com o estabelecimento
de seções especializadas, de cunho interdisciplinar, nos departamentos humanísticos ou, onde
pertinente, em centros voltados exclusivamente para os estudos latino-americanos. Este foi o
caso, por exemplo, das universidades do Texas, de Tulane, de North Carolina e,
especialmente, de Vanderbilt, onde o foco já era o Brasil. Num primeiro momento esses
estudos carecem de qualquer apoio governamental em bases institucionais, o que aliás é
consistente com as preocupações oficiais na fase inicial da Guerra Fria. A América Latina
aparece, nas diretivas do Conselho de Segurança Nacional, como a região de menor
importância estratégica nos planos de segurança externa dos EUA.
Isso não impediu o aparecimento de alguns trabalhos de reconhecida qualidade sobre
países do hemisfério, com o Brasil continuando a ocupar uma posição secundária em relação
ao México, mas ainda assim relevante no conjunto dos estudos de área. As elites brasileiras
do imediato pós-guerra, confrontadas ao desafio argentino e alimentando a expectativa de
dividendos políticos de sua participação na guerra, se fixavam no mito da relação especial
com os Estados Unidos, propondo esquemas de ajuda bilateral e de financiamento
multilateral, como uma espécie de Plano Marshall para a América Latina. O máximo que se
142
logrou, em 1949, foi a criação de uma comissão econômica mista (Joint Brazil-US Economic
Development Commission), cujo relatório é publicado em 1954. A década que se segue ao
final da Segunda Guerra já foi descrita como sendo a da “americanização” do Brasil (Haines,
1989) e, de fato, o alinhamento em termos de política externa jamais foi tão completo como
nesses anos.
A produção acadêmica – que poderia ser descrita como “pré-brasilianista” – começa a
crescer paralelamente aos encontros e desencontros em matéria política, militar ou
econômica. O sociólogo Donald Pierson realiza um primeiro levantamento da produção
relativa ao Brasil (Survey of the Literature on Brazil of Sociological Significance Published
up to 1940) publicada ainda em 1945, ao passo que o ano seguinte vê o aparecimento de dois
primeiros trabalhos de apresentação geral nessa mesma disciplina e em geografia, a cargo
respectivamente de T. Lynn Smith (Brazil, People and Institutions) e de Preston E. James
(Brazil). Os anos 1950 são dominados pelas presenças desses três cientistas sociais,
responsáveis por vários títulos publicados por editoras universitárias, aos quais podem ser
agregados os nomes dos antropólogos Charles Wagley e Marvin Harris, bem como os dos
historiadores Alexander Marchant, Stanley Stein e Richard Morse, estes dois bastante ativos
nas décadas seguintes, juntos com os economistas Werner Baer e Nathaniel Leff e o cientista
político Ronald Schneider. O empenho na coleta de dados e na busca de fontes originais
impressionam os colegas brasileiros, nesta fase pioneira de instalação de cursos de ciências
sociais nas principais universidades do país (São Paulo e Rio de Janeiro). Em consequência,
vários dos títulos publicados nos Estados Unidos logo tornam-se referências obrigatórias para
os cursos brasileiros nas respectivas áreas de conhecimento, o que também ocorreu com os
brasilianistas franceses que participaram da formação da USP.
Nessa conjuntura de acirramento da competição hegemônica entre os Estados Unidos
e a União Soviética – esta tinha acabado de lançar seu Sputnik, e com ele um grande desafio à
supremacia norte-americana na corrida espacial – intervém o elemento contingente da
Revolução Cubana, que foi, sem dúvida, um grande fator de impulsão dos estudos latino-
americanos nos EUA. Muitos Latin-Americanists já propuseram, não sem ironia, erigir uma
estátua a Fidel Castro, já que suas iniciativas, logo identificadas com a causa do socialismo
mundial, motivaram a Administração americana a financiar diversos programas voltados para
a “prevenção e cura” dos males latino-americanos. No campo propriamente político-
diplomático, são exemplos dessas iniciativas o Corpo da Paz (não restrito ao continente), um
órgão de fomento regional proposto havia décadas, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento – nessa fase também resultante de iniciativas de países latino-americanos
143
como o Chile e o Brasil, que tinha lançado a sua Operação Pan-Americana em 1958 – e, mais
adiante, a Aliança para o Progresso, voltada para o financiamento de projetos sociais e
resultado direto do desafio cubano-soviético no campo dos modelos de desenvolvimento. No
campo da educação, a Administração americana dá início ao financiamento ampliado de
programas de estudos latino-americanos em diversas universidades, cujas consequências mais
imediatas seriam o estímulo ao aprendizado das línguas ibéricas e a concessão de número
significativo de bolsas de estudos para pesquisa nos próprios países latino-americanos. No
setor privado, esforços como os da Fundação Ford, dirigidos ao financiamento de estudos de
ciências sociais em nível de pós-graduação, vêm complementar os programas anteriormente
existentes, na área oficial (Programa Fulbright, por exemplo) ou por meio de instituições
privadas (Fundação Rockefeller).
A produção de trabalhos originais sobre o Brasil a partir dessa época, sob a forma de
dissertações e teses acadêmicas, sempre foi bem mais volumosa do que os títulos
efetivamente divulgados ao público geral – seja sob forma de publicações nas University
Presses, seja em versão em português publicadas por editoras do Brasil. Tal fato dificulta uma
avaliação da produção global, mas pode-se também considerar que os estudiosos que
continuaram tratando de temas brasileiros terminaram por ver publicados seus trabalhos.
Convém igualmente relembrar que um certo número de Latin-Americanists tiveram
importância na pesquisa sobre temas brasileiros, como é o caso de Robert Alexander, que
sempre incluiu capítulos ou análises cobrindo substancialmente o Brasil em seus muitos livros
sobre os partidos e líderes políticos e os movimentos comunista e sindical na América Latina
( ver 1957, 1962 e 1965, entre vários outros títulos).

A ascensão do brasilianista no período autoritário brasileiro


O interesse pelo Brasil cresce na transição entre as administrações Eisenhower e
Kennedy, manifestando-se tanto sob a forma de novos candidatos a uma especialização
universitária, como mediante a busca de novas fontes de informação extraídas da própria
realidade brasileira. Esse período assistiu à fragmentação do “monopólio” dos antigos Latin-
Americanists dos Estados Unidos (como John J. Johnson, especialista em questões militares,
ou o já citado Alexander, entre outros), cujas generalizações analíticas já não permitiam
acomodar as situações sub-regionais e as particularidades nacionais. Isto não quer dizer que
estudos “latino-americanos” deixassem de ser enfocados nas universidades americanas – ao
contrário, os centros se multiplicaram e, onde existentes, conheceram nova expansão – ou que
especialistas “regionais” não mais editassem compêndios cobrindo todos os países ao sul do
144
Rio Grande, mas emerge um reconhecimento de que a uniformidade continental (até então
sob o estereótipo enganador do sombrero e dos caudilhos despóticos) escondia situações
específicas que precisavam ser estudadas.
Na primeira vertente, a da especialização sub-regional em países singulares, tem-se a
ocorrência de uma nova e mais vigorosa vaga de “exploradores” do terreno, o que iria motivar
a publicação, de guias ou manuais de investigação destinados a orientar os novos estudos
especializados. Situam-se nesse caso os livros de Harry Hutchinson (Field Guide to Brazil,
1960) e de William Jackson (Library Guide for Brazilian Studies, 1964), assim como a
compilação, sob a responsabilidade de Robert Levine, de um primeiro guia de pesquisas
identificando as características do “laboratório” brasileiro: Brazil: Field Research Guide in
the Social Sciences (1966). Na segunda vertente, intensifica-se a tradução e a publicação de
títulos representativos das ciências sociais do Brasil nos Estados Unidos. O sociólogo
Gilberto Freyre, que frequentava os estabelecimentos universitários dos Estados Unidos desde
a segunda década do século XX, foi um dos que se beneficiou desse aumento da demanda
acadêmica e da curiosidade universitária pelo Brasil. Ademais da publicação de seu Masters
and Slaves no imediato pós-guerra, foram traduzidos e publicados nessa época New World in
the Tropics: The Culture of Modern Brazil (1959) e o seguimento “urbano” do primeiro, The
Mansion and the Shanties (1963).
Nos anos que antecederam e sucederam imediatamente o movimento militar que
encerrou o ciclo da República de 1946 no Brasil, vários outros pesquisadores brasileiros
foram traduzidos e publicados por diferentes editoras universitárias ou casas comerciais dos
EUA. Com efeito, entre 1963 e 1967, assistiu-se à publicação de importantes títulos do
universo acadêmico brasileiro: Celso Furtado, The economic growth of Brazil, Pandiá
Calógeras, A History of Brazil (ambos em 1963); Vianna Moog, Bandeirantes and Pioneers e
Cruz Costa, A History of Ideas in Brazil (em 1964); novamente Celso Furtado em 1965, com
Diagnosis of the Brazilian Crisis; José Honório Rodrigues duplamente, com Brazil and Africa
(1965) e The Brazilians: Their Character and Aspirations (1967); Josué de Castro, então
influente internacionalmente, com Death in Northeast (1966); o ecletismo editorial revelou-se
na publicação de dois representantes de tendências antípodas da historiografia brasileira, o
tradicional José Maria Bello, A History of Modern Brazil, 1889-1964 (em 1966) e o marxista
Caio Prado Jr., The Colonial Background of Modern Brazil (em 1967).
É no contexto do regime modernizador autoritário inaugurado pelos militares em 1964
que se situa o nascimento do brasilianista, uma “personagem” que, nas palavras de Robert
Levine, um dos mais respeitados e influentes membros dessa pequena comunidade, nada mais
145
seria senão uma invenção dos próprios brasileiros. O representante mais conhecido — nos
dois países – da categoria é provavelmente o historiador Thomas Skidmore que, em 1967,
publicou Politics in Brazil, 1930-1964: An Experiment in Democracy, cujo subtítulo,
condizente com a época, já traduzia um certo ceticismo em relação às possibilidades de
estabilidade política e de um sistema representativo no Brasil. Traduzido pouco depois e
publicado inicialmente pela Editora Saga (1969), Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco,
1930-1964 foi certamente o título mais reeditado no Brasil (pela Paz e Terra) de toda a
produção brasilianista acumulada desde então. O sucesso de público alcançado por Skidmore
não deve obscurecer o trabalho da geração anterior de estudiosos, como por exemplo, o já
citado antropólogo Charles Wagley, o “biógrafo” de São Paulo Richard Morse, e Stanley
Stein, cujo estudo sobre a economia do café em Vassouras, publicado em 1957, tinha
recebido uma edição brasileira desde 1961.
Sem prejuízo dessas tentativas de alguns brasilianistas de procurar abordar a história
brasileira em seu conjunto, como foi o caso do próprio Skidmore em seus dois livros de
história política (o segundo volume retoma o itinerário a partir do regime militar: The Politics
of Military Rule in Brazil, 1964-85, 1988), ou ainda de Bradford Burns (A History of Brazil,
1970) e de Richard Graham (A Century of Brazilian History Since 1865, 1969) e de muitos
outros mais, vários dos estudiosos no decorrer dos anos 60 e 70 preferiram operar uma
espécie de “divisão do trabalho”, e efetuar um corte temporal ou regional em seus respectivos
enfoques. Em algumas experiências, esse esforço foi efetivamente coordenado, como se viu
nas pesquisas sobre a federação e o regionalismo na Primeira República, conduzidos por
Joseph Love (Rio Grande do Sul and Brazilian regionalism, 1882-1930, 1971; São Paulo and
the Brazilian Federation, 1889-1937, 1980), por John Wirth (Minas Gerais in the Brazilian
Federation, 1889-1937, 1977) e por Robert Levine (Pernambuco in the Brazilian Federation,
1889-1937, 1978). Em outros casos, os trabalhos foram efetuados de maneira independente,
como evidenciado nas pesquisas de Warren Dean (The Industrialization of São Paulo, 1880-
1945, 1969) e de Eul-Soo Pang (Bahia in the First Brazilian Republic: Coronelismo and
Oligarchies, 1889-1934, 1978). O enfoque das políticas setoriais ou dos processos decisórios
em matéria econômica, em alguns casos também combinado a problemáticas regionais,
recebeu igualmente a atenção de alguns pesquisadores nos trabalhos conduzidos durante esse
período: podem ser citados como representativos dessa preocupação os estudos dos já citados
John Wirth (The Politics of Brazilian Development, 1930-1954, 1970) e Warren Dean (Brazil
and the Struggle for Rubber: A Study in Environmental History, 1987), assim como o de Peter

146
Eisenberg (The Sugar Industry in Pernambuco: modernization without change, 1840-1910,
1974).
Entre o final dos anos 60 e meados dos 70, quando o Brasil vivia uma das fases mais
dramáticas de sua história política, com muitos pesquisadores brasileiros condenados ao
exílio ou intimidados pela máquina da repressão, o brasilianismo viveu provavelmente seus
momentos de maior prestígio e de inquestionável consagração acadêmica, seja pelo
tratamento dado aos problemas políticos do momento, seja pela pesquisa detalhista em
direção das origens do estado de coisas contemporâneas. Vários autores se dedicaram à
análise do regime autoritário e seu modo de funcionamento, como Ronald Schneider (The
Political System in Brazil: Emergence of a "Modernizing" Authoritarian Regime, 1964-1970,
1971) e Alfred Stepan (The Military in Politics: changing patterns in Brazil, 1971), este o
coordenador de outro volume sobre a questão, bastante citado nos “anos de chumbo”:
Authoritarian Brazil: Origins, Policies and Future (1973). Em outros casos, o bisturi analítico
incidiu sobre a própria sociedade civil, como no amplo estudo de Philip Schmitter sobre os
grupos de interesse em perspectiva histórica (Interest Conflict and Political Change in Brazil,
1971), ou sobre um aspecto particular da política governamental, como em novo trabalho do
mesmo Ronald Schneider, desta vez sobre a política externa (Brazil: Foreign Policy of a
Future World Power, 1976).
Esses estudos de amplo escopo analítico não impediram outras iniciativas temáticas
focadas em grupos sociais ou religiosos, como nos trabalhos de Della Cava sobre a
religiosidade popular no Nordeste (Miracle at Joaseiro, 1977) ou a discussão de Skidmore em
torno do projeto de “branqueamento” conduzido pelas elites brasileiras na fase pós-Abolição
(Black Into White: Race and Nationality in Brazilian Thought, 1974). Numa vertente
historiográfica mais factual, referência indispensável deve ser feita à obra acumulada desde
meados dos anos 60 pelo historiador John W. F. Dulles, que combinou tanto pesquisa em
arquivos como depoimentos de atores da história recente para produzir vários títulos sobre o
itinerário político e sobre o movimento sindical e comunista.
O período repressivo-modernizador do regime militar nos anos 70 também assistiu a
um equivalente acadêmico do processo de substituição de importações em curso no setor
industrial, sob a forma de recursos ampliados concedidos às instituições universitárias e
laboratórios de pesquisa para formar pessoal e viabilizar novos projetos de pesquisa.
Independentemente das orientações políticas do governo, ampliaram-se as fontes de
financiamento para a capacitação de recursos humanos, com um crescimento exponencial das
bolsas atribuídas a candidatos em programas de pós-graduação no exterior. O retorno gradual
147
dos pesquisadores correspondeu a um aumento proporcional no volume de trabalhos
científicos publicados em periódicos especializados, elevando a qualidade e o
profissionalismo das ciências sociais brasileiras. Junto com a Europa, os Estados Unidos
acolheram em suas instituições de ensino superior número significativo desses candidatos à
pós-graduação – mestrado e doutoramento –, observando-se algumas concentrações
disciplinares, já que essas instituições ofereciam notórias vantagens comparativas em áreas
científicas e na economia. Assim, parte expressiva dos quadros superiores de empresas
privadas e estatais brasileiras, assim como da alta burocracia federal – entre eles muitos
ministros da área econômica e presidentes do Banco Central – ostenta diplomas e teses
defendidas em universidades americanas de primeira linha.
Na outra direção, a da “exportação” de ideias e teorias do Brasil para os Estados
Unidos, o exemplo mais conspícuo a ser lembrado refere-se à influência da “teoria da
dependência” – representada sobretudo na produção de Fernando Henrique Cardoso – na
elaboração de uma vertente crítica do pensamento sociológico norte-americano em estudos
voltados para os problemas dos países em desenvolvimento, em particular da América Latina.
Muito embora o seu principal proponente tenha qualificado diversas vezes seu entendimento
do conceito de “dependência”, esta noção foi a tal ponto absorvida pela comunidade norte-
americana de sociólogos, que seu autor se sentiu obrigado a escrever um texto sobre o
“consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos”.
Consolidada a formação das ciências sociais brasileiras em princípios dos anos 1980 –
isto é, lograda a “substituição de importações” no campo da teoria social –, o papel dos
brasilianistas tende a diminuir. Isto não quer dizer que a ciência social brasileira tivesse
terminado seu itinerário em direção da internacionalização de procedimentos e padrões de
pesquisa, mas que a “dependência” dos antigos padrões e normas “ideais” estabelecidos pelos
brasilianistas no período formativo já não se apresentava como crucial aos pesquisadores
brasileiros. À medida em que se avançava nos anos 80, pari passu aos processos de
democratização política e de mobilização social – que aliás mereceram estudos relevantes por
parte dos brazilianists, como por exemplo em Stepan (1989) – uma nova geração de
brasilianistas foi se constituindo, com diferentes preocupações e com novos objetos de
pesquisa, menos “societais” e mais “grupais”, menos abrangentes e mais setoriais, com
enfoques temáticos diversificados.

Diversificação e fragmentação dos estudos brasileiros nos EUA

148
A história do brasilianismo acadêmico nos Estados Unidos revela a existência de fases
sucessivas de interesse e de concentração temática nas áreas das humanidades e das ciência
sociais. Depois dos pioneiros dos anos 50 e 60, vários ocupando espaço relevante na
bibliografia e na literatura especializada na história e na ciência política, o campo foi sendo
ocupado por novas gerações de brasilianistas, mais preocupadas talvez com determinadas
questões setoriais do que com as grandes interpretações históricas ou ensaios abrangentes
sobre a sociedade brasileira, como havia ocorrido nos primeiros anos de exploração do
terreno. No plano institucional, o cenário do apoio à pesquisa continuou a ser dominado pela
saudável “anarquia” e pela dinâmica de captação de recursos através dos Centers for Latin
American Studies das grandes universidades americanas, que mantinham (e mantêm) contatos
diretos com universidades, centros de pesquisa ou com professores brasileiros, estimulando
um fluxo contínuo de acadêmicos nos dois sentidos. As deficiências persistentes do ensino de
português nas universidades americanas, assim como os vínculos mais intensos existentes
com os países hispânicos do imediato entorno geográfico continuam, porém, a dificultar a
expansão dos estudos brasileiros nos EUA.
Do ponto de vista disciplinar, a história sempre foi o terreno privilegiado dos muitos
estudiosos americanos que se dedicaram ao Brasil, concentrando talvez um terço do fluxo de
pesquisadores das ciências humanas e sociais. Os economistas ocupam igualmente lugar de
destaque na produção brasilianista, mas eles sempre desempenharam um papel sui-generis no
itinerário do brasilianismo acadêmico, sendo mais relutantes em participar de reuniões de
associações especializadas como as da Latin American Studies Association (LASA) ou da
Brazilian Studies Association (BRASA). Com o passar dos anos, o brasilianismo norte-
americano atravessou um processo de diversificação disciplinar e de enriquecimento temático,
com o surgimento de áreas pouco exploradas de pesquisa, correspondendo aliás ao próprio
desenvolvimento interno da academia estadunidense (gênero, estudos raciais, grupos
minoritários, direitos humanos etc.). Uma consulta à produção publicada a partir dos anos 80
e no período recente revelaria algumas notáveis persistências, assim como o surgimento de
uma nova geração de brasilianistas, com estudos mais focados em uma temática setorial ou
claramente voltados para uma gama diversificada de novos temas, como agora se procurará
constatar.
Na vertente tradicional da história e no seguimento da produção da prolífica geração
dos anos 60, temos a presença de scholars confirmados, como: Stanley Hilton (Hitler’s Secret
War in South America, 1981; Brazil and the Soviet Challenge, 1991); Anthony Russel-Wood
(The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil, 1982); Robert Conrad (Black
149
Slavery in Brazil, 1983); Stuart Schwartz (Sugar Plantations in the Formation of Brazilian
Society, 1985); Neill Macaulay (Dom Pedro, 1986); Warren Dean (Brazil and the Struggle for
Rubber, 1987; With Broadax and Firebrand, 1995); Tom Skidmore (The Politics of Military
Rule in Brazil, 1988; Brazil, 1999); Bob Levine (Vale of Tears: Revisiting Canudos, 1992;
Brazil: A History, 1999) e o já citado John Dulles, com a continuidade de sua história do
movimento comunista no Brasil (Brazilian Communism, 1935-1945, 1983) e mais dois
volumes biográficos, desta vez passando de Castelo Branco a Carlos Lacerda.
Alguns novos valores (embora nem todos jovens autores) aparecem nessa mesma área
da história a partir dos anos 80, como por exemplo: Laurence Hallewell (Books in Brazil,
1982); Jeffrey Needell (A Tropical Belle Epoque, 1987); Steven Topik (The Political
Economy of the Brazilian State, 1987; Trade and Gunboats, 1996); Roderick Barman (Brazil:
The Forging of a Nation, 1988; Citizen Emperor: Pedro II, 1999); Gerald Haines (The
Americanization of Brazil, 1989); Marshall Eakin (British Enterprise in Brazil, 1990; Brazil:
the once and future country, 1997); Ruth Leacock (Requiem for Revolution, 1990); Joseph
Smith (Unequal Giants, 1991); Sandra Graham (The Domestic World of Servants and Masters
in Nineteenth-Century Rio de Janeiro, 1992); Thomas Holloway (Policing Rio de Janeiro,
1993); Eugene Ridings (Business Interest Groups in Nineteenth-Century Brazil, 1994);
Jeffrey Lesser (Welcoming the Undesirables, 1995; Negotiating National Identity, 1999);
Barbara Weinstein (For Social Peace in Brazil, 1997); Kim Butler (Freedoms Given,
Freedoms Won, 1998); Robin Anderson (Colonization As Exploitation in the Amazon, 1999) e
William Summerhill (Order Against Progress, 2000).
Em outras áreas, como em sociologia e ciência política, repete-se o mesmo padrão já
observado na história, isto é, o da reincidência editorial de alguns “velhos” conhecedores e
analistas da sociedade e da política brasileira, por um lado, combinado ao surgimento, por
outro, de novos scholars orientados por princípios, preocupações e temáticas necessariamente
diferentes daqueles que haviam caracterizado a geração dos anos 60. Estão no primeiro grupo
June Hahner, Scott Mainwaring, Laura Randall, Peter McDonough, Ronald Chilcote, Richard
Graham, Joseph Page e Ronald Schneider, entre vários outros conhecidos intérpretes da
sociedade brasileira. Situam-se no segundo grupo George Andrews (que, em Blacks and
Whites in São Paulo, 1888-1988, revisa Florestan Fernandes), David Plank, Michael
Hanchard, James Green e David Foster, entre muitos outros novos valores das ciências sociais
e humanidades com interesse no Brasil.
Nessa fase mais recente, algumas das ênfases temáticas, dos cortes temporais e das
metodologias analíticas tornam-se comuns a acadêmicos brasileiros e norte-americanos,
150
evidenciando uma mais que bem-vinda osmose intelectual depois de alguns anos de
desencontros em relação aos tipos de abordagem praticados no Brasil e nos EUA. O diálogo
entre as comunidades de pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos tornou-se mais intenso
no decorrer dos anos 1980 e no início dos 90. Graças aos bons resultados dos programas
apoiados financeiramente desde uma década antes por entidades privadas como a Fundação
Ford, assim como em virtude da expansão do sistema oficial brasileiro de bolsas para estudos
pós-graduados, a tradicional dominação francesa (e europeia) nas ciências sociais começou
nessa época a ser superada, quantitativamente pelo menos, pela produção dos Estados Unidos.
Não obstante, os vínculos institucionais entre universidades dos dois países sempre
foram obstaculizados pela inexistência, nos EUA, de entidades centralizadas de apoio e de
fomento à pesquisa, como a CAPES e o CNPq. Os muitos candidatos brasileiros à formação
pós-graduada nos Estados Unidos sempre desempenharam o papel de “clientes individuais”
do establishment universitário americano, dificultando a concepção e o estabelecimento de
programas conjuntos de pesquisa entre entidades correspondentes dos dois países, nos
mesmos moldes do que se fazia entre o Brasil e a Europa, ao abrigo das comissões mistas de
educação ou dos consórcios criados entre entidades interessadas (como ocorre com a
Alemanha e com a França, por exemplo). Muito embora os Estados Unidos tenham abrigado,
individualmente, o maior número de bolsistas brasileiros no exterior, é possível que um
número superior de projetos cooperativos bilaterais tenha sido desenvolvido entre
universidades brasileiras e europeias.

O amadurecimento dos estudos brasileiros nos Estados Unidos


Uma avaliação crítica dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos não pode,
obviamente, ser feita meramente com base na produção publicada em forma de livros. Para
ser equilibrada e abrangente, ela deveria enfocar igualmente o ensino e a pesquisa no cenário
universitário e nos centros de pesquisa (think tanks), cujos reflexos se dão mediante artigos
publicados em revistas especializadas e no âmbito das dissertações e teses de pós-graduação,
o que não pôde ser feito nos estreitos limites deste ensaio de síntese. O panorama aqui
visualizado permitiu entretanto acompanhar a evolução das linhas de pesquisa e identificar os
principais trabalhos ao longo de meio século, enfatizando algumas constantes analíticas e
momentos de ruptura ou de transformação.
De fato, à diferença de outras tradições estrangeiras (sobretudo a francesa), os estudos
brasileiros nos EUA tomam impulso no período ulterior à Segunda Guerra. Numa primeira
fase, eles parecem reproduzir o padrão estabelecido por outras gerações de estudiosos, isto é,
151
a simples apresentação e sistematização, para um público estrangeiro, daqueles aspectos
peculiares do país enfocado, difundindo sua história, sua natureza e as características do povo
(Lynn Smith, Wagley). O que o novo “brasilianista” americano aporta de singular nos estudos
estrangeiros sobre o Brasil, sobretudo após a expansão dos estudos de língua e de culturas
estrangeiras nos Estados Unidos, permitida pelo National Defense Education Act de 1958, foi
uma preocupação sistêmica em explicar o Brasil enquanto tal, eventualmente numa
perspectiva implicitamente comparativa. Depois de 1960, a compreensão “política” do Brasil
esteve no centro das preocupações desses estudiosos, tornando-os uma referência interna no
debate sobre as instituições políticas e sociais, seus problemas econômicos, os fenômenos
autoritários, o papel dos militares e das elites, dos grupos religiosos, enfim, convertendo-os
em coparticipantes do processo de emergência e de afirmação das ciências sociais brasileiras
em sua acepção contemporânea.
O Brasil não era, obviamente, o único país estudado dessa forma, uma vez que os
imperativos da Guerra Fria e a pressão da Revolução Cubana projetaram os “interesses
imperiais” sobre o conjunto da América Latina e outros continentes. Entretanto, o
agenciamento e as relações desses brasilianistas com as instituições universitárias brasileiras e
com o mercado editorial do Brasil, num momento de restrições às liberdades políticas e de
reestruturação do sistema de pesquisa nacional deu-lhes um estatuto peculiar, chegando
mesmo a convertê-los em figuras simbólicas do universo acadêmico. A “substituição de
importações” operada ao longo dos anos 70 e 80 nas ciências sociais brasileiras – inclusive
com ajuda de fundações dos Estados Unidos – banalizou um pouco a figura do brasilianista,
não lhe retirando, porém, o prestígio de que ele ainda desfruta nos meios acadêmicos, assim
como entre o público instruído, de modo geral. No período recente, finalmente, observou-se
uma diversificação crescente dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, com a
introdução de temáticas especializadas e de enfoques setoriais que mais parecem refletir
ambiguidades do próprio establishment universitário americano do que a preocupação
sistêmica da geração “fidelista” que se propunha analisar o Brasil enquanto país global.
Para finalizar, cabe observar que o enorme complexo “econômico-científico” dos
Estados Unidos, confirmando sua vocação de “brain-drainer universal”, também atuou como
uma “bomba de sucção” sobre gerações inteiras de cientistas brasileiros (e estrangeiros de
modo geral), atraindo número significativo de cérebros para seu establishment científico e
também para as atividades privadas de empresas de vanguarda na pesquisa tecnológica. Em
setores não cobertos por este ensaio, como a medicina e algumas outras áreas tecnológicas,
parece provável que o Brasil continue a fornecer mão-de-obra de alta qualificação para muitas
152
empresas privadas, instituições de pesquisa e hospitais universitários dos Estados Unidos, em
escala ainda não mapeada devidamente. As modalidades tradicionais de concessão de bolsas
pelas entidades de fomento à pesquisa do Brasil tiveram, em todo caso, de sofrer revisão em
sua forma de aplicação, em vista, precisamente, desse problema preocupante do
“financiamento” brasileiro à pesquisa de ponta nos Estados Unidos.
Tal não parece ocorrer no caso das ciências sociais e das humanidades, em virtude do
modo específico de inserção dos profissionais formados nos mercados de trabalho
universitários de seus respectivos países. Em qualquer hipótese, o brasilianista
contemporâneo não parece mais dispor, como seu “antepassado” dos anos 1960 e 70, de um
espaço especial no panorama brasileiro das ciências sociais, que parecem ter-se emancipado
de tutelas estrangeiras e de importações metodológicas. A relação intelectual – a interação, na
verdade – tornou-se mais equitativa e o típico brasilianista de extração norte-americana pode
estar desaparecendo enquanto personagem de uma época de “acumulação primitiva” e de
construção das ciências sociais no Brasil. O brasilianismo, que de fato subsiste ao brasilianista
enquanto capítulo fragmentado das ciências sociais nos Estados Unidos, parece dispor ainda
de brilhantes perspectivas pela frente.

Washington, 18 de abril de 2001.


Publicado na revista Estudos Históricos
(Rio de Janeiro: FGV-RJ-Cpdoc, n. 27, 2001, p. 31-61)

153
Uma visão aroniana do novo século

Paulo Roberto de Almeida:


Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001; ISBN: 85-219-0435-5)

All written history is a compound of past and present.


Cicely Veronica Wedgwood

Este livro condensa o resultado de leituras e pesquisas acumuladas ao longo das duas
últimas décadas, período no qual exercícios explicativos conduzidos no quadro de atividades
docentes desempenhadas pelo autor foram combinados a esforços de síntese induzidos pela
prática diplomática para produzir diversos trabalhos de relações internacionais, alguns deles
publicados, a maior parte inéditos. Ele combina, assim, parafraseando a historiadora inglesa
Wedgwood, escritos do passado e reflexões do presente, na tentativa de oferecer elementos de
avaliação sobre que alternativas e possibilidades de inserção exitosa a conformação futura do
sistema internacional oferece a um país de médio porte como o Brasil.
No plano acadêmico, mais especificamente, o livro nasceu de uma preocupação do
autor em avaliar se os ensinamentos de um dos maiores intérpretes das relações internacionais
na era da Guerra Fria e da bipolaridade nuclear, o escritor francês Raymond Aron, tinham
ainda validade intelectual e aplicação prática numa era pós-Guerra Fria e de preeminência
incontestável de uma única superpotência. Tratava-se, em suma, de desenvolver reflexões a
partir de uma releitura das obras de Aron, à luz das transformações observadas no sistema
internacional desde o desaparecimento do intelectual francês, cuja morte, em 1983, precedeu
em mais de um lustro o final da Guerra Fria. Daí a aproximação do título desta obra, Os
primeiros anos do século XXI, ao da obra póstuma de Aron, Os últimos anos do século, que
consolidou suas reflexões sobre o funcionamento do sistema internacional no início da
penúltima década do século XX.
No plano profissional, o desafio era o de saber se argumentos desenvolvidos mais de
duas décadas atrás por um intelectual representativo de uma potência nuclear, ainda que
“média”, ofereciam um quadro analítico adequado para subsidiar esforços de
conceptualização conduzidos contemporaneamente no âmbito da política internacional por
um servidor diplomático de um país da “periferia”. Os trabalhos de Raymond Aron
constituiriam, ainda, uma espécie de “guia para a ação” num cenário significativamente
transformado em relação aquele analisado pelo filósofo francês das relações internacionais?
154
Seria possível extrair novos ensinamentos das velhas lições dadas na Sorbonne pela genial
autor de Paz e Guerra entre as Nações? As páginas que se seguem dirão se o esforço atual de
análise do cenário internacional, inspirado na obra do polemólogo francês, atende aos cânones
da disciplina acadêmica e responde a preocupações do momento. O autor tem, contudo, plena
consciência de que a maior tentação — alguns prefeririam dizer o pior pecado — em que
pode cair o “revisionista histórico” consistiria em reler os acontecimentos do passado com os
olhos postos no presente. Nesse caso, o historiador estaria então, consciente ou
inconscientemente, renegando a modesta autocrítica de Wedgwood — segundo a qual, todo
exercício de história é sempre uma mistura de passado e de presente — para projetar num
passado forçosamente idealizado opções ideológicas e políticas do presente. O passado
recomposto deve ser, contudo, não uma retroprojeção das preocupações da geração
contemporânea, mas uma tentativa de dialogar com as gerações que nos antecederam.
Daí a razão essencial pela qual esta tentativa de diálogo póstumo com Raymond Aron
está profundamente impregnada de história, muito mais do que do aparato conceitual da
ciência política. A verdadeira história, na definição de Peter Gay, é produto do pensamento
histórico, e o pensamento histórico nada mais seria do que uma reflexão crítica sobre o
passado.1 Toda reconstrução do passado é, entretanto, prisioneira de um dos modos possíveis
da filosofia da história.2 Assim, é quase tautológico afirmar que a reflexão histórica reproduz,
lato sensu, o pensamento social de sua época. Nesse sentido, nada é mais fácil ao pretendido
revisionista do que atribuir a seus antecessores uma suposta falta de visão em relação a
determinados acontecimentos ou processos que, considerados ex post, se tornaram realmente
inevitáveis. A reflexão sobre as causas das guerras, por exemplo, sempre ofereceu um largo e
complacente terreno de experimentação do passado a muitos historiadores, que reordenam os
fatos e processos de tal maneira que ficam “comprovados” os desenvolvimentos que levariam
“inevitavelmente” ao conflito em questão.
Mas, como bem disse o historiador norte-americano C. V. Woodward, “a
inevitabilidade é o atributo que assumem certos eventos históricos depois que um tempo
suficiente tenha decorrido. Depois que um determinado evento ocorreu, e bastante tempo se
passou para que a ansiedade e as incertezas sobre como ele iria se desenrolar tenham se
apagado das memórias, ele começa a ser visto como se fosse realmente inevitável. Resultados
diferentes tornam-se menos e menos plausíveis e, rapidamente, o que efetivamente aconteceu
1
Cf. “A Definition of History”, Peter Gay e Gerald J. Cavanaugh (eds.), Historians at Work (New
York: Harper-Row Publishers, 1972); vol. I: “General Introduction”, p. xi.
2
Cf. Hayden White, Metahistory: the historical imagination in nineteenth century Europe (Baltimore:
The Johns Hopkins UniversityPress, 1973).
155
aparece exatamente como o que tinha de acontecer. Argumentar sobre o que poderia ter
acontecido, ou sobre como e porquê o supostamente inevitável termina por auto-realizar-se, é
considerado por muitas pessoas como uma perda de tempo .”3
Não há, no entanto, perda de tempo, ao tentar reconstruir os fundamentos de nossa
época, o sistema de relações internacionais de princípios do século XXI, mediante um exame
acurado do que se passou nos últimos anos do século XX. O autor não pretende, portanto,
apresentar como historicamente inevitável o desaparecimento, para todos os efeitos práticos,
do modo de produção socialista, mas simplesmente examinar seu impacto para o sistema de
relações internacionais contemporâneas, considerando-o como o elemento fundamental das
transformações radicais do cenário mundial desde então. Independentemente porém do
desaparecimento de um dos dois protagonistas das reflexões “bipolares” de Aron, a maior
parte de suas reflexões intelectuais permanece válida para nossa época igualmente, uma vez
que a política de poder nunca se reduziu à dimensão estrita de suas formulações ideológicas.
Não se trata, contudo, de efetuar neste livro uma releitura de Raymond Aron a partir
dos problemas do hemisfério norte, mas sim das preocupações de alguém situado no
hemisfério sul. Daí também a razão pela qual este exercício de explicação das relações
internacionais contemporâneas está profundamente impregnado de história brasileira, base
essencial das reflexões do autor em seus muitos anos de produção acadêmica e de
desempenho profissional enquanto diplomata. A outra grande vertente analítica privilegiada
neste trabalho é a das relações econômicas internacionais, bem menos enfatizada nas obras de
Aron, por razões evidentes: de certa forma, a sobrevivência da Europa e da própria
humanidade estavam em jogo durante a fase de confrontação bipolar e de exercício recíproco
do terror nuclear pelas duas superpotências. O Brasil – e a América Latina de modo geral –
nunca esteve no centro dos equilíbrios estratégicos e nunca foi cenário de disputas
hegemônicas, pelo menos não ao estilo europeu. Nosso problema primordial nunca pertenceu
ao terreno da segurança e sim ao campo mais prosaico, e ao mesmo tempo mais complexo, do
desenvolvimento econômico e social.
Essas preocupações analíticas se traduzem na estrutura concebida para este volume.
Após uma breve introdução sobre a disciplina e a prática das relações internacionais no século
XX, a primeira parte do livro trata dos fundamentos da ordem mundial contemporânea.
Ambos os capítulos dessa parte, um mais centrado numa análise “aroniana” das relações
políticas internacionais, o outro discorrendo sobre a evolução da economia mundial no século

3
Cf. o artigo de C. Vann Woodward, “Gone with the Wind”, The New York Review of Books, vol. 33,
17 jul. 1986, p. 3, que resenhava um livro sobre as causas, “inevitáveis”, da guerra civil americana.
156
XX, apresentam uma abordagem de caráter histórico-conceitual. Eles resumem, por assim
dizer, os grandes problemas de que deve tratar todo estudante de relações internacionais. A
segunda parte está voltada para uma exposição de natureza essencialmente linear sobre os
desenvolvimentos mais importantes do cenário mundial das últimas duas décadas do século
XX, período no qual a derrocada do socialismo constitui o elemento central da verdadeira
“mudança de paradigma” que então intervém no sistema político internacional. Essa parte
poderia ser descrita como mais propriamente “onusiana”, ao passo que a seguinte está mais
voltada para as instituições econômicas de Bretton Woods – FMI e Banco Mundial – e a
Organização Mundial do Comércio.
A terceira parte tenta colocar o Brasil no centro de uma análise sobre o novo cenário
surgido após o desaparecimento do socialismo e o final da era bipolar, o da ordem econômica
globalizada e seus principais problemas: unificação de mercados, desafios da abertura
econômica e da liberalização comercial e, sobretudo, o das crises financeiras. O enfoque
adotado não se prende tanto a problemas doutrinais ou ideológicos – como a falsa opção entre
neoliberalismo e políticas ditas afirmativas da soberania nacional – mas sim a questões
concretas que entram na agenda negociadora externa de um país como o nosso: necessidade
de inserção econômica internacional, adaptação aos desafios da globalização financeira,
coexistência das opções integracionistas no âmbito regional com as obrigações multilaterais
no plano mundial. Leituras complementares em cada final de capítulo, tabelas estatísticas, um
glossário de organizações internacionais e alguns quadros analíticos concebidos segundo a
visão histórica já privilegiada nos capítulos substantivos complementam a discussão oferecida
nas três partes do livro.
O autor espera que a contribuição oferecida nestas páginas possa representar subsídios
úteis aos estudantes de relações internacionais, sobretudo porque que a informação e a
discussão consignadas no livro não partem de uma perspectiva puramente teórica, como a
adotada em muitos manuais do gênero, mas derivam, essencialmente, de um contato prático
com questões de relações internacionais tais como presentes na agenda externa do Brasil.

Washington, 19 de março de 2001.


Prefácio ao livro publicado.

157
A Política exterior do Império para as repúblicas do Pacífico

Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos:


O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru,
Equador e Colômbia, 1822-1889
(Curitiba: Editora da UFPR, 2002, 178 pp; ISBN: 85-7355-100-4)

De forma similar ao conceito empregado, até o final do século XIX, nos mapas dos
colonizadores ocidentais para descrever territórios desconhecidos no interior da África ou da
América do Sul, este livro penetra em terras incógnitas para a historiografia brasileira. Com
efeito, o jovem historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos decidiu explorar terras e
povos que não costumam frequentar o cenário da produção histórica brasileira, ou pelo menos
não, com tal grau de detalhe, o cahier de route de nossa história diplomática do Oitocentos.
Ao que eu saiba, trata-se do primeiro estudo abrangente, sistemático e de longa duração, sobre
como, porquê e sob quais condições a diplomacia imperial formulou e executou uma política
externa especificamente desenhada para as repúblicas americanas do Pacífico, em estreita
simbiose com aquela que era posta em marcha no Prata e levando em consideração as ações e
motivações das grandes potências na região (em primeiro lugar, os imperialismos europeus,
mas crescentemente também a grande república do Norte).
Um tal desconhecimento histórico surpreenderia, entretanto, nossos diplomatas do
Império que, depois obviamente das principais potências europeias e das “repúblicas” do
Prata (concedamos a eles este epíteto por vezes pouco adequado para a primeira metade do
século), atribuíam grande importância ao relacionamento da monarquia bragantina com esse
conjunto heteróclito de países unidos pelo mesmo movimento independentista (de inspiração
bolivariana), mas separados pela geografia e por uma história de pequenas querelas intestinas
e muitas tendências ao caudilhismo.
Essas repúblicas tinham relevância não tanto pelo que pudessem representar como
oportunidades de comércio ou de intercâmbios humanos – de fato muito poucas, pois vastas
florestas, pântanos pestilentos e escarpas íngremes as separavam do Brasil – mas pela
potencial ameaça política e ideológica que poderia representar para a única monarquia do
hemisfério (aliás unida por laços familiares e de identidade cultural a casas reinantes, e
reivindicantes, da velha Europa) um grupo de Estados de certa forma animados pelo fervor
revolucionário e pelos ideais republicanos que os tinham visto nascer. Não por acaso, o
grande historiador José Honório Rodrigues insistia em enfatizar, nas aulas de história
diplomática dadas em meados dos anos 1950 no Instituto Rio Branco, o que lhe parecia ser os
158
três grandes princípios de nossa política exterior desde 1822: a) a preservação de nossas
fronteiras contra as pretensões de nossos vizinhos e a política do status quo territorial; b) a
defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário, interna (revoltas e secessões) e
externamente (caudilhos do Prata) e, c) a defesa contra a formação de um possível grupo
hostil hispano-americano e uma política de aproximação com os Estados Unidos. 1
Como relata Villafañe, o Brasil, “por suas instituições monárquicas e por sua origem
lusa, em contraposição às repúblicas hispânicas, era visto com desconfiança”, mas o próprio
Bolívar reconhecia, contudo, que o regime monárquico tinha livrado o Brasil da guerra civil e
da anarquia, o que não era o caso dos demais países da região. A diplomacia imperial,
liberada nas regências das aventuras cisplatinas e das lutas pelo trono português que tinham
paralisado por quase dez anos as iniciativas diplomáticas do Primeiro Reinado, passa a deitar
os olhos sobre os vizinhos americanos. O Império, preocupado com as fronteiras e a
navegação fluvial, sente a necessidade de um trabalho persistente e tenaz de desarme dos
espíritos e de busca de uma política de “boa vizinhança”, ainda que em face de uma escassez
notória de quadros e de recursos financeiros. É na região que seriam testados princípios de
política externa – como a doutrina do uti possidetis – que seriam incorporados ao patrimônio
diplomático republicano.
Essa orientação americana da política externa imperial se faz desde a minoridade. No
primeiro relatório apresentado pelo titular da Repartição dos Negócios Estrangeiros à
Assembleia Legislativa em 1831, o Secretário de Estado Francisco Carneiro de Campos
declarava o seguinte: “O Governo, de ora em diante mais franco e livre em suas deliberações
e arbítrios, conta poder fazer ainda algumas outras economias nas Missões europeias, para
melhor estabelecer e dotar as da América. Estou convencido que conquanto nós tenhamos tido
até agora, e talvez por muito tempo ainda devamos continuar a ter, as maiores relações com o
antigo mundo, convém todavia principiar desde já a estabelecer e apertar com preferência os
vínculos, que no porvir devem ligar muito estreitamente o sistema político das associações do
hemisfério americano, partes componentes deste grande todo, aonde a natureza tudo fez
grande, tudo estupendo; só poderemos ser pequenos, débeis e pouco respeitados, enquanto
divididos. Talvez uma nova era se aproxima, em que as potências da América, pejando-se de
suas divisões intestinas à vista do exemplo de concórdia, que nós lhes oferecemos, formem
uma extensa família, e saibam com o vigor próprio da liga robusta de tantos povos livres

1
Cf. José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (1531-
1945), organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995, p. 60.
159
repelir com toda dignidade o orgulho, e pretensões injustas das mais infatuadas nações
estranhas. O continente imenso, que banhado pelos dois grandes mares, quase toca ambos os
polos, oferece na grande variedade das suas latitudes e climas, distintíssimos produtos, que
dando sempre o necessário à vida, podem ainda fornecer matéria e alimento ao mais extenso
comércio: a colocação de cônsules inteligentes nos lugares apropriados animará a concepção e
desenvolvimento das mais acertadas especulações mercantis”.2
As “especulações mercantis” continuaram modestíssimas por muitos anos ainda, mas
o intercâmbio de diplomatas, pelo menos, começou a se fazer de maneira mais frequente. Em
algumas épocas, porém, o despacho de missões diplomáticas mais se assemelhava ao das
“embaixadas renascentistas” – isto é, o envio com uma certa pompa de uma delegação que
passava meses viajando de um lado a outro, sem dispor de uma chancelaria fixa, como
ocorreu com Duarte da Ponte Ribeiro – do que propriamente à designação formal de um
residente permanente em cada uma das capitais dessas repúblicas bolivarianas. A comparação
era inclusive destacada pela própria diplomacia imperial, como lembra ainda Villafañe a
partir do historiador Amado Cervo: “Considera-se a diplomacia americana simples, porém
eficiente, características que a distanciam do fausto e da inutilidade da escola europeia. As
relações com os jovens Estados americanos seriam menos onerosas e trariam mais dividendos
ao Brasil”. 3
No contexto da ordem internacional da primeira metade do século XIX, ademais dos
tratados de “amizade, comércio, navegação e limites”, que mais prometiam do que cumpriam,
o Império necessitava de capitais e de braços para a lavoura (escravos ou de colonos
europeus), dois elementos fundamentais ao progresso da nação brasileira que eram ainda mais
escassos nos vizinhos sul-americanos. De fato, as jovens repúblicas americanas, da mesma
forma como os Estados Unidos dessa época, não tinham condições de fornecer os produtos ou
os capitais de que necessitava o Brasil. Daí a persistência da hegemonia europeia (em
primeiro lugar da supremacia inglesa) em matéria de manufaturas importadas, de capitais de
risco ou de empréstimo, assim como nossa dependência absoluta dos mercados europeus, até
que a ascensão do café deslocasse o eixo do intercâmbio comercial para os Estados Unidos. A
baixa incidência das repúblicas do Pacífico nas trocas externas do Brasil não impedia, porém,
um atento seguimento por parte da diplomacia imperial de sua política interna e, sobretudo, de

2
Cf. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, de 1831, p. 5-6.
3
Cf. Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília:
Editora da UnB, 1981, pág. 39.
160
suas relações regionais (o poderio chileno logo desponta com toda força) e internacionais,
como evidenciado pela análise atenta e pela reconstituição histórica cuidadosa de Villafañe.
Quando Luís Cláudio defendeu esta obra como dissertação de mestrado na UnB, lá se
vão praticamente mais de dez anos, reconhecendo imediatamente o valor do trabalho (que em
muito transcendia as modestas dimensões da monografia que normalmente se exige de um
candidato a mestre), eu lhe disse de chofre: “Mas isto é praticamente uma tese de
doutorado!”, o que lhe arrancou um sorriso de satisfação. Talvez por isso ele me tenha dado
agora o prazer de prefaciar um estudo original que merece, tanto quanto outras teses de
doutoramento porventura laborando em terreno virgem, figurar entre as obras de referência
fundamentais de nossa parca historiografia diplomática sobre as relações regionais.
A tese de doutoramento viria mais tarde, estando hoje consolidada num importante
trabalho sobre o Império e o interamericanismo, cobrindo o período que se estende do
congresso do Panamá, em 1826, até a primeira conferência americana de Washington, em
1889-1890 (na qual o Brasil entrou como monarquia e saiu como república). Dotada de igual
profundidade analítica e recorrendo a uma documentação primária que já lhe era familiar
desde meados dos anos 80, essa nova obra, sob o título de A Invenção do Brasil, promete
consagrar Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos como o grande historiador de nossa
diplomacia para a América do Sul. Num momento em que o Brasil pretende criar um novo
sistema de relações regionais que supere o difuso conceito de América Latina em favor da
noção bem mais concreta de América do Sul, os estudos históricos de Luis Cláudio dão a base
indispensável a partir da qual analisar nossos interesses permanentes numa vasta região que
constituiu, nas palavras de Celso Lafer, nossa circunstância geográfica incontornável. Espero
que dentro em breve, com a possível publicação dessa nova obra em edição comercial, os
estudiosos dessa problemática possam ter a satisfação de ler a continuidade deste excelente
trabalho de pesquisa histórica que agora tive o privilégio de prefaciar.

Washington, 30 de outubro de 2001.


Prefácio ao livro de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, p. 7-11.

161
Aux origines du Brésil contemporain

Paulo Roberto de Almeida, Katia de Queiroz Mattoso:


Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain
(Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; collection: Recherches et Documents Amériques
latines, série Brésil; ISBN: 2-7475-1453-6)

Ce livre a été conçu et élaboré pour la première fois en 1994, par le service culturel de
l’Ambassade du Brésil en tant qu’information destinée aux étudiants. Révisé et élargi pour
cette nouvelle édition, il vise maintenant le public en général. Les opinions qui sont ici
exposées n’engagent que les auteurs et ne représentent pas les positions du Gouvernement
brésilien ni de son ministère des Relations Extérieures.
Cet ouvrage a été à l’origine un texte (première partie de ce volume) déjà publié
auparavant, écrit en 1989 par Katia de Queirós Mattoso, avec l’assistance de Antônio
Fernando Guerreiro de Freitas, suivi d’un texte inédit, préparé spécialement pour la
publication par celui qui signe ces lignes, alors exerçant des fonctions de Conseiller à
l’Ambassade du Brésil à Paris.
Le travail des professeurs Mattoso et Freitas, historiens professionnels, avait été publié
originalement dans la revue Géopolitique (Hiver 1989-1990) et l’autorisation de le reproduire
dans une brochure de l’Ambassade du Brésil avait été aimablement accordée par Mme Marie-
France Garaud, Présidente de l’Institut International de Géopolitique, remerciée ici pour sa
bienveillance.
Ce qui était une simple brochure d’histoire du Brésil avait été conçue, en premier lieu, en
vue de répondre aux besoins des étudiants des collèges et lycées français désirant une
information concise sur le développement historique du Brésil. Elle n’avait donc d’autre
objectif que celui d’être essentiellement didactique.
Pour la présente édition, le texte écrit à quatre mains par les professeurs Mattoso et
Freitas a été maintenu tel quel, mais celui que je signe a été grandement remanié, non
seulement pour le mettre à jour en ce qui concerne l’“histoire événementielle” récente, mais
aussi pour tenir compte des profondes transformations que le Brésil a connu au cours des sept
ans qui se sont écoulés depuis la première édition.

162
Sommaire

Avant-propos

Première partie
Brésil: cinq siècles d’histoire

1. 1500-1822: le Brésil, colonie portugaise


2. 1822, l’indépendance brésilienne: un nouvel empire
3. 1889: l’installation de la République
4. 1889-1930: la Vieille République
5. 1930-1945: le “gétulisme”
6. 1946-1964: les tentatives de démocratisation
7. 1964-1984, le pouvoir militaire: du miracle économique à la récession

Deuxième partie
Le Brésil de 1985 à 2001:
Consolidation démocratique et stabilisation économique

8. Bilan d’une époque: les dernières années du siècle


9. La transition au régime civil: alliances et compromis
10. Tentatives de stabilisation économique et nouvelle Constitution
11. Une politique extérieure faite de continuité et de changements
12. Les premières élections directes en 30 ans: ascension et chute d’un président
13. La démocratie en marche et le défi de la stabilisation économique
14. Les deux administrations Fernando Henrique Cardoso: changement de paradigme
15. L’insertion internationale du Brésil: Mercosul et projets régionaux
16. La question sociale au Brésil au début du XXIe siècle

Chronologie de l’histoire du Brésil, 1494-2005


Relations économiques internationales du Brésil, 1500-2001
Orientations de lecture

Paulo Roberto de Almeida


Washington, Janvier 2002

163
Como e por que sou e não sou diplomata
(à maneira de Gilberto Freyre)

Paulo Roberto de Almeida:


A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil
(São Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8)

Não sou nem pretendo ser diplomata puro. Mais do que diplomata, creio ser cientista
social. Também me considero um tanto historiador e, até, um pouco, pensador. Mas o que
principalmente sou creio que é escrevinhador. Escrevinhador – que me perdoem os demais
cientistas sociais a pretensão e os políticos profissionais a audácia – político. E, ao lado do
diplomata, reconheço haver em mim um anti-diplomata. Se aqui destaco minha condição de
diplomata – diplomata, é certo, impuro e nada ortodoxo –, é que essa condição é, em mim,
irredutível. Só sendo um tanto diplomata eu me poderia dar o luxo de ser também anti-
diplomata em várias das minhas tendências.
São essas contradições que sempre procurei expor e, por vezes, comentar em meus
trabalhos de diplomacia e de sociologia política. Quase despretensioso e nada apologético – o
que seria uma apologia pro “diplomacia sua” –, quase sempre chego à autocrítica, contra
minha profissão de sociólogo e por vezes contra minha própria condição profissional.
Reúnem-se aqui trabalhos que, aliás, podem ser considerados como pouco conectados
à minha incerta condição de diplomata: tão incerta, para uns tantos diplomatas, como, para
outros, críticos da vida cotidiana, a de escrevinhador político – condição que também procuro
considerar. Mais do que diplomata ou sociólogo, sou antes de tudo cidadão brasileiro, que foi
o que de fato me motivou a escrever os ensaios coletados neste volume.
Ao tentar explicar-me como possível diplomata, não poderei deixar de referir-me ao
que, ao lado dessa minha discutida condição, há em mim, bem ou mal, de cientista social, de
historiador e, talvez, de pensador, tornando ainda mais difícil a classificação que se pretenda
fazer de homem tão desajeitadamente multidisciplinar, tão diverso sem que tal multiplicidade
de interesses signifique mérito ou virtude superior.
O possível diplomata – como o cientista social, o historiador, o pensador também
possíveis – só existe, no meu caso, ligado ao escrevinhador político. Quase nunca como
didata, quase sempre como autodidata. Nem como pesquisador profissional, pois que não
tenho meu ganha-pão nessas demais orientações e sim na condição primeira de diplomata.
Nem efetivamente burocratizado nisto ou naquilo: consultor, assessor, perito, acadêmico,

164
funcionário, sem pertencer a qualquer instituto ou agremiação política ou social. Sou um ser
livre, tanto quanto me permite o pertencimento a uma instituição bissecular, altamente
burocratizada, hierarquizada e disciplinada a ponto de enquadrar seus membros numa teia de
comprometimentos diretos e indiretos com o chamado esprit de corps, que possuo no grau
mais tênue possível.

Os parágrafos acima foram livremente inspirados em peça similar elaborada pela


pluma do escritor Gilberto Freyre – extraída do prefácio de seu livro Como e por que sou e
não sou sociólogo (Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1968) –, que detém,
portanto, todos os direitos autorais, intelectuais e morais sobre a forma, o conteúdo e a
disposição desse texto precedente, que pretende justamente homenageá-lo enquanto pensador
brasileiro, original e iconoclasta. Da mesma forma, os ensaios que seguem são devidos
inteiramente à minha própria pluma (no caso, computador), também iconoclasta, e respondo
integralmente pela forma, conteúdo e disposição, bem como pela paternidade moral das
poucas ideias originais que eles possam conter.
Esses ensaios são autoexplicativos e autossuficientes – uma nota final restabelece a
cronologia original em que foram escritos –, mas talvez devesse chamar a atenção para o fato
de que, à exceção de um único, todos eles, mesmo aqueles que antecipam a grande
transformação política em curso no Brasil, foram pensados e elaborados antes que quaisquer
resultados eleitorais viessem confirmar a magnitude das mudanças em implementação. Outros
trabalhos elaborados nesse mesmo contexto, como por exemplo os que analisam os programas
de campanha de cada um dos candidatos nas eleições presidenciais de 2002, com especial
ênfase na questão da política externa e das relações internacionais do Brasil, deixaram de ser
incluídos no presente volume, uma vez que se prendem mais a um enfoque descritivo e de
debate crítico dessas plataformas partidárias e de sua adequação ao contexto diplomático
brasileiro do que a uma reflexão sobre um processo original de mudança política e social, que
ainda está longe de revelar todas as suas implicações e desenvolvimentos futuros.
Esses textos representam, por assim dizer, minha contribuição cidadã a um debate
amplo sobre questões relevantes do processo de transformação em curso no Brasil, nos planos
interno ou externo, e são uma amostra muito pequena de uma contínua produção de textos
que, mais do que algum eventual propósito didático, têm por finalidade servir ao auto-
esclarecimento e a uma reflexão ponderada sobre escolhas por vezes difíceis que se
apresentam tanto ao observador acadêmico quanto ao administrador público. Como burocrata

165
especializado numa determinada área, a diplomática, mas também como sociólogo livre
atirador, achei que poderia contribuir com algo para esse debate.
Não tenho certeza de ter respondido satisfatoriamente a muitas das questões de
natureza sociológica, ou outras infindáveis dúvidas no plano das relações econômicas
internacionais do Brasil, que se colocam em relação a esse processo de mudanças, ainda
carente de mapeamento preciso e análise adequada. Provavelmente não, uma vez que
realidades como essa são complexas em demasia para receberem tratamento analítico
adequado num simples volume de dimensões modestas. Em todo caso, foi minha intenção
colocar todas as perguntas pertinentes – algumas até de forma bastante provocadora – que
poderiam ser relevantes para um debate esclarecido, do tipo socrático, sobre o importante
fenômeno de mudança em curso no país.
O título escolhido para esta compilação de ensaios se inspira diretamente em uma
conhecida obra (publicada em 1944) do famoso cientista social e “liberal-utopista” Karl
Polanyi, autor de vários outros trabalhos provocadores – como Our Obsolete Market
Mentality – e que poderia ser descrito como socialista e conservador ao mesmo tempo.
Simultaneamente crítico dos pensadores liberais e dos marxistas teóricos (em relação aos
quais descartava a visão estreitamente classista do processo histórico), Polanyi apreciava o
papel dos mercados, mas não fazia disso uma profissão de fé. Como escreveu em The Great
Transformation: “There was nothing natural about laissez-faire; free markets could never
have come into being merely by allowing things to take their course. [...] Laissez-faire itself
was enforced by the state”.
Partilho inteiramente dessa concepção multidisciplinar sobre o processo histórico e
venho tentando, em muitos dos meus trabalhos de história econômica e de sociologia política,
introduzir essa visão abrangente e não convencional sobre fenômenos relativamente
complexos como o papel dos partidos políticos na política externa ou a interação entre a
diplomacia e a sociedade nacional no itinerário evolutivo das relações econômicas
internacionais do Brasil. Estes ensaios se situam nessa continuidade, ainda que tenham sido
concebidos num espírito bem mais provocador do que o tom convencional utilizado nos meus
trabalhos acadêmicos. Em todo caso, eles respondem a uma necessidade, tanto interna quanto
propriamente “social”, de contribuir para o debate aberto em torno do importante processo de
mudança inaugurado no Brasil a partir do segundo semestre de 2002 (ou provavelmente antes
disso). Eu me sentirei satisfeito se eles despertarem, primeiro uma indignação de surpresa,
depois alguma manifestação de ceticismo sadio e, finalmente, a sensação de que eles

166
permitiram a abertura de novas avenidas de reflexão sobre o Brasil e sua inserção
internacional. Cabe agora ao leitor julgar se fui bem-sucedido nesse empreendimento.

Washington, 2 de novembro de 2002


Prefácio ao livro publicado.

A economia política da mudança no Brasil: um livro de reflexões

A publicação de meu livro A Grande Mudança: consequências econômicas da


transição política no Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003), ao início de 2003, oferece-me
a oportunidade de tecer algumas considerações sobre seu objeto próprio, assim como sobre a
conjuntura vivida pelo Brasil, neste momento histórico de transição. Meu novo livro de
ensaios, pela primeira vez em muitos anos, não trata das relações internacionais, do processo
de integração regional, da política externa do Brasil ou de sua diplomacia econômica em
perspectiva histórica, que foram os temas nos quais me concentrei preferencialmente na
última década.
Na verdade, ele representa uma espécie de retorno às origens, ao início de meu
aprendizado intelectual enquanto cidadão preocupado com o país e a sociedade injusta à qual
pertencia (e ainda pertence). De fato, o livro me remete ao início dos anos 1960, quando eu
me ensaiava nas primeiras leituras de economia, de sociologia e de política do Brasil,
tentando descobrir por que vivíamos uma condição tão desigual do ponto de vista social. De
certa maneira, ele também pode ser visto como uma continuidade de algumas das discussões
travadas em meu primeiro livro de ensaios, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da
globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999), que retomava aquelas leituras da
juventude e fornecia novas respostas tentativas, já numa perspectiva “revisionista” à que eu
tinha simplisticamente formulado mais de três décadas antes.
A Grande Mudança é uma obra de economia política, no sentido clássico da palavra,
uma coleção de ensaios não abstratos, mas altamente reflexivos sobre o processo de
transformações em curso na presente conjuntura brasileira, ainda que ele não comporte
qualquer menção direta a figuras ou entidades concretas que se situam no centro da atual
maioria política e social. O livro não pretende descrever esse processo de mudanças, nem
aspira ensinar ninguém sobre o que acaba de se passar na política brasileira, com o que ele
conformaria uma “crônica dos eventos correntes” da atualidade política. Ele discute, contudo,
algumas implicações das transformações em curso do ponto de vista da ação governativa e

167
tenta tirar alguns ensinamentos válidos num contexto e numa perspectiva mais ampla, que
podem ser caracterizados como de pós-Guerra Fria e de pós socialismo.
Ele não é didático, mas é auto-didático e condensa, por assim dizer, opiniões pessoais,
considerações políticas e econômicas e reflexões “filosóficas” sobre um dos movimentos
“transformistas” mais importantes que o Brasil já conheceu em toda a sua história, pelo
menos potencialmente. Quando digo, talvez ambiciosamente, que ele se situa na tradição da
economia política dos clássicos não pretendo, obviamente, que ele constitua um novo manual
para uso dos poderosos, mas tão simplesmente um guia de reflexões para aqueles que estão
engajados no movimento transformador, tendo de abandonar algumas antigas certezas sobre o
processo de mudança e adotar novas perspectivas sobre os limites dessas transformações.
Adam Smith, na introdução ao quarto “livro”, sobre os “sistemas de economia
política”, de sua obra de 1776 sobre a riqueza das nações, assim definia seu objeto de estudo:
“A economia política, considerada como um ramo da ciência de um homem de Estado ou de
um legislador, se propõe dois objetos distintos: primeiro, prover uma renda abundante ou a
subsistência do povo, ou mais apropriadamente, habilitá-lo a prover essa renda ou essa
subsistência por ele mesmo; em segundo lugar, prover o Estado ou a sociedade de uma renda
suficiente para os serviços públicos. Ela se propõe enriquecer tanto o povo quanto o
soberano” (cf. Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations;
6ª ed.: London: Strahan and Cadel, 1791, vol. II, p. 138). Trata-se, obviamente, de duas
tarefas bastante concretas para os homens públicos, mas isso não caracteriza o objeto da
disciplina enquanto tal, o que nos remete à ambiguidade da obra e da própria condição de
Adam Smith, ao mesmo tempo um empregado de alfândega e um “filósofo moral”.
O presente livro talvez esteja submergido na mesma “ambiguidade construtiva”
daquele manual clássico de economia política, sem pretender, obviamente, chegar-lhe aos pés.
Ele aspira, tão somente, chamar a atenção do leitor, em especial daquele interessado nos
fundamentos econômicos das transformações políticas em curso, para um conjunto de temas
centrais da ação governativa, podendo assim conformar uma espécie de introdução a um
“novo manual de economia política” nas condições concretas em que passa a trabalhar o
Brasil e sua nova maioria política. Não se pretende, está claro, dar a receita de como aumentar
a renda do cidadão ou de como agregar mais um tanto à do Estado, mas de levar o homem de
Estado e o legislador, ou os aspirantes a tais, a considerar certos limites impostos pelas
“forças econômicas” à vontade transformista no campo político. Não é um livro de um ator ou
sequer de um formulador das condições dessa mudança, mas é uma obra de reflexão que se
coloca naquela perspectiva aroniana bem conhecida do “espectador engajado”.
168
Se o livro não comporta, portanto, nenhum fervor militante, nem adere a nenhum
credo econômico ou agrupamento político particulares, ele ostenta a mesma paixão do
engajamento nas causas públicas pela transformação do Brasil que parece ter marcado a
geração a que pertenço, a dos que estudaram, trabalharam e atuaram na segunda metade do
século XX, quando o País deixou de ser a sociedade agrária que era até então mas não logrou
transformar-se (ainda) na democracia industrial avançada e socialmente justa a que todos
aspiramos como cidadãos. Como espectador privilegiado dessa conjuntura histórica de
mudanças incompletas, tanto no Brasil como, de forma intermitente, no exterior (no último
quarto de século), espero ter podido agregar meus elementos de reflexão sobre um processo
ainda inacabado de transformação da Nação. Se ouso retomar antigas lições marxistas, posso
dizer que ele foi concebido no espírito da décima-primeira tese sobre Feuerbach, ainda que
ele não aspire, absolutamente, transformar o mundo (no caso, o Brasil), mas tão somente
interpretá-lo de maneira correta. Ao leitor de julgar.

Washington, 1º de janeiro de 2003


Posfácio ao livro.

169
História quase virtual do Brasil

Evaldo Cabral de Mello:


A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824
(São Paulo: Editora 34, 2004, 260 p.; ISBN: 85-7326-314-8)

Estamos tão habituados à versão tradicional da independência do Brasil, de cunho


unitário e quase que “naturalmente monarquista”, que negligenciamos outros modos possíveis
de desenvolvimento da nação ou de formação do Estado. Já não falo de uma história
declaradamente virtual, que poria em confronto “o que efetivamente se passou”, segundo a
visão Rankeana, com possibilidades inesperadas ou puramente hipotéticas, como uma
separação holandesa do Nordeste, em caráter permanente, ou um movimento inconfidente
bem sucedido nas Gerais, de caráter republicano, ou ainda uma divisão de fato entre as várias
províncias do norte e do sul no processo de independência, o que teria conformado um
arquipélago de nações lusófonas na América do Sul (a exemplo da fragmentação hispano-
americana na vertente andina).
Este novo livro do diplomata-historiador (ou vice-versa) Evaldo Cabral de Mello
explora justamente essa última possibilidade, a de uma outra independência possível, não
como hipótese virtual, mas como realização efetiva, tal como tentada nas cidades e nos
campos da Bahia e de Pernambuco, entre a insurreição precoce de 1817 e a Confederação do
Equador em 1824. Esses movimentos, junto com outros do Sul, ficaram agrupados sob o
amálgama enganador de “separatismo”, ao passo que os construtores do Império, a partir do
Rio de Janeiro, passaram para a história com o beau rôle de unitários e de nacionalistas. Essa
é, porém, uma perspectiva equivocada, uma vez que, no momento da independência, o Brasil
era tudo menos Brasil, e sim um ajuntamento de províncias que se relacionavam mais com a
metrópole (ou com a África, por exemplo) do que entre si. Luiz Felipe Alencastro já tinha
alertado para esse arquipélago de sistemas desvinculados entre si, sem unidade econômica
real.
Este livro conta a história desse “destino não manifesto”, traduzido no desejo de
algumas elites regionais, no caso as do Nordeste, de recuperar o poder local perdido quando
da vinda da família real e a centralização operada em favor do Rio de Janeiro. O federalismo,
segundo Evaldo, era uma possibilidade real, se alguns destes processos não tivessem ocorrido:
a manutenção da dinastia bragantina no Rio, um tratamento mais conforme às aspirações das
elites regionais pelas Cortes de Lisboa e a determinação da “administração” da Corte no Rio
170
em preservar sua posição hegemônica. Mas foi uma luta bárbara, na qual a força foi mais
importante do que a persuasão. A historiografia ulterior alimentou o “Rio-centrismo”,
descurando ou desvalorizando os “separatismos” regionais, uniformemente agrupados na
rubrica contrária à unidade nacional, quando o que eles pretendiam, na verdade, era uma
forma diferente de organização do Estado (e do equilíbrio entre as províncias), provavelmente
mais conforme ao modelo proposto nos Estados Unidos poucas décadas antes.
A Bahia, como se sabe, ficou sob ocupação portuguesa no episódio da separação,
razão pela qual coube eminentemente a Pernambuco a liderança federalista, quando na
verdade ambas as províncias tinham condições econômicas para sustentar um modelo
diferente, singularmente autonomista, e de construir um Estado não centralizado, ainda que
passavelmente unitário, sob a égide da monarquia (mesmo se muitos liberais fossem
declaradamente republicanos). Longe de obedecerem a impulsos regionais anárquicos e
antipatrióticos, como a propaganda fluminense quis fazer acreditar (dando os exemplos
caóticos dos estados hispano-americanos), os patriotas do Nordeste queriam a verdadeira
liberdade e a igualdade, num regime de poderes compartilhados.
José Bonifácio foi, neste caso, menos sábio do que o habitualmente afirmado, pois
que, partindo da ideia de uma “peça majestosa e inteiriça desde o Prata até o Amazonas”,
denegriu o projeto federalista, assimilando-o ao republicanismo e acusando seus líderes de
pretenderem um “governo monstruoso”, para serem nas províncias “chefes absolutos,
corcundas despóticos”. Os “bispos sem papa”, no dizer de Bonifácio, foram esmagados e
assim o Brasil continua a ser até hoje, a despeito da ironia de carregar no nome o adjetivo
federalista, a mais unitária das repúblicas americanas.

Brasília, 20 de março de 2005.


Revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, ano I, n. 9, abril 2005);
republicada na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados, Ano II, n. 2, novembro de 2005, p. 343-344).

171
Na diplomacia, entre a história e as ciências humanas

Paulo Roberto de Almeida:


Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia
brasileira
(2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, 440 p.;
coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4)

Este livro foi concebido como uma síntese teórico-prática situada na confluência
intelectual da academia com a diplomacia. Ele também pode ser visto como uma espécie de
condensado literário da obra de um “agente duplo” ou, ainda, como um retrato em branco e
preto de um escriba informatizado que é também, embora muito modestamente, um ator
coadjuvante da política exterior brasileira. Com efeito, os trabalhos aqui reunidos constituem
o resultado parcial de mais de dez anos de pesquisas e de reflexões acadêmico-funcionais
sobre a natureza essencial e o sentido profundo da atividade diplomática, considerada não só
do ponto de vista “externo” da pesquisa bibliográfica e da consulta às fontes primárias, mas
também da perspectiva “interna” de quem vive, literal e diuturnamente, do exercício dessa
mesma atividade diplomática.
Estes ensaios se situam, portanto, no próprio âmago da política externa prática,
interpretada teoricamente por um profissional da diplomacia que também reivindica, talvez
deliberadamente, um estatuto de outsider no confronto com a aparente rigidez hierárquica de
uma Casa mais do que centenária, o Itamaraty. A experiência não é sem riscos: seria como se
este “espectador engajado” – o copyright da expressão pertence a Raymond Aron – do serviço
exterior brasileiro procurasse analisar o objeto de seu trabalho corrente de um ângulo externo,
com o distanciamento ideológico de um cientista imparcial que devesse dissecar as entranhas
de sua própria instituição.
Mas, sob o risco de decepcionar os críticos da Casa de Rio Branco e contrariamente ao
que poderia indicar esse animus dissecandi do autor, deve-se desde logo advertir que seu
bisturi analítico não está dirigido à alma mater da instituição diplomática brasileira. Como se
poderá facilmente constatar por uma simples consulta ao sumário, não se tentou fazer aqui
qualquer anatomia do próprio Itamaraty, o volume não comporta nenhum perfil sociográfico
dos diplomatas, nem se pretendeu elaborar uma antropologia do serviço exterior brasileiro,
com a mesma eventual meticulosidade de um etnólogo isolado entre tuaregues (muito embora
estudos desse tipo devessem talvez figurar nas estantes da politicamente correta biblioteca do

172
Ministério das Relações Exteriores). O próprio autor, que já passou por ritos de iniciação
antropológicos em terras belgicanas e que, em priscas eras, prestou solidariedade clânica à
tribo dos sociólogos paulistas, à qual legitimamente pode reivindicar sua appartenance, se
compromete em proceder, no futuro, a esses exercícios de sociologia da vida quotidiana que
encantariam um espírito anárquico e multidisciplinar ao estilo de um Gilberto Freyre. Tal
exercício, que poderia igualmente tocar nos “mitos fundadores” do Itamaraty, representaria
algo como um ensaio de biografia coletiva para explicar, talvez, “como e porque sou e não
sou diplomata”, temperado obviamente pelo espírito de autocontenção que costuma
caracterizar todo frequentador habitual da Casa do Barão.
O que vai se ler aqui, portanto, não são estudos de diplomacia brasileira, mas ensaios
sobre as relações internacionais em geral e sobre a política externa brasileira em particular,
pelo ângulo de um servidor da circunspecta burocracia diplomática que também frequenta os
anfiteatros algo mais barulhentos das instituições universitárias. Eles não foram, de nenhuma
maneira, redigidos sob a oportunista forma de memorandos de serviço, mas concebidos e
elaborados com a dedicação metódica de alguém que sempre esteve voltado às pesquisas de
arquivo e às atividades docentes, levadas regularmente a cabo no Brasil e nos intervalos de
uma vida seminômade no exterior.
Eles representam, num certo sentido, o resultado de uma união intelectual entre o
professor ocasional e o burocrata do serviço exterior, entre o acadêmico amador e o diplomata
profissional, entre uma atividade que busca explicações sobre os meios legítimos da
racionalidade estatal e outra que persegue os fins últimos da razão do Estado, entre o trabalho
intelectual do especialista universitário em dedicação parcial e a atividade analítica em tempo
integral em uma das corporações reconhecidamente mais intelectualizadas de nossa
burocracia governamental, entre a ética de convicção e a ética de responsabilidade, entre a
aparente “imparcialidade” do livre-arbítrio acadêmico e a afirmada “objetividade”,
forçosamente generalista e recorrente, de uma das mais weberianas instituições públicas. Em
contraposição, contudo, ao trabalho exclusivamente acadêmico, os textos aqui compilados
apresentam uma differentia specifica, a de que foram elaborados não apenas da perspectiva
puramente universitária da sociologia das relações internacionais ou, ainda, da política, da
economia ou da história da política exterior do Brasil, mas, essencialmente, no contexto
funcional do serviço exterior brasileiro e tendo presente, sobretudo, a necessidade de se fazer
a “anatomia intelectual” da diplomacia brasileira, como forma de seguir seu itinerário
histórico e de determinar seus fundamentos de atuação.

173
Ambas as vertentes acima mencionadas, o trabalho profissional na diplomacia
brasileira e a dedicação, quase que monástica, ao estudo das origens e desenvolvimento dessa
mesma diplomacia, geralmente vista na perspectiva diacrônica da longue durée, devem ser
consideradas como absolutamente complementares, no sentido em que elas constituem o
suporte necessário (mas nem sempre suficiente) uma da outra. Elas conformam, uma e outra,
os pilares de uma “visão do mundo” que se pretende abrangente – poder-se-ia dizer
compreensiva, no sentido weberiano do conceito – e original, na medida em que os textos
reunidos neste volume não traduzem o mero produto intelectual de pesquisas empreendidas
num contexto exclusivamente acadêmico e tampouco se situam numa perspectiva unicamente
institucional ou oficial. Esses textos são o resultado de preocupações historiográficas e
sociológicas próprias de seu autor, não com a diplomacia brasileira, propriamente dita, mas
com o Brasil em primeiríssimo lugar: eles pretendem investigar o passado de nossa inserção
internacional para melhor compreender o presente das relações externas do País e preparar o
futuro da Nação no mundo.
Assim, os trabalhos de metodologia das relações internacionais, de história
diplomática e de “economia política” da política externa aqui compilados representam, antes
de mais nada, uma espécie de bridge-building entre a academia e a diplomacia, às quais o
autor se vincula por manifesto interesse pessoal e em virtude do exercício de atividade
profissional. Eles também se pretendem portadores e veiculadores dessa multidisplinariedade
que se tornou virtualmente emblemática e mesmo necessária nos modernos estudos de
relações internacionais e de política externa dos Estados contemporâneos.
Cabe, contudo, antes de deixá-lo penetrar sem armas e bagagens nas florestas ainda
pouco frequentadas das relações internacionais e da política externa do Brasil, oferecer ao
leitor eventualmente desprevenido uma honesta advertência heurística. Estes trabalhos sobre a
diplomacia brasileira estão fortemente impregnados de História, mais do que de qualquer
outra disciplina acadêmica aqui presente e figurando a título de “interpretação setorial” dessa
diplomacia (economia, política, sociologia ou mesmo “ideologia” da política externa). Como
justificar o deliberado viés metodológico em favor de uma abordagem específica dessa
complexa realidade, como explicar essa “opção preferencial” por uma interpretação histórica
das relações internacionais do Brasil?
Não há, obviamente, uma explicação simples a essa espécie de a priori weberiano,
mas posso tentar legitimar meu approach, servindo-me das palavras de um outro diplomata
que, ele sim, é um treinado cultor das pesquisas de arquivo e um refinado e elegante
historiador de nosso passado colonial e oitocentista. Ao apresentar a segunda edição de seu
174
consagrado e provavelmente já clássico estudo sobre o imaginário da restauração
pernambucana, Rubro veio, Evaldo Cabral de Mello assim se pronuncia sobre a especificidade
e a irredutibilidade do método histórico em face das demais ciências humanas:

Este esforço se inspirou [...] nos gêneros historiográficos mais diversos, a


história política, econômica ou das mentalidades, sem preferências exclusivistas. A ele
também subjaz uma certa ideia da história que a vê não como a grande sintetizadora com
que sonhou imperialmente Braudel, nem como mero repositório de dados empíricos à
disposição de sociólogos, antropólogos e economistas, mas, ao contrário, como uma
maneira específica de abordar a realidade social [...]. Nesse sentido, pode-se dizer que a
história situa-se não na vanguarda mas na retaguarda das ciências humanas, não para
seguir-lhe docilmente os passos mas para dinamitar suas excessivas pretensões teóricas.
O papel do historiador consistiria, em boa parte, em explodir os mitos que, a despeito
dos seus objetivos científicos, as ciências humanas continuam a engendrar e que são
passíveis de produzir curto circuitos duradouros no conhecimento histórico. O
historiador seria assim o sabotador nato do sociólogo, do antropólogo, do economista.1

Sem pejo do empréstimo intelectual involuntário, subscrevo inteiramente a opinião de


meu colega de carreira, tal como acima exposta, quanto ao papel da História enquanto
destruidora de mitos fáceis e de verdades inquestionadas. Estes ensaios se colocam, ou
pretendem se ver, na perspectiva saudavelmente iconoclasta de uma obra original, fruto de
honesto trabalho intelectual conduzido nos intervalos irregulares de uma intensa atividade
profissional durante todo o período de sua elaboração. Eles também têm a pretensão, talvez
exagerada, de oferecer um esforço de interpretação histórico-sociológica eventualmente
desbravadora de novos caminhos analíticos que visam enriquecer o estudo global das relações
internacionais e da política externa do Brasil. Sua contribuição a tal projeto multidisciplinar
de amplo escopo deve, assim, ser julgada em seus próprios méritos, e jamais como pretenso
elemento informador de um “pensamento oficial” em história diplomática que não faz parte
de seus objetivos constitutivos.
Quanto à eventual alegação de algum leitor apressado, no sentido de que este autor se
estenderia em demasia sobre determinados eventos ou processos do passado da diplomacia
brasileira, antes de penetrar no atual labirinto das relações internacionais contemporâneas,
permito-me recuperar, da mesma forma, os saborosos argumentos de um predecessor que
também era um diplomata-historiador. Oliveira Lima, esse Dom Quixote Gordo, no dizer do
mesmo Gilberto Freyre, ao discorrer sobre a densidade analítica dos antigos despachos de
legações (ele se reportava ao período da Independência do Brasil), assim comparou a

1
Cf. Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. rev. e
aumentada, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 14-15.
175
verbosidade dos antigos “escribas” diplomáticos à suposta parcimônia redacional de seus
modernos sucessores:

O telégrafo ainda não existia. Os jornais não eram tão admiravelmente


informados quanto hoje, quando eles se acham em condições de se informar nas
próprias chancelarias. Os diplomatas eram pois forçados a escrever volumosos relatos,
que nada perderam de seu interesse, pois que neles se encontravam coisas que não se
encontravam alhures. É esse último traço de escrevinhadores, digamos antes de
escritores, a fim de não amarrotar-lhes a memória, que distingue principalmente os
agentes políticos de outrora de seus confrades atuais, aos quais a vida intensa e
perfeitamente aparelhada tem feito perder esse honesto costume.2

Operando uma “resenha do passado” e retomando a seu favor o discurso de Oliveira


Lima, o autor destas linhas também gostaria de se ver como um “diplomata d’antanho” – mas,
de maneira alguma, como um representante da diplomacia ornamental e aristocrática do
ancien régime –, pelo menos no que se refere ao “honesto costume” de ler, observar,
pesquisar e informar sobre o universo mais vasto das relações exteriores do País e, em
especial, sobre as relações econômicas internacionais do Brasil.3 Ele também aspira seguir o
saudável exemplo de todos aqueles colegas diplomatas, do passado e do presente, que
também foram ou são “escrevinhadores” das “cousas diplomáticas” do Brasil, como queria
Oliveira Lima. Descartando por enquanto a redação de “volumosos relatos” profissionais,
estão aqui enfeixados alguns modestos escritos acadêmicos abordando a notável continuidade
histórica das relações internacionais e da política externa do Brasil.

Brasília, setembro de 1998


Prefácio à primeira edição.

Avanços metodológicos, diversidade analítica, produção em alta

Tenho um especial apreço por esta obra, de certo modo meu primeiro livro
“diplomático”. Com efeito, até 1998, eu já tinha publicado uma boa quantidade de ensaios
sociológicos, de artigos históricos e de textos econômicos, em revistas do Brasil e do exterior,

2
Cf. Oliveira Lima, Formação histórica da nacionalidade brasileira, 2. ed., Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997, p. 192.
3
Oliveira Lima, por exemplo, era um crítico severo do diplomata apenas “político”: não se vende café,
cacau ou açúcar, dizia ele, “enfiando meias de seda para ir a concertos de Buckingham Palace ou
envergando uma casaca irrepreensível nos cotillons de New-port”, completando sua opinião ao
afirmar que, assim como o cônsul carecia de “mover-se na alta sociedade”, também o diplomata
deveria “aprender o caminho das bolsas de comércio”; ironicamente, ele se perguntava em que
poderia “um secretário de legação revelar sua capacidade, a não ser a caligráfica?” (Cf. Cousas
diplomáticas, [s. l.]: [s.n.], 1907, p. 15 e 17.
176
bem como dois ou três livros sobre o Mercosul e o comércio internacional. Contudo, não
tinha tido ainda a oportunidade de compilar num único volume destinado a publicação
comercial meus diversos trabalhos tratando de questões de relações internacionais e de
política externa do Brasil, temas a que vinha me dedicando desde finais da década anterior.
Esta oportunidade surgiu em 1998, quando a Editora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, por iniciativa do professor Paulo Vizentini, decidiu criar, na área de ciências
humanas, uma coleção voltada precipuamente para temas de relações internacionais e de
integração. Este meu livro teve, portanto, o privilégio de inaugurar essa nova série e de passar
a integrar, desde então, a bibliografia indicativa em muitos cursos de relações internacionais
que foram surgindo em diversos Estados do Brasil a partir dessa época. Esgotada a tiragem e
avolumando-se as cobranças dos muitos alunos (e professores) que me diziam não conseguir
mais encontrá-lo, a Editora alertou-me para a necessidade de preparar uma segunda edição
com a possível brevidade, o que me obrigou a deixar temporariamente de lado vários outros
trabalhos urgentes para revisar este livro em sua totalidade.
Optei primeiramente por preservar a estrutura básica da primeira edição,
considerando-a ainda plenamente válida, dedicando-me essencialmente a atualizar os
capítulos que necessitavam de aggiornamento bibliográfico ou documental. Após reflexão,
todavia, decidi proceder a uma substituição e a um desdobramento. Por um lado, preferi
suprimir o ensaio histórico sobre a “diplomacia dos descobrimentos” (que deve agora integrar
volume independente) por um outro, de mais urgente atualidade: as relações do Brasil com o
Fundo Monetário Internacional, desde a emergência da instituição, no seguimento da
conferência monetária e financeira de Bretton Woods, em 1944, até os mais recentes acordos
de sustentação financeira negociados pelo Brasil entre 1998 e 2003. Por outro lado, o já longo
capítulo sobre a interação entre os partidos políticos e a política externa a partir de 1930 teve
destacada de seu corpo a parte final, relativa aos temas de relações internacionais nas
campanhas presidenciais da pós-redemocratização, em esforço de reformulação que resultou
na composição de novo capítulo independente, todo ele voltado para essa problemática nas
eleições de 1989 a 2002; a ele agreguei, mais recentemente, um retrospecto da “política
externa” do partido vencedor das eleições de outubro desse ano e uma análise dos problemas
imediatos da agenda diplomática do Brasil. No mais, o livro preserva seu caráter basicamente
didático e informativo, inclusive porque completei, justamente, a leitura e seleção de novos
livros brasileiros publicados no intervalo, bem como procedi à atualização da listagem de atos
internacionais que enquadram o sistema econômico multilateral de que participa nosso País.

177
O que posso constatar, de forma satisfatória, é o crescimento razoável da produção
brasileira nessa área, a extensão dos avanços metodológicos alcançados no quadro da
disciplina acadêmica (em história e em ciência política) e o aprofundamento analítico da
maior parte desses estudos nacionais em relações internacionais e em política externa do
Brasil. A começar pela minha própria produção nessa área, a produtividade acadêmica bem
como a participação dos diplomatas nessa oferta conheceram certamente uma boa expansão
na última década do século XX e no início do século XXI, com uma crescente osmose entre
ambos os setores. O foco dos estudos ampliou-se, igualmente, deixando a antiga ênfase na
história diplomática para uma saudável diversidade de abordagens e de temas, o que
evidencia, obviamente, uma correspondente complexidade da agenda diplomática brasileira.
Creio poder compartilhar – sem qualquer falsa modéstia ou exercício déplacé de autoelogio –
de um certo sentimento congratulatório ao observar como todos nós, os “trabalhadores” das
relações internacionais contribuímos para esse progresso notável do estudo e da prática dessa
área no Brasil.
Se ouso retomar agora o tom mais confessional do prefácio à primeira edição seria
para tentar explicar, à maneira de Gilberto Freyre, e usando literalmente suas palavras, como
e por que sou e não sou diplomata. Com efeito, assim como o mestre de Apipucos não
pretendia ser mero sociólogo, não sou nem pretendo ser diplomata puro. Os ensaios aqui
compilados revelam um pouco dessa dupla condição de diplomata nada ortodoxo e de
acadêmico contestador, com exigências metodológicas de trabalho sério e aplicado em cada
uma dessas “profissões” e um certo sentido de “autocrítica” em cada uma das instituições.
Dessa condição tão desajeitadamente multidisciplinar, como diria Gilberto Freyre, de
cientista social, de historiador e, talvez, de “escrevinhador”, é que eu retiro o necessário
estímulo para continuar lendo, pesquisando e escrevendo durante longas horas noite adentro,
depois de uma jornada de trabalho profissional geralmente estafante. Se faço isso, enfrentando
uma dupla e até tripla jornada de tarefas, é porque me coloco na perspectiva de que os
modestos resultados desse ativismo múltiplo possam contribuir para a elevação educacional
de muitos jovens (e de outros, não tão jovens) voltados para os estudos acadêmicos de
relações internacionais ou para as lides da diplomacia prática.
O possível “escrevinhador” político aqui comparece, representado por uma série de
ensaios unidos por um mesmo enfoque analítico e uma mesma vocação didática: os trabalhos
têm a pretensão de apresentar as pesquisas e reflexões de um diplomata prático, de um
cientista social certamente heterodoxo, de um historiador algo improvisado e de um possível
“pensador” autoproclamado da inserção internacional do Brasil. Se eu tivesse de resumir o
178
conjunto, eu diria que, na verdade, o que caracteriza o autor destes trabalhos é uma condição
de autodidata nunca recusada e de certa forma sempre buscada.
Não sou, de fato, um pesquisador profissional, pois que não tenho meu ganha-pão
principal nessas demais ocupações acadêmicas e sim na condição primeira de diplomata. Nem
estou, efetivamente, “burocratizado” nesta ou naquela atividade diplomática, pois que tenho
podido combinar diferentes orientações temáticas na carrière com essas outras atividades
paralelas de pesquisador irregular, de professor bissexto e, sobretudo, de escrevinhador
constante. Sou um ser livre, tanto quanto me permite o pertencimento a uma instituição
bissecular, altamente burocratizada, hierarquizada e disciplinada a ponto de enquadrar seus
membros numa teia de comprometimentos diretos e indiretos com o chamado esprit de corps,
que confesso possuir no grau mais tênue possível.
Os ensaios que se seguem, sobre o universo cada vez mais rico e complexo constituído
pelas relações internacionais e pela política externa do Brasil, não poderiam ter sido escritos e
revistos, originalmente, ou ampliados e atualizados, no período recente, sem a ajuda
inestimável e a compreensão de Carmen Lícia, de Pedro Paulo e de Maíra, que foram
excessivamente tolerantes com este diplomata doublé de acadêmico que tem plena
consciência de que alguns cadernos de notas deveriam estar, talvez, menos voltados para
resumos de leituras e bem mais para jogos, distrações e programas conjuntos. A eles,
portanto, dedico esta nova produção, com todo amor e carinho.

Washington, setembro de 2003


Prefácio à segunda edição.

179
“Velho” livro, novo sentimento, mesmo pensamento.

Paulo Roberto de Almeida:


Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império
(2ª edição; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 p., ISBN: 85-7359-210-9)

Quando, em outubro de 2004, recebi uma mensagem eletrônica da Senac-SP


solicitando-me preparar a segunda edição deste livro, quase não acreditei no que li, e cheguei
mesmo a me perguntar: como é possível que um “grosso tijolo” de quase setecentas páginas,
voltado essencialmente para a pesquisa histórica sobre a diplomacia econômica do século
XIX, chegue à sua segunda edição dois anos depois de lançada a primeira? De fato, ao cabo
de tão curto período, não deixa de surpreender-me o itinerário editorial do livro mais
“pesado” que fiz em uma década de produção livresca, tanto pela sua receptividade junto à
comunidade mais restrita de pesquisadores, como pelo interesse igualmente despertado junto
aos muitos estudantes dos cursos de relações internacionais existentes no Brasil, segundo ecos
recolhidos dos próprios interessados.
Esse succès d’estime não deixa de ser gratificante, na medida em que este livro tinha
tudo para conhecer um itinerário discreto. Desejo registrar, neste momento, que ele condensa
o esforço de vários anos de pesquisa solitária, de leituras acumuladas ao longo de uma dupla
carreira de diplomata e acadêmico, de muitos e muitos meses de paciente organização dos
materiais primários, de noites inteiras de cansativa dedicação aos labores de redação e
revisão, seguidas de tratativas difíceis para lograr-se sua publicação no momento em que sua
primeira versão ficou pronta (1997). Ele precisou esperar ainda mais de três anos – tempo no
qual foi “engordado” um pouco mais – até chegar-se à fórmula da coedição, que agora se
repete, entre a Senac-São Paulo, na pessoa de Alberto Parahyba Quartim de Moraes, e a
Funag, do Ministério das Relações Exteriores, na pessoa de seu então presidente, Embaixador
Álvaro da Costa Franco. Aos dois sou grato pelo apoio e confiança demonstrados em relação
a um livro que se apresentava como singularmente difícil num mercado editorial
aparentemente dominado por obras mais “leves” e geralmente voltadas para o grande público.
Este livro, manifestamente, passa ao largo desses critérios de mercado e tampouco se
aproxima daquilo que os franceses chamariam de haute vulgarisation, estando obviamente
mais próximo do que se poderia classificar de obra erudita ou de pesquisa universitária.
A renovada confiança da Senac-SP, assim como a pronta disposição da Funag, agora
na pessoa de sua presidente, Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella, em associar-se
180
a este empreendimento editorial, permitem agora que o livro seja entregue aos leitores numa
segunda edição basicamente similar à primeira. Com efeito, eu acredito que livros sejam
como garrafas atiradas ao mar: eles levam a mensagem de um determinado momento a praias
e enseadas distantes e devem poder se sustentar no formato original, sem novas interferências
do autor no texto inicialmente concebido.
Foram corrigidos pequenos erros de digitação, revistas e atualizadas as notas de
rodapé, com adição da nova bibliografia disponível e, sempre que possível, estendidas até
2004 as informações constantes das tabelas e dos quadros analíticos relativos ao período
contemporâneo (nos capítulos finais). No mais, este grosso volume permanece igual ao
original preparado para edição no final de 2001, e sua nova publicação me incita, mais do que
nunca, a tentar concluir um segundo volume – que espero menos volumoso – sobre a
diplomacia econômica brasileira na primeira metade do século XX – grosso modo, de 1889
até a conferência de Bretton Woods, em 1944 – e quem sabe até avançar num terceiro
volume, trazendo a análise das relações econômicas internacionais do Brasil até os nossos
dias.
A concepção, preparação, elaboração e acabamento deste livro apenas foram possíveis
devido à ajuda, leniência e compreensão de Carmen Lícia, Pedro Paulo e Maíra, que
suportaram pacientemente este membro não convidado da família durante longos meses e
mesmo anos. Que eles possam me perdoar as muitas horas, dias, noites e meses roubados, em
uma espécie de furor legendi dotado de pouco planejamento. A eles é dedicado este livro,
com todo o amor e carinho.
Devo, finalmente, deixar registro de que tenho conseguido ser feliz (pelo menos, creio
que tenho sido “bafejado” pela fortuna) na combinação de atividades profissionais
normalmente exigentes, como podem ser as da carreira diplomática – mormente em postos
bastante ativos, como a delegação em Genebra ou as embaixadas em Paris e Washington,
ademais da Secretaria de Estado, em Brasília –, e ocupações docentes igualmente intensas,
ainda que assumidas voluntariamente, seguindo uma dedicação puramente acadêmica. Essa
dupla condição exigiu, obviamente, a compreensão de alguns de meus superiores, de meus
entes queridos, ademais da disposição pessoal em sacrificar horas de lazer, de simples
descanso noturno ou de convivência familiar – o que confesso com um certo remorso – em
prol do exercício constante da pesquisa, da escrita e da divulgação, características que
compõem esse outro lado da virtù, que nem sempre é reconhecida em sua dimensão própria.
Este é um livro de um autodidata assumido que espera continuar assim: pesquisador
independente, livre de pensamento, sem qualquer tipo de restrição intelectual na sua
181
capacidade de análise e de avaliação e, acredito, responsável na ação. Trata-se de uma
odisseia de uma nova espécie, que não deve necessariamente ser concluída algum dia…

Brasília, novembro de 2004.


Prefácio à segunda edição do livro.

182
Envisioning Brazil and brazilianists

Marshall C. Eakin, Paulo Roberto de Almeida (eds.):


Envisioning Brazil: a Guide to Brazilian Studies in the United States
(Madison: Wisconsin University Press, 2005, 536 p.; ISBN: 0-299-20770-6)

This edited volume emerged out of an initiative of Ambassador Rubens Barbosa


shortly after his arrival in Washington, DC in 1999. The Ambassador convened a meeting of
Brazilianists from academic institutions across the country to discuss ways to promote
Brazilian Studies in the United States. At this meeting in the Brazilian Embassy in October
1999 the Ambassador proposed the idea for this volume. Shortly afterward, Ministro-
Conselheiro Paulo Roberto de Almeida took charge of the project and Marshall C. Eakin was
brought on board as co-editor. All of the essays were then commissioned, and the majority of
these were presented at a two-day seminar at the Brazilian Embassy on December 6-7, 2000.
More than 100 people attended the seminar and participated in the critique and discussion of
the papers. The presenters were then given an opportunity to revise the essays during the first
half of 2001. The Portuguese-language version of this volume was published in Brazil in 2002
as O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-
2000 (São Paulo: Paz e Terra). The essays were updated by the various authors in late 2003
for this English-language edition.

Objectives
Our principal objective has been to assemble the most comprehensive and sweeping
assessment ever attempted of the patterns and characteristics of Brazilian studies in the United
States. This volume is an overview of the writings on Brazil by U.S. scholars since 1945. It is
not a comprehensive bibliography, but rather an effort to assess trends and perspectives. We
have focused on synthesis and interpretation. The effort to provide an overview of the
intellectual production by U.S. scholars has led us to make some important editorial decisions.
The first has been the delimitation of what we mean by a “U.S.” scholar. The essays focus on
scholars who have made their careers primarily in the United States, but the reader will see
that our definition at times includes foreign scholars who have spent most of their career in
U.S. institutions. Second, although the aim is to survey U.S. scholarship, all the essays make
(sometimes frequent) reference to Brazilian scholarship and scholars. In particular, it is often
impossible to understand the directions in U.S. scholarship without an understanding of the
183
academic and political trends in Brazil over the past half-century.
Although not entirely comprehensive, we believe that this is the single most thorough
analysis ever produced of U.S. scholarship on Brazil. The attentive reader will, however,
notice some important gaps in coverage. The most prominent of these are urban anthropology
and the performing arts. The former is covered to some extent in the discussions of ethnology
(Chapter 8) and sociology (Chapter 10). The latter, unfortunately, receives very little mention
here.

Overview of the Book


We have divided this volume into four parts. Part One, “The Development of
Brazilian Studies in the United States,” contains three chapters on large themes and patterns.
In Chapter 1, Almeida surveys the “big picture” of Brazilian Studies in the United States since
1945. Chapter 2 follows with the late Robert Levine’s overview of the development of
Brazilian Studies in the United States, with special attention to institutions and research
trends. As a complement to Levine’s emphasis on research, Young’s essay in Chapter 3
provides a look at the development of the teaching of Brazil in U.S. universities.
Part Two, “Perspectives from the Disciplines,” moves from the sweeping overview of
Part One to surveys of various academic disciplines. In Chapter 4, Tesser provides a
wonderful analysis of the long, but uneven development of the teaching of Portuguese in the
U.S. She shows that despite a long history, the teaching of Portuguese in the U.S. occupies a
small place within the teaching of foreign languages. Like most foreign languages, Portuguese
language instruction has been dwarfed by the explosion of interest in Spanish. The dominance
of Spanish and Spanish America in Latin American Studies is a theme that runs throughout
many essays in this volume. In Chapter 5, Jackson then turns to what has perhaps been the
most developed of all the disciplines in Brazilian Studies--literature. For decades, a strong
group of scholars have written about Brazilian literature. The excellence of Brazilian
literature over the last half-century has helped bring attention to the work of these scholars,
just as their literary studies and translations have helped bring it to the attention of readers and
literary scholars in the U.S. Neistein’s essay in Chapter 6 is a double survey--of both art and
music. Although not as well known in the U.S. as Brazilian literature, Brazil’s art and music
have received attention by a small, but dedicated group of scholars.
The next series of essays turns to the social sciences. Along with literary studies,
historians of Brazil in the U.S. have perhaps the longest tradition and the most highly
developed literature. Bieber’s excellent survey in Chapter 7 demonstrates the breadth and
184
depth of historical studies of Brazil in the U.S. From a small cohort of scholars in the fifties,
the field grew dramatically in the sixties and seventies, experienced declining numbers in the
eighties, and is once again growing in size and in the quantity and quality of published work.
With a firm grounding in fieldwork in archives in Brazil, historians are perhaps in the
strongest position (along with literary scholars) to maintain their identity as a sub-discipline
within history and Latin American Studies in the United States. Anthropology is another
discipline that has venerable been deeply rooted in extensive fieldwork in Brazil. Like the
literary scholars and historians, anthropologists have strong linguistic skills and deep local
experience. Chernela’s essay in Chapter 8 concentrates on the long and highly developed field
of Amazonian ethnology. She shows how studies by U.S. anthropologists have, at times,
shaped the very directions of the discipline in the U.S. and in Brazil. At the same time, these
anthropological studies have been shaped by the changing nature of the discipline, from
traditional community studies to structuralism and discourse analysis. In Chapter 9, Baer and
Guimarães provide a detailed survey of the main patterns in economics. Many of the key
works they discuss arose out of the collaboration of U.S. and Brazilian scholars, and much of
the literature has developed around the key problems that have faced the nation’s economy
since 1945.
Eakin’s essay in Chapter 10 is also a “double feature” surveying both political science
and sociology. Both disciplines have roots dating back to the 1930s and 1940s, but do not
really develop until the 1960s. While sociology had a strong early start, especially in the area
of race relations, it fails to develop a strong sub-disciplinary identity around Brazilian Studies,
and the number of sociologists studying Brazil today is small. Political science developed an
impressive group of scholars, and they were especially interested in the study of
authoritarianism from the sixties to the eighties. Although a strong and impressive group of
scholars continue to write about Brazil, the larger developments in the discipline (in particular
the move away from “area studies” and towards theory) may threaten the survival of a field in
Brazilian Studies. Tollefson’s essay in Chapter 11 follows with a synthesis of studies on
international relations with a Brazilian focus. In Chapter 12, Dawsey presents an interesting
look at geographers who chose to focus on Brazil. As with some of the other disciplines, the
changing nature of geography has profoundly shifted studies from those of the fifties and
sixties that focused on countries and their regions, to larger questions of theory and problems.
Part Three, “Counterpoints: Brazilian Studies in Britain and France,” offers two
essays that help place the U.S. contributions in perspective. In Chapter 13, the eminent British
historian of Brazil, Leslie Bethell, looks at the contributions of British historians to the
185
development of Brazilian Studies. Edward Riedinger then compares the development of
Brazilian Studies in the United States and France in Chapter 14.
Part Four consists of three chapters on bibliographic and reference sources. Almeida’s
chapter is a chronology of key publications by U.S. Brazilianists placed alongside key
developments in U.S.-Brazilian relations. In Chapter 16 Hartness provides a very thorough
guide to reference sources on Brazil. As is the case in some of the other chapters, we can see
the impact of the digital age reshaping the traditional emphasis on print sources and moving
reference sources increasingly toward comprehensive and accessible electronic data. This
volume closes with a selective bibliography compiled by Almeida.
One of the key contributors to the volume, and one of the foremost Brazilianists,
Robert M. Levine, passed away in April 2003. Bob Levine was probably the most prolific
U.S. scholar of things Brazilian and he was among the pioneering generation of U.S.
Brazilianists. This volume is dedicated to this renowned scholar who did so much to promote
the study of Brazil in the United States.

Marshall C. Eakin and Paulo Roberto de Almeida


Nashville and Washington, July 2003
Introductory chapter to the book.

186
Novas relações para um novo século:
a parceria Brasil-Estados Unidos

Paulo Roberto de Almeida e Rubens Antonio Barbosa (orgs.):


Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências
(São Paulo: Editora Saraiva, 2005, 326 p.; ISBN 10: 85-02-05385-X; ISBN-13: 978-85-020-
5305-4)

Muitos especialistas acadêmicos dessa área de pesquisa, estudiosos das relações


internacionais do Brasil, em geral, ou mesmo observadores ocasionais dos meios de
comunicação – não importa agora que eles sejam de centro, de esquerda ou de direita – não
hesitam em descrever as relações Brasil-Estados Unidos como sendo “centrais”, ou
“cruciais”… do ponto de vista do Brasil, obviamente. Do ponto de vista dos Estados Unidos,
eles não teriam muita objeção em colocar essas relações num segundo ou até mesmo num
terceiro plano da escala de prioridades político-estratégicas do grande hegemon da atualidade,
da mesma forma, aliás, como ocorre com outros países dotados de estatuto similar – digamos,
por conveniência, “potências médias” – quando inseridos no sistema de relações
internacionais da hiperpotência do século XXI.
Como interpretar essa equação político-estratégica abertamente desigual, ou essa
relação econômica na qual os pratos da suposta balança têm peso, composição e formato
diferentes entre si? De fato, se essas relações podem ser caracterizadas para o Brasil como
centrais ou cruciais, o outro conceito que poderia realisticamente defini-las seria o de
“assimetria”. Nisso, tampouco o Brasil está sozinho, já que cerca de 190 outras nações da
comunidade internacional o acompanham nessa condição de “subalternidade” tecnológica ou
até de “irrelevância” estratégica em relação ao poder da “nova Roma”.
Com efeito, não há hoje um só Estado na face da terra que não ostente essa dupla
condição em suas relações com os Estados Unidos: por um lado, centralidade – direta ou
indireta – da interação econômica e política e, por outro, desigualdade quase que absoluta na
equação do poder estratégico, em maior ou menor grau segundo a dotação militar respectiva.
A esse respeito, todos os países são iguais, e menos importantes, na interação com a “super-
Roma” da atualidade, embora alguns deles sejam obviamente “mais iguais” do que outros. O
fator nuclear poderia aparecer aqui como um “equalizador” de última instância, mas na
verdade tal vetor não entra normalmente em linha de conta quando se trata de confrontar
recursos efetivamente disponíveis no grande jogo do poder mundial. Os critérios normalmente
computados na mobilização dos chamados “excedentes de poder” podem ser resumidos a dois
187
prosaicos fatores – soldados e “talão de cheques” –, e são poucos os países, como os Estados
Unidos, que conseguem exibir tal abundância de um e de outro, ao mesmo tempo, e com tal
pletora de meios para “entregá-los” em qualquer canto do planeta.
Essa é uma realidade “estrutural”, com certa tendência à permanência até onde a vista
alcança em nossa “conjuntura histórica de transformação”, mesmo se a lógica última do
processo de globalização aponte claramente no sentido da convergência progressiva das
capacidades de base dos países participantes da grande interdependência mundial dos
sistemas de mercado, aqui compreendidos tanto a China quanto a Rússia. Os Estados Unidos
continuarão provavelmente ocupando o centro nervoso das relações internacionais
contemporâneas mesmo no caso de uma aproximação gradual dos demais grandes atores
mundiais aos seus indicadores atuais em termos de produto global, de estoque de inovações
tecnológicas, de flexibilidade e de disponibilidade dos fatores de produção (a começar pelos
fluxos contínuos de inteligência incorporada, dentro e fora de suas fronteiras), pela simples
razão de que os vetores de produtividade que poderão estar sendo mobilizados pelos seus
competidores atuam igualmente, e com maior eficiência relativa, em seu favor.
Numa certa terminologia materialista – que preconiza a sucessão dos modos de
produção a partir do desenvolvimento das “forças produtivas” –, pode-se dizer que os Estados
Unidos conseguiram conformar um “modo inventivo de produção”, suscetível de revolucionar
constantemente as relações de produção, evitando assim a propalada ameaça da eventual
esclerose das forças produtivas, anunciado na prometida superação do “velho” modo
capitalista de produção. Em outros termos, nada como uma revolução depois da outra, ou
melhor, a sucessão constante de processos revolucionários no contexto de uma mesma
revolução geral capitalista, tal como vem ocorrendo na formação social americana desde o
início da primeira revolução industrial, pelo menos.
A intensidade e a profundidade das mudanças estruturais incorporadas pelo “modo de
produção americano” não podem ser medidas apenas pelos índices gerais de produtividade, já
que essa formação social traz embutida em seus vetores internos de “acumulação” – para usar
outro conceito vinculado – alavancas sistêmicas de inovação, cujas fontes “primitivas”
parecem situar-se na auto-organização democrática da sociedade, na valorização social e na
promoção igualitária da educação de base e num certo senso prático da organização social da
produção – a praticality e o sentido de pequenos improvements na vida diária – que são tão
americanos quanto o sentimento do progresso individual. De fato, desde a época da primeira
grande exposição universal do Crystal Palace, de Londres, em 1851, um desses espíritos

188
práticos proclamava que a “indústria, no futuro, precisa ser apoiada não mais na competição
de vantagens locais, mas na competição dos intelectos”1.
O Brasil, em épocas de alto crescimento, já chegou a aproximar-se bem mais do
potencial econômico americano, mas a combinação de anos e anos, senão décadas, de baixo
crescimento do PIB com a vigorosa expansão econômica nos Estados Unidos da última
década do século XX fez aumentar a distância entre a renda global e per capita dos dois
gigantes do hemisfério ocidental2. Os diferenciais de produtividade – que se explicam
basicamente pelo abismo de qualificação educacional e de competência técnica entre as duas
populações – se situam no coração da divergência entre as duas economias ao curso do longo
período mais do que secular que vem dos primórdios da primeira revolução industrial –
processos praticamente contemporâneos na Inglaterra e na nova Inglaterra – até o âmago da
terceira, atualmente em curso.
No terço final desse período, Brasil e Estados Unidos intensificaram uma frutuosa
relação de cooperação e de interdependência econômica e tecnológica que muito fez para
colocar o país do norte no centro de nossas relações econômicas internacionais, sem que no
entanto essa centralidade e intensidade dos intercâmbios contemporâneos tenham logrado
diminuir, longe disso, os elementos de assimetria que ainda marcam a relação. A partir daí, os
sentimentos podem diferir no que se refere ao “que fazer” com essa relação “central-
desigual”. Vários tipos de resposta são possíveis, ainda que as escolhas não sejam sempre
fáceis ou as opções todas possíveis com base nos recursos existentes – os já referidos
“excedentes de poder”.
Os mesmos observadores especializados poderiam arguir que líderes de esquerda
seriam mais tentados a, justificando o desconforto da situação, tentar superar a “dominação
imperial” via capacitação tecnológica ou militar ou por meio de aliança com outros
“subalternos rebeldes”, com maior ou menor sucesso segundo o diferencial de poder. Os de
direita, presumivelmente, se acomodariam mais facilmente com tal tipo de situação,
acolhendo favoravelmente a relação privilegiada e aproveitando para economizar na defesa,

1
Citado em T. K. Derry e Trevor I. Williams, A short history of technology: from the earliest times to
A.D. 1900 (New York: Dover Publications, 1993), p. 704 (edição original de 1960).
2
Para uma visão macro-histórica do desempenho econômico relativo das diferentes nações inseridas
na economia mundial na longa duração, ver o estudo de Angus Maddison, The world economy: a
millenial perspective (Paris: Development Center of the Organisation for Economic Co-operation and
Development, 2001). Para uma avaliação do desempenho da economia brasileira, utilizando-se desse
tipo de abordagem (com base em versão anterior dessa obra de Maddison), ver o capítulo O Brasil no
contexto econômico mundial: 1820-1992, no livro de Paulo Roberto de Almeida, O estudo das
relações internacionais do Brasil (São Paulo: Unimarco, 1999), p. 17-38.
189
colocando-se ao abrigo do “guarda-chuva” estratégico (como o fizeram alguns “derrotados de
guerra” ou “dependentes assumidos”). Políticos de centro tentariam, provavelmente, manter
um diálogo “equilibrado”, respeitoso das diferenças e dos interesses recíprocos, mas certos de
compartilhar, em última instância, uma mesma visão do mundo, que seria liberal de mercado
e progressista-social.
Esse cenário valeria igualmente para o Brasil? Em termos, como tenta demonstrar este
livro sobre as relações políticas, diplomáticas e econômicas entre os dois maiores países do
hemisfério americano num quadro internacional manifestamente em mutação. O gigante
setentrional nunca conheceu uma situação de poder mais “hegemônica” e propriamente
avassaladora como a vivida atualmente – e que talvez não esteja nem no seu zênite, como
gostariam alguns adeptos do “declínio imperial” –, quando no Brasil, o “maior dos menores”
da região meridional, tomou posse um governo definido pelos meios de comunicação como
“progressista”. Os rótulos jornalísticos são, porém, enganosos, na medida em que os
governos, em geral, não defendem grandes princípios ideológicos, mas são, ou pelo menos
procuram ser, essencialmente pragmáticos e guiados pelo bom senso dos resultados concretos.
Os especialistas convidados para integrar, e comentar, esta compilação de ensaios
analíticos sobre as relações bilaterais não se definem a si mesmos como de direita, de centro
ou de esquerda — embora alguns possam ser uma ou outra coisa legitimamente. Todos eles,
no entanto, autores colaboradores ou comentaristas dos textos no seminário em que foram
originalmente apresentados, parecem convictos das duas características apontadas acima: a de
que essas relações são centrais para o Brasil e a de que a relação hemisférica é mesmo
assimétrica, como aliás aquela mantida pela grande potência ocidental com o resto do mundo.
Cabe registrar, porém, que no momento do convite formulado aos vários autores para a
elaboração de seus textos, nenhum termo de referência ou qualquer qualificação prévia quanto
ao conteúdo e ao significado das relações bilaterais foram-lhes impostos como diretrizes
analíticas de redação, cabendo-lhes tão somente elaborar, com base em sua própria
perspectiva nacional – americana e brasileira, em cada caso –, e métodos próprios, definidos
por cada um deles, uma descrição e uma discussão crítica dos problemas selecionados para
sua área: as relações bilaterais ao longo da história, o desenvolvimento econômico em
perspectiva comparada, as relações comerciais e as negociações em curso e as questões
estratégicas e de segurança.
A partir daí, contudo, não se produziu nenhuma paralisia analítica, pois que cada um
deles enfrentou, com métodos e perspectivas próprias, a tarefa de descrever, explicar,
interpretar e oferecer alternativas de políticas sobre os diferentes aspectos – econômicos,
190
políticos, diplomáticos – dessa complexa interação entre dois países que mantêm relações
ininterruptas há quase dois séculos e que só fizeram reforçar, sempre mais, os laços da
interdependência recíproca. Essa interação nem sempre foi dominada pela “American
Economic Eagle” e pelo “Brazilian Developing Parrot” (vagamente identificado, por alguns,
com o Zé Carioca), pois que os Estados Unidos também já foram um “país em
desenvolvimento”, ainda que a comparação possa parecer cronologicamente defasada ou
mesmo historicamente anacrônica.
Aqueles que concebem a desigualdade e a assimetria como um pecado original dessa
relação, que deveria determinar a interação dos dois países até o dia do juízo final, deveriam
contudo reler um livrinho tão modesto quanto desconhecido do “pai” da nossa imprensa: esse
Tocqueville avant la lettre que foi Hipólito José da Costa visitou os Estados Unidos há mais
de dois séculos, deixando em testemunho um diário que permaneceu inédito por um século e
meio e que o habilita, tranquilamente, a ser considerado como o founding father do
americanismo brasileiro3. Nesse Baedecker de prospecção agrícola-manufatureira, Hipólito
nos descreve um país “essencialmente agrícola” (como se dizia do Brasil ainda nos anos
1950), basicamente voltado para si mesmo (ou seja, introspectivo economicamente), fértil em
novos cultos religiosos e em “especulações mercantis”, inconstante partidária e politicamente
(com Estados disputando espaços com o poder central) e temeroso das grandes potências
(europeias).
Os textos respectivos de John DeWitt e de Eliana Cardoso, animados pela mais
moderna metodologia histórica e econômica, nos confirmam, na segunda parte deste volume,
essa realidade tão velha quanto a Constituição da Filadélfia e o decreto de abertura dos portos:
nada havia de predestinado no itinerário econômico ou tecnológico de cada um dos países,
mas em ambos os casos suas elites fizeram escolhas de políticas econômicas e de
investimentos sociais que determinaram trajetórias basicamente distintas a partir da primeira
e, sobretudo, da segunda revolução industrial. Antes deles, na primeira parte, Lincoln Gordon
– já autor de um livro sobre o processo brasileiro de desenvolvimento4 – chama a atenção para
o fato de que, antes da era Vargas e do nascimento do moderno nacionalismo econômico no

3
Cf. Hipólito José da Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799 (Rio de Janeiro:
Publicações da Academia Brasileira, 1955). Ver igualmente Paulo Roberto de Almeida, “O
nascimento do pensamento econômico brasileiro”. In Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou,
Armazém Literário (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002.
reedição fac-similar, v. XXX), p. 323-369.
4
Cf. Lincoln Gordon. Brazil’s second chance: en route toward the First World (Washington, D.C.:
Brookings Institution Press, 2001); edição brasileira: A segunda chance do Brasil: a caminho do
Primeiro Mundo (São Paulo: Editora Senac, 2002).
191
Brasil, a postura das elites brasileiras era bastante simpática e positiva em relação ao gigante
do Norte, buscando uma “relação especial” – o início do projeto vem da época do Barão do
Rio Branco, ou quiçá mesmo antes – mutuamente benéfica e garantidora de certa
preeminência – alguns diriam “liderança” – em cada uma das regiões respectivas.
Bons tempos aqueles, parece refletir Lincoln Gordon, quando os brasileiros se
congratulavam com a abertura do Canal do Panamá, que diminuiu enormemente a distância e
o tempo em direção da costa oeste dos Estados Unidos. Pouco depois, o Brasil abandonava a
carta britânica pela “opção americana”, situação decerto tornada inevitável em virtude da
crise econômica de 1929 e da inconversibilidade da libra (em 1931) e depois obrigatória por
situação de guerra europeia. Os anos de guerra e seu imediato seguimento correspondem ao
que, no texto inaugural, Paulo Roberto de Almeida chama, tomando emprestado o titulo do
excelente livro de Gerald K. Haines, de “americanização do Brasil”, provavelmente mais
cultural do que econômica, política ou tecnológica.
Em todo caso, o nacionalismo se afirma também nessa época, com algumas tinturas
antiamericanas que nem todas eram derivadas da situação da Guerra Fria e da chamada
“propaganda subversiva” do movimento comunista internacional. Lincoln Gordon aventa a
hipótese – embora reconhecendo que os counter-factuals são duros de serem confirmados –
que se os Estados Unidos tivessem iniciado, naquele momento, um modesto programa de
assistência econômica ao Brasil, essa injeção de capitais (públicos, entenda-se, pois desde
então gostávamos do capital estrangeiro, mas preferíamos dispensar os capitalistas, como
lembrou mais de uma vez Roberto Campos), talvez as mais duras manifestações de
antiamericanismo não se tivessem desenvolvido, pari-passu ao nacionalismo brasileiro.
O fato é que desde essa época as relações políticas se tornam mais problemáticas, com
surtos e impulsos de aproximação e de rejeição, como examina o restante do texto de Paulo
Roberto de Almeida. Coincidência ou não, foi também a partir dessa época que a Coréia, até
então dotada da metade da renda per capita brasileira, começa sua arrancada para frente,
superando o Brasil em pouco mais de vinte anos. É pelo menos curioso que, nessa época, o
economista sueco Gunnar Myrdal – mais tarde ganhador de um Prêmio Nobel, não se sabe se
por isso – escrevia um livro sobre a Ásia “demonstrando” que ela estava, infelizmente,
condenada a uma miséria “asiática”, ao passo que a América Latina parecia exibir, em virtude
de sua identificação com o padrão ocidental – e talvez por desfrutar de economistas tão
inovadores como o próprio Myrdal, a exemplo de Raúl Prebisch –, as melhores condições
possíveis para uma “arrancada para o crescimento”, teoria popularizada no “manifesto

192
anticomunista” de Walt Rostow5. Eliana Cardoso mostra, em todo caso, que depois de se
aproximar um pouco do patamar de riqueza dos americanos, os brasileiros recuaram
novamente nos últimos vinte anos, consequência do desregramento fiscal do Estado e de uma
política cambial errática.
Com maiores ou menores ênfases na aproximação política e independentemente da
qualidade das nossas políticas econômicas, Rubens Antônio Barbosa constata essa realidade
singular desde o início do século XX, a de que os Estados Unidos são o nosso principal
parceiro econômico. Certo, a Grã-Bretanha ainda fornecia o grosso dos capitais e dos serviços
até a Primeira Guerra Mundial e sustentou duramente sua condição de primeira fornecedora
manufatureira do Brasil, primeiro contra a Alemanha, depois contra os Estados Unidos, até
1927 pelo menos. Mas a mudança de “hegemonia econômica” era inevitável: os Estados
Unidos eram o primeiro comprador do nosso produto básico de exportação desde o último
terço do século XIX, e no seguinte se tornaram rapidamente o principal investidor industrial e
o credor de “primeira instância”. A Segunda Guerra faria o resto, consagrando os Estados
Unidos na primeira posição enquanto parceiro comercial, tecnológico e financeiro, mesmo
quando a Europa comunitária ocupava um espaço maior considerada enquanto bloco. Depois
de um longo passeio pela história das relações econômico-comerciais bilaterais, inclusive do
ponto de vista das posições respectivas no sistema multilateral de comércio desde o
surgimento do Gatt (1947), Barbosa se concentra nas atuais negociações comerciais,
multilaterais e hemisféricas, sublinhando as grandes diferenças de interesses até agora
prevalecentes. Ele constata alguns impasses negociadores, mas também indica possíveis
caminhos de compromisso.
A questão da Alca, e suas implicações para os demais processos comerciais, ocupa
posição central no texto de Jeffrey Schott, conhecido especialista de políticas (e práticas)
comerciais desde longo tempo, há pelo menos três rodadas de negociações do Gatt-OMC e
economista totalmente familiarizado com os esquemas (e armadilhas) de liberalização
comercial no hemisfério (a começar pelo Nafta). Ele examina os dados brutos de comércio, os
fluxos de investimento e os componentes tarifários e não tarifários do “enfrentamento”
brasileiro-americano na Alca, para concluir que uma solução mutuamente vantajosa é
possível, desde que alguns trade-offs – o jargão é inevitável nesse tipo de situação – sejam
feitos e que expectativas mais modestas e realistas sejam contempladas de lado a lado.

5
Ver Walt W. Rostow The stages of economic growth, a non-communist manifesto (Cambridge:
Cambridge University Press, 1960).
193
A situação global do relacionamento bilateral, sua condição “geopolítica” digamos
assim, é abordada nos dois últimos textos deste livro, respectivamente por Peter Hakim, o
líder do Diálogo Interamericano, e Thomaz Guedes da Costa, um dos mais conhecidos
pensadores estratégicos do Brasil, atualmente professor na National Defense University. Essa
última parte do volume tem por objetivo fazer um balanço das relações americano-brasileiras
a partir de uma visão mais ampla, regional, hemisférica e mesmo global, e oferecer algumas
chaves para seu desenvolvimento futuro, se possível num sentido harmonioso. Não se trata
certamente de tarefa fácil, uma vez que a já mencionada assimetria estrutural torna difícil um
diálogo de “igual para igual”, como gostariam os brasileiros e do qual estão privados mesmo
os aliados da Otan. O eventual estabelecimento de uma estratégia de alianças com parceiros
porventura em situação similar não resolve, de fato, o problema do diálogo, incontornável,
com o gigante do norte.
Peter Hakim analisa, no último texto, as diferentes perspectivas, não necessariamente
opostas, que adotam os lideres brasileiros e americanos em relação a essa interação central
para os primeiros, igualmente importante, diz ele, para os segundos, ainda que com objetivos
e preocupações algo diversos. Os brasileiros tendem a propor uma cooperação mais
pragmática, talvez mais oportunista, ainda segundo ele, em torno de questões concretas e
específicas, particularmente (mas não exclusivamente) em comércio, investimento, tecnologia
e em outras áreas econômicas. Os americanos gostariam de ter a colaboração dos brasileiros
em uma série de outras áreas nas quais estes não estão dispostos ou não são capazes de
fornecê-la, como em segurança regional, controle do narcotráfico etc. Esse desencontro não
está condenado a perdurar, mas um sério esforço de diálogo constante entre as duas partes
parece ser condição essencial para a superação dos desencontros e lograr o reforço de uma
relação ainda “indefinida”.
Guedes da Costa, antes dele, também focaliza as relações globais e começa por se
perguntar, retomando Sidney Weintraub, se essas relações não estão contaminadas pelo
componente do desconhecimento. Em todo caso, o período recente produziu algumas boas
surpresas nas percepções recíprocas, com um acolhimento excepcionalmente favorável da
parte americana por um governo que em outras épocas seria visto com alguma suspeita. A
mudança é igualmente recíproca e ele se pergunta se, do lado brasileiro, a “nova” política
externa não estaria retomando os padrões do antigo “pragmatismo responsável”. A pergunta é
pertinente, pois de ambos os lados, sobretudo do brasileiro, o desejo parece evidente de
inaugurar uma relação com os Estados Unidos altamente frutífera, pragmática e orientada
para resultados que contemplem os velhos objetivos brasileiros de crescimento econômico, de
194
capacitação tecnológica e, agora, como candidato a “modelador” dessas relações, de
promoção social e de desenvolvimento humano.
Essa visão do relacionamento bilateral foi colocada de modo claro pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, quando de sua primeira viagem a Washington, ainda como
presidente eleito, em 10 de dezembro de 2002: “Venho a Washington”, disse ele no National
Press Club, “para trazer, do Brasil, uma mensagem de amizade. Pretendo […] dar início a
quatro anos de convivência franca, construtiva e benéfica entre os nossos dois países”. Depois
de traçar um paralelo entre os dois países, ele explicitava: “A história nos ensina que não
soubemos aproveitar, no passado, alguns momentos propícios para construirmos uma parceria
mais abrangente. Poderíamos ter tirado maiores benefícios do impulso resultante da luta que
travamos juntos contra o nazismo, na Europa, para criarmos, em tempos de paz, uma
cooperação à altura dos nossos países. Estou convencido, no entanto, de que o nosso vínculo
pode melhorar. Se as nossas sociedades se conhecerem mais. Se nos livrarmos de estereótipos
e preconceitos. Se aprendermos a valorizar as afinidades e respeitar as diferenças que existem
entre nós”.
Este livro foi concebido e organizado com esse mesmo espírito: conhecimento mútuo,
respeito das diferenças, benefícios recíprocos, a partir de uma interação mais intensa, maiores
vantagens respectivas, tanto no entorno geográfico quanto no cenário mundial. Os ensaios
aqui reunidos fazem um balanço do passado, um diagnóstico do presente e oferecem alguns
caminhos para o futuro. Nossa aspiração de bem servir ao objetivo do fortalecimento de uma
longa amizade e de relacionamento entre os povos – que começou ainda na era portuguesa,
em plena Inconfidência mineira – terá sido atingida se este livro puder bem informar os
estudantes, os simples curiosos e o público em geral, se ele puder formar os agentes futuros
dessa interação multiforme e se puder também, nunca é demais esperar, forjar as bases de
uma relação mais madura, totalmente desprovida de restrições mentais, de parte e outra, e
inteiramente aberta à cooperação e ao enriquecimento mútuo.
Para tentar alcançar esses objetivos, este livro se dedicou ao exame dos desafios e das
tensões nas relações bilaterais, bem como das divergências econômicas acumuladas no
decorrer dos últimos dois séculos de “desenvolvimento desigual e combinado”, e também das
convergências construídas no contexto do multilateralismo contemporâneo, buscando
responder à questão básica que prende a atenção e mobiliza a vontade política dos estadistas
brasileiros no decurso desse longo período: como superar as assimetrias estruturais existentes
entre os dois países — herdadas, construídas ou aprofundadas — e alcançar um certo patamar
de interdependência que melhor reflita as potencialidades e as possibilidades de uma nova
195
parceria entre os dois grandes do hemisfério ocidental. A obra não tem a pretensão de ter
respondido a todas as questões de um relacionamento tão complexo quanto os problemas
internos do Brasil, mas espera ter, pelo menos, colocado todas as perguntas pertinentes para
uma análise adequada dessa problemática.

Brasília, março de 2005


Capítulo introdutório ao livro publicado.

196
Caminhos da convergência na globalização

Leonardo de Almeida Carneiro Enge:


A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina: regimes alternativos e fragilidade
externa
(Brasília: IRBr, 2006; ISBN: 85-7631-048-1).

Este livro, a rigor, dispensa apresentações. Seu título e subtítulo, assim como seu
índice, falam por si mesmos, e eles não poderiam ser mais eloquentes. O tema, evidenciado
no título, a convergência macroeconômica entre os dois grandes sócios do Mercosul, toca
num dos mais importantes problemas da interface econômica externa do Brasil, ressaltado
pela sua densa relação – que não é só econômica, obviamente – com a Argentina, nosso
principal parceiro no empreendimento integracionista do cone sul e interlocutora
incontornável e indispensável no processo de construção de um espaço econômico unificado
na América do Sul. Quanto ao subtítulo, ele revela o ambiente econômico frágil no qual
viveram até recentemente ambos países, tendo de operar seus respectivos processos de
estabilização num contexto de turbulências internas e externas, em um quadro marcado pela
diversidade de regimes cambiais, para não dizer divergência recíproca absoluta, e pela
deterioração dos desequilíbrios externos.
Em sua primeira “encarnação”, a de uma dissertação de mestrado no Instituto Rio
Branco do Ministério das Relações Exteriores, a monografia cumpriu exatamente o papel que
se esperava dela, a de uma conclusão com êxito de uma curta trajetória de formação e
aperfeiçoamento para a carreira diplomática. Melhor dito, ela foi além dessa missão e, por
isso mesmo, conquistou o primeiro lugar dentre os prêmios previstos, ganhando, assim, um
lugar de honra no ainda pequeno panteão das monografias publicadas. Com isso, ela
assegurou ao seu autor um merecido estágio na Embaixada do Brasil em Buenos Aires e, por
sua própria iniciativa, a oportunidade de continuar seus estudos especializados, desta vez em
nível de doutoramento. Em sua presente “encarnação”, sob a forma deste livro, ela deve
continuar alimentando um debate tão importante quanto necessário, uma vez que, se o que se
pretende com o Mercosul é, efetivamente, conduzi-lo à sua etapa de união aduaneira acabada
e daí passar a construir o mercado comum pretendido, o tema coberto pelo autor apresenta-se
como central na consolidação daquilo que se poderia chamar, emprestando-se uma famosa
expressão da Europa comunitária, de “acquis” mercosuliano, base da futura coordenação de
políticas macroeconômicas e setoriais.

197
Tive a satisfação intelectual – e o prazer pessoal – de “orientar” esta dissertação, mas
de fato ela dispensava quaisquer orientações ou “correções”, tal o domínio que o autor
demonstrou ter do tema por ele escolhido. Isto se deve, provavelmente, à excelente formação
como economista que ele recebeu nas salas de aula da FEA-USP, sem esquecer de mencionar
aqui uma experiência profissional prévia num mercado de trabalho altamente competitivo,
como é o da cidade de São Paulo.
Leonardo Enge estava, portanto, plenamente habilitado a destrinchar a problemática
por ele escolhida, a situá-la adequadamente no contexto mais vasto da globalização, a
identificar os problemas correntes do relacionamento bilateral e os percalços que ainda devem
ser superados com vistas a alcançar-se, se tal for possível, a esperada e tantas vezes delongada
convergência macroeconômica entre as duas maiores economias da América do Sul, condição
necessária, mas não suficiente, para avanços ulteriores no Mercosul e base indispensável da
consolidação do processo integracionista na região. E o que traz este livro de importante para
o debate e a reflexão ponderada em torno dessa questão?
A obra se compõe de quatro capítulos, que vão do geral ao particular, ou do mais vasto
ao mais específico, mas que, na verdade, constituem uma espécie de crescendo, uma vez que
se parte do contexto maior da globalização, para examinar em seguida seu impacto sobre a
formulação e execução das políticas econômicas em âmbito nacional, o que introduz a
discussão das experiências de estabilização no Brasil e na Argentina e abre espaço para o
exame conclusivo das bases da integração Brasil-Argentina, isto é, da própria convergência
macroeconômica. O subtítulo traduz exatamente o que estava em causa nessas experiências:
regimes alternativos (de câmbio) – ou seja, de um lado o Plano de Conversibilidade, de outro
o Plano Real – e fragilidade externa, isto é, o ambiente de turbulências financeiras em que
ambos os países viveram, tanto de origem externa, como aquelas criadas pelos seus próprios
desequilíbrios internos e externos. O fato é que, longe de “convergirem” para um leque de
respostas de políticas econômicas coordenadas entre si, cada país concebeu e adotou a solução
que melhor parecia adequada às autoridades econômicas nacionais, nos momentos cruciais
dos respectivos processos de estabilização econômica, daí derivando diferenças fundamentais
na implementação prática desses processos que complicaram ainda mais a busca da
convergência, num quadro que era igualmente marcado pelas fragilidades externas, em termos
de balanço de pagamentos, e pelos impasses internos em torno das políticas monetárias e
cambiais.
Ainda que o próprio autor exclua esta intenção, esta é a história linear, tal como
efetivamente se passou na “vida” dos dois países – wie es eigentlich gewesen, diria o
198
historiador alemão Leopold Von Ranke –, da “divergência” econômica entre o Brasil e a
Argentina, ao longo de mais de quinze anos desde a redemocratização de meados da década
de oitenta. Se não fosse pela excelência, também, da análise econômica, esta monografia
teórica – como sublinhado pelo autor – já constituiria, nos seus próprios termos, um belo
racconto storico da evolução econômica no cone sul a partir do início dos anos noventa do
século passado. Mas ela vai além disso, ao acoplar à história desses episódios memoráveis da
“crônica econômica contemporânea” dos dois países uma discussão pertinente, e percuciente,
dos mais importantes problemas envolvidos, segundo uma dimensão própria a cada um deles,
na concepção, formatação legal e na aplicação das políticas econômicas nacionais em
condições de forte tensão política e social interna e de grandes pressões externas.
E por que a convergência macroeconômica seria relevante na vida econômica dos dois
países e no itinerário futuro do Mercosul? Alguns, talvez por impulsos idealistas ou mesmo
por um desejo inconsciente de mimetizar o processo europeu, pretendem que essa
convergência é importante para acelerar a chegada da “moeda comum” no Mercosul, como se
todas as experiências integracionistas devessem, inevitável ou necessariamente, seja
reproduzir o modelo comunitário da UE, seja desembocar fatalmente na adoção de uma
moeda única, vista como o nec plus ultra das integrações possíveis. A despeito do apelo
“popular” que possa ter essa visão, devemos descartá-la de imediato. Não se opera
“convergência” apenas para fins da adoção de um mesmo padrão monetário, ainda que a
consequência lógica de todo mercado comum acabado possa ser, de fato, a abolição desse
incômodo que representa o câmbio entre moedas nas fronteiras e a imposição continuada
desses pesados custos de transação que já não mais possuem razão de continuar a existir,
quando completou-se a liberalização de bens, serviços e fatores produtivos entre dois ou mais
países. Brasil e Argentina, e talvez mesmo o Mercosul, chegarão, em algum momento de um
futuro ainda imprevisível, a uma moeda comum, mas isso se dará pelo aprofundamento
natural e pelo adensamento progressivo dos vínculos recíprocos construídos no processo de
integração bilateral e plurilateral – envolvendo ainda a América do Sul –, não tanto pela
definição de um projeto político que tenha de ser implementado de cima para baixo pela
simples vontade de dirigentes ou tecnocratas.
A convergência macroeconômica entre o Brasil e a Argentina é, ou pelo menos
deveria ser, importante em seus próprios termos, não apenas como um dos precedentes
indispensáveis ao estabelecimento de uma moeda comum bilateral (a ser oportunamente
“quatrilateralizada” no Mercosul, se tal for possível, tendo em vista as peculiaridades do
Uruguai como praça financeira aberta). Mesmo que não se conceba essa iniciativa apenas
199
como uma espécie de “camisa de força” a limitar ações intempestivas, por parte de líderes
políticos ou mesmo de burocracias governamentais eventualmente volúveis, no sentido de
alimentar o caráter já naturalmente errático das políticas econômicas nas condições
conhecidas na América Latina nas últimas décadas, mesmo que não fosse para evitar esse tipo
de “volatilidade macroeconômica” embutida na instabilidade geral dos ciclos eleitorais nesses
países, a convergência macroeconômica apresentaria, por si só, um elemento novo na densa
relação econômica já construída entre o Brasil e a Argentina. Esse elemento é, obviamente, o
da estabilidade e da previsibilidade de regras, a condição primeira e essencial de todo
processo sustentado de crescimento econômico (a segunda sendo, em minha opinião, uma
microeconomia competitiva, e a terceira uma abertura ao comércio e aos investimentos
internacionais, sem olvidar, obviamente, a qualidade dos recursos humanos e uma
infraestrutura adequada).
De fato, a convergência não é uma “situação” a que se chegue, como seria um
eventual ingresso em um “estado de graça” de tipo econômico. Trata-se mais bem de um
processo, de um work in progress, que requer das autoridades econômicas envolvidas mais
do que atividades rotineiras de troca de informações, consulta e coordenação de medidas
tópicas no campo macroeconômico. O processo gradual de que se fala requer, em primeiro
lugar, uma concepção clara do tipo de ordenamento econômico que se pretende em países que
estão inevitavelmente inseridos na interdependência econômica global, como demonstrado
amplamente neste trabalho. Ele demanda, em segundo lugar, uma definição das condições sob
as quais os países devem operar internamente e administrar no plano externo essa inserção
econômica internacional, o que também é discutido neste livro. Ele está, em terceiro lugar,
condicionado à existência de instituições técnicas específicas, ou pelo menos de mecanismos
e “ferramentas” adequadas e adaptadas a esse tipo de gestão econômica, que se aproximam
daquilo que os anglo-saxões chamam de fine-tuning. As tarefas não são simples, tendo em
vista a instabilidade macroeconômica que marcou ambos países nas duas últimas décadas do
século as e a delicada gestão da estabilidade alcançada – mas ainda não totalmente garantida –
nos primeiros anos da década.
Com base num estudo empiricamente sustentado nessas experiências dos últimos
lustros, mas também teoricamente embasado na melhor ciência econômica, o autor conclui
que o conjunto ideal de políticas para a promoção da convergência macroeconômica entre
Brasil e Argentina deveria estar fundamentado no tripé câmbio flexível, metas de inflação e
austeridade fiscal. Como diz Leonardo Enge, essa combinação de políticas é a mais adequada

200
para a promoção do crescimento econômico, a atração de investimentos diretos estrangeiros e
redução da fragilidade externa no Brasil e na Argentina.
Por acaso, esse tipo de receituário se aproxima do “coquetel” macroeconômico em
utilização atualmente no Brasil, mas ele ainda não está suficientemente consolidado e
costuma sofrer ataques, tanto à direita, quanto à esquerda do espectro político-acadêmico-
tecnocrático que costuma opinar sobre políticas econômicas no Brasil. Existe ainda, como já
salientado por diversos observadores que acompanham esse tipo de debate, uma enorme
demanda por “magia econômica”, bem como por intervencionismo estatal em determinados
mercados e setores.
São vários os efeitos desse tipo de demanda, mas eles costumam se manifestar em
ataques simultâneos (nem sempre coincidentes ou todos concordantes): (a) contra a rigidez
das metas de inflação, insuscetíveis de acomodar, conforme se lê, determinados choques
externos de preços, como no caso do petróleo, pressionado por uma demanda muito próxima
da oferta; (b) contra a política de flutuação do câmbio, que limitaria, como apregoado
frequentemente, intervenções mais focadas do Banco Central na determinação de uma “taxa
de equilíbrio”, que ninguém ainda conseguiu dizer qual seria; (c) ou, ainda, contra o próprio
conceito de responsabilidade fiscal, que os mais afoitos querem ver substituído por um etéreo
compromisso com o crescimento e o emprego e por um ainda mais vago conceito de
“responsabilidade social”, sem falar nos que pretendem a redução do superávit primário em
nome de investimentos “sociais”, como se o déficit já não fosse suficientemente alto.
Mas quando se fala em convergência se está pensando, obviamente, numa relação
envolvendo pelo menos dois atores, quando não num processo bem mais amplo, com número
maior de países, apontando para a confluência de políticas comuns, se não totalmente
harmônicas, ao menos concordantes, como tem ocorrido, por exemplo, desde longos anos, no
seio da União Europeia e, de forma mais diluída, no âmbito da OCDE. O fato de Brasil e
Argentina cogitarem, e de certa forma estabelecerem como objetivo, essa convergência, como
estabelecido, por exemplo, no artigo 1º do Tratado de Assunção – ainda que sem mecanismos
definidos de implementação – já constitui um fator, ou pelo menos uma promessa, de futura
estabilidade de regras, a primeira das nossas condições primárias para um processo sustentado
de crescimento econômico.
Se uma convergência relativa era sustentada, no regime de Bretton Woods, pela
adesão formal ao princípio da estabilidade cambial, essa tarefa tem de ser cumprida, no não-
regime monetário que passou a existir no mundo “pós-Bretton Woods”, pela adesão informal
a um conjunto de regras e princípios aos quais os países prometem se ater voluntariamente
201
como forma de reduzir a volatilidade intrínseca aos regimes de flutuação cambial. Uma das
modalidades encontradas, no caso da experiência monetária europeia – que existiu
independentemente de acordos formais de integração, já que também o franco suíço, por
exemplo, fazia parte de um sistema de flutuação ancorado no antigo deutsche mark –, foi a
definição de uma banda ajustável, mas bastante estreita, ligando as moedas integrando esse
regime, com acertos de intervenções recíprocas entre bancos centrais para garantir a
fiabilidade do sistema. Mas mesmo esse tipo de arranjo informal, que poderia ser concebido
para outras experiências similares em outros continentes, tornou-se na prática inviável em
virtude da magnitude dos fluxos de capitais e da diversidade de ativos à disposição dos
agentes nas atuais condições da globalização financeira. O sistema monetário europeu saltou
pelos ares quando confrontado com os enormes deslocamentos provocados por uma alta dos
juros no principal operador do regime, algo que pode – e tende – frequentemente a ocorrer.
Qual a solução para o Brasil e a Argentina? Acredito que este trabalho fornece o
essencial das respostas e elas já foram resumidas nos parágrafos precedentes. Vale a pena ler
atentamente o que Leonardo Enge tem a dizer sobre a experiência dos dois países, no contexto
das crises financeiras da segunda metade dos anos noventa, em especial a da Argentina, no
início desta década. A convergência macroeconômica entre os dois países é, por certo, bem
vinda, mas ela requer condições mínimas para ser bem sucedida e abrir o caminho para o tão
desejado processo sustentado de crescimento, com baixas taxas de inflação, reduzida
volatilidade intrínseca na interface interna e externa do meio ambiente de negócios e uma boa
inserção internacional das duas economias. Entre essas condições, necessárias mas certamente
não suficientes, estão o conjunto de políticas preconizadas por economistas experientes e que
foram pelo autor aqui explicitadas: câmbio flexível, metas de inflação e austeridade fiscal.
Nessa perspectiva, cada um dos dois países deve avançar muito ainda no caminho da
consolidação de seus respectivos processos de estabilização macroeconômica antes de se
pensar no estabelecimento de mecanismos formais – no âmbito bilateral ou mesmo
“mercosuliano” – de coordenação das políticas macroeconômicas, que constituem a base
instrumental da desejada convergência. O Mercosul pode até ser importante, ou até mesmo
essencial, nesse processo, mas ele não é necessariamente indispensável, uma vez que o mais
relevante é a tomada de consciência, interna, pelos dirigentes econômicos e pelos líderes
políticos, de que a escolha das políticas ideais envolve elevado sentido de responsabilidade e
um compromisso muito forte com a estabilidade e a previsibilidade das regras.
O Brasil e a Argentina já perderam muito tempo, no decorrer do século XX, no
caminho do crescimento econômico e da busca de bem-estar para seus povos respectivos. Nos
202
percalços econômicos registrados e nas muitas frustrações sociais acumuladas, ao longo das
últimas décadas, ambos países, de comum acordo, decidiram privilegiar o Mercosul como um
instrumento válido de progresso econômico e social, bem como para sua capacitação com
vistas a lograr uma melhor inserção econômica internacional. Pois bem, o Mercosul
constituiu, desde 2000, um conjunto de diretrizes de procedimento para realizar o objetivo
almejado da convergência macroeconômica. As diretrizes são válidas e plenamente adaptadas
aos requerimentos estabelecidos para realizar esse processo de convergência, como reconhece
o autor deste trabalho, ao cabo de um circunstanciado exame teórico e empiricamente
embasado do percurso do Mercosul, no decorrer de mais de uma década. Se os resultados
alcançados até aqui não estão em conformidade com os objetivos esperados do itinerário
integracionista, não é por alguma falha intrínseca de qualquer uma das diretrizes estabelecidas
e sim por deficiências próprias aos dois países, ou seja, pela não implementação do “mix
ideal” de políticas econômicas. As regras estão dadas. Cabe persistir no intento, de maneira
responsável, que os resultados virão.
A visão clara desse processo, por parte de Leonardo Enge, como revelada neste
trabalho, nos permite ostentar uma tal tranquilidade quanto ao atingimento oportuno dos
objetivos de maximização do bem-estar e de progresso econômico e social, fixados na
inauguração do Mercosul. Brasil e Argentina ainda têm um longo itinerário a percorrer para
que eles sejam alcançados, mas o conhecimento adequado do caminho já cumprido permite
constatar os erros cometidos e a serem agora evitados, bem como as tarefas que ainda devem
ser empreendidas para a consecução daquelas metas. Uma obra como esta constitui uma
espécie de “manual de bordo” da história realizada até aqui, ao mesmo tempo que um
“manual de instruções” – uma espécie de how to do – da agenda que tem de ser cumprida por
dirigentes responsáveis e engajados nesse processo. Auguro pleno sucesso acadêmico e no
espaço público para este primeiro livro de meu colega diplomata Leonardo Enge: tenho
certeza de que ele contribuirá para o debate bem informado e, mais do que isto, para a
orientação de políticas públicas condizentes com as necessidades dos países membros do
Mercosul.

Brasília, 19 de março de 2006.


Apresentação ao livro publicado; reproduzida no boletim
Meridiano 47 - Boletim de Análise da Conjuntura em Relações Internacionais
(Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ISSN: 1518-1219, n. 75, outubro
2006, p. 22-26)

203
Entre a América e a Europa:
a política externa do Brasil nos anos 1920

Eugênio Vargas Garcia:


Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920
(Brasília: Editora da Universidade de Brasília; Funag, 2006, 672 p.; ISBN: 85-230-0854-3).

O livro resulta de tese de doutorado apresentada na UnB em 2001 e beneficiou-se de


pesquisas do autor em arquivos nacionais e estrangeiros (EUA e Reino Unido), com o que ele
construiu uma obra tão competente quanto necessária, uma vez que o período coberto
permanecia uma espécie de “patinho feio” da nossa historiografia diplomática, prensado entre
a “era do Barão”, na primeira década do século XX, e os episódios mais “excitantes” da fase
da Guerra Fria. No próprio entre-guerras, os anos de depressão e conflitos econômicos e
militares que se seguiram à crise de 1929 sempre receberam mais atenção dos historiadores
que o período aparentemente “morno” que se situa entre o final da Primeira Guerra e o golpe
de outubro de 1930, que inaugura a chamada era Vargas, de modernização e industrialização.
Eugênio Garcia formula, em primeiro lugar, uma série de perguntas, que ele tenta
depois responder em sete capítulos temáticos que cobrem as principais áreas de atuação e os
principais problemas diplomáticos – e desafios internacionais – do Brasil nos doze anos
cobertos pela pesquisa. Como a política externa movia-se num triângulo atlântico formado
pelos Estados Unidos, Europa e América do Sul, suas perguntas se dirigem aos problemas que
serão depois analisados em cada um dos capítulos: “rumo à Europa”, ou seja, nossa
participação na conferência da paz de 1919; “diplomacia econômica”, vale dizer, defesa do
café e penetração de capitais estrangeiros; “equilíbrio estratégico na América do Sul”, com o
rearmamento militar e as tentativas de equilíbrio de poderes na região; “comércio e finanças”,
quando se assiste à competição entre os interesses britânicos e americanos nas duas vertentes;
“a experiência da Liga das Nações”, nossa primeira tentativa, frustrada, de integrar o círculo
dos “mais iguais”; “de volta à América”, quando se administra o afastamento diplomático da
Europa; e “a diplomacia antirrevolução das oligarquias”, capítulo final no qual aparecem os
problemas político-ideológicos que desembocariam na revolução de 1930.
Ele lembra que os chanceleres não eram necessariamente diplomatas profissionais,
mas a elite política oligárquica ocupava quase todos os postos do Itamaraty. O processo
decisório já era, então como agora, centrado na figura do presidente, mas alguns estados
faziam sua própria “política externa” ao dominarem, por exemplo, a “diplomacia do café” ou

204
emitindo títulos da dívida estadual diretamente nos mercados financeiros internacionais. Uma
constatação se impõe, em diversos episódios narrados no livro, e não apenas na saída patética
da Liga das Nações em 1926 – objeto de livro anterior do autor –, a de que o Brasil estava só
na América, mais ou menos hostilizado pelos vizinhos hispânicos e tratado com a famosa
negligência benigna pela grande potência hemisférica. O elemento estrutural decisivo, que
permeia a maior parte dos fatos e processos políticos registrados no período, é a transição da
velha influência inglesa para a nova hegemonia americana, que torna-se evidente no
comércio, mas crescentemente também nas finanças e nos investimentos.
Eugênio Garcia faz um uso competente dos ofícios de embaixada e dos despachos da
Secretaria de Estado, que se inserem no texto de forma quase natural, o que torna a leitura de
seu maçudo opus histórico um empreendimento agradável, quase um racconto storico linear e
imediatamente compreensível a despeito dos meandros sofisticados de uma época que
supostamente se caracterizaria por ostentar uma “diplomacia ornamental e aristocrática”. O
cuidado na manipulação dos documentos se revela, por vezes de forma anódina, na
transcrição de uma expressão imediatamente explicada numa nota de rodapé: “anotação à
margem do telegrama x”. Cada capítulo temático cobre não só todo o período analisado, mas
por vezes recua à fase anterior à Primeira Guerra, denotando um sólido conhecimento da
literatura secundária e uma perfeita apreensão do contexto mais amplo no qual se inseria o
problema tratado no capítulo.
O legado dos anos 1920, para nossa diplomacia, é provavelmente o nascimento do
conceito de “hemisfério ocidental”, que tanta importância teria, para o bem e para o mal, no
período da Guerra Fria. Nossa aproximação com os Estados Unidos se consolidou e, na
verdade, nunca chegou a ser desmentida, mesmo a despeito de fases mais ou menos
“independentes”. A hegemonia ideológica do pan-americanismo só parece ter se esgotado
com o próprio fim da Guerra Fria, ainda que os militares tenham, paradoxalmente, maior grau
de responsabilidade no afastamento relativo em relação à potência hegemônica do que os
esquerdistas e opositores políticos do “imperialismo americano”.
Nem o estilo, nem a substância das questões diplomáticas dos anos 1920 sobreviveram
até a nossa época, com exceção, talvez, da tradicional desconfiança dos vizinhos em relação a
um irmão maior que não ostenta, obviamente, a mesma arrogância da “nova Roma”, mas que
tampouco tem o mesmo poder de atração do gigante hemisférico. Nossa política externa
“dialética” para o hemisfério – ora mais próxima dos EUA, em outras ocasiões propensa ao
congraçamento no Sul – é examinada com competência por Eugênio Garcia, que demonstra,
cabalmente, que os mitos do “alinhamento automático” e da “relação especial” sempre foram,
205
então como agora, nada mais do que mitos. A saída da Liga das Nações nos afastou durante
muito tempo da Europa, mas, como demonstra o autor, essa transição estava longe de ser uma
certeza nos anos 1920.

Brasília, 21 abril 2006


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: ano 49, n. 1, 2006, p. 222-224)

Sob a sombra da águia?:


a diplomacia brasileira no início do declínio britânico

A historiografia tradicional tende, predominantemente, a ver nos anos pós-Primeira


Guerra Mundial a passagem do Brasil da esfera de influência britânica para o domínio
econômico da nova potência emergente, os Estados Unidos. De fato, não faltam dados que
corroboram essa visão, a começar pelo início do declínio das importações e dos investimentos
diretos britânicos no Brasil e o vigoroso impulso então tomado pelos equivalentes americanos
nas mesmas rubricas, bem como a quadruplicação dos empréstimos feitos na praça de Nova
York, comparativamente ao aumento tímido dos financiamentos obtidos na City londrina.
Muitas das companhias então instaladas no Brasil ainda estão conosco, como a Ford, a
Kodak, a GM, a Colgate, a Metro Goldwin-Mayer, as Refinações de Milho Brasil e muitas
outras mais, cuja titularidade pode ter mudado na matriz mas cujas atividades e vigor se
mantêm intactos nos mercados locais.
Algumas interpretações maniqueístas tendem, efetivamente, a ver o período como
representando uma simples transferência de hegemonias ou como se o Brasil tivesse
começado a marchar ao “compasso de Washington”. Este livro de Eugênio Vargas Garcia,
preparado inicialmente como tese de doutorado, demonstra que essa visão simplista não
encontra fundamentação na realidade, sendo bem mais complexas as relações mantidas pelo
Brasil com seus dois principais parceiros econômicos e financeiros. Ele começa, justamente,
por descartar paradigmas previamente traçados, e toma o cuidado de “não enunciar de
antemão... hipóteses que constituíssem uma camisa-de-força para a consecução do projeto de
pesquisa proposto” (p. 27), no que ele fez muito bem. Trabalhar as fontes sem ideias
recebidas e ler os documentos com o espírito aberto sempre foi um bom receituário para as
boas revisões historiográficas e talvez seja esta a principal virtude desta pesquisa.
Partindo, não daquelas imagens pré-concebidas, mas das fontes documentais – o
anexo relativo aos arquivos arrola um número imenso de materiais brasileiros, britânicos,
206
americanos, de organismos internacionais e de coleções particulares – e de uma
impressionante literatura secundária, o autor revisou a dúzia de anos que vai do final da
Primeira Guerra Mundial à Revolução de 1930, contribuindo assim para tirar de uma espécie
de um limbo historiográfico um período que na verdade presidiu à formação da diplomacia
brasileira contemporânea, enquanto fase formadora de uma burocracia “weberiana”
relativamente avançada para os padrões relativamente atrasados de uma sociedade ainda
essencialmente agrária e na qual a indústria engatinhava de forma quase modorrenta (como
muitas vezes se referiu Monteiro Lobato). Datam dos anos vinte algumas reformas
“instrumentais” no funcionamento do Itamaraty e a introdução de normas e procedimentos
que continuariam em vigor já praticamente entrados os anos 70, quando a Casa do Rio Branco
empreende outras reformas modernizadoras.
Esse esforço de recuperação era bem vindo, já que esses anos relativamente
esquecidos não perdem quase nada em relação à movimentação de outras épocas, que também
foram de crises, de “reconstruções”, de grandes definições políticas, internas e externas.
Afinal de contas, a conferência de Versalhes que presidiu – nem sempre de maneira feliz – ao
primeiro ordenamento jurídico-diplomático da era moderna foi uma espécie de repetição –
sem os muitos bailes e conspirações da diplomacia secreta – do Congresso de Viena de um
século antes, tendo deixado como legado uma “organização”, a Liga das Nações, que tentou
diminuir, sem conseguir, os ímpetos guerreiros dos velhos e novos imperialismos. O Brasil
esteve “presente na criação” da nova ordem, ainda que viesse a abandonar essa “ONU
frustrada” alguns anos depois. Ele também projetou-se de modo mais livre no próprio
continente sul-americano, livre dos constrangimentos da era monárquica e já delimitadas
todas as suas fronteiras pela obra inigualável do Barão.
Eugênio Garcia segue todos os passos da diplomacia brasileira nesse triângulo
formado pela Europa, pelos Estados Unidos e pela América do Sul, organizando seu roteiro
em torno de sete grandes eixos que constituem, igualmente, cada um dos capítulos do livro: 1)
“rumo à Europa”, isto é, nossa participação na conferência de Versalhes de 1919; 2) a
“diplomacia econômica”, com a promoção do café e a captação necessária de capitais
estrangeiros, tanto para fins de financiamento das obras de infraestrutura (a maior parte
conduzida pelos Estados, que tinham autonomia para contrair empréstimos no exterior), como
sob a forma de investimentos diretos; 3) “equilíbrio estratégico na América do Sul”, com os
difíceis problemas do equilíbrio de poderes na região, entre ensaios de “corrida
armamentista”; 4) “comércio e finanças”, onde é mais patente a já referida substituição de
hegemonias, ainda que outros países também se lancem à competição nessas áreas; 5) a triste
207
“experiência da Liga das Nações”, uma tentativa precoce de entrar um outro “Conselho” de
nações poderosas; 6) “de volta à América”, que se traduz num distanciamento da velha e
arrogante Europa e na reafirmação dos princípios americanistas; e, finalmente, 7) “a
diplomacia antirrevolução das oligarquias”, quando aparecem com mais vigor os novos
problemas do século: comunismo, anticomunismo, imigração, rebeliões antiliberais (e
anticapitalistas, ou seja, corporativas) e a complicada administração diplomática da revolução
de 1930.
Na República, como durante todo o império, os chanceleres não eram diplomatas de
carreira – Rio Branco foi quase uma exceção, cabendo aliás lembrar que ele começou seu
“serviço exterior” por funções consulares, que até os anos 1930 eram completamente
separadas dos cargos diplomáticos – muito embora as mesas figuras da elite urbana e das
oligarquias tradicionais preenchiam praticamente todos os postos importantes do Itamaraty.
Apesar de termos tomado como modelo a constituição dos “Estados Unidos”, nosso
federalismo era fortemente dominado pela figura do presidente, que também definia o
essencial do processo decisório nas questões diplomáticas, não muito diferente do que
acontece hoje, aliás. Seis longos meses se passavam entre a “eleição” (em março) do novo
chefe de Estado e sua posse (em novembro), período aproveitado para uma longa viagem de
navio à Europa, com eventual negociação de novos empréstimos (como tinha ocorrido, aliás,
com o “funding loan” de Campos Salles).
Essa “intromissão” talvez excessiva do também chefe de governo nos assuntos da
diplomacia provavelmente explica alguns arroubos – por vezes sob a responsabilidade de
algum enviado ad hoc, tirado das fileiras da elite cosmopolita – que talvez não tivessem
ocorrido se a condução de negociações delicadas tivessem permanecido nas mãos dos
diplomatas apenas. Um exemplo dos mais patéticos foi oferecido pela nossa saída, ao estilo
“batendo a porta”, da Liga das Nações, tema que já tinha sido objeto da dissertação de
mestrado de Garcia, também publicada em forma de livro. As grandes potências, então como
hoje, nos tratavam com uma negligência benigna que refletia, aliás, a pouca importância do
Brasil nos assuntos do mundo, um simples fornecedor de produtos de sobremesa. Não
tínhamos canhoneiras, nem dinheiro, nem grandes atrativos econômicos ou de mercado,
enfim, uma nação de malária, febre amarela e de Jeca-Tatus.
Os que acreditam que a noção de “hemisfério ocidental” nasceu com a guerra fria,
devem revisar suas concepções, pois ela emerge mesmo nos anos vinte. A aproximação e a
pretensão a uma “aliança especial” com os Estados Unidos também são típicos dessa fase, que
assiste, na verdade, à hegemonia ideológica do pan-americanismo, mais do que do pró-
208
americanismo que teve vigência muito limitada em nossa história diplomática. Não havia, até
então, um verdadeiro “imperialismo americano” pela simples razão de que os europeus
preenchiam inteiramente esse papel e a União Soviética ainda não era um dos polos
definidores da ordem mundial (como os próprios Estados Unidos, aliás). Os americanos eram
amigos e os novos donos do dinheiro, ainda que suas empresas já estivessem dominando boa
parte da indústria – sobretudo as do processamento agroalimentar –, de muitos serviços e das
chamadas “public utilities”, algumas delas nacionalizadas apenas na era militar, como a ATT.
O que restou, finalmente, dessa época nas questões diplomáticas contemporâneas?
Talvez o mesmo princípio que já existia na era monárquica, ou durante os anos de
industrialização acelerada e provavelmente ainda hoje: o desejo de equilibrar as relações com
os diferentes parceiros externos, buscando vantagens econômicas, financeiras, comerciais,
tecnológicas com um ou outro polo dominante na nossa interface diplomática: a América de
um lado, a Europa de outro, como se fez no decorrer dos anos 1920. São destituídas de
fundamentos, portanto, essas interpretações maniqueístas de “alinhamento automático” ou de
submissão aos novos “centros de poder”. Eugênio Garcia por certo comprova que nossa saída
da Liga das Nações acarretou, também, um longo afastamento em relação à Europa, mas isso
se deu em função de circunstâncias próprias ao cenário internacional pós-1930, sem que
jamais as “novas amizades” tenham sido escolhidas pelo Brasil de forma peremptória ou pré-
determinada.
O autor pratica o mais saudável revisionismo que possa haver nas lides históricas,
aquele que emerge da leitura atenta dos documentos e dos fatos reais, não o das concepções
conspiratórias dos que veem no manifesto destino na nova Roma imperial o quadro
referencial incontornável e obrigatório da diplomacia brasileira no século XX.

Brasília, 20 julho 2006


Publicado na revista Política Externa
(São Paulo: vol. 15, n. 2, setembro-novembro 2006, p. 145-148)

Do leão britânico para a águia americana?

A versão corrente vê, no entre-guerras, a passagem do Brasil da esfera britânica para o


domínio americano, com base nos novos fluxos de comércio, investimentos e empréstimos,
que trocam a City por Nova York. Este livro, de um diplomata-historiador, demonstra que
eram mais complexas as relações do Brasil com seus dois principais parceiros. Partindo, não

209
de imagens pré-concebidas, mas de fontes documentais, o autor revisa os anos que vão da
Primeira Guerra à Revolução de 1930, tirando do limbo historiográfico um período crucial na
formação da diplomacia brasileira.
A revisão é bem-vinda, já que o período é movimentado. Versalhes, que efetuou o
primeiro ordenamento da era moderna, foi uma repetição – sem bailes ou diplomacia secreta –
do Congresso de Viena: a Liga das Nações tentou diminuir, sem conseguir, os ímpetos
guerreiros dos velhos imperialismos. O Brasil esteve presente na criação da nova ordem, mas
abandonou essa “ONU frustrada” poucos anos depois. Ele se projetou na América do Sul,
livre dos constrangimentos da século XIX, com as fronteiras já delimitadas por Rio Branco.
Garcia segue os passos da diplomacia brasileira no triângulo Europa-EUA-América do
Sul, organizando seu roteiro em torno de sete grandes eixos: 1) “rumo à Europa”, isto é, a
presença na Conferência de Versalhes; 2) “diplomacia econômica”, com a defesa do café e a
atração de capitais; 3) “equilíbrio estratégico na América do Sul”, e os ensaios de corrida
armamentista; 4) “comércio e finanças”, onde é mais visível a substituição de hegemonias; 5)
“experiência da Liga das Nações”, tentativa precoce de entrar em outro “Conselho”; 6) “de
volta à América”: o distanciamento da velha Europa e a reafirmação do americanismo; 7) “a
diplomacia antirrevolução das oligarquias”, tratando dos problemas do século (comunismo,
anticomunismo, imigração) e da gestão diplomática da Revolução de 1930.
O presidente se “intrometia” demais nos assuntos diplomáticos, como visto na saída,
“batendo a porta”, da Liga das Nações. As grandes potências, então como agora, nos tratavam
com negligência benigna, o que refletia, aliás, a pouca importância do Brasil no equilíbrio
mundial: éramos simples fornecedores de produtos de sobremesa.
O desejo de uma “aliança” com os Estados Unidos também é típica dessa fase, que
assiste à hegemonia ideológica do pan-americanismo, mais do que do pró-americanismo (que
teve vigência limitada em nossa história). Não existia ainda o “imperialismo americano”, pela
razão de que os europeus preenchiam esse papel. Os americanos eram amigos e os novos
donos do dinheiro fácil. O autor pratica um saudável revisionismo, que emerge da leitura dos
documentos e dos fatos reais, não das concepções conspiratórias dos que veem no manifesto
destino da nova Roma a referência obrigatória da nossa diplomacia no século XX.

Brasília, 25 julho 2006


Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: ano 3, n. 25, agosto 2006, p. 62)

210
O estudo das relações internacionais do Brasil:
entre a história e a diplomacia

Paulo Roberto de Almeida:


O estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia
(Brasília: LGE Editora, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2)

Os historiadores, em geral, mas sobretudo os de tradição francesa, conhecem bem a


distinção entre história factual, ou événementielle, e história analítica, ou interpretativa. A
primeira derivava seus métodos da boa cepa Rankeana – aquela do wie es eigentlich gewesen,
ou seja, contar a história como ela tinha se passado, realmente –, ao passo que a segunda, que
recusou certa legitimidade à primeira com o desenvolvimento da chamada école des Annales,
tomou impulso sobretudo a partir das influências antropológicas, sociológicas e propriamente
marxistas, ou seja, relativamente economicistas, sobre os novos modos de racconter
l’histoire. Essas influências se tornaram determinantes, e talvez mesmo “ditatorialmente”
dominantes nas últimas décadas, nas técnicas de pesquisa, nos métodos de coleta dos dados
elementares do devir histórico e, à mais forte razão, nas formas de interpretação da “matéria
bruta” dessa nova história, que é constituída pelos documentos, por certo, mas também pela
própria tradição oral dos homens, pelas suas “pegadas” no lodo do tempo, pelos vestígios das
civilizações materiais hoje desaparecidas. As novas formas de contar a história se afirmaram,
com maior ênfase, na interpretação e nas construções analíticas em torno dos processos de
longa duração – tão caros a Fernand Braudel –, distinguindo-os das conjunturas históricas de
transformação – de que falava Ernest Labrousse – e, sobretudo, dos eventos circunstanciais e
fortuitos da vida dos homens, ou mesmo determinados pelos grandes heróis da história, como
ainda se compraziam, depois de Carlyle, tantos historiadores factualistas do século XIX e do
início do século XX.
Hoje em dia, com a integração dessas várias abordagens, essas distinções perderam
muito do seu ar de novidade ou de rebeldia em relação a “velhos métodos” do passado, ao
passo que a história factual ganhou, em contrapartida, novos ares de nobreza, com o essor das
formas mais ou menos biográficas ou de micro-abordagem adotadas por muitos “novos”
historiadores. Ressente-se, sobretudo, uma perda indefensável nos “saberes” acumulados
pelos mais jovens, representada pela repetição quase mecânica desses “modos de produção” e
desses “processos de transformação estrutural” que correspondem a uma vulgata deformada
do conhecimento clássico possuído pelos antigos defensores da história social, já que poucos

211
jovens, atualmente, conhecem os fatos básicos da história, o encadeamento dos eventos, a
sucessão de batalhas, reuniões diplomáticas e tratados que compõem, afinal de contas, o cerne
mesmo de determinados processos históricos de transformação.
Este livro foi construído mentalmente ao longo de muitos anos de contato do autor
com os dados básicos da vida econômica e material, com os documentos históricos típicos das
chancelarias – os tratados internacionais – e na leitura atenta dos episódios políticos por eles
descritos, pensando, justamente, na matéria prima da história, nos fatos básicos, nos eventos
elementares, nos processos materiais que dão sentido à evolução do mundo contemporâneo. É
por esse motivo que a temporalidade e a cronologia assumem nele uma parte considerável da
informação apresentada, a ponto de se poder dizer que as cronologias, e a própria bibliografia,
que reúne o material de referência aqui utilizado, constituem suas partes mais importantes, ou
pelo menos aquelas que sustentam os desenvolvimentos analíticos dos primeiros capítulos.
Procedi, nesta segunda edição, a uma inversão relevante na ordem da primeira edição,
composta em 1998, publicada no ano seguinte e, ao que parece, rapidamente esgotada nos
dois ou três anos que se seguiram. O antigo capítulo quarto, relativo à produção brasileira em
relações internacionais, tornou-se agora o capítulo inaugural, et pour cause: é ele que dá
sentido ao título original, aliás preservado – com a adição de um subtítulo que informa sobre
as motivações do autor – e é ele que consolida o essencial de uma “acumulação” muito pouco
“primitiva” de leituras e de consultas aos próprios autores aqui apresentados, uma vez que ele
pretende, e talvez consiga, reunir o essencial da “manufatura” brasileira nesse campo
relativamente novo de estudos multidisciplinares. Ele vem em primeiro lugar porque pode
facilmente sustentar a pergunta básica: “o que se deve ler para conhecer essa área?”
Creio ter realizado, nesse primeiro capítulo, assim como nas cronologias e na própria
bibliografia, um racconto storico eminentemente factual e linear sobre aquilo que de mais
importante se deveria conhecer, tanto em termos de fatos como de autores e obras, ademais de
uma avaliação qualitativa a propósito das relações internacionais do Brasil. Tanto essas
seções, como os demais capítulos analíticos e interpretativos, condensam muitos anos – talvez
algumas décadas – de pesquisa, de estudo e de redação paciente e cuidadosa de trabalhos
diversos sobre a história diplomática, sobre as relações exteriores, atuais, do Brasil, e sobre as
relações econômicas internacionais de modo geral. O contato, não só com os arquivos, mas
também com a documentação de uso corrente e, mais importante, a presença em muitos foros
de discussão e negociação de alguns desses eventos e processos interessando às relações
internacionais do Brasil – quer seja pelo lado da integração, do sistema multilateral de
comércio ou ainda das finanças internacionais – me permitiram um conhecimento de primeira
212
mão, se ouso dizer, de alguns dos episódios ou processos aqui descritos com alguma
brevidade.
Por isso mesmo hão de perdoar-me os colegas de profissão que também se dedicam às
lides acadêmicas e os muitos pesquisadores profissionais – aqui nominalmente arrolados nas
dezenas de páginas da bibliografia –, se a compilação de meus trabalhos, in fine, contempla
um volume exponencialmente maior do que o número forçosamente seletivo que eu tive de
fazer dos seus trabalhos: tratava-se, por um lado e numa atitude pro domo, de compilar,
justamente, o que de mais importante fui acumulando nessas últimas duas décadas de
produção exclusivamente “internacionalista” – e este livro era uma oportunidade única de
fazê-lo – e, por outro lado, de oferecer uma espécie de balanço intelectual de minha própria
produção que, de resto, é muito pouco analisada no capítulo pertinente: encore, et pour cause:
on n’est jamais un bon critique de soi même!
O que se vai ler, portanto, é uma versão inteiramente revista, em alguns casos
remanejada, em outros simplesmente atualizada, do livro preparado algo rapidamente oito
anos atrás, quando sequer tive oportunidade de lançá-lo adequadamente no Brasil, uma vez
que estava me preparando para partir para minha mais recente missão no exterior. Ao longo
desses anos enveredei por alguns outros caminhos – como a análise do sistema financeiro e
monetário internacional, por exemplo, ou ainda um balanço da contribuição dos brasilianistas
para as ciências sociais do Brasil –, mas jamais deixei de acumular leituras, dados, análises e
interpretações sobre os aspectos mais relevantes das relações internacionais do Brasil. Essa é
a matéria prima de minhas pesquisas e reflexões nas últimas duas décadas e creio que este
livro oferece, justamente, uma síntese do conhecimento acumulado desde então.
Não que ele contenha toda a produção elaborada nesse terreno ao longo do período
coberto, longe disso. Mas ele tem a pretensão de oferecer, pelo menos, uma informação sobre
o que se afigura essencial para se apreender os elementos cruciais de nossa interface externa
ao longo da história, fornecendo pistas, indicações e roteiros para pesquisas ulteriores nesse
campo e para o aprofundamento do conhecimento em todas as áreas porventura aqui tocadas.
Creio, sinceramente, que se trata de uma contribuição honesta, e o mais das vezes
objetiva, para a apreensão deste panorama complexo que são as relações internacionais de um
país tão contraditório como é o Brasil: um gigante industrial e, ao mesmo tempo, um anão
tecnológico; uma grande potência econômica pela sua produção bruta, mas com os pés de
barro em virtude de uma população singularmente deseducada e socialmente marcada por
terríveis iniquidades distributivas; um grande fornecedor mundial de muitas matérias primas

213
essenciais para o funcionamento, a todo vapor, das “fornalhas do capitalismo” e um pretenso
global trader conspicuamente ausente dos setores mais dinâmicos do comércio mundial.
O Brasil é tudo isso e ainda é um país que desarma as interpretações fáceis. Quão
errado estava Mário de Andrade ao saudar alegremente, nos anos vinte do século passado, o
desenvolvimento da sociologia entre nós, dizendo que ela era a “arte de salvar rapidamente o
Brasil” (salvá-lo de si mesmo, talvez, mais do que de qualquer “ameaça internacional”, como
acreditam alguns, equivocadamente). Nossos principais problemas, longe de serem o
resultado de uma hipotética “exploração externa” – aos quase duzentos anos de autonomia,
isto seria, de toda forma, uma demonstração cabal de incompetência –, são mais exatamente
“tupiniquins”, como queriam os modernistas de cem anos atrás, ou seja, eles são propriamente
made in Brazil, como a jabuticaba e o jeitinho.
Este livro, portanto, não se destina a “salvar” o Brasil de nenhuma ameaça externa, por
mais sociológicas e “internacionalistas” que sejam as análises aqui contidas (até por
deformação acadêmica e profissional). Em todo caso, ele busca, honestamente, informar os
brasileiros – e talvez até alguns estudiosos estrangeiros – sobre algumas das características e
alguns dos componentes de nossa evolução histórica no terreno da política externa e das
relações internacionais, com ênfase em seus aspectos econômicos e institucionais. Espero ter
colaborado, ao melhor de minhas capacidades, para o avanço desse campo ainda
relativamente recente de estudo e de pesquisa no Brasil, cujos progressos foram
suficientemente notáveis, desde a primeira edição desta obra, para justificar um incremento
significativo na bibliografia registrada e na informação que tinha sido processada e analisada
até o final da década anterior.
Não poderia concluir sem deixar meu registro de agradecimento a todos aqueles que
comigo colaboraram, nas diversas etapas deste trabalho de levantamento e avaliação da
produção brasileira em relações internacionais. Muitos colegas de trabalho, tanto na
diplomacia quanto na academia, os quais me eximo de citar para não cometer injustiças,
foram especialmente solícitos em fornecer-me bibliografias atualizadas. Alguns também me
passaram cópias de seus próprios trabalhos, o que facilitou a revisão da produção acumulada
desde a primeira edição desta obra e justificou, inclusive, o acréscimo de um subtítulo a esta
nova edição, correspondendo inteiramente ao seu espírito e motivação.
Meus familiares, finalmente – ou antes, e certamente acima, de tudo –, Carmen Lícia,
Pedro Paulo e Maíra, foram extremamente compreensivos com uma dedicação exagerada aos
trabalhos de redação e de revisão deste livro, por dias e dias seguidos, mas a quem devo,
sobretudo, a felicidade de poder desfrutar de um ambiente saudável e condizente com as
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melhores práticas do trabalho intelectual: a eles, junto com um humilde pedido de desculpas
pelas muitas ausências, todo o meu amor, carinho e o sincero reconhecimento.
Concluo, à la Cervantes, como o quixotesco personagem de um escritor tão nômade e
aventureiro quanto sempre foram os diplomatas: Vale!

Brasília, 3 de setembro de 2006.


Prefácio ao livro publicado.

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Sucessores bem sucedidos?:
um balanço realista (e completo) da diplomacia na era militar

Fernando de Mello Barreto:


Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985
(São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.; ISBN: 85-7753-004-3).

A exemplo do primeiro volume desta obra – que cobria, de fato, o período pós-Barão,
ainda que de modo lato: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964
(Paz e Terra, 2001) –, Fernando Mello Barreto oferece, no presente livro, uma história das
relações internacionais e da política externa do Brasil, em seu sentido mais amplo, cobrindo
tanto os episódios diplomáticos, estrito senso, como o quadro mais abrangente da economia e
da política mundiais. A perspectiva é linear, método já adotado no volume precedente: seis
chanceleres (dois políticos e quatro de carreira) sucederam-se de 1964 a 1985 à frente do
Itamaraty, ou seja, durante o regime autoritário, quando cinco generais do Exército e uma
junta militar (au complet) ocuparam o poder no Brasil.
Da intervenção na República Dominicana à Guerra das Malvinas, da recusa do TNP e
do Acordo Nuclear com a Alemanha à “pacificação nuclear” com a Argentina, do apoio ao
colonialismo português ao reconhecimento dos novos regimes surgidos depois da “revolução
dos cravos”, passando pelos tratados de cooperação com os países vizinhos (Bacia do Prata,
Amazônia, Itaipu, entre outros), os principais episódios da diplomacia brasileira são tratados
de forma minuciosa, fazendo desta obra uma referência indispensável para o conhecimento e
o enquadramento cronológico desses anos cruciais de transformações geopolíticas no plano
mundial e de grandes mudanças econômicas no próprio Brasil. Um sintético epílogo retraça as
mudanças mais relevantes, na fase recente, em relação ao período militar, como por exemplo
a aceitação do TNP e a inserção nos mecanismos de controle de tecnologias sensíveis.
O prefácio de Rubens Ricupero já levanta uma primeira questão, pertinente, quanto ao
título desta obra em três volumes, que vai da morte do Barão até a atualidade (estando seu
autor ocupado agora na feitura do terceiro). Compreende-se a designação de “sucessores”
para aqueles que ocuparam, na primeira metade do século XX, a chefia da chancelaria
brasileira, quando a presença de Rio Branco era uma sombra gigantesca a apequenar a obra
dos que lhe seguiram imediatamente. Mas, como atribuir a mesma classificação aos
condutores das relações exteriores em meados da segunda metade desse século, quando os
problemas regionais e internacionais enfrentados pelo Brasil eram bastante diferentes

216
daqueles que tinham mobilizado a atenção do grande chanceler? Recorda Ricupero, a esse
propósito, a frase de um humorista argentino sobre “los venidos a más”, como a sugerir que
todos os chanceleres, depois do Barão, terão sido meramente “suplementares”.
A rigor, os “herdeiros involuntários” enfrentaram problemas similares: as relações
sempre delicadas com os vizinhos da América do Sul, a começar pela Argentina; a
indiferença das grandes potências em face das pretensões do Brasil no sentido de querer
ocupar um espaço mais afirmado na cena internacional (ou seja, a busca de um status
preeminente na Liga das Nações e, depois e ainda hoje, no CSNU); o acesso a tecnologias
sensíveis, geralmente cerceado pelas mesmas potências; o aproveitamento dos recursos
energéticos no entorno geográfico; a defesa contra choques adversos vindos do cenário
internacional (no plano financeiro, no comercial e no do, então indispensável, petróleo); o
alinhamento, enfim, com os pequenos (países em desenvolvimento) ou o “desalinhamento”
com os grandes, como opções basicamente políticas, quando não de origem econômica e
tecnológica. Esses mesmos problemas ocuparam todos e cada um dos “seguidores” do Barão,
em intensidade variável segundo as épocas, com destaque para os formidáveis desequilíbrios
e as carências temporárias – nossa tradicional “vulnerabilidade externa” – introduzidos a
partir de 1929 e, sobretudo, no decurso da Segunda Guerra Mundial.
Mas, as condições externas, o ambiente regional, as circunstâncias históricas e,
sobretudo, a situação econômica e a política doméstica foram fundamentalmente diferentes,
para esses “sucessores” do período militar, do que elas tinham sido para os titulares da
chancelaria brasileira na primeira metade do século XX. Estes não cabiam nos “sapatos” do
Barão, tão impressionante tinha sido a sua presença à frente do Itamaraty entre 1902 e 1912 –
e certamente desde antes, na resolução de várias pendências lindeiras –, mas os segundos,
constrangidos pela geopolítica algo maniqueísta do período militar, foram, mais do que
sucessores, um conjunto heteróclito de herdeiros distantes do Barão do Rio Branco. A
sucessão, se o termo se aplica, se justificaria, provavelmente, pelo que Ricupero chama de
“paradigma Rio Branco” – uma agenda institucional fixada pelo próprio Itamaraty, raramente
deixada, portanto, ao humor mutável de políticos ignorantes em política internacional – e a
notável continuidade que isso implicou para a nossa política externa. De fato, o termo
sucessores só se compreende nessa perspectiva, a de uma mesma linha de atuação ao longo do
tempo, o que nem sempre foi o caso de nossos vizinhos mais voláteis politicamente e, em
consequência, mais erráticos em suas respectivas diplomacias.
Lido o prefácio de Ricupero e a introdução do autor – que ressalta os elementos
principais da cronologia econômica e política desses anos –, recomenda-se ao leitor saltar ao
217
epílogo, pois ali se faz uma síntese das diferenças e particularidades daquela época em relação
às ulteriores, o que permitirá começar a ler os capítulos vinculados a cada chanceler com uma
noção do que é permanente e do que foi diferente no tocante aos problemas enfocados, seja no
plano sincrônico, seja em perspectiva diacrônica. Permito-me transcrever dois trechos
importantes desse epílogo: “Apresentar balanço da política externa executada pelos
Sucessores do Barão durante o regime militar brasileiro constitui tarefa complexa, pois a
leitura dos fatos ocorridos no período entre 1964 e 1985 não permite julgamentos categóricos,
uma vez que não houve uniformidade nas ações diplomáticas, embora tenham se apresentado
algumas características constantes. A falta de uniformidade se evidencia quando se compara,
por exemplo, de um lado a prioridade dada ao relacionamento com os Estados Unidos durante
o governo Castello Branco (especialmente com Juracy Magalhães) e, de outro, a distância
entre Washington e Brasília durante os governos de Geisel e Carter. As diferenças aparecem
também no relacionamento com Portugal e territórios de expressão portuguesa, bem como na
política com relação ao Oriente Médio que passou de equidistância para claro apoio a várias
das teses árabes e palestinas” (p. 439). Fernando Mello Barreto chama a atenção, logo em
seguida, para a constância do binômio “segurança com desenvolvimento”, que seria o mote
do governo militar, manifestada na vertente externa pela defesa acirrada da soberania
nacional, embora comprometida esta pelas nossas limitadas possibilidades de mudar, de modo
sensível, o sistema internacional.
A transcrição do penúltimo parágrafo oferece um balanço honesto da diplomacia do
período militar: “Apesar dos enormes obstáculos econômicos externos que enfrentou a
diplomacia, sobretudo no final do período, a política externa do período militar alcançou os
objetivos a que se propôs: o Brasil se manteve distante de conflitos internacionais (não enviou
tropas ao Vietnã e sua ação militar se limitou à liderança de forças interamericanas na
República Dominicana); aproximou-se de seus vizinhos (inclusive a Argentina no último
governo do período); assegurou a cooperação amazônica; ampliou as exportações para além
de fronteiras ideológicas; neutralizou as ações argentinas contrárias à construção de Itaipu;
manteve o fornecimento de petróleo pelos países árabes e resistiu às pressões americanas
contrárias ao acordo nuclear com a Alemanha” (p. 495-6). O autor relembra que algumas
dessas posturas seriam revistas posteriormente – como a recusa do TNP, a aceitação do
sionismo como uma forma de racismo e a resistência soberanista no tratamento das questões
ambiental e dos direitos humanos –, objeto de um terceiro volume da obra, que ele fica nos
devendo.

218
Feito o balanço sumário e incorporada essa perspectiva abrangente da política externa
no período militar, cabe agora ao leitor penetrar na leitura detalhada de cada um dos capítulos,
que não são numerados nem datados, levando simplesmente os nomes dos titulares da
chancelaria. Vasco Leitão da Cunha, da carreira diplomática, inaugura o período, com uma
“nova política externa”, na verdade uma volta ao velho alinhamento diplomático com os
EUA, política que se acreditava superada a partir da “política externa independente” de Jânio
e Jango. Estávamos em plena Guerra Fria e o problema de Cuba dominou as relações
interamericanas durante a maior parte da década. Juracy Magalhães, militar e político, foi o
segundo chanceler da presidência Castello Branco, tendo ficado tristemente famoso pela frase
segundo a qual “o que [era] bom para os EUA, é bom para o Brasil”, o equivalente, como
lembra Ricupero, das “relações carnais” que o governo Menem quis ter com os EUA, de uma
fidelidade canina ao chamado Ocidente.
O governo Costa e Silva introduz a “diplomacia da prosperidade”, conduzida pelo
político e banqueiro Magalhães Pinto. Ocorre, então, uma volta a padrões autônomos de
política externa, que, se não chega a ser tão “independente” quanto à do início da década,
pratica o “desalinhamento” da recusa ao TNP e o desenvolvimentismo do início da NOEI, a
“nova ordem econômica internacional”, que seria mais tarde enterrada por Reagan e Tatcher.
A “nuclearização pacífica” do Brasil, prometida por Magalhães Pinto em abril de 1967, logo
se chocaria com a Realpolitik dos EUA: o Brasil mantinha a posição oficial de que explosões
“pacíficas” poderiam ser empregadas em “grandes obras de engenharia, [para] interligar
bacias fluviais, abrir canais e portos, consertar enfim a geografia” (p. 128).
Gibson Barboza, diplomata de carreira, foi o chanceler do presidente Médici, na fase
mais dura do regime militar, também a de maior crescimento econômico. A despeito do
fechamento do governo no binômio “segurança e desenvolvimento” e da disseminação de
regimes militares na América Latina, o Itamaraty, paradoxalmente, nunca foi tão livre para
conduzir uma diplomacia essencialmente profissionalizada e extremamente ativa, em quase
todos os cenários abertos à sua atuação, entre eles o da África. Os EUA continuavam a se
opor à política nuclear do Brasil, mas Nixon, de maneira infeliz, proclamou a liderança
brasileira na região, o que certamente prejudicou muito os esforços então empreendidos pelo
Itamaraty para a integração física do continente.
Azeredo da Silveira, outro diplomata de carreira, ocupou a chancelaria sob Geisel, o
mais desenvolvimentista dos presidentes e o mais interessado em política externa. Todo o
governo foi marcado pelo primeiro choque do petróleo, pelo reconhecimento da China e pela
guerra civil angolana, temas que mobilizaram intensamente a diplomacia, colocada sob a
219
égide do “pragmatismo responsável”. Silveira presidiu à expansão do serviço exterior e
aproximou-o ainda mais dos países em desenvolvimento, mesmo sob críticas internas de
setores da direita. Fernando Mello Barreto caracteriza a política externa regional, nessa época,
como de “dificuldades platinas e êxito amazônico” (p. 245), em alusão às disputas com a
Argentina sobre o aproveitamento dos recursos hidroelétricos do Paraná e à conclusão do
Tratado de Cooperação Amazônica. Persistiram os conflitos com os EUA, sobretudo depois
da assinatura do acordo nuclear com a Alemanha (1975) e da cessação, por rompimento
brasileiro, do acordo militar com os EUA (1977).
Saraiva Guerreiro, também de carreira, foi o último chanceler da era militar, atuando
sob o impacto da segunda crise do petróleo e da crise da dívida externa, mas com certa
independência, uma vez que o general Figueiredo não se envolvia muito em temas
diplomáticos. A política externa foi então considerada como sendo “universalista”, mas o seu
principal feito foi mesmo começar o período concluindo um acordo com a Argentina e o
Paraguai em torno da questão de Itaipu (1979). Ainda mais surpreendente, foram assinados
acordos de cooperação militar e nuclear com o vizinho platino, bases de todo o processo
ulterior de cooperação e de integração. Como demonstra Mello Barreto, durante todo o
regime militar o PIB brasileiro faria um progresso espetacular, ao passo que o argentino
praticamente estagnou. A seção econômica nesse capítulo é a mais longa do livro et pour
cause: nunca o Brasil enfrentou tantos problemas como nos anos 1980, com declínio do PIB e
aumento da dívida externa. O fim do regime militar e a transição para a democracia no Brasil
coincidiu, no plano mundial, com o início do fim do socialismo enquanto regime alternativo
ao capitalismo: novos tempos e novas políticas, de que o autor tratará em seu terceiro volume.
Ricupero sublinha com razão, em seu prefácio, a “solidez do levantamento cuidadoso
do encadeamento dos acontecimentos”, a “linguagem clara, direta e sem obscuridades com
que a narrativa articula os fatos e decisões mais importantes”, a “rica documentação que
ampara e fundamenta cada etapa da construção da trama expositiva, com farta utilização dos
mais expressivos e reveladores trechos de discursos e documentos da época, bem como a
exaustiva fundamentação do texto em notas de origem ou elucidativas, as quais chegam, em
certos capítulos, a mais de 600”. Não se pode deixar de concordar com ele em que se trata de
“trabalho pioneiro sobre período histórico ainda próximo, e por isso mesmo, percebido
confusamente como magma de lembranças sem forma definida”. Impossível, tampouco, não
concluir com Ricupero: “Será, por muito tempo, creio, a obra insubstituível para encetar o
estudo de um dos períodos da história da política exterior do Brasil com implicações mais
determinantes para a fase que vivemos hoje”. Um importante instrumento de trabalho para os
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pesquisadores, o índice remissivo, ausente da maior parte dos livros publicadas no Brasil,
completa este volume, que passa a figurar em plano elevado na bibliografia especializada.
Que venha logo o terceiro volume!

Brasília, 4 de novembro de 2006.


Publicado na revista Política Externa
(São Paulo: vol. 15, n. 3, dez. 2006-fev 2007, p. 191-196; ISSN: 1518-6660).
Versão resumida publicada, sob o título de “Diplomacia durante a ditadura”,
na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: ano 3, nº 29, dezembro 2006, p. 63).
Reproduzida integralmente na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados; ano V, n. 5, maio 2008, p. 310-315; ISSN: 1981-0865)

221
Dos arquivos da história: o Itamaraty nas fontes primárias

Álvaro da Costa Franco (org.):


Com a palavra, o Visconde do Rio Branco: A política exterior no Parlamento imperial [1855-
1875]
(Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2005, 574
p.)

Brasil. Secretaria de Estado dos Negócios do Império e Estrangeiros:


O Conselho de Estado e a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios
Estrangeiros, 1858-1862
(Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2005, xv +
450 p.)

José Antonio Pimenta Bueno; José Maria da Silva Paranhos; Sérgio Teixeira de Macedo:
Pareceres dos Consultores do Ministério dos Negócios Estrangeiros: 1859-1864
(Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2006, 244
p.)

Suely Braga da Silva:


Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo
(Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006, 136 p.)

Estes quatro volumes constituem novas e valiosas contribuições aos “garimpeiros” da


história diplomática do Brasil, ao disponibilizarem documentos originais e guias documentais
sobre fontes que esclarecem alguns elementos históricos negligenciados ou desconhecidos dos
pesquisadores contemporâneos. Dois deles trazem os carimbos dos arquivos do Itamaraty, na
verdade papéis de uma outra época, quando o velho ministério dos Negócios Estrangeiros
ainda não levava o nome pelo qual é hoje conhecido e sequer existia no palácio do Rio de
Janeiro. O primeiro e o último dos volumes foram garimpados em outras fontes,
respectivamente os anais da Assembleia Geral e do Senado, em determinados períodos do
Império, para o volume relativo ao Visconde do Rio Branco, e os arquivos pessoais do
Embaixador Paulo Nogueira Batista, tal como recolhidos mais recentemente ao Centro de
Pesquisa e Documentação Contemporânea (Cpdoc).
O Embaixador Álvaro da Costa Franco, diretor do Centro de História e Documentação
Diplomática do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, vem, ao longo dos
anos, coligindo, organizando e publicando os mais diversos materiais históricos relevantes
para o estudo da nossa diplomacia, grande parte nos Cadernos do CHDD, com a colaboração
de sua editora executiva, Maria do Carmo Strozzi Coutinho. Ambos, com a ajuda ocasional de
pesquisadores acadêmicos, têm sido incansáveis na recuperação e divulgação de velhos papéis
222
quase esquecidos na poeira dos arquivos diplomáticos brasileiros, reconhecidamente os mais
completos do mundo latino-americano (pois que recuperando muito do que tinha sido
produzido pela secular diplomacia portuguesa e que aqui aportou, nas bagagens da família
real, em 1808). Este trabalho de garimpo e lapidação deve ser ressaltado, pois é dele que
resultarão, nos anos à frente, novas interpretações do processo diplomático brasileiro durante
o Império e ao início da República, pois que ele fornece a documentação de base
indispensável à revisão fundamentada de análises já clássicas sobre esses períodos, assim
como para corrigir visões acadêmicas por vezes simplistas ou até enviesadas das realidades da
nossa diplomacia d’antanho.
A coleção dos discursos do Visconde do Rio Branco nas duas casas do Parlamento,
num longo espaço de vinte anos, entre 1855 e 1875, é precedida de uma brilhante, embora
curta, introdução do diplomata e mestre em história Fernando Figueira de Mello, que
contextualiza sua vida e seu papel nas relações exteriores do Brasil: cinco vezes ministro dos
negócios estrangeiros, antes jornalista voltado para os temas internacionais, em especial os do
Prata, e consultor do MNE, mesmo não tendo formação em direito (ele vinha de escolas
militares e era matemático de primeira linha). O interessante a destacar, nessa introdução é a
observação de que conceitos como “interesses vitais” do Brasil, “interesses essenciais” ou
“concretos” são constantes nos discursos do Visconde no Parlamento, “preocupação, aliás,
presente desde as Cartas ao Amigo Ausente, em que o jovem Paranhos, em diferentes
ocasiões, defendera uma política externa isenta de discussões partidárias” (p. 16). Figura neste
volume, entre as páginas 299 e 405, o célebre discurso sobre os eventos platinos que
conduziram à celebração do tratado de Tríplice Aliança, em 1865, enaltecido em crônica de
Machado de Assis sobre “O velho Senado”, no qual Paranhos defendeu durante sete horas
seguidas as motivações da política imperial para a região.
O segundo volume, relativo às consultas da seção dos Negócios Estrangeiros do
Conselho de Estado, entre 1858 e 1862, recolhe algumas peças importantes para o estudo de
questões da nossa diplomacia imperial, geralmente no que toca aos tratados de limites, às
relações consulares e contenciosos bilaterais sobre pedidos de indenizações de particulares.
Dois documentos tratam da organização do próprio MNE, numa época em que ele não
chegava a ter mais de duas dúzias de funcionários permanentes (incluindo alguns correios a
cavalo) e quando o Secretário Geral – figura importante em gabinetes que se sucediam em
notável rotatividade – era chamado de Oficial Maior. As maiores pendências com os vizinhos
eram relativas aos direitos de navegação, terreno no qual a diplomacia imperial mantinha,

223
como se sabe, posturas diversas no Prata e no Amazonas, em virtude da situação
completamente oposta do acesso por essas vias fluviais de importância internacional.
Curioso ler, por exemplo, numa consulta relativa aos tratados de comércio, navegação
e limites com a Venezuela, de 1852, que o país andino queria rever, este parecer do relator,
visconde do Uruguai, com ensinamentos talvez válidos para tempos ulteriores: “Nos governos
semelhantes ao de Venezuela, o governo não é, de fato, um ente moral, que se perpetua sem
atenção às pessoas. As pessoas são tudo. A administração seguinte rejeita o que fez a anterior,
sua antagonista, pela razão de que foi esta que o fez. Não é, por certo, justificável semelhante
razão, mas é por ela que se faz obra e, se é por ela que se faz obra e a não podemos aniilar,
cumpre ou ir com ela, ou não negociar um revés” (p. 16). Ou ainda: “Um governo
dificilmente concede hoje o que negou ontem” (p. 17). Lições para os dias de hoje?
A compilação de pareceres dos Consultores do MNE, de 1859 a 1864, onde ainda
aparece Paranhos, detentor, entre 1861 e 1865, do cargo por ele mesmo criado em 1859,
aprofunda o conhecimento disponível sobre a construção jurídica da nossa diplomacia
imperial, legatária de uma tradição de respeito ao direito internacional que foi seguida até
hoje na política externa brasileira. Abundam as reclamações e pendências de súditos e sobre
espólios particulares, hoje de importância menor no trabalho diplomático e consular, mas são
bem mais interessantes os textos relativos a tratados de limites, nos quais estão expostas
posições da diplomacia imperial – a do uti possidetis, por exemplo – que serão mantidas
durante longos anos, até a sua completa resolução, já na República. O primeiro parecer, da
lavra de Pimenta Bueno, depois marquês de São Vicente, toca no que se chamaria hoje, em
linguagem gattiana, de “tratamento nacional”, bem como na questão sempre difícil do
monopólio nacional em matéria de relações internacionais, contra a tendência sempre presente
de poderes subnacionais legislarem sobre o assunto: ele condena a legalidade dos impostos
sobre estrangeiros previstos em lei provincial da Bahia, de 1858, pedindo que as medidas
sejam revogadas, por “impolíticas e antieconômicas” (p. 22).
O quarto volume, finalmente, deixa para trás o século XIX e o campo dos documentos
oficiais para entrar no domínio dos arquivos pessoais, neste caso os do embaixador Paulo
Nogueira Batista. Trata-se de um guia da documentação depositada e disponível no Cpdoc,
com introdução e perfil biográfico que ressaltam a importância desse diplomata para a história
da nossa política externa, em geral, para a da política nuclear em particular. Outros assuntos
também comparecem nesse arquivo, como temas multilaterais (em Genebra e Nova York),
dívida externa e sua assessoria política, junto ao PMDB. Não são apenas documentos textuais
ou impressos, mas também audiovisuais, o que aumenta o interesse da coleção, na medida em
224
que estes são mais suscetíveis de reproduzir a “verdade do momento”, sem a autocensura
crítica que costuma permear produções do próprio punho, depois organizadas (e
eventualmente “selecionadas”) pelo seu autor. No portal do Cpdoc na internet
(http://www.cpdoc.fgv.br) é possível dispor-se de um breve resumo dos arquivos de PNB,
como era conhecido o primeiro presidente da Nuclebrás.
No conjunto, estes quatro volumes compilam importantes documentos e guias de
fontes que constituem subsídios primários relevantes ao pesquisador acadêmico ou ao simples
curioso de nossa história diplomática. A Fundação Alexandre de Gusmão do Ministério das
Relações Exteriores, em especial seu Centro de História e Documentação Diplomática, seus
responsáveis e pesquisadores associados merecem encômios pelas iniciativas já tomadas de
divulgação desses materiais relevantes, bem como pelas novas publicações que estão
certamente em preparação.

Brasília, 1724: 20 fevereiro 2007.


Inédito na versão integral. Publicado em formato resumido no
Boletim da ADB
(ano 14, n. 56, janeiro-março 2007, p. 13-14; ISSN: 0104-8503).

225
Aventuras nucleares de uma outra época

Suely Braga da Silva (org.):


Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo
(Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006, 136 p.)

Este livro constitui uma valiosa contribuição aos “garimpeiros” da história diplomática
e da história nuclear do Brasil, ao disponibilizar documentos originais e guias documentais
sobre uma fonte importante para o esclarecimento de fatos históricos negligenciados ou
desconhecidos de muitos pesquisadores. Vários dos documentos trazem “carimbos virtuais”
do Itamaraty, mas integravam os arquivos pessoais do Embaixador Paulo Nogueira Batista, o
primeiro presidente da Nuclebrás, numa época em que o Brasil pretendia ter uma verdadeira
política nuclear, não apenas energética.
Trata-se de um guia da documentação depositada no Centro de Pesquisa e
Documentação Contemporânea (Cpdoc), da FGV-RJ, com introdução e perfil biográfico que
ressaltam a importância desse diplomata para a história da nossa política externa, em geral,
para a da política nuclear em particular. Outros assuntos figuram nos arquivos, como temas
multilaterais e a dívida externa. Os arquivos contêm não apenas documentos impressos, mas
também audiovisuais, o que aumenta o interesse da coleção, na medida em que estes últimos
são suscetíveis de reproduzir a “verdade do momento”, sem a autocensura crítica que costuma
permear produções do próprio punho, depois organizadas (talvez “selecionadas”) pelo seu
autor. No portal do Cpdoc na internet (http://www.cpdoc.fgv.br) é possível dispor de um
breve resumo dos arquivos de PNB, como era conhecido o embaixador nacionalista falecido
em meados dos anos 1990, mas que deixou forte marca tanto na Nuclebrás, como no
Itamaraty.

Brasília, 21 de fevereiro de 2007.


Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, n. 34, maio 2007, p. 63)

226
Relações Brasil-Estados Unidos, na infância

Marcelo Raffaelli:
A Monarquia e a República: Aspectos das relações entre Brasil e Estados Unidos durante o
Império
(Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2006, 290
p.)

Exemplo de síntese histórica, em sua objetividade e concisão, a compilação feita dos


despachos e ofícios trocados ao longo do século XIX pelos diplomatas dos dois países, com
suas respectivas secretarias de Estado, compõe um relato saboroso das relações bilaterais
entre os dois grandes do hemisfério. O autor é um diplomata experiente, com passagens por
diversas embaixadas e um longo estágio como funcionário do GATT. Aposentado, presidente
da Associação dos Diplomatas Brasileiros, ele não passou seu tempo livre a jogar bridge, e
sim a pesquisar em velhos arquivos empoeirados (os papéis americanos certamente em
formato de microfilme).
Organizado tematicamente, antes que cronologicamente, o livro cobre desde o
reconhecimento da independência brasileira até o fim do regime monárquico e a inauguração
da República no Brasil, bem recebida pelos Estados Unidos. O delicado equilíbrio entre os
poderes traçado na constituição de 1786 – mas cuja inspiração os founding fathers foram
buscar em Montesquieu – serviu de modelo para que Rui Barbosa e outros republicanos
tentassem mimetizar o sucesso americano, a começar pela designação da nova federação
como “Estados Unidos do Brazil” (assim mesmo, com “z”). Aparentemente, o molde
americano não frutificou por aqui.
A obra realiza uma descrição sintética de cada um dos chefes de missão e suas
respectivas instruções diplomáticas, o que permite contrastar a objetividade comercial dos
anglo-saxões com a generalidade dos objetivos brasileiros no gigante em formação. Ela
analisa ainda os problemas do tráfico escravo (abolido bem antes nos EUA, que se dedicaram
à “criação” de escravos) e alguns contenciosos diplomáticos trazidos pela guerra de Secessão.
Outro problema abordado é o da impossível abertura do rio Amazonas à navegação
internacional, reclamada por americanos e europeus, mas temida pelos dirigentes da
monarquia brasileira, numa posição diametralmente oposta às demandas brasileiras no Rio da
Prata, que era a única via de acesso às terras do Mato Grosso. Interessante à leitura são os
despachos nos quais os enviados em cada capital comentam características do povo e do país
no qual servem, com toda a franqueza dos papéis confidenciais.
227
No plano historiográfico, trata-se de um excelente resumo das fontes primárias, com
intenso apoio nos arquivos oficiais e em bibliografia equilibrada sobre essas relações. O autor
deixa falar os velhos papéis, o que contrasta saudavelmente com certas obras que, ao
pretender analisar a emergência da “nova Roma” da atualidade, descambam rapidamente para
teorias conspiratórias da história. Raffaelli produziu uma excelente síntese sobre as relações
entre os dois gigantes hemisféricos, antes que este gigante meridional pretendesse estabelecer
“relações especiais” com o Big Brother do norte, já na era do Barão do Rio Branco.

Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento


(Brasília: IPEA-PNUD, n. 34, 14 de maio de 2007, p. 62)

228
Insegurança jurídica no Mercosul

Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade:


O Mercosul no Direito Brasileiro: incorporação de normas e segurança jurídica
(Belo Horizonte: Del Rey, 2007, 180 p.)

O Mercosul chegou aos 15 anos com tantas pendências que algumas delas não são
sequer resolvidas mediante os instrumentos próprios, internos, de resolução de contenciosos
(protocolos de Brasília e de Olivos). Algumas controvérsias passam diretamente ao
mecanismo da OMC, que já teve de dirimir várias diferenças entre os países membros do que
seria, supostamente, uma união aduaneira, a etapa imediatamente anterior ao mercado
comum.
Monografia agraciada com o prêmio Hildebrando Accioly do Mestrado em
Diplomacia do Instituto Rio Branco, o trabalho do jovem diplomata tem tudo para consagrar-
se como uma das melhores análises acadêmicas sobre a “insegurança jurídica” do Mercosul, a
despeito de todos os instrumentos aprovados no plano formal da solução de controvérsias. A
razão disso é que os Estados membros pouco fizeram para internalizar grande parte das
normas, que são decisões e resoluções dos órgãos decisores (Grupo Mercado Comum e
Conselho de Ministros do Mercosul). Não apenas elas têm de ser aprovadas consensualmente
(o que constitui outra dificuldade maior do processo decisório), mas sua entrada em vigor
depende de que cada país proceda à sua ratificação formal.
O autor não se limita a examinar o conceito de segurança e a natureza jurídica das
normas do Mercosul, mas examina sua incorporação (limitada) ao direito interno dos países
membros e formula sugestões para o aperfeiçoamento desse processo. A maior parte de suas
recomendações são de procedimento, mas Otávio Trindade reconhece a necessidade de uma
reforma constitucional, tarefa que se choca com a velha defesa da soberania nacional. Curioso
que muitos daqueles que se declaram acirrados defensores da soberania nacional não veem
nenhuma contradição com a proposta de uma moeda única no Mercosul.

Brasília, 21 de fevereiro de 2007


revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, n. 34, maio 2007, p. 63).

229
Comércio e diplomacia: história e atualidade

Demétrio Magnoli e Carlos Serapião Jr.:


Comércio Exterior e negociações internacionais: teoria e prática
(São Paulo: Saraiva, 2006, 378 p.)

Trata-se de uma obra correta: indispensável em muitos cursos de graduação em


relações internacionais (talvez alguns de pós, também), que costumam servir aos alunos uma
mistura de antiglobalização e de preconceitos contra o livre comércio. Supõe-se que nos
cursos de economia ou de administração a realidade seja um pouco diferente – que os
professores não tentem, por exemplo, desmentir David Ricardo –, mas, mesmo para estes, o
livro seria útil, pois que contém bem mais do que a simples teoria e prática do comércio
exterior. Ele está “colado” às realidades comerciais, brasileira e internacional.
Escrito por um diplomata e um pesquisador acadêmico, o livro combina méritos em
dois campos: a reconstituição sintética, na Unidade I, da evolução histórica do comércio
internacional, do mercantilismo à globalização, seguida, na Unidade II, de uma exposição
igualmente breve, mas adequada, das teorias sobre o comércio internacional. Pena que essa
parte se encerre por um capítulo solitário de “introdução às negociações internacionais”,
quando este tema deveria compor, de conformidade com o título da obra, uma unidade inteira.
A Unidade IV tenta substituir esse vasto campo, tratando do processo decisório em política
comercial, mas os seus dois capítulos são desiguais e algo insatisfatórios.
O filet mignon do livro está na Unidade III, sobre “política comercial brasileira”, mas,
na verdade, ela não se conforma ao conceito, pois tratando, não dos princípios e práticas da
política comercial ao longo dos últimos 60 anos, desde o protecionismo varguista até a
abertura “neoliberal”, e sim das experiências do Mercosul, Alca, OMC e de outras
negociações. Essa parte é relevante, mas um pouco dependente de matérias de jornais, de
comunicados de chancelarias e de artigos de revistas. Os autores citam casos concretos, que
ilustram a política comercial praticada pelo Brasil, mas o conjunto dá a impressão de uma
assemblagem heteróclita de episódios conjunturais ilustrativos da teoria, antes que uma
análise sistemática da essência e da prática da política comercial.
Esta parte demonstra, também, que mesmo autores experientes no tratamento de
questões internacionais podem incorrer em postura enviesada na avaliação do mérito relativo
de políticas comerciais concretas. Em perspectiva implicitamente comparativa em relação às
posturas adotadas, respectivamente, pelo Mercosul e pelo Chile – um membro associado do

230
bloco desde 1996 e cortejado, desde sempre, para um “ingresso pleno” – os autores revelam
visão involuntariamente introvertida, ou “mercosuliana”, dessas relações. Eles acham, por
exemplo, que a aceitação pelo Chile de um acordo de livre comércio com os EUA
“distanciou, ainda mais, do ponto de vista político, o Chile do Mercosul” (p. 324), como se a
política comercial do Mercosul fosse o paradigma pelo qual devessem ser julgadas as
políticas comerciais de outros países. Do ponto de vista estritamente econômico, parece bem
mais racional a “entrada” do Mercosul no Chile do que o inverso, observados o coeficiente de
abertura externa e as duas dúzias de acordos de livre comércio – com plena garantia de
acesso, portanto – já concretizados pelo país andino com os mais diferentes parceiros.
Diversas passagens revelam ambiguidades no pensamento dos autores, como é o caso
da teoria das vantagens comparativas. Eles acham que “o livre comércio foi uma ideologia
nascida na Grã-Bretanha que foi decisiva para a abertura de mercados externos para os
produtos industrializados britânicos” (p. 180), esquecendo-se de que a abolição das “leis dos
cereais” se deu com vistas ao abastecimento do mercado interno daquele reino em produtos
importados. Eles também parecem concordar com List em que o Tratado de Methuen (1713),
de Portugal com a Inglaterra, “ajudou a financiar a revolução industrial inglesa”, num dos
mais clamorosos equívocos de interpretação da “grande transformação” – basicamente interna
– da economia britânica no decorrer do século XVIII. Más leituras de história econômica são
incrivelmente persistentes, como o prova ainda hoje o sucesso de Ha-Joon Chang e do seu
livro de inspiração “listiana”, Chutando a Escada, que incorre em diversos desses equívocos
históricos.
No cômputo global, porém, e levando em conta a pobreza da bibliografia nessa área, o
livro de Serapião e Magnoli preenche de modo satisfatório a necessidade de atualização da
literatura e de discussão bem embasada dos principais problemas ligados ao comércio
internacional para os cursos pertinentes (relações internacionais, economia e administração,
quando não os de ciência política ou ciências sociais aplicadas, de modo geral). Numa
próxima edição, sugere-se que os autores eliminem o caráter de “assemblagem” de matérias
de jornais, sistematizem e uniformizem sua reflexão sobre todos os pontos tratados e
produzam um verdadeiro textbook acadêmico sobre políticas e negociações comerciais.

Brasília, 22 de fevereiro de 2007.


Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, ano 4, n. 32, março de 2007, p. 62)

231
Mercosul ‘aborrecente’

Rubens A. Barbosa (organizador):


Mercosul quinze anos
(São Paulo: Fundação Memorial da América Latina-Imprensa Oficial do Estado, 2007, 304
p.)

O Mercosul, ao que parece, chegou à adolescência. Como todos os jovens nessa faixa
de idade, ele não sabe bem o que pretende ser quando se tornar adulto e não se conforma
muito ao padrão ideal que tinha sido traçado para ele pelos “pais fundadores”. Quando ainda
usava fraldas, a União Europeia ofereceu-se para ajudar tecnicamente naquilo que diz respeito
à organização e funcionamento, esperando, talvez, que, com um bom provimento de
“mamadeira comunitária”, ele pudesse crescer e tornar-se forte, rico, bonito e bem sucedido
como ela parece ser atualmente (deixando aqui de lado algumas angústias existenciais que
enfrenta a UE a 27 membros).
Quando pequeno, tudo parecia sorrir para o Mercosul, candidatos batiam à sua porta,
prestígio, riqueza e intercâmbios cresciam a olhos vistos e ele era bem recebido nos salões do
primeiro mundo. Depois, algumas desavenças internas minaram a paz do lar e o Mercosul
nunca mais voltou a ser o mesmo: entrou na adolescência já com sérios problemas de
comportamento e seus membros não parecem ter projetos coincidentes para o futuro.
Alguns ainda pretendem fazê-lo percorrer a trilha da integração europeia, outros se
contentariam em vê-lo reproduzir o modelo do Nafta, ou seja, uma simples zona de livre
comércio. O certo é que persistem muitas dúvidas quanto ao seu itinerário futuro, sem
mencionar o fato de que o membro mais recente tem uma visão própria, aliás completamente
distinta da original, sobre o papel do Mercosul na região e no mundo.
Este livro, que resulta de um seminário realizado no Memorial da América Latina
quando o “aborrecente” completava três lustros de vida, oferece um panorama amplo e
realista das muitas conquistas alcançadas e de algumas frustrações acumuladas ao longo do
percurso. O argentino Félix Peña começa relembrando os grandes objetivos constitutivos e
desmistifica alguns mitos ou incompreensões quanto ao alcance real dos conceitos de “união
aduaneira” e “mercado comum”. Ele reconhece as dificuldades presentes e não tem a
pretensão de resolvê-las com fórmulas mágicas e por isso propõe um “mapa do caminho”
baseado numa arquitetura flexível, dotada de três velocidades: o núcleo original (Brasil e
Argentina) caminharia mais rápido, os dois menores teriam facilidades adicionais e os

232
associados fariam sua integração gradativa aos requerimentos da união aduaneira. Faltou dizer
o que fazer com a Venezuela.
Outro argentino, o ex-secretário da indústria e comércio Dante Sica, faz o balanço das
mudanças econômicas ocorridas nos diferentes setores e ramos produtivos dos países
membros, bem como nas suas variáveis macroeconômicas. Ele reconhece a existência de
assimetrias, mas sua proposta seria uma volta ao espírito do PICE dos anos 1980, o programa
de cooperação que estava baseado na integração de cadeias produtivas e no estabelecimento
de protocolos setoriais, indo do micro ao macro. Duvidoso que esta fórmula funcione, uma
vez que o Mecanismo de Adaptação Competitiva foi imposto pela Argentina justamente
porque suas indústrias não conseguem competir em nível micro: se as “adaptações” são feitas,
eles se dão justamente em detrimento do comércio recíproco.
O representante oficial do MRE tratou da questão institucional, ostentando uma
postura equilibrada quanto à não opção pela supranacionalidade, um falso problema criado
por espíritos acadêmicos. Ele prefere contrapor a essa alternativa teórica o reforço da
efetividade das decisões adotadas de comum acordo, cuja transposição para o terreno prático
carece, precisamente, da eficácia requerida de normas que garantam a segurança jurídica num
espaço verdadeiramente integrado.
O ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo de Freitas abordou macroeconomia e
finanças, começando por explicar os pagamentos por um sistema de clearing, o Convênio de
Créditos Recíprocos, que funciona no âmbito regional desde 1965. Discorre sobre o eventual
uso das moedas nacionais nos intercâmbios recíprocos e a integração dos mercados
financeiros. Vê com preocupação a interferência direta do governo da Venezuela nesses
mercados, mas existem outros obstáculos institucionais, na própria legislação brasileira, aliás.
Ele alerta também contra o uso indevido de instituições financeiras de fomento “como formas
de compensação de políticas econômicas equivocadas que destroem a poupança de longo
prazo”.
O economista do BID, Uziel Nogueira examina os aspectos políticos e sociais,
apontando a maior cooperação patronal na área agropecuária e o acirramento das relações no
setor industrial (daí o conflito FIESP-UIA e as salvaguardas unilaterais). A China se
encarregará de mudar o foco da questão. No plano institucional, as dúvidas são se o Mercosul
logrará reintroduzir a democracia na Venezuela e se o Parlamento regional amortecerá as
diferenças de visão entre as elites dos diversos países membros. No plano da defesa e da
segurança, o Mercosul pouco pode fazer para reforçar a dissuasão ou combater o crime
organizado na região.
233
Marcel Vaillant, consultor da Secretaria Técnica do Mercosul, aborda as negociações
comerciais externas: os resultados são escassos em vista das expectativas geradas e existe a
ameaça adicional da perda de mercados em razão dos acordos bilaterais concluídos pelos
EUA com países da região. Dos vinte acordos examinados, a maior parte foi feita com países
em desenvolvimento, com benefícios limitados: o Mercosul sempre dá mais do que recebe e
os efeitos sobre sua inserção internacional são também modestos. O representante uruguaio na
Aladi, Augustin Espinosa, trata em detalhe da integração física (energia, telecomunicações),
da cooperação judicial e do Fundo de Correção de Assimetrias, o Focem. O Brasil,
considerado de maneira equivocada como um país “não-assimétrico”, contribui com 70% dos
US$ 100 milhões de obrigações não-reembolsáveis do Focem, mas só se beneficia com 10%
dos projetos a serem financiados, majoritariamente voltados para o Paraguai e Uruguai (que
aportam 3% do capital).
O ex-negociador pelo Brasil no Mercosul, embaixador Rubens Barbosa, faz a síntese
dos trabalhos, nas diversas áreas tratadas pelo seminário. Após apresentar as principais
conclusões, ele introduz as visões “otimista” e “mercocética” quanto ao futuro do bloco e
estabelece algumas condições para resgatá-lo. Ele acredita, por exemplo, que a debilitação de
alguns dos pilares que hoje sustentam o Mercosul – vontade política, preferências econômicas
recíprocas, equilíbrio da integração produtiva e estratégias conjuntas de negociações externas
– poderia levar o bloco ao colapso. O Mercosul não vai desaparecer, mas se encontra num
“plano inclinado”. Uma reforma implicaria uma discussão sobre o mecanismo de tomada de
decisão (o atual sistema prevê o consenso, mas Barbosa propõe alguma forma de ponderação)
e talvez até mesmo se possa pensar na adoção de um novo instrumento no lugar do Tratado de
Assunção. Em todo caso, ele sugere abandonar a retórica da integração e enfrentar os desafios
de modo pragmático e realista, caso contrário o Mercosul continuará caminhando para a
irrelevância.
As mudanças são, obviamente, sempre difíceis e não é seguro que elas sejam adotadas
no futuro previsível. Estaria o Mercosul condenado a ser um eterno adolescente, ostentando
uma espécie de “complexo de Peter Pan”? Impossível prever atualmente, tendo o bloco recém
completado 16 anos, mas adolescentes tardios costumam dar mais trabalho do que o
esperado…

Brasília, 25 de março de 2007.


Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, ano 4, n. 33, 10 de abril de 2007, p. 63).

234
Addendum:
Convidado para o lançamento do livro acima, ocorrido no Memorial da América Latina, em
21 de março de 2007, apresentei um conjunto de “teses” em torno das dificuldades do
Mercosul, acompanhadas de propostas para seu reenquadramento no mainstream da
integração, sob a forma de um PowerPoint, sob o título de “O Mercosul e suas sete
encruzilhadas”; o texto foi depois reelaborado e publicado no site gaúcho Via Política
(22.04.2007), atualmente indisponível na internet; por essa razão, mas também pela sua
persistente atualidade, reproduzo a seguir o texto em questão.

Sete teses impertinentes sobre o Mercosul


O estado atual do Mercosul pode ser interpretado de maneira muito diversa pelos
observadores interessados nesse processo de integração. Eles terão, segundo os casos, uma
interpretação mais ou menos otimista quanto ao seu desenvolvimento político no período
recente e serão mais ou menos realistas quanto às suas perspectivas evolutivas, no contexto da
integração, dependendo da interação pessoal com esse processo. Os responsáveis por sua
condução tenderão a enfatizar o muito que se fez nos últimos anos para reforçar suas
estruturas diretivas, para diversificar o escopo e ampliar a cobertura da integração e para
expandir sua influência na região, ou, na pior das hipóteses, para evitar o prolongamento de
uma crise que parece ter começado em 1999. Os observadores mais críticos desse processo
poderão retrucar quanto ao não cumprimento dos principais objetivos fixados originalmente e
reafirmados de maneira recorrente nos anos que se seguiram, sem que os obstáculos ao pleno
funcionamento da zona de livre-comércio ou à plena vigência da união aduaneira tenham de
fato sido superados. Eles também saberão reconhecer a preservação do esquema
integracionista, ainda que possam discordar quanto à utilidade das medidas adotadas.
Independentemente de qualquer julgamento sobre se as características atuais do
Mercosul resultaram de “acidentes de percurso” ou se elas derivaram, ao contrário, de
escolhas conscientes feitas pelos atuais dirigentes políticos, vou tentar formular algumas
“teses” sobre esse processo, oferecendo, ao final, algumas propostas tendentes a superar
algumas de suas atuais dificuldades. Cabe registrar que, a despeito de um julgamento otimista
ou pessimista que se faça da situação atual do Mercosul, não há como recusar o fato de que
esse processo atravessa dificuldades notórias, superáveis ou não em função da avaliação que
se possa fazer quanto à natureza ou a origem desses males e sobre os “remédios” aplicados ao
caso.

1. Desvio de rota e mudança de substância


O Mercosul desviou-se, ou foi desviado, de seus objetivos fundamentais, que eram os
da liberalização comercial e da integração econômica, e converteu-se – ou foi levado a
235
converter-se – num esquema fragmentado de iniciativas setoriais, nos campos político, social,
cultural, ou outros, não coordenados e desconectados entre si.

2. Introversão
O Mercosul deixou de ser uma ferramenta facilitadora, ou um meio, para atingir
determinadas finalidades, que na origem eram as da modernização produtiva dos países
membros e sua inserção econômica internacional, e tornou-se um fim em si mesmo, como se
a forma devesse necessariamente determinar o conteúdo. Com essa nova orientação “hacia
adentro”, a integração vem sendo perseguida pela própria integração, não como um veículo
condutor ou uma alavanca para a consecução de objetivos economicamente racionais. Seria
como se a preocupação “estética” tomasse a dianteira sobre o funcionamento efetivo do
esquema.

3. Fuga para frente


Em face de dificuldades reais, nos capítulos mais relevantes do processo
integracionista, o Mercosul foi levado a efetuar uma verdadeira fuite en avant, atitude que se
desdobra num número cada vez maior de iniciativas para compensar as tarefas não cumpridas
de sua agenda corrente. A criação de novos órgãos, todos meramente acessórios ou
simplesmente “redistribuidores”, confirma essa tendência, que não levará necessariamente a
maior coesão e coerência em relação aos objetivos fundamentais.

4. Expansão arriscada
O Mercosul foi levado a expandir de maneira talvez impensada, em todo caso de
modo pouco condizente com os seus requerimentos intrínsecos, previstos no tratado de
Assunção e nas decisões já adotadas, em termos de Tarifa Externa Comum, regras de origem,
defesa da concorrência etc. Decisões políticas de incorporação, sem atenção aos elementos
constitutivos da união aduaneira, fragilizam o edifício original e tornam mais difícil o
consenso interno para negociações externas.

5. Mimetismo indevido e foco em supostas assimetrias


O Mercosul foi levado a mimetizar formas de cooperação baseados em outras
experiências integracionistas, no caso a europeia, como se ele devesse, sem dispor dos
mesmos instrumentos institucionais de compensação de desequilíbrios, dar início a um
programa completo de correção de supostas “assimetrias estruturais”, à custa de transferência
de recursos de alguns países a outros. Concretamente, o único país que pode ser considerado
236
“não assimétrico” seria o Brasil – que, na verdade, possui muito mais assimetrias internas,
regionais e sociais, do que todos os demais –, ou então ele é o assimétrico absoluto, portanto
encarregado de redimir os males existentes.

6. Exceções protecionistas desfiguram o Mercosul, sem reforçá-lo


O Mercosul foi levado a aceitar a introdução, ainda que parcial, de restrições
comerciais que de fato fragilizam o edifício integracionista, em lugar de fortalecê-lo, como
parece ser a intenção, restrições que são, no mínimo, abusivas, quando não ilegais, seja do
ponto de vista do próprio Mercosul, seja do ponto de vista do GATT.

7. Ênfase na superestrutura e carência de implementação na infraestrutura


O Mercosul padece de excessos superestruturais, isto é, uma ênfase exagerada no
“cupulismo” e nas decisões políticas em torno de iniciativas em geral mais retóricas do que
substantivas, em detrimento da implementação de medidas de caráter “infraestrutural”, que
tendam a valorizar o trabalho das burocracias nacionais ou da própria secretaria técnica.

Em face dessas características, quais poderiam ser as soluções aos problemas


apontados? Simetricamente, podem ser apontadas as seguintes orientações em relação a cada
uma das teses.

1. Retomada da rota original e confirmação da substância


Caberia voltar aos propósitos originais do Mercosul, ou seja, retornar ao mainstream
da integração, resgatando os objetivos da liberalização comercial e da conformação plena da
união aduaneira. Proclamar objetivos sociais, políticos ou culturais, em substituição ao
fortalecimento das bases efetivas do Mercosul, redunda necessariamente na erosão dos seus
fundamentos.

2. Extroversão econômica e competição internacional


O Mercosul foi pensado como um instrumento facilitador e promotor da inserção
internacional dos países membros. Os mercados a serem perseguidos são antes externos do
que os recíprocos.

3. Concentrar-se no básico
No longo processo europeu sempre existiu a preocupação de que, a despeito de
dificuldades eventuais, deveria ser garantido o chamado acquis communautaire, ou seja, o
núcleo central de normas que regem o processo. Isto implica fazer o dever de casa, isto é,
237
empreender as reformas necessárias para que as regras constitutivas do processo sejam
preservadas e reforçadas. Desvios ou tratamentos excepcionais podem ser aceitos apenas no
que se refere à aplicação delongada das próprias normas, não na alteração de seu sentido
original.

4. Expansão medida
O princípio de base deveria ser “aberto ma non troppo”, ou seja, novos sócios devem
submeter-se aos estatutos vigentes, não pretender alterar o funcionamento do clube. A
simpatia não pode ser um substituto para a seriedade no engajamento formal do respeito às
normas. Um entendimento claro quanto aos propósitos definidos e quanto aos objetivos
fundamentais é a primeira das condições para que novas incorporações sejam decididas.

5. Assimetrias constituem a própria base do comércio internacional


Não há, na história do comércio exterior, doutrinas que enfatizem a necessidade de
eliminação forçada das especializações competitivas baseadas em dotações naturais ou
adquiridas. Ao contrário, vantagens ricardianas sempre funcionaram, em quaisquer latitudes e
longitudes e constituem fonte de ganhos líquidos para todas as partes. Verdades simples como
esta podem servir para avaliar os programas de “correção” de assimetrias, cujos efeitos podem
ser mais danosos do que benéficos. Reconversão deve significar adaptação aos novos
requerimentos, não equalização de condições.

6. Excesso de exceções levam à criação de novas e “urgentes” exceções


Não ceder ao protecionismo setorial deveria ser uma regra básica dos decisores. Caso
se ceda à tentação protecionista, todos os demais setores vão se julgar habilitados e demandar
resguardo em algum momento da trajetória competitiva. Não custa lembrar, tampouco, que
salvaguardas sempre devem ser não discriminatórias, por princípio.

7. Ênfase na infraestrutura, retórica moderada na superestrutura


Consoante uma velha fábula, sistemas econômicos organizados e funcionais requerem
um pouco mais de formigas (isto é, empresários, trabalhadores e até mesmo burocratas), para
a preservação dos equilíbrios fundamentais. As cigarras podem ajudar a enriquecer a
harmonia do conjunto, mas nem sempre contribuem com os estímulos adequados.

Verdades simples como estas podem ajudar a clarificar o debate.

Brasília, 14 de março de 2007


238
Expansão Econômica Mundial: 100 anos de uma obra pioneira

Brazílio Itiberê da Cunha:


Expansão Econômica Mundial
(Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2 volumes, 1907 e 1908).

Cem anos atrás, o Brasil era o café e o café era o Brasil, ou pouco mais do que isso:
nossa diplomacia e a própria política econômica estavam centradas na “defesa do café”, como
atestam o Convênio de Taubaté e as garantias oficiais aos empréstimos contraídos no exterior
para financiar a estocagem do produto, para forçar a alta dos preços nos mercados mundiais.
A elite política tinha consciência do atraso da Nação, resquício da ordem escravocrata do
século XIX, e muitos dos seus representantes exibiam ideias políticas e econômicas
avançadas, em contradição com os parcos esforços efetivamente feitos para colocá-las em
prática, de molde a diminuir a distância que nos separava das potências da época.
A diplomacia brasileira, em particular, se destaca por sua grande capacidade analítica,
sua organização avançada, sua forte presença política e geográfica nos mais diferentes foros
abertos ao engenho e arte de seus representantes profissionais ou delegados ad hoc, num país
que estava longe de conformar um paradigma do capitalismo pioneiro ou um palco ideal para
o exercício das vantagens comparativas de um êmulo do bourgeois conquérant, em uma
versão tropical. Um dos mais lúcidos diplomatas do ancien régime, servindo com entusiasmo
a nova República, junto com o Barão do Rio Branco, foi Brazílio Itiberê da Cunha, que, em
1907, publicaria uma obra notável sobre as causas do crescimento econômico das nações, na
qual ele discorre igualmente sobre as condições e requisitos do progresso brasileiro,
ressaltando o papel da educação como elemento estratégico na equação desenvolvimentista.
Nos dois volumes de Expansão Econômica Mundial, Itiberê da Cunha tenta
condensar, depois de ter participado como delegado oficial do Brasil nos congressos de
“expansão econômica” do Rio de Janeiro (1905), de Mons (1906) e de Liège (1907), seus
“estudos e observações que, de longa data, temos feito sobre os palpitantes problemas
econômicos que atualmente preocupam as classes pensantes e dirigentes, empenhadas em dar-
lhes uma solução mais prática para o maior desenvolvimento da fortuna pública e expandi-la
para além das fronteiras nacionais” (vol. 1, Prefácio, p. vii). A trajetória diplomática de
Brazílio Itiberê da Cunha e a importância de sua contribuição intelectual em várias outras
vertentes da vida cultural brasileira – como sua rica produção musical, por exemplo – já

239
foram devidamente redescobertas e enfatizadas por um colega, Celso de Tarso Pereira,1 o que
me permite concentrar a atenção em sua reflexões comparadas sobre as causas do atraso
econômico e social brasileiro, como registradas na obra em questão.
Nos dois volumes de Expansão Econômica Mundial, Itiberê discorre sobre o processo
de crescimento econômico nos mais diversos países, com destaque para os mais avançados,
mas ele têm o cuidado de iniciar sua obra pela necessidade da educação do povo, em especial
da instrução comercial, como forma de se promover o progresso econômico e social de
economias atrasadas como a do Brasil. O manual de um país novo como o Brasil, diz Itiberê,
“deve ser antes O Império dos Negócios, do filantropo milionário Andrew Carnegie, do que as
Pandectas ou o Corpus Iuris, acompanhando assim o crescente movimento de expansão
econômica das principais potências, que nos precederam em civilização, graças, sobretudo, à
superioridade do seu ensino técnico-profissional, hoje reconhecido com razão, o verdadeiro
complemento obrigatório do ciclo de estudos elementares...”.2
Apoiado nas ideias do filósofo argentino Juan Bautista Alberdi, também diplomata,
Itiberê da Cunha ressalta que “a primeira dificuldade da América do Sul para escapar da
pobreza é que ignora sua condição econômica, com a persuasão de que é rica e por causa
desta persuasão vive pobre, porque toma como riqueza o que não é senão instrumento para
produzi-la” (ou seja, os recursos naturais abundantes nesses países).3 O diplomata brasileiro
formula uma questão que poderia resumir, basicamente, a atitude contemplativa das elites
brasileiras em face do problema essencial do desenvolvimento econômico, por ele assim
respondida e plenamente válida ainda hoje: “por que somos uma nação sumamente pobre? A
razão é simples: quando afirmamos que o Brasil é um país riquíssimo, confundimos riqueza
com instrumento ou fator de riqueza. [Esquecemos] que a riqueza capaz de produzir não está
produzida, e que o solo e o clima, que consideramos riquezas, não são mais que instrumentos
para produzir riqueza nas mãos dos homens, que é o produtor imediato, pela força destes dois
processos humanos — o trabalho e a economia, ou a conservação e guarda do que o trabalho
produziu”.4

1
Cf. Celso de Tarso Pereira, Ritmos de uma vida: Brazílio Itiberê, músico e diplomata (Brasília:
Instituto Rio Branco, 1996, monografia apresentada na disciplina Leituras Brasileiras), trabalho
resumido no artigo “Brazílio Itiberê da Cunha, músico e diplomata”, Boletim ADB (Brasília: ano IV,
nº 29, 09.10.1996, p. 18-22). Ver igualmente o capítulo de Pereira, sobre Itiberê, na obra coletiva
coordenada por Alberto da Costa e Silva, O Itamaraty na Cultura Brasileira (Brasília: Funag, 2001;
São Paulo: Francisco Alves, 2002).
2
Cf. Brazílio Itiberê da Cunha, Expansão Econômica Mundial, op. cit., 1o. vol., p. 154-5.
3
Idem, Cunha, Expansão, 2o. vol., p. 267.
4
Idem, p. 267-68.
240
Essa concepção do “valor-trabalho” e, mais ainda, do poder da inteligência e da
tecnologia eram dificilmente aceitas pela oligarquia cafeeira do começo da República, como
tinham sido persistentemente ignoradas pela aristocracia “fisiocrática” do regime imperial.
Itiberê classifica como “fenômeno vulgaríssimo” o fato de no Brasil se considerar como
revestidos de prestígio especial aqueles que detinham diplomas de doutor ou de bacharel,
ecoando nesse particular críticas que, naquele mesmo momento, se faziam na Câmara de
deputados aos “bacharéis presunçosos” da diplomacia brasileira: “O ser bacharel em direito,
como quase toda gente o é hoje em dia, constitui presunção legal de saber: daí vem que, livres
da obrigação dos exames, muita gente penetra na diplomacia, vazia de conhecimentos e
abarrotada de presunção. Em regra, a diplomacia é procurada pelos indivíduos de alguma
fortuna e infelizmente no Brasil os ricos não são os mais estudiosos”.5
Ao completar-se um século de sua primeira e única edição, a obra constitui, ainda
hoje, um manancial de conselhos utilíssimos aos homens de Estado do Brasil e da América
Latina, sempre tão propensos a encontrar em fatores externos as razões do
subdesenvolvimento de seus países. Pela riqueza de seus argumentos, pela clarividência de
suas posições, pioneiras e, de fato, antecipatórias, o livro de Itiberê mereceria ser reeditado,
provavelmente em formato resumido, extirpando-o de comentários puramente circunstanciais,
mas retendo seus ensinamentos ainda válidos, nos dias que correm. Talvez as “classes
pensantes e dirigentes” disponham, hoje, de indicadores econômicos e de “ferramentas” de
políticas macroeconômicas e setoriais que não estavam ao alcance de suas congêneres de um
século atrás, mas muitos dos problemas brasileiros permanecem teimosamente os mesmos –
como a má educação da população, por exemplo –, enquanto outros se acumulam na
indiferença dos seus sucessores, como os “monopólios de Estado” e o “mercantilismo
político”, ambos condenados por Itiberê. Censurando, ainda, os acordos comerciais baseados
na estrita reciprocidade, ele confiava em que “a política liberal há de triunfar um dia” (vol. 2,
p. 81). Talvez, mas a luta continua...

Brasília, 7 de agosto de 2007.


Publicado na Revista Acadêmica Espaço da Sophia
(Tomazina, PR: ano I, n. 8, novembro de 2007, p. 1-4; ISSN: 1981-318X).
e, em versão resumida, no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros
(ano XIV, n. 59, outubro-dezembro de 2007, p. 28-30).

5
Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 2.09.1891, apud Clodoaldo Bueno, A República e sua
Política Exterior, 1889-1902 (São Paulo: Editora da UNESP; Brasília: FUNAG, 1995), p. 56.
241
Jânio Quadros, diplomata

Carlos Alberto Leite Barbosa:


Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros
(São Paulo: Atheneu, 2007, 352 p.)

O governo do imprevisível Jânio Quadros durou exatos 205 dias, de janeiro a agosto
de 1961, mas foi provavelmente um dos mais “empolgantes” – qualquer que seja o sentido
que se dê à palavra – que a história política do Brasil conheceu. A sua diplomacia também
ficou inacabada, muito embora a “política externa independente” tenha tido continuidade no
governo João Goulart e depois, em pleno regime militar, com a renovação operada nas
prioridades diplomáticas a partir de Geisel.
O jovem diplomata Leite Barbosa, formado em 1959, acompanhou o errático
presidente enquanto espectador privilegiado, lotado no seu gabinete do começo ao fim, ou
mesmo antes, pois que participou da campanha eleitoral. O livro, bem pesquisado e
recuperando no “baú” da memória fatos e pessoas que a história documentada não registrou,
oferece uma contribuição excepcional ao estudo da política externa do sisudo chefe de Estado,
contraditório nas ações e surpreendente nas palavras. São reproduzidos alguns dos seus
famosos “bilhetinhos”, tão difíceis, ao Itamaraty, de cumprir quanto, na verdade, entender.
Um livro de um verdadeiro insider, indispensável, doravante, aos pesquisadores do
período.

Brasília, 27 de agosto de 2007


Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA, n. 35, setembro de 2007, p. 63)

242
Rui Barbosa, diplomata

Carlos Henrique Cardim:


A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, 350 p.)

O patrono incontestável da diplomacia brasileira é o “sacrossanto” Barão do Rio


Branco, que deve figurar num pedestal do Itamaraty, à direita de Deus Pai, sem qualquer
concorrente à sua esquerda (e nenhum iconoclasta se apresentou até hoje). No entanto, o
famoso Juca Paranhos atingiu a categoria de mito, mais por ter protagonizado algumas bem
sucedidas negociações de fronteiras, numa fase de consolidação dos limites geográficos da
pátria, do que por ter formulado, propriamente, as bases conceituais da moderna diplomacia
brasileira. Por certo, ele sempre é referido quando se trata da escolha sábia de procurar manter
boas relações com o gigante hemisférico, ao mesmo tempo em que se buscava cultivar, numa
boa barganha de equilibrista, nossa interação com a Europa, de maneira a preservar o rico
patrimônio histórico trazido pelos novos imigrantes da fase pós-escravidão. Isso tudo, alertava
o Barão, sem alienar nosso capital de altos e baixos com a Argentina, que ele pretendia o mais
alto possível, desde que garantida a “relação especial” com os EUA da era Teddy Roosevelt,
o tal que recomendava falar macio, mas carregar um grande porrete para convencer os mais
recalcitrantes. Rio Branco nunca o desaprovou, pelo menos explicitamente.
Poucos se dão conta de que Rui Barbosa, o primeiro ministro da Fazenda da
República, deveria ser considerado o “pai intelectual” da moderna diplomacia brasileira: ele
deixou um legado de posições, hoje devidamente constitucionalizadas nos primeiros artigos
da Carta de 1988. Rui nunca foi um diplomata profissional, mas se o fosse, poderia ser
facilmente acomodado, com sua figura esguia e franzina, à esquerda de Deus itamaratiano,
como um legítimo complemento ao redondo Barão. Esta monografia do Embaixador Cardim
comprova que Rui foi muito maior do que o registrado na literatura da nossa política externa,
mesmo sem ter deixado alguma grande obra centrada nessa problemática das relações
internacionais. Aliás, parece incrível, mas Rui não deixou nenhum livro publicado, sobre
qualquer tema, a despeito de suas “obras completas” – na verdade, coletâneas de artigos e
textos diversos – perfazerem 160 volumes, cuidadosamente compilados pela Fundação que
leva no seu nome no Rio de Janeiro. Foi lá que Cardim mergulhou para escrever a mais
completa obra sobre o “diplomata” Rui Barbosa, um orador exímio.

243
Sua obra de ativo “internacionalista” está dispersa em centenas de artigos, pareceres,
discursos, orações e preleções jurídicas, tendo sido jurisconsulto, consultor e advogado das
boas causas: defendeu, por exemplo, o direito da primeira mulher que passou no concurso do
velho MRE a ingressar na carreira diplomática, numa fase de misoginia explícita contra as
poucas e corajosas candidatas. Sua mais importante ação diplomática está contida em
telegramas, na condição de chefe da delegação à segunda conferência internacional sobre a
paz mundial, realizada na Haia em 1907. Ele fez uma “dobradinha” de alta qualidade com o
Barão, que trocava frequentes impressões com ele, em telegramas cifrados, sobre os rumos
dessa conferência e as posições que o Brasil deveria mais convenientemente adotar, em face
do verdadeiro monopólio que as grandes potências exerciam sobre a agenda internacional.
Cardim selecionou os expedientes e organizou um dossiê abrangente sobre a atividade e o
pensamento de Rui em temas internacionais, numa obra que já nasce clássica, se a distinção
pode ser aplicada por um simples resenhista.
Sua importância não parece ter sido reconhecida na diplomacia brasileira até
recentemente, quando uma sala, com o seu nome, foi inaugurada no novo palácio dos Arcos
em Brasília, bem mais conhecido como Itamaraty. Curioso que, a despeito da preeminência
do Barão nos anais da Casa, nenhuma de duas pesquisas recentes sobre as grandes
personalidades da história brasileira colocou Juca Paranhos entre os cinco primeiros. Em
ambas, figura Rui; numa delas em primeiro lugar, um justo reconhecimento pelo seu mérito
de verdadeiro modernizador do Brasil, desde cedo um opositor da tutela militar que insistiu
em preservar o poder moderador durante a maior parte da República. Cardim nos traz aqui
não exatamente o tribuno civilista e defensor da legalidade democrática, mas o defensor da
igualdade soberana das nações, que ocupa lugar de destaque na moderna diplomacia
brasileira. Poucos são os textos conhecidos dessa vertente diplomática do famoso jurista
baiano, que aqui aparecem pela primeira vez resumidos e interpretados por um diplomata
bibliófilo, que também é um acadêmico exemplar e um dos grandes editores de livros
acadêmicos já conhecidos na história editorial brasileira.
O livro ainda traz belas imagens de época – fotos e uma saborosa iconografia com
charges dos mais famosos humoristas brasileiros de um século atrás – e anuncia, além de
tudo, novos volumes sobre Rui Barbosa, internacionalista brasileiro, que a Fundação que leva
o seu nome publicará. Mas este, já é um livro de coleção...

Buenos Aires, 6 de janeiro de 2008.


Inédito em versão integral. Publicado em versão resumida na revista Desafios do
Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 5, n. 39, janeiro 2008, p. 62)
244
Abrir os portos, foi só o começo...

Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (organizadores):


A Abertura dos Portos
(São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2007, 352 p.; ISBN: 978-85-7359-651-9)

Duzentos anos de administração do Brasil a partir do Brasil, depois de trezentos anos


de colonização pela metrópole portuguesa, são sempre motivo de comemorações, o que as
editoras não deixarão obviamente de aproveitar. A Planeta saiu na frente, ainda em 2007, com
o ensaio de leve leitura (mas muito bem pesquisado) de Laurentino Gomes, 1808. A Senac-SP
veio logo em seguida, com a organização, também em 2007, de um seminário do qual
resultou este livro binacional, organizado a quatro mãos por um engenheiro civil português e
um embaixador brasileiro, contendo doze estudos de alta densidade histórica por parte de um
coletivo de especialistas na história portuguesa e brasileira. Mas A Abertura dos Portos vai
muito além de seu título reducionista.
Trata-se de uma balança equilibrada: seis autores portugueses e seis brasileiros. O
organizador português lembra, já de partida, que dizer que a abertura dos portos visou ao
comércio com as nações amigas é uma formulação muito ampla: “O que ela, de fato,
autorizou foram as relações comerciais com a Inglaterra.” É o que confirma o organizador
brasileiro, num denso texto que aborda o contexto diplomático da decisão da abertura dos
portos no que se refere às complicadas relações com a Inglaterra, com a França, os Estados
Unidos e outras potências, não só em relação aos antecedentes imediatos da medida, mas
igualmente no que tange à negociação dos tratados de 1810. Ricupero finaliza evidenciando o
que ele considera serem os pontos de contato entre esses tratados e o projeto da Alca,
proposta pelos Estados Unidos: um deles seria o “liberalismo enganoso”, discriminando
contra outros parceiros; outro é a falta de reciprocidade, com a exclusão de produtos
competitivos brasileiros do mercado da parte mais forte; o terceiro seria o tratamento especial
reservado aos investidores estrangeiros em caso de disputas comerciais.
Carlos Guilherme Mota comparece logo em seguida, com uma revisão do ciclo que
vai da era pombalina até o final do Primeiro Império (1750-1831): dos diversos “Brasis” do
antigo Império colonial português, ao Império brasileiro unificado, é um percurso que vê o
Brasil figurar pela primeira vez no concerto das nações. O português Valentim Alexandre
retoma a análise do alvará de abertura dos portos e dos tratados de 1810, confirmando sua
total assimetria e os problemas fiscais deles derivados, em ambos aspectos totalmente
245
desfavoráveis a Portugal e ao Brasil. As imigrações para o Brasil são o tema da portuguesa
Ângela Domingues, que retraça as iniciativas joaninas para o estabelecimento de um fluxo
migratório sueco (em Sorocaba, mas temporário) e de um suíço (em Nova Friburgo), que se
estabeleceu de forma mais consolidada.
O brasileiro Francisco Alambert examina o período do ponto de vista das artes e da
cultura, com foco na chegada da Missão Artística Francesa, em 1816. Se o poder econômico
estava indiscutivelmente com a Inglaterra, o Brasil sempre respirou cultura pelo lado francês,
numa importação direta, cuja figura principal é Debret. O português José Luiz Cardoso refaz a
evolução das ideias econômicas na época, com a absorção entusiasta das de Adam Smith, em
particular através de José Maria Lisboa, cuja obra em defesa da liberalização do comércio,
Observações sobre o comércio franco no Brasil (a primeira a ser impressa no Brasil, pela
Imprensa Régia, ainda em 1808), é examinada com lucidez.
O uspiano Lincoln Secco segue o percurso das ideias liberais, no Brasil e na península
ibérica, no meio século até 1851: ele considera que houve uma revolução burguesa
“incompleta” em Portugal, ao velho estilo que ainda vigora: “fazer reformas para evitar
revoluções”. O português Eugénio dos Santos segue a carreira acadêmica, científica e militar
do nosso “Patriarca da Independência”, José Bonifácio, aspectos que em geral ficaram em
segundo plano na historiografia tradicional. Ele tinha de se dividir entre seus cursos na
Universidade de Coimbra, uma assessoria na Casa da Moeda em Lisboa e prospecções
minerais em todo o país: considerava os seus colegas de Coimbra “enfatuados, vaidosos e
possuidores de um saber apenas livresco e oco de significado”. Na invasão francesa, ele
tomou armas, primeiro como sargento nos “Voluntários Acadêmicos”, depois como major no
Corpo Acadêmico. Quando parte ao Brasil, em 1819, já com 56 anos, era um estadista
experiente.
Este que aqui escreve assina um artigo autoexplicativo, chamado “A formação
econômica brasileira a caminho da autonomia política: uma análise estrutural e conjuntural do
período pré-independência”, uma análise do contexto econômico colonial e da gradual
emergência de uma economia voltada para a acumulação interna, no contexto das relações
econômicas internacionais e dos processos de transformação do sistema econômico no início
do século XIX. A pernambucana Maria Leda Oliveira da Silva, em “Aquele imenso Portugal:
a transferência da corte para o Brasil (séculos XVII-XVIII)”, lembra que frei Vicente do
Salvador já tinha defendido, em 1630, a ideia da transferência da corte para o Brasil. A
transferência da corte, em 1808, responde, ademais, a projetos políticos antigos, anteriores à
restauração (1640): D. João VI, quando estabelece o Reino Unido (1816), retoma a esfera
246
armilar, símbolo da expansão ultramarina dos tempos de D. Manuel, no sonho de transformar
a América num imenso Portugal.
O português Jorge Couto, já conhecido entre nós por sua tese da descoberta do Brasil
em 1498, por Duarte Pacheco Pereira, trata da delimitação das fronteiras do Brasil, de D.
Manuel I a D. João VI, ou seja, da descoberta até a união dos reinos, com destaque para o
Tratado de Madri, que alargou nossas fronteiras. Finalmente, os “santistas” José Rodrigues e
José Pascoal Vaz acompanham 200 anos de transformação socioeconômica dos portos
brasileiros, seu crescimento e problemas atuais, sobretudo no que se refere à mão-de-obra.
Em suma, trata-se de vasta obra coletiva que vai muito além da simples abertura dos
portos, em 1808. Uma rica iconografia ilustra este livro, que fica como um marco
comemorativo destes dois séculos desde o alvará “libertador do comércio”. Tempo de retomar
o processo, seguramente...

Brasília, 15 de fevereiro de 2008.


Publicado em formato reduzido na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA; ano 5; n. 40, fevereiro de 2008, p. 63)

247
Contos fantásticos, mas assustadoramente normais

Geraldo Holanda Cavalcanti:


Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos
(Rio de Janeiro: Record, 2007, 188 p.)

A maior surpresa destes contos fantásticos do escritor, poeta, tradutor laureado e


diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti é a de que eles são, efetivamente, fantásticos, em
qualquer sentido da palavra. Mas, ao mesmo tempo, eles são... assustadoramente normais.
Com isso quero dizer que os contos se situam naquela zona do irreal, ou do surreal,
que povoa nossas mentes, sem deixar, um único segundo, o chão de terra batida que nos liga à
existência cotidiana mais banal do mundo. Ou seja, o fantástico aqui não se prende à
fenômenos paranormais, a seres de outro mundo, a dimensões inexplicáveis da realidade, ou à
intervenção de algum poder externo que atuaria independentemente da vontade dos
personagens, como se vê habitualmente na chamada “literatura fantástica”. Aqui não: estamos
em face de personagens e de situações absolutamente normais, no sentido mais corriqueiro da
palavra, pessoas e casos que poderiam frequentar nosso escritório de trabalho, eventos que
poderiam estar se desenvolvendo nas esquinas do nosso bairro, “coisas”, por vezes prosaicas,
que poderiam ocorrer em nossas próprias vidas. Pessoas, enfim, que poderiam ser nós
mesmos. É a isso que me refiro quando classifico estes “contos fantásticos” de
“assustadoramente normais”.
A rigor, o único “intruso externo” que poderia aproximar um dos contos do termo
fantástico na acepção mais frequente dessa expressão seria a misteriosa força, inexplicável,
que impede o personagem de “O violinista”, detentor de um excelente violino húngaro, de
tocar a Tzigane de Ravel. Neste caso, o violino, não o violinista, mereceria seu
enquadramento na categoria de “fantástico”. De resto, todas as demais situações
inverossímeis, inexplicáveis, surpreendentes, enfim, fantásticas, que povoam estes contos são
absolutamente corriqueiras, até banais, na vida de cada um de nós, mas o resultado é sempre
uma surpresa, sem que se consiga, no começo de cada conto, prever o seu final. Tentei várias
vezes “adivinhar” o que viria a ocorrer com o personagem de cada conto, que geralmente é o
próprio narrador, sem sucesso porém: o final é sempre uma total surpresa, e nisso também
reside o caráter fantástico destes excelentes contos de Geraldo Holanda Cavalcanti.
Esse caráter surpreendente dos contos “semi-fantásticos” do poeta e ensaísta
consagrado faz com que seja difícil largar um conto uma vez iniciada a sua leitura. A chave

248
talvez esteja, precisamente, no fato de que o personagem, salvo uma ou outra exceção, nunca
é alguém externo, mas é sempre o próprio narrador, isto é, nós mesmos, à condição de nos
identificarmos com ele: um cidadão normal, de idade média, trabalhador, viajante, jornalista,
homem de família ou de situação indefinida, mas em todo caso perfeitamente encontrável na
nossa vida diária. Nisso Geraldo Holanda Cavalcanti preenche integralmente os requisitos da
literatura fantástica tal como explicitados por Tzvetan Todorov, que ele coloca em destaque
na abertura de sua coleção de contos: o leitor é obrigado a considerar o mundo dos
personagens como um mundo de criaturas vivas, ele se identifica com um dos personagens,
geralmente o narrador, e ele recusa uma interpretação poética ou alegórica do texto.
Assim, cada uma das situações vividas pelos diversos personagens dos 18 contos aqui
selecionados é, aparentemente, banal, corriqueira e surpreendentemente fantástica. Em vários
casos, tudo pode ter ocorrido apenas na mente do personagem principal, povoada de
“fantasmas” que podem ter efetivamente existido e interagido consigo e com todas as demais
pessoas; em outros casos, os “fatos” ocorreram com outros personagens e o narrador é um
mero espectador do inexplicável, situação essa que se situa, entretanto, inteiramente dentro do
domínio do plausível e do possível.
Contos verdadeiramente fantásticos, acredite caro leitor, não são aqueles que nos
enviam a uma dimensão surreal, geralmente assustadora ou “aterrorizante”, de uma existência
qualquer, eventualmente a nossa própria. Eles são tão mais cativantes quanto despertam em
nós a sensação de que aquilo poderia estar ocorrendo com nós mesmos, numa dessas
situações corriqueiras da vida. E o mais atraente, na escrita de Geraldo Holanda Cavalcanti, é
a fluidez do texto, a palavra atraente e certeira, mesmo quando ela transmite toda a
ambiguidade de uma situação, e suas palavras geralmente o fazem, transmitindo essa situação
de “desconforto” e de “incerteza” com o que pode vir a ocorrer com o personagem principal,
nisso atiçando nossa curiosidade para que logo cheguemos ao final do conto. Eles se leem,
assim, rapidamente, mas a impressão que nos fica é permanente: “caramba!, é verdade, como
é que isso pôde ocorrer?”
Com tudo isso fica a sensação de “quero mais”. A vontade que dá, ao encerrar o livro,
é a de pedir ao autor que continue a nos enfeitiçar com os seus, novos, contos fantásticos,
assustadoramente normais...

Brasília, 16 de fevereiro de 2008.


Publicada em versão resumida na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA, ano 5, n. 41, março 2008, p. 63)

249
Interesse Nacional: uma nova revista

Rubens Antonio Barbosa, editor:


Revista Interesse Nacional
(São Paulo: n. 1, abril de 2008; http://interessenacional.uol.com.br/)

Em países marcados pela luta entre partidos, com agendas cheias de reformas
inacabadas, definições do que seja, exatamente, o interesse nacional são tão diversas quanto
os grupos que disputam o poder e buscam mobilizar o apoio da sociedade para suas
plataformas nem sempre consensuais para todas as classes e setores nacionais.
O surgimento de uma revista que pretende discutir questões relevantes, sem partir de
uma definição pré-concebida do que seja o interesse nacional, deve ser saudada como um
bem-vindo aporte intelectual ao debate público em torno das grandes questões da agenda
nacional. Os editores da nova revista, Rubens Antonio Barbosa e Sérgio Fausto, dizem, na
introdução que a revista não defenderá uma única visão, “não promoverá convergências de
opiniões”. “Seu único compromisso é com o debate qualificado de ideias e com a relevância
das questões, na interseção entre assuntos domésticos e assuntos internacionais”.
Contando com um conselho editorial de 24 membros, de esquerda e de centro (já que
ninguém, neste país, se reconhece como de direita), a revista explicita, em seu primeiro
número, um problema atual: Rubens Barbosa dá a partida criticando a política externa para a
América do Sul, focando a questão do ingresso da Venezuela no Mercosul. O tema é em
seguida defendido pelo assessor de assuntos internacionais da Presidência da República,
Marco Aurélio Garcia, que justifica a “opção sul-americana” da atual diplomacia presidencial.
Comparecem a seguir dois defensores de visões opostas sobre o que constitui o
interesse nacional na atualidade brasileira: Gustavo Franco trata da inserção externa e do
desenvolvimento brasileiro, registrando o que ele chama de “consenso envergonhado”, isto é,
a adesão dos atuais mandatários – não às ideias, mas – às práticas econômicas dos seus
antecessores, responsáveis pela estabilização do Plano Real e pela abertura da economia. Luiz
Gonzaga Belluzzo ataca, por sua vez, o que ele chama de “mitos do consenso liberal”,
destacando a “mão visível” do Estado na competição capitalista. Na verdade, ele mesmo
reconhece que as antigas oposições excludentes – Estado vs. mercado, integração
internacional vs. políticas nacionais – “não são perspectivas incompatíveis” e conclama à
superação de “falsas dicotomias”, em prol de uma “nova relação entre o Estado e o setor
privado em termos mais favoráveis ao desenvolvimento do país”.

250
O embaixador Everton Vargas, encarregado de temas ambientais no Itamaraty,
apresenta a visão oficial sobre as negociações em torno das mudanças climáticas, mas este
primeiro número não traz nenhuma posição alternativa sobre os desafios a serem ainda
vencidos para que o chamado “desenvolvimento sustentável” deixe o campo da retórica
diplomática. O professor de direito Joaquim Falcão aborda a difícil questão da reforma do
judiciário, destacando o que ele designa de “uso patológico” do Judiciário pelo Executivo,
com uma quase completa estatização da pauta do primeiro pelo segundo poder. Ele demonstra
como grande parte dos recursos e agravos que chegam ao Supremo se referem a casos
envolvendo servidores públicos e militares. Isto se dá, segundo ele, porque o Brasil “é um dos
únicos países do Ocidente – se não o único – onde a Constituição trata do servidor público em
tantos dispositivos – são 62 (!), entre títulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas...” Em
outros países, se trata de matéria infraconstitucional.
O ex-diretor da Radiobras Eugênio Bucci discute a razão de ser das emissoras
públicas, perguntando se o Brasil precisa disso. Ele considera que a TV pública só se justifica
se for capaz de melhorar os processos democráticos, a geração de cultura, a diversidade, a
inclusão social, e se elevar o nível de fundamentação das decisões políticas tomadas direta ou
indiretamente pelos cidadãos. O último artigo trata do fantasma da “internacionalização do
ensino superior”, recentemente atacada por ninguém menos que o secretário de ensino
superior do MEC. Cláudio de Moura Castro demonstra que se está fazendo barulho por nada,
que esse “perigo” é inexistente ou irrisório, mas que se ele existisse, de verdade, seria um
bem-vindo impulso à maior inserção externa das nossas instituições do terceiro ciclo. O
perigo maior, na verdade, é o isolacionismo no qual vivem a maior parte das universidades:
“o Brasil se encolhe e teme as influências alienígenas no seu ensino”. O que de melhor
ocorreu com o nosso ensino superior, lembra ele, foi a “horda de mestres e doutores que
retornaram das melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa”, trazendo novos
ares, metodologias inovadoras, reforçando a pesquisa em pós-graduação. O problema é que
essa abertura não alcançou a graduação: “Precisamos ventilar as ideias mofadas que esmagam
nossos cursos de graduação. Nesse sentido, a internacionalização é mais do que bem-vinda. O
influxo de experimentos e ideias de outros países poderia ter um papel relevante para arejar
nosso ensino”. Talvez a UNE não concorde...

Brasília, 13 de abril de 2008.


Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA, ano 5, n. 43, maio 2008, p. 62).

251
O império em ascensão (por um de seus espectadores)

Manoel de Oliveira Lima:


Nos Estados Unidos, Impressões políticas e sociais
(Brasília: Senado Federal, 2009; 424 p.; edição original: 1899)

Atenção: este livro contém cenas explícitas de racismo, registra manifestações de


apoio ao colonialismo europeu e demonstra simpatia, quando não conivência, com o
imperialismo americano. Mas não se assuste, caro leitor: não estou condenando o livro ab
initio. Estou apenas registrando o que poderia escrever a respeito desta obra algum acadêmico
progressista, adepto do estilo “politicamente correto” que passou a infestar as universidades
do mundo inteiro a partir de sua matriz americana. A esse título, algumas das “impressões” de
Oliveira Lima sobre o país que conheceu quando serviu como secretário da legação em
Washington, na última década do século XIX, são altamente incorretas, pelo menos nas
passagens que têm a ver com a questão racial, com o colonialismo europeu e com a expansão
da “nova Roma” imperial.
O livro apresenta conceitos “chocantes” a propósito dos negros americanos, ao mesmo
tempo em que o autor se mostra complacente em relação à crescente projeção imperial dos
EUA. No entanto, seria propriamente anacrônico selecionar frases de Oliveira Lima para um
“julgamento” contemporâneo, uma vez que toda obra desse gênero deve ser avaliada no
contexto histórico e ideológico que a viu nascer. Desse ponto de vista, este livro de ensaios
sobre a emergência econômica e geopolítica dos EUA representa um retrato fiel da potência
em construção. Em outros termos: o livro é inteiramente compatível com o Zeitgeist de
quando foram escritos os ensaios que o compõem, mais de um século atrás. Ele recolhe as
“impressões político-sociais”, mas também o perfil histórico e o itinerário econômico do
então nascente “império”, observações recolhidas ao longo dos anos nos quais serviu em
Washington o historiador pernambucano – de formação portuguesa – e iniciante na
diplomacia.
As afirmações de Oliveira Lima de apoio implícito à projeção imperial dos EUA, sua
complacência com o colonialismo ocidental na Ásia, na África e em partes do próprio
hemisfério americano e mesmo as frases de indisfarçável tolerância para com o racismo são o
“imposto” a pagar pelo fato de terem sido feitas numa época em que tais manifestações do
pensamento não apareciam como especialmente chocantes, e sim como expressões quase
“normais” da mentalidade de seu tempo. A ideologia dominante na época se caracterizava

252
pelo evolucionismo à la Herbert Spencer, pelo darwinismo social – que, obviamente, distorcia
completamente o sentido original da teoria da seleção natural, convertida em “sobrevivência
dos mais fortes” –, pela ideia de que as civilizações mais avançadas tinham de imprimir a
marca do “progresso” naquelas que ainda não tinham conseguido chegar à era industrial.
Doutrinas, enfim, que afirmavam a superioridade natural da raça branca sobre os povos
primitivos e as sociedades atrasadas. Os povos anglo-saxões tinham o dever moral de
contribuir para a elevação espiritual dos países periféricos, trazendo-os para o coração da
civilização industrial.
Este livro, que aproveita escritos de 1896 a 1899, publicados originalmente na Revista
Brasileira e no Jornal do Comércio (e que vem datado de Washington, em 11 de maio de
1899, embora impresso originalmente nesse mesmo ano, em Leipzig), constitui um apanhado
de comentários sociológicos (alguns deles impressionistas) sobre as razões do progresso
americano, no confronto com o atraso brasileiro. De fato, ao escrever sobre os Estados
Unidos, Oliveira Lima estava, na verdade, pensando no Brasil, como ele mesmo revela já na
introdução: “No Brasil fala-se ou muito bem ou muito mal dos Estados Unidos. Apontam-nos
os seus admiradores como o único modelo a seguir..., o melhor figurino a copiar nos mais
ligeiros pormenores, sem cogitarem da diferença dos meios, das respectivas tradições
nacionais e dos costumes de cada povo. Os seus detratores culpam-nos de todos os crimes,
desde a ambição devoradora de terras e de nacionalidades, até a corrupção política e social
mais desbragada.” O próprio Oliveira Lima não escondia sua opinião: “À parte os exageros
do fanatismo, a verdade está incomparavelmente mais com os primeiros.” Ele confessava,
talvez com pouco senso crítico, que pretendia ver o Brasil seguir o exemplo do “grande país
americano... no ingente progresso material, (...) no seu discernimento dos males da
demagogia, na tolerância, na paixão pelo estudo, na energia individual, na vontade
perseverante de atingir a perfeição.”
Foi Oliveira Lima quem deu início aos exercícios comparativos da longa série de
reflexões críticas que os intelectuais brasileiros do século XX efetuariam sobre as causas do
baixo desenvolvimento nacional, no confronto com a pujança dos EUA. Corrente, esta, que
seria continuada por figuras como Monteiro Lobato e que encontraria em Bandeirantes e
Pioneiros, de Vianna Moog, sua mais perfeita expressão weberiana. Ele o fez a partir de sua
atenta observação das realidades americanas, colocando-as inclusive em comparação com o
que já conhecia do velho continente: “Na América do Norte apoderou-se de mim, e a breve
trecho converteu-se numa quase obsessão, uma forte impressão do nosso atraso, que na
Europa eu nunca havia experimentado, acostumados como justamente andamos a considerá-la
253
um antiquíssimo campo de experiências e de progressos. Do outro lado do Atlântico, porém,
num país de civilização tão moderna quanto o Brasil, a comparação impõe-se
irresistivelmente, em nosso grave desabono...”.
Oliveira Lima oferece, portanto, sua interpretação dos Estados Unidos. Mas a sua
visão é a do intelectual preocupado primariamente com o Brasil: “eu apenas olhei para os
Estados Unidos com olhos de brasileiro, a saber, constantemente buscando o que de
aproveitável para nós poderia a meu ver resultar do exame e da confrontação”. Ele registra
sua “impressão de melancolia pelo muito que os Estados Unidos têm alcançado, e pelo pouco
que nós temos relativamente feito.” O rotundo diplomata – que mais tarde seria chamado de
Dom Quixote Gordo por Gilberto Freyre – poderia, legitimamente, ser considerado como o
primeiro, ou mesmo como “o” founding father dos americanistas brasileiros, não fosse pela
precedência histórica do chamado “pai da imprensa brasileira”.
Com efeito, um século à frente de Oliveira Lima, Hipólito José da Costa (antes de se
estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio
Braziliense) viajou pela costa leste dos Estados Unidos a serviço do futuro Conde de
Linhares, tendo produzido um relatório sobre suas observações agrícolas, industriais e
botânicas naquele país. O jovem (24 anos) português nascido na Colônia do Sacramento e
criado em Rio Grande, escreveu também um Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-
1799, que não pode ser propriamente considerado um estudo de especialista, mas que é
certamente a primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um
observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana as espécies vegetais e
animais e os melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento
de sua pátria de fato.
Exatamente um século depois de Hipólito da Costa, como resultado de mais de três
anos de suas próprias observações e andanças, Oliveira Lima fixava nos ensaios recolhidos
neste livro suas impressões políticas e sociais a respeito da extraordinária expansão então
experimentada pela já poderosa nação do Norte. Ao elaborar uma visão própria sobre a
pujança da potência norte-americana, ainda nos tempos de Cleveland e McKinley, o
historiador consolidou mais tarde sua análise das razões do “sucesso” americano,
comparativamente ao “fracasso” das ex-colônias ibéricas, em outros escritos sociológicos, a
partir de visitas aos EUA, numa era de triunfalismo rooseveltiano e wilsoniano. Assim foi
que, uma década e meia após seu primeiro exercício americanista, Oliveira Lima coletou a
série de lectures que ele proferiu em universidades dos Estados Unidos no volume The
Evolution of Brazil Compared with that of Spain and Anglo-Saxon America (1914), publicado
254
no Brasil como América Latina e América Inglesa: a evolução Brasileira comparada com a
Anglo-Americana. Tratou-se, neste caso, de uma abordagem essencialmente histórica, na qual
ele não deixou de consignar comentários de caráter sociológico sobre as diferentes vias de
desenvolvimento político, social e econômico seguidas nas diversas partes do hemisfério, com
a inevitável deferência às teorias racialistas então em voga.
Em suas memórias, Oliveira Lima lembraria que aprendeu bem mais sobre os EUA
durante os meses como lecturer em doze universidades americanas, em 1912, e nos seis
meses nos quais ele foi professor em Harvard, em 1915 e 1916, do que nos três anos
anteriores em Washington como Secretário de Legação. Na então rarefeita bibliografia
americana sobre o Brasil e também brasileira sobre os Estados Unidos, Oliveira Lima aparece
como uma ponte intelectual entre os dois países, exemplo, aliás, pouco replicado no decorrer
do século XX. Ele continuaria, mais tarde, suas reflexões histórico-sociológicas, ao colaborar,
desde a sua fundação, em 1918, com a Hispanic American Historical Review, criada por
historiadores da American Historical Association dedicados ao estudo da América Latina.

Nas suas primeiras “impressões” dos EUA, Oliveira Lima oferece análises pessoais
sobre diferentes aspectos da vida americana e da política externa daquele país; mas os ensaios
vêm sempre sustentados na bibliografia disponível em sua época e em materiais oficiais do
país. Os problemas selecionados são os que ele acredita possam apresentar relevância para o
Brasil, como ele próprio explica na introdução: “busco nos diferentes capítulos em que se
divide o volume – o problema negro, a imigração, a política externa, as virtudes nacionais, a
influencia feminina, o catolicismo americano, o figurino político – senão tratar, pelo menos
apresentar as questões que mais diretamente nos interessam ou nos dizem respeito, e cuja
solução ou aspecto nos Estados Unidos é capaz de oferecer-nos ensinamento.” (...)
No plano mais específico das comparações que poderiam ser feitas com o caso do
Brasil, a recomendação a ser feita é que este livro seja lido em paralelo com as lectures feitas
por Oliveira Lima em universidades americanas mais de uma década depois: The Evolution of
Brazil Compared with that of Spain and Anglo-Saxon America (Stanford, California
University Press, 1914, edited with introduction and notes by Percy Alvin Martin; com uma
edição brasileira inclusive antecipando sobre a americana: América Latina e América inglesa:
a evolução Brazileira comparada com a Hispano-Americana e com a Anglo-Americana; Rio
de Janeiro: Garnier, s.d.[1913]; o livro foi objeto de nova edição americana: New York:
Russell and Russell, 1966). As razões do avanço americano e as do nosso atraso relativo já

255
estavam inseridas, por assim dizer, nas estruturas da colonização desde vários séculos antes.
(...)
Oliveira Lima nos ajuda a ver, embora com argumentos que hoje tendem a ser
desconsiderados como “politicamente incorretos”, os fatores responsáveis por nosso lento
desenvolvimento material e sobretudo educacional. Vale a pena percorrer estas páginas e
constatar o que mudou e, em especial, o que não mudou, tanto nos EUA, como no Brasil
desde um século aproximadamente. As lições podem não ser todas agradáveis, mas elas são
certamente instrutivas...

Brasília, 18 de abril de 2008.


Excertos do capítulo introdutório.

256
O Mercosul na sua fase ascendente (talvez única)

Renato L. R. Marques
Mercosul 1989-1999: depoimentos de um negociador
(Kiev: s.e., 2008, 280 p.; ISBN: 978-966-171-170-1)

Trata-se de uma edição de autor: uma coleção de artigos, de entrevistas ou de


depoimentos feitos pelo diplomata gaúcho durante o período em que ele ocupou,
sucessivamente, os cargos de chefe da Divisão Econômica Latino-Americana do MRE, de
Secretário de Comércio Exterior do MDIC e de chefe do Departamento de Integração do
MRE, entre 1989 e 1999. São duas dúzias de textos, cada um trazendo a data e o local de sua
publicação ou “emissão” (no caso de depoimentos gravados), mas não, infelizmente, as
circunstâncias e o contexto no qual foram produzidos. A produção amadora explica, assim,
alguns dos problemas formais da obra, mas que em nada diminui o interesse para os aspectos
substantivos dos temas tratados.
O autor ficou devendo uma introdução geral e talvez uma divisão temática, ou por
seções, de molde a situar cada um dos textos no quadro mais geral da evolução do Mercosul
em seus primeiros dez anos de existência. Outra questão organizacional é a da relativa
imprecisão cronológica: a despeito de Marques situar sua compilação entre os anos de 1989 a
1999, os limites inicial e final dos textos correspondem, de fato, ao período que vai de 1991 a
2001, sendo que a última fase trata bem mais da Alca e das opções de política comercial do
Brasil do que propriamente do Mercosul. Mas mesmo sem ater-se a uma estrutura temática
mais racional, que poderia permitir um melhor aproveitamento dos muitos materiais aqui
recolhidos, o autor prestou um bom serviço à comunidade de historiadores e de estudiosos dos
fundamentos e do desenvolvimento do Mercosul, até aqui carente de estudos rigorosos nas
áreas da ciência política e da história. Recomenda-se, talvez, para o futuro, uma segunda
edição de características profissionais, de maneira a sanar as muitas falhas formais que
apresenta este volume, feito por iniciativa do próprio autor e distribuído, provavelmente, a
seus custos.
Mesmo à falta de uma inserção de cada um desses textos na história mais geral do
Mercosul, os trabalhos selecionados pelo autor são importantes, na medida em que permitem
uma aproximação ao que seria uma primeira “história oral” desse esquema de integração,
ainda hoje carente – pelo menos no Brasil – de uma história oficial ou oficiosa que
reconstitua, minuciosamente, suas diferentes etapas desde os anos de integração bilateral com

257
a Argentina até o período atual, marcado por uma espécie de Entzauberung integracionista. O
tom de vários textos é marcadamente otimista e “defensivo”, como corresponde, talvez, a
questionamentos da imprensa ou da comunidade de negócios a respeito dos benefícios reais
do Mercosul para a sociedade e para a economia brasileiras. Em vários outros, possivelmente
voltados para plateias não especializadas, os objetivos didáticos aparecem mais explícitos,
com extensas explicações sobre o funcionamento de determinados mecanismos do bloco, em
face das regras multilaterais de comércio e da pequena selva burocrática na normatividade
mercosuliana que o autor ajudou a construir.
Alguns dos textos tratam das relações do Mercosul com parceiros próximos – como o
Chile, a Venezuela e outros países do Grupo Andino – ao passo que outros abordam
problemas específicos: fundos regionais, aplicação das normas do Mercosul pelos juízes
nacionais ou, ainda, o sempre presente problema institucional. Se o Brasil sempre se mostrou
“ofensivo” na expansão comercial do Mercosul em direção de novos mercados, ele também se
mostrou arredio em matéria institucional, opondo-se a sucessivas demandas – dos demais
sócios, ou atendendo a sugestões de juristas – por maior grau de institucionalidade (que, para
alguns, queria dizer supranacionalidade).
Parece ser uma regra das instituições burocráticas o fato de que problemas complexos
não são jamais resolvidos: eles apenas entram no rol de itens da “agenda permanente” que
passam a figurar em cada reunião do bloco: tais podem ser os casos do regime automotivo do
Mercosul (mais exatamente bilateral, Brasil-Argentina), ou da eterna salvaguarda argentina
imposta ao açúcar do Brasil. Aliás, falar em “regime automotivo do Mercosul” seria
conceder-lhe um status superior ao merecido, como sistema de comércio bilateral
administrado que de fato é, como nos velhos tempos do mercantilismo. Quanto ao açúcar, não
há nada de especificamente mercosuliano em sua inadequação aos padrões do livre-comércio:
trata-se, certamente, do primeiro produto na história mundial das commodities a gozar de
regras especiais de proteção e subsídio em vários países da primeira revolução industrial –
mais exatamente a partir do açúcar de beterraba surgido com a revolução francesa e o
bloqueio continental operado pela Inglaterra – e que será, provavelmente, o último dos
produtos a entrar num regime normal de comércio, talvez daqui a mais 150 anos. Bem,
espera-se que, até lá, o Mercosul tenha chegado ao prometido mercado comum.
À falta de uma divisão temática ou “institucional” para este livro, o leitor é obrigado a
percorrer linearmente os textos, para deles extrair alguns ensinamentos e esclarecimentos
sobre aspectos pouco visíveis da história – até aqui quase secreta – do Mercosul. Essa
trajetória linear corresponde, aliás, à organização mais simples do livro, sem que se possa,
258
entretanto, discutir exaustivamente determinados problemas estruturais ou constitutivos do
modelo sui generis que adotou o Mercosul ao longo de seus primeiros dez anos de existência
(e ele acaba de completar a sua maioridade).
No conjunto, porém, os textos representam uma contribuição útil para a construção de
uma futura história do Mercosul, com os cuidados devidos à manipulação de ideias ou
opiniões que correspondem a um dos protagonistas oficiais do processo. Sim, cabe esclarecer
que mesmo se o autor explicita, numa nota preliminar, que os seus argumentos representam
unicamente a sua opinião pessoal, pode-se presumir que ele estivesse, cada vez, defendendo a
posição oficial do governo brasileiro sobre cada um dos problemas abordados. Não é de se
presumir que um representante do Itamaraty tenha ideias próprias sobre todas essas questões,
ou que ele tenha “escolhido” certas “soluções” aos problemas da tarifa externa comum ou dos
regimes setoriais em fase de adequação à abertura recíproca na ausência de consulta a todas as
autoridades do governo. Depreende-se, aqui e ali, indiretamente, certa perplexidade ou
insatisfação dos atores privados, o que revelaria carência de consulta ou coordenação com
aqueles mesmos que deveriam operar a integração na prática diária: industriais, agricultores,
empresários em geral, para nada falar dos estudiosos acadêmicos, provavelmente pouco
consultados em todas as fases do processo.
Claramente, os textos precisam ser lidos e inseridos em seu contexto original, que é o
da construção de um bloco de integração numa fase ainda ascendente, com pretensões a
transformar-se em mercado comum (objetivo até agora frustrado; mas muitos duvidam que
ele venha a ser concretizado um dia). Mesmo lidos com todo o cuidado de um historiador ou
especialista acadêmico, não deixa de ser curioso, ao observador contemporâneo – em 2009,
ou seja, uma década depois da data terminal que o autor colocou em se livro –, fazer uma
leitura retrospectiva do que poderia ter sido o Mercosul e o que, efetivamente, ele veio a
converter-se ao atingir a maioridade, praticamente congelado nas etapas examinadas neste
livro de um dos protagonistas originais.
Um dos textos, por exemplo, datado de março de 1996, explica que “Não é o
momento” de criar órgãos supranacionais, em especial um tribunal com poderes próprios (já
que esse passo não seria constitucionalmente aceitável para o Brasil). Em outro, que faz um
balanço da presidência brasileira e que comemora a passagem da “prova de fogo” que foi a
instituição (sic) da união aduaneira, se lê que o Mercosul “consolidou-se como um
agrupamento de crescente coesão interna e indiscutível capacidade de negociação externa” (p.
141). Sem comentários, nesta resenha...

259
Mais para o final do período, o argumento dominante na chancelaria era o de que o
Brasil, sim, negociava a Alca, mas priorizava o Mercosul, por se tratar de um bloco com
pretensões mais abrangentes e profundas, como o projeto de mercado comum. O temor, então
(estávamos ainda 1997), era o de que a Alca provocasse “atraso, desvio ou interrupção no
processo ora em curso de aperfeiçoamento da união aduaneira” (p. 169). Nunca houve, ao que
parece, real interesse do Brasil pela Alca, que seria alegremente enterrada no cemitério de
projetos irrealizáveis por ocasião da reunião de cúpula hemisférica de Mar del Plata, em
novembro de 2005.
Naquela mesma conjuntura, o Brasil recusava a constituição de “fundos” ou a adoção
de “medidas compensatórias”, sob a justificativa de que os recursos alocados competiriam
com aplicações nacionais ou que esse tipo de mecanismo implicaria em instituições
burocráticas onerosas (p. 217-218). A partir de 2003, como se sabe, o Brasil passou não
apenas a aceitar, como a promover ativamente esse tipo de “fundo compensatório”, do qual é
o maior contribuinte líquido – 70% por cento do volume global, recentemente aumentado em
100%, por decisão própria –, sem ser, obviamente, o maior beneficiário (a despeito das
mesmas diferenças e desigualdades internas que justificavam a recusa no momento em que
Renato Marques desenvolvia seus argumentos).
Incidentalmente – ou sem que isto tenha a ver com o objeto do livro –, a comparação
entre o período coberto pelo autor, todo ele voltado para a negociação e implementação dos
objetivos primários do Mercosul – isto é, o acabamento da união aduaneira e o caminho na
direção do mercado comum – e a fase subsequente, e atual, de abandono quase completo
dessas metas “comercialistas” e a ênfase colocada em aspectos políticos ou sociais do bloco,
muito nos diz sobre a inflexão que ele sofreu ao longo dos dez anos seguintes ao período aqui
coberto. Teses que antes o governo do Brasil rejeitava por não pertinentes ao “espírito” ou à
“essência” do Mercosul passaram a ser aceitas e até implementadas voluntariamente, como a
já referida opção pela constituição de fundos compensatórios e mecanismos corretores, ou a
“fuga para a frente” – tendente a construir novas instituições políticas e sociais –, em lugar de
resolver questões ainda pendentes dos fundamentos econômicos incompletos e do baixo grau
de abertura recíproca (paradoxalmente) do bloco.
Não se deve esperar, obviamente, um diagnóstico da situação do Mercosul, mesmo ao
cabo do período coberto pelo livro, inclusive porque a natureza puramente “compilatória” da
obra e a já referida lacuna de introdução ou de capítulo conclusivo não permitem tirar
ensinamentos mais aprofundados. O que se tem aqui são materiais primários, minérios não
processados, que devem aguardar outros insumos históricos ou lapidação por especialistas
260
para que, a partir desses discursos a favor do Mercosul, se possa organizar uma discussão
sobre os fins e os meios mobilizados para construir o bloco e se tentar uma explicação para o
evidente insucesso na consecução das metas explicitadas no artigo primeiro do Tratado de
Assunção.
O autor não é claramente responsável pelo que veio depois, mas muitos dos impasses
atuais se devem, provavelmente, às escolhas feitas naquela época, como, por exemplo, a
opção pela continuidade da “internalização” ad hoc – ou seja, sujeitas ao arbítrio nacional –
das resoluções e decisões adotadas conjuntamente. Diz-se que a estrutura constitucional
brasileira não permitiria a existência de um tribunal dotado de poderes supranacionais, mas
não se examinou, em detalhe, as condições de existência de uma corte arbitral permanente par
aplicar o patrimônio jurídico já em vigor no bloco. Pode ser que uma instituição desse tipo
viesse a perder legitimidade, como foi o caso no Grupo Andino, mas é também possível que
as barreiras ainda numerosas tivessem começado a ser desmanteladas na fase ainda
ascendente do Mercosul.
No conjunto, os textos são relevantes para permitir um retrato do Mercosul numa fase
determinada de seu desenvolvimento, embora este conceito seja um tanto irônico ao se
considerar o que veio depois. De fato, pode-se ler com alguma dose de ceticismo, um
argumento do autor, segundo o qual, o Brasil é o país mais aberto do Mercosul” (p. 250). Não
tenho certeza de que os demais sócios e outros países associados concordariam com a
afirmação. Em todo caso, à falta de uma história do Mercosul, este livro constitui uma das
fontes primárias – processadas politicamente, é verdade – para que um dia se possa escrever
uma.
Brasília, 4-12 de janeiro de 2009.
Inédito em sua versão original.

Addendum: O livro do embaixador Renato Marques foi posteriormente publicado por editora
comercial, como aliás recomendei ao próprio autor, sugerindo que ele fizesse uma introdução
explicativa e contextualizada sobre os materiais constantes da sua edição de autor. De fato, o
texto de síntese introdutória acrescentado à edição comercial – Renato L. R. Marques: Duas
Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 368 p.; ISBN: 978-85-7129-581-0) –
oferece, em suas 90 páginas, um relato das diversas etapas vencidas, das dificuldades
enfrentadas e das razões pelas quais o Mercosul adotou o seu formato de união aduaneira
incompleta, de natureza intergovernamental. Por distração, ou interesse real pela segunda
versão desse livro, mais completa e amplamente revista, ele foi registrado por mim em duas
oportunidades na seção Prata da Casa do Boletim da ADB, a primeira no quarto trimestre de
2011 (n. 75, outubro-novembro-dezembro 2011), a segunda exatamente um ano depois, no
quarto trimestre de 2012 (n. 79, outubro-novembro-dezembro 2012), ambas reproduzidas
nesta compilação, caso único de um livro mini-resenhado duas vezes.

261
O Brasil nos arquivos americanos: um guia de pesquisas

Paulo Roberto de Almeida, Rubens Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins


(organizadores):
Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: Coleções documentais sobre o Brasil nos
Estados Unidos
(Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1)

Os Estados Unidos sempre foram, historicamente, o principal parceiro do Brasil nos


mais variados tipos de intercâmbios e transações da área econômica, sobretudo nos terrenos
comercial, financeiro e tecnológico, posição ocupada de modo absolutamente dominante
durante todo o decorrer do século XX. Mas eles também foram, de variados modos e de
maneira sempre intensa, um grande interlocutor em campos de difícil quantificação ou
mensuração pelos economistas e pelos estatísticos, como são o da cultura e o das
humanidades, num sentido amplo, tendo seus estudiosos e pesquisadores participado de
maneira intensa do próprio processo de construção das ciências humanas na academia
brasileira, sobretudo na segunda metade do século passado.
Nos velhos tempos, nossas elites iam estudar na Europa e de lá traziam não só os
conhecimentos próprios dos cursos e os produtos e processos vinculados às principais
atividades econômicas do Brasil, mas também os artigos da moda e os itens sofisticados que
qualificavam seus possuidores pela distinção e luxo que então passavam a exibir. Em épocas
passadas, a elite brasileira ostentava maneiras e expressões francesas, consumia bens
comprados nas boutiques de Paris, mas os serviços e a cobertura financeira eram feitos na
praça de Londres, junto aos banqueiros britânicos. Algumas outras contribuições, inclusive de
natureza humana, provinham das regiões mediterrânea, ibérica e central da Europa, mas o
essencial dos insumos e bens tangíveis e intangíveis vinha mesmo dos dois grandes países
europeus que marcaram nossa história nas vertentes já indicadas: produtos e finanças inglesas,
maneiras e ideias francesas.
Um último resquício dessa antiga hegemonia europeia tinha sido conservado no pós-
Segunda Guerra: o domínio da alta cultura e o das chamadas “ciências do espírito”, terreno no
qual os franceses continuaram a pontificar durante bastante tempo, como evidenciado nos
muitos vínculos universitários dos dois lados do Atlântico – criados no entre-guerras – e na
grande receptividade dada às ideias francesas em filosofia e história, quando não em outros
campos das ciências sociais. Até uma personagem carnavalesca como Chiquita Bacana era
existencialista, à la Jean-Paul Sartre, como convinha nesses tempos de hegemonia absoluta da
262
rive gauche sobre a haute culture e a da rive droite sobre a haute coûture, quando ambos os
modismos franceses dominavam os corações e mentes das elites, assim como nossas
referências culturais de modo geral.
Pois bem, desde o final dos anos cinquenta e início dos sessenta, pelo menos, os
acadêmicos dos Estados Unidos vêm comprovando sua crescente excelência também nos
campos das humanidades, completando assim uma “ocupação de terreno” que já tinha
começado no início do século XX pelos primeiros empréstimos da praça de Nova York, pelos
investimentos industriais pioneiros, pelos filmes de Hollywood e pelas muitas inovações da
cultura de massas americana. Não se trata aqui, apenas, do fenômeno dos brasilianistas, ainda
que tais pesquisadores sejam o lado mais visível do intenso intercâmbio acadêmico – e por
certo também cultural – que cresceu significativamente a partir da Guerra Fria, período que
coincide com certa “americanização” do Brasil, como já ressaltado em estudos de brasileiros e
de americanos. O Brasil passou, desde então, a consumir produtos, serviços, finanças e ideias
americanas, em substituição (e até na ausência, durante um certo tempo) dos similares
europeus, e seus universitários passaram a ir em maior número para os centros de formação
pós-graduada dos Estados Unidos. Esse processo foi bem mais evidente nas disciplinas
técnico-científicas, das ciências econômicas e de administração, mas ele não deixou tampouco
de manifestar-se em outras áreas, aliás não exclusivamente acadêmicas. A moda, ainda que
não o chic (que continuou em Paris), parece ter-se mudado para os Estados Unidos, pelo
menos em sua vertente popular, vinda tanto da costa leste, como da costa oeste, para não falar,
tempos depois, da moda country, que converteu-se em verdadeira febre no Brasil.
Trata-se de uma “impregnação cultural” bem mais ampla do que pode ser revelado por
esses fluxos formais ou oficiais de bens e de ideias circulando com as pessoas que costumam
viajar de um país a outro, e que são, afinal de contas, em número extremamente reduzido
quando comparado às populações totais, ou mesmo ao volume desses “turistas acidentais” da
vida cultural que são os bolsistas do mundo acadêmico. O que está em causa é uma verdadeira
osmose cultural, um fenômeno de massas que se manifesta sobretudo na música, no cinema e
na televisão, movimento bem mais intenso, é verdade, do norte para o sul do hemisfério do
que no sentido inverso, ainda que o fluxo contrário não seja desprezível tampouco. A bossa
nova, por exemplo, incorporou-se de tal forma ao mainstream musical americano, que hoje é
difícil separar o original brasileiro da cópia americana. Quem visita os malls e as lojas de
departamento dos Estados Unidos não terá deixado de ouvir faixas musicais brasileiras
repetidas ao longo do dia, a ponto de nos perguntarmos se os direitos de propriedade

263
intelectual sobre nossas composições estão sendo respeitadas na terra que mais defende
mundialmente os copyrights de seus próprios autores e artistas.
Aspecto menos conhecido dessas múltiplas interações entre o Brasil e os Estados
Unidos, a não ser dos historiadores e especialistas em arquivos, são os documentos de
natureza histórica – expedientes oficiais e relatos oficiosos, que comprovam a intensidade das
relações bilaterais, praticamente desde antes da nossa independência e de modo bastante
intenso a partir do século XX. Com efeito, como a esta coletânea pretende demonstrar, o
“país” Brasil, mas também as “coisas” brasileiras de modo geral estão muito presentes,
mesmo desde antes da independência, nos registros diplomáticos, consulares e nos papéis de
negócios de agentes privados e de agentes oficiais americanos. Assim como não se pode
compreender a história do Brasil moderno e contemporâneo sem levar em conta essas
múltiplas interações com os Estados Unidos ao longo de mais de dois séculos, tampouco se
pode pretender escrever sua história – oficial, nacional ou mesmo “popular” – sem uma
referência às fontes documentais guardadas nos arquivos americanos. Como revelado neste
volume, elas são muitas, elas são diversas e, sobretudo, elas estão bem organizadas e são
facilmente disponíveis.
O presente Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil revela uma parte, uma
pequena parte apenas, das várias interfaces existentes entre o Brasil e os Estados Unidos a
partir das fontes primárias americanas depositadas em instituições de acesso aberto. O esforço
conduzido pela Embaixada do Brasil em Washington, durante a gestão do Embaixador
Rubens Antônio Barbosa (1999-2004), sob a coordenação intelectual do Ministro-Conselheiro
Paulo Roberto de Almeida representa uma contribuição para o conhecimento ampliado da
nossa própria história e da sociedade brasileira com base nesses registros documentais
depositados em instituições americanas.
Este livro não foi o único exemplo dos esforços empreendidos pelo Embaixador
Rubens Barbosa, à frente da Embaixada em Washington, para ampliar o conhecimento
recíproco – sendo pelo menos o terceiro livro que resultou de estudos e projetos acadêmicos
por ele meritoriamente conduzidos – mas ele é, provavelmente, o resultado mais eloquente de
uma iniciativa que tem muito a ver com uma atividade estimulada e coordenada à época pelo
Ministério da Cultura, a saber o Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”, de identificação e
recuperação de documentos relativos à história do Brasil depositados em arquivos
estrangeiros, que se desenvolveu com mais intensidade desde a fase preparatória das
comemorações dos 500 anos da chegada de Cabral à terra brasilis. Ele vem juntar-se aos

264
guias de fontes já publicados para diversos arquivos europeus e aos muitos catálogos de
documentos portugueses relativos às capitanias brasileiras da era colonial.
Pode-se destacar aqui por que e em quê este Guia é importante para o Brasil, em
especial para sua comunidade acadêmica. Não é necessário voltar ao tema da relevância dos
Estados Unidos para o Brasil, já acima referida, mas deve-se, antes de mais nada, destacar
uma peculiaridade deste volume de referência. À diferença de projetos similares ou
equivalentes de identificação e apresentação das fontes documentais sobre a história do Brasil
que vêm sendo feitos em arquivos de Portugal e de outros países europeus, este “Projeto
Resgate” americano não poderia ter partido da catalogação extensiva, da microfilmagem
subsequente e da divulgação ulterior dos principais fundos existentes nos Estados Unidos, por
uma razão muito simples: a tarefa seria interminável e propriamente não administrável. Com
efeito, se nos casos da Europa – já objeto de vários levantamentos e da publicação dos
catálogos pertinentes – os estoques de documentos sobre os quais trabalharam os
pesquisadores eram (relativamente) finitos, ou pelo menos mensuráveis, e se encontravam,
por assim dizer, “congelados” (já que incidindo, em sua maior parte, sobre o período colonial
de nossa história), no caso dos Estados Unidos esse estoque é dinâmico e praticamente
infinito, pois que as coleções mais importantes se estendem pelos dois últimos séculos e
cobrem uma atualidade tão recente quanto eventos e processos transcorridos em nossa própria
geração, com protagonistas ainda vivos e atuantes nos cenários político, econômico, militar
ou cultural. No caso dos Estados Unidos, hipoteticamente, uma opção de tipo “europeu”
demandaria recursos financeiros incomensuráveis e incompatíveis com as possibilidades
atuais do Brasil e um período de tempo proporcional à extensão e profundidade dos fundos
disponíveis para cópia.
A definição de um modelo de levantamento aplicável ao caso americano, portanto, se
deu na direção de uma descrição relativamente completa dos principais centros depositários
de papéis e outras fontes primárias para a pesquisa histórica sobre o Brasil nos Estados
Unidos. Dentre essas instituições, as mais importantes se situam justamente na capital
americana: os Arquivos Nacionais, a Biblioteca do Congresso e a Biblioteca Oliveira Lima,
junto à Universidade Católica da América. Em relação a esta última, por exemplo, o
Embaixador Rubens Barbosa procurou contribuir com a preservação e a disseminação, em
benefício dos pesquisadores brasileiros, dos materiais ali depositados, legados pelo famoso
diplomata e historiador brasileiro da passagem do século XIX ao XX, mas muito ainda resta a
ser feito para democratizar o acesso aos seus ricos materiais.

265
O Projeto Resgate da Embaixada do Brasil em Washington permitiu, assim, identificar
e apresentar, na maior extensão possível, os documentos sobre o Brasil depositados nas
instituições americanas, a começar pelos National Archives and Records Administration
(NARA). Não é necessário falar da importância desses documentos para a pesquisa sobre as
relações bilaterais, sobre a política externa regional e as relações internacionais do Brasil,
bem como para o estudo de sua história doméstica, política, social, econômica, militar e
cultural. O ideal seria que a documentação assim identificada pudesse ser reproduzida
(mecanicamente ou digitalmente) para ser colocada à disposição dos principais arquivos
brasileiros dotados de tais tipos de papéis (Arquivo Nacional e Arquivo Histórico
Diplomático, do Ministério das Relações Exteriores, ambos no Rio de Janeiro), bem como
disseminada para outros centros de pesquisa universitária, uma vez lograda sua reprodução
em meio eletrônico.
Este material se juntaria assim às dezenas de microfilmes dos arquivos do Foreign
Office britânico e do próprio NARA que já foram adquiridos nos anos oitenta mediante
projeto coordenado pelo sociólogo Luciano Martins e depositados naqueles dois arquivos
oficiais. As séries que já se encontram no Brasil vão, grosso modo, até o ano de 1959, mas no
caso americano se trata de papéis exclusivamente diplomáticos, à exclusão, portanto, de
outras agências oficiais americanas que podem apresentar relevância para as relações
bilaterais e para o estudo de outros problemas, no âmbito regional, mundial ou relativos a
instituições e conferências internacionais (estariam neste caso documentos dos departamentos
do Tesouro e do Comércio, do Eximbank, da Comissão de Energia Atômica, da International
Trade Commission, dos antecessores do United States Trade Representative, sem esquecer os
arquivos presidenciais). Dispensável dizer, também, que vários desses papéis, e não apenas do
Department of State no período posterior a 1959, mas também de agências especializadas,
ainda não foram totalmente microfilmados pelo NARA. Fontes ainda não exploradas pelos
historiadores, em especial aqueles da vertente econômica, são os arquivos da duas
organizações “irmãs” de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, que possuem acervos que
merecem escrutínio detalhado na área financeira.
Na impossibilidade prática, que se espera temporária, de se lograr a catalogação
completa desses fundos, para fins de informação dirigida aos pesquisadores interessados no
Brasil, sob formato de publicação descritiva, ou da reprodução desses documentos nos
formatos adequados para sua transferência a arquivos brasileiros e disponibilização em meio
digital, a Embaixada em Washington realizou, no período de 2001 e 2002, este levantamento
preliminar sobre os fundos documentais dos Estados Unidos sobre o Brasil e preparou, a
266
partir daí, este Guia, que contém uma identificação precisa dos fundos existentes, nos
formatos disponíveis (microfilmes, textuais, audiovisuais).
Este levantamento constitui um valioso instrumento de auxilio à pesquisa para todos
os estudiosos do Brasil trabalhando com documentação dos Estados Unidos (e não apenas
para o estudo de questões bilaterais). Muito ainda resta a ser feito, por todos aqueles
interessados, justamente no sentido de se lograr copiar algumas das mais importantes séries
documentais nessas instituições, objetivando colocá-las à disposição dos historiadores e
cientistas sociais do Brasil. É uma tarefa que não incumbe apenas às autoridades de governo,
mas a toda a comunidade potencialmente usuária e beneficiária desse tipo de material.
Algumas das próximas etapas podem compreender, por exemplo, a documentação
relativa ao período colonial brasileiro existentes em fundos americanos, de maneira a
completar o trabalho já iniciado em relação às fontes europeias sobre a história do Brasil. As
principais instituições, nesse caso, seriam o próprio NARA – onde existem muitos
documentos relativos ao Brasil do período anterior à independência –, a Biblioteca do
Congresso, bem como bibliotecas universitárias como a John Carter Brown – da Brown
University, em Providence, Rhode Island – e a Biblioteca Oliveira Lima, onde se encontram
manuscritos interessando à história portuguesa e brasileira dos seiscentos aos oitocentos e os
papéis do arquivo particular do grande diplomata brasileiro (cadernos de notas, recortes,
fotos, correspondência passiva, originais manuscritos de vários de seus livros etc.). No mundo
ideal dos arquivistas, dos documentalistas e dos pesquisadores se deveria, logo em seguida,
efetuar a conversão em formato eletrônico de todo o material assim recuperado e
microfilmado, de maneira a permitir a confecção de DVDs, ou de quaisquer outros meios
digitais, e lograr, finalmente, o acesso mais amplo possível desses arquivos e papéis online
(como aliás, algumas fontes o fazem).
Esperando que possa chegar logo essa “utopia” arquivista, os pesquisadores
interessados podem agora consultar este primeiro volume de resultados desse projeto de
“resgate” de papéis históricos americanos efetuado pela Embaixada do Brasil em Washington,
sob a forma desta obra de referência, Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil.
Cumprimentos especiais devem ser dirigidos a todos os que participaram – o que compreende
também a consultora especial do Ministério da Cultura, e coordenadora técnica do Projeto
Resgate “Barão do Rio Branco”, Esther Caldas Bertoletti – ou que financiaram este projeto –
como a fundação de apoio à cultura Vitae –, assim como cabem agradecimentos ao
Embaixador Rubens Antonio Barbosa e ao Ministro Paulo Roberto de Almeida, que ao lado e
acima de suas muitas ocupações diárias, por certo intensas na primeira missão do serviço
267
diplomático brasileiro, conseguiram conduzir um projeto tão relevante como este para o
estudo do Brasil e suas relações exteriores.
Este guia foi composto com o objetivo de resgatar e de preservar um dos “pedaços” de
memória brasileira espalhados pelo mundo, neste caso nos EUA. O esforço empenhado em
sua produção visou , em última instância, oferecer ao público em geral, em primeiro lugar aos
historiadores e aos pesquisadores brasileiros, um guia útil das fontes primárias lá disponíveis
sobre nossa história. Estes últimos serão, justamente, poupados em certa medida do “esforço”
de localizar locais, de identificar catálogos pertinentes e de selecionar documentos nas bases
de dados das instituições pesquisadas, ganhando com isso um precioso tempo quando eles
dispõem apenas de curto período de pesquisa. Este volume representa uma missão cultural
que pode ser classificada como serviço público, no sentido e, que ele colabora com o trabalho
de recuperação de nossa história no exterior.

Brasília, dezembro de 2007

Addendum:
Esta apresentação, feita praticamente quatro anos depois da preparação dos originais, ainda
teve de esperar mais três anos para sua materialização gráfica, por motivos alheios à vontade
dos organizadores deste volume. A despeito da defasagem temporal, o Guia preserva sua
utilidade metodológica, já que consolidando algumas informações práticas relevantes para os
pesquisadores desejosos de trabalhar nos arquivos americanos, mesmo se, no intervalo,
muitos dos arquivos aqui referidos conheceram notável ampliação do acervo disponível,
assim como algumas mudanças práticas nas condições logísticas para o acesso aos fundos que
interessam aos pesquisadores.

Shanghai, 12 outubro 2010

Addendum 2:
A versão desta nota final publicada pela Funag é esta:
Addendum em outubro de 2010:
Esta apresentação foi feita antes da presente publicação dos originais, que só agora se
materializa, preservando contudo o GUIA sua utilidade metodológica, mesmo sabendo-se que
na área dos arquivos, a cada dia podem ser desvelados novos documentos e condições
logísticas para o acesso aos fundos que interessam aos pesquisadores estão a sofrer
permanentes e contínuas modificações, pela própria natureza dos acervos.

268
Maquiavel para os modernos

Paulo Roberto de Almeida:


O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado)
(Brasília: Senado Federal, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9)

Este livro foi escrito por um proscrito. Explico: O Príncipe, original de 1513, foi
escrito por Nicolau Maquiavel quando ele se encontrava em completo ostracismo, depois que
a conquista da Toscana pelos espanhóis recolocou no comando de Florença, em 1512, a
família dos Médici.
Como escreveu Delio Cantimori, no verbete sobre o florentino que ele preparou para a
Storia della Letteratura Italiana (quinto volume, da Garzanti), “nonostante l’ingegno,
l’acutezza e la dottrina che gli venivan riconosciuti, il Machiavelli non fu mai chiamato agli
uffici maggiori della repubblica fiorentina che egli servi dal 1498 al 1512”.1 De fato, depois
de ter servido durante quase três lustros à República da sua cidade natal (1469), e de ter
desempenhado missões diplomáticas da mais alta responsabilidade – em 1500, em Pisa, para
resolver uma rebelião de soldados mercenários; logo em seguida junto ao reino de Luís XII da
França, retornando ali mais três vezes, entre 1504 e 1511; em 1502 junto ao duque Valentino,
César Bórgia, em Urbino e Sinigaglia; em 1503 e 1505, em Roma; em 1507, junto ao
Imperador Maximiliano, do Sacro Império Romano Germânico –, Maquiavel nunca mais
retornou ao seu cargo de segretario, a despeito de ter desempenhado outras missões
diplomáticas nos últimos anos de sua vida.
Como o próprio Maquiavel escreveu, em torno de 1518-1519, na apresentação a outro
texto seu dessa fase de desterro, os Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, ele havia
colocado em seus escritos toda a substância do que sabia e do que tinha aprendido ao longo de
uma vida dedicada à prática política e às leituras constantes em torno “delle cose del mondo”,
ou, como transcreve Cantimori, “per ‘lunga pratica’ della vita politica, ‘continua lettura’ della
storia política”.2 Condenado ao confinamento por um ano, em 1512, mas não reabilitado
depois disso, Maquiavel se retirou na sua vila Albergascio, perto de San Casciano, no Val di
Pesa, e ali, amargurado por um injusto isolamento, soube reagir ao afastamento forçado da

1
Cf. Delio Cantimori, “Introduzione”, in Niccolò Machiavelli, Il Príncipe e le opere politiche, Milão:
Garzanti, 1976, p. xi.
2
Idem, a partir de C. Pinsin, Sul testo del Machiavelli. La prefazione alla prima parte dei “Discorsi”,
in Atti dell’Academia delle Scienze di Torino, vol. 94 (1959), disp. 2, Torino, 1960, pp. 506-518; cf.
“Introduzione”, op. cit. supra, p. xi.
269
política ativa que lhe impuseram, colocando no papel suas reflexões sobre a prática da
política, sobre a arte da guerra e a propósito dos ensinamentos que se podiam retirar do
itinerário dos grandes homens e da evolução, entre auge e declínio, das sociedades da
antiguidade clássica. Por uma dessas ironias da História, ele veio a morrer no mesmo ano em
que a república foi restabelecida em Florença, em 1527.
Este Moderno Príncipe também condensa tudo o que me foi possível aprender ao
longo de uma vida dedicada à atenta observação delle cose del mondo, ao estudo das coisas da
política e das artes diplomáticas, assim como no aproveitamento de continue letture, em todas
as áreas das ciências humanas e disciplinas afins, ou seja, em tudo aquilo que interessa ao
homem enquanto ser político. O livro também foi escrito em condições de relativo
isolamento, pelo menos da diplomacia prática, que exerci de modo contínuo de 1977 a 2003,
depois de já ter enfrentado meu próprio desterro, ainda que semi-voluntário, entre 1970 e
1977, na fase mais dura do regime militar que tutelou o Brasil de 1964 a 1985. Meu novo
ostracismo involuntário permitiu, ao lado do exercício de lides acadêmicas que sempre
permearam a atividade profissional, longas noites de leitura, intensas reflexões sobre as
transformações do mundo contemporâneo e do Brasil atual, como também propiciou a
produção de escritos a respeito da conjuntura política e sobre a história diplomática,
divulgados em revistas especializadas ou em livros por mim publicados.
De todos os livros que escrevi – no mais das vezes voltados para as relações
internacionais e a política externa do Brasil –, o que mais reflete o meu pensamento político e
aquele de que mais gosto, A Grande Mudança (Códex, 2003), é o que menos obteve sucesso
de público, permanecendo relativamente desconhecido (talvez pelo fato de, quando do
lançamento, me encontrar no exterior). Em todo caso, este livro retoma algumas das reflexões
ali conduzidas pela primeira vez e amplia meu aprendizado nas artes da política por meio de
uma retomada linear do texto que se encontra, a justo título, no panteão das grandes obras do
pensamento universal. Quinhentos anos depois, como para muitos clássicos, a constatação se
impõe por si só: Maquiavel continua atual!
Este “Maquiavel revisitado” segue fielmente o roteiro traçado nos últimos meses de
1513 pelo pensador e diplomata florentino. A estrutura e o foco dos capítulos permanecem
idênticos: apenas troquei “Itália” por “nação”, em dois capítulos finais, seja para tornar a
reflexão mais universal, seja para fazê-la aplicável a uma outra grande nação de tradição
latina. A temática e a substância de cada um dos capítulos também permanecem relativamente
similares: os problemas que angustiavam o segretario de há meio milênio parecem

270
rigorosamente os mesmos, com pequenas adaptações de detalhe ou de linguagem. Alguma
novidade nisso? Provavelmente não!
As referências e o tratamento dos problemas são, contudo, inteiramente atuais, ainda
que se tenha optado por um estilo e um linguajar deliberadamente “caducos”, como forma de
manter um “parentesco espiritual” com a obra de meu predecessor diplomático do
Renascimento. O que eu fiz, sim – e nisso me cabe o copyright, ainda que eu deva conceder
os moral rights ao florentino –, foi reescrever totalmente o seu “manual de política prática” no
sentido daquilo que eu penso deva determinar, hoje, a política moderna: o compromisso
democrático; o cumprimento das “regras do jogo”, como diria um outro filósofo da política,
Norberto Bobbio; a transparência na administração da coisa pública; a correção no manejo do
pubblico denaro e, sobretudo, a honestidade intelectual, que para mim é o critério básico de
qualquer ação social, independentemente da área na qual ela se insira.
Maquiavel escreveu o seu pequeno “manual” como uma espécie de guia de conduta
para os governantes, mas ele se coloca bem mais do ponto de vista do Estado do que do ponto
de vista dos cidadãos. Talvez se pudesse dizer, sem ostentação ou pretensões exageradas, que
meu pequeno manual pretende ser uma espécie de guia de conduta para os governados e ele se
coloca, mais bem, do ponto de vista dos indivíduos, que constituem, afinal de contas, o
destino final de toda a ação política.
Revisitar Maquiavel é sempre angustiante, como já escreveu certa vez Raymond Aron,
uma vez que as relações entre a moral e a ação política, entre a ética e a eficácia, entre os fins
e os meios, estão sempre sendo colocadas na balança de nossas escolhas fundamentais. As
minhas escolhas ficam transparentes em cada parágrafo do meu texto, mesmo quando a
“racionalidade econômica” parece predominar sobre a “justiça social”, ou quando os valores
morais são confrontados aos procedimentos políticos, que sempre evidenciam, como todos
sabem, o eterno dilema entre as convicções pessoais e os resultados práticos, no plano da ação
social. As minhas opções estão postas claramente nas páginas que seguem e a primeira delas,
ouso repetir, é justamente a honestidade intelectual. Este princípio fundamental compensa
qualquer ostracismo.
Gostaria, por fim, de agradecer a todos aqueles que me ajudaram, voluntariamente ou
não, na finalização deste livro, em primeiro lugar no processo de sua revisão. Ele tinha sido
iniciado em meados de 2003, como o segundo de uma série de “clássicos revisitados” – tendo
sido o primeiro uma atualização do Manifesto Comunista de 1848, aos 150 anos de sua edição
original – mas, desde então, tinha ficado parado em virtude de uma carregada agenda de
obrigações profissionais e acadêmicas. Inesperadamente, encontrei o tempo que me faltava
271
em meados de 2007: sou reconhecido, portanto, também aos que me permitiram dispor de
condições para finalizá-lo.

Brasília, 23 de fevereiro de 2010.


Prefácio ao livro publicado.

Addendum:
Texto de divulgação:

O que nos separa de Maquiavel?

Se, por alguma fortuna histórica, Maquiavel retornasse, hoje, ao nosso convívio, com
as suas virtudes de pensador prático, quase meio milênio depois de redigida sua obra mais
famosa, como reescreveria ele o seu manual “hiper-realista” de governança política? Seriam
os Estados modernos muito diversos dos principados do final da Idade Média?
Este Maquiavel revisitado, voltado para a política contemporânea, dialoga com o
genial pensador florentino, segue seus passos naquelas “recomendações” que continuam
aparentemente válidas para a política atual, mas não hesita em oferecer novas respostas para
velhos problemas de administração dos homens. Aqui, como em outros aspectos, a constância
dos “príncipes” nos desacertos é notável. Essa capacidade de errar e de provocar danos aos
cidadãos não parece ter evoluido muito, desde então.
De fato, Maquiavel permanece surpreendentemente atual – com o que concordariam
os filósofos e cientistas políticos da atualidade –, mesmo (talvez sobretudo) nos traços
malévolos exibidos pelos condottieri contemporâneos e pelos cappi dei uomine. Ainda que
envenenamentos encomendados e assassinatos por adagas, tão comuns no Renascimento
italiano, não estejam mais na moda – pelo menos fora do âmbito dos serviços secretos –, e
que eles tenham sido substituídos por outros métodos para se desembaraçar de concorrentes e
de adversários políticos, as técnicas para se apossar do poder e para mantê-lo exibem uma
notável continuidade com aquelas descritas pelo experiente diplomata da repubblica
fiorentina do Quatrocento.
O que pode estar ultrapassado, no seu “manual” de 1513, é meramente acessório, pois
a essência da arte de comandar os homens revela-se plenamente adequada aos dias que
correm, confirmando assim as finas virtudes de psicólogo político – avant la lettre – do
perspicaz pensador do Cinquecento.

272
Este Príncipe Moderno representa, antes de tudo, uma singela homenagem ao
diplomata italiano que “inventou” a ciência política, ainda que ele o tenha feito nas difíceis
circunstâncias do ostracismo, na sua condição de funcionário de Estado “cassado” pelos
novos donos do poder em Florença.
Obra de um momento político – talvez não muito diverso daqueles tempos vividos
pelo segretario de cancelleria –, este novo Príncipe, que se pretende tão universal em seu
escopo e motivações quanto seu modelo de cinco séculos atrás, oferece novos argumentos em
torno dos velhos problemas da administração estatal. A bem refletir sobre a política
contemporânea, pouco nos separa de Maquiavel, se não é algum desenvolvimento
institucional e uma maior rapidez nas comunicações. Quanto aos homens, tanto os condottieri
quanto o popolo, eles não parecem ter mudado muito...

Brasília, 21 de maio de 2011.


Texto divulgado pelo site gaúcho Via Política, não mais disponível.

273
Rendas faustianas, punhos wagnerianos...

Edgard Telles Ribeiro:


O Punho e a Renda
(Rio de Janeiro: Editora Record, 2010, 560 p.; ISBN: 978-85-01-09162-8)

O autor adverte, em sua nota inaugural, que este livro “é obra de ficção”. Acredito.
Mas, como ocorre com certas declarações de diplomatas, talvez se deva dar um desconto em
afirmação tão peremptória, algo como 50% em relação ao seu valor de face. É uma obra de
ficção em grande parte de seu enredo essencial, mas que tem muito de verdade, no que se
refere à fundamentação dos personagens e situações. Trata-se de um “romance” verossímil, de
uma história plausível, com a vantagem de ter sido concebida e modelada por um insider, um
diplomata distinguido, que calha ser também um excelente escritor, autor de vários outros
romances e livros de contos.
Eu começaria dizendo que se trata do “romance” (ou da história real) de uma geração:
a dos diplomatas – os de “punhos de renda” – que atravessaram os anos de chumbo do regime
militar – feito quase só de punhos – e que conseguiram sobreviver, cada qual a seu modo.
Quase todos “sobreviveram”, sem maiores percalços, e os “sacrificados” foram poucos.
Muitos outros brasileiros não sobreviveram, e é isto que interessa, talvez, não tanto ao
Itamaraty, enquanto tal; mas aos brasileiros que saíram da anarquia “democrática” em vigor
no início dos anos sessenta, enfrentaram mais de vinte anos de regime militar, e ainda hoje
tentam entender o que, afinal, aconteceu no Brasil, e na região, durante a longa noite de
regimes autoritários na América Latina.
Mas obra não é exatamente o “romance” de uma geração, ou sequer de toda uma casta
de servidores públicos, o que são, indiscutivelmente, os diplomatas. Trata-se, mais
apropriadamente, de uma “biografia não-autorizada”, talvez goethiana, de uma parte dessa
casta de servidores do Estado, em um dos ministérios mais respeitados da burocracia federal.
Tudo gira em torno de Max, o codinome, se poderia dizer, que se deixa aprisionar pelos novos
tempos e é envolvido em suas tramoias mais sórdidas – quando o Brasil, não contente em
consolidar o domínio autoritário no interior de suas fronteiras, ajudava a “corrigir” os
desmazelos das democracias populistas nos países vizinhos, ali patrocinando golpes militares
violentos. Ele consegue, inclusive, sobreviver à derrocada do regime, sempre apostando nas
“pessoas certas”, nas personalidades influentes (a começar por um beijo no anel do cardeal
brasileiro, pouco antes do golpe de 1964). Max tem um nome ficcional: Marcílio Andrade

274
Xavier. Mas, na verdade, ele é um amálgama de diversos diplomatas que existiram,
realmente, ao longo do regime militar (e mais além...).
O estilo é brilhante, e o leitor atravessa esse “romance-história” sem parar, do começo
ao fim de suas 550 páginas, sempre com o personagem principal no centro ou em surdina ao
enredo. Este é talvez goethiano, mais exatamente faustiano, pelo menos em partes da obra.
Em outras partes, a obra vira um itinerário de descoberta, um pouco como nos romances de
John Le Carré, em que os personagens do submundo da inteligência civil, têm de lidar com
sentimentos e frustrações, com as emoções humanas, aquilo que Graham Greene chamou, em
um dos seus livros, “the human factor”. Parafraseando aquela velha canção sobre os
desafinados, pode-se dizer que os homens de inteligência também têm um coração. Pode até
ser, mas não propriamente Max, que apenas tem como objetivos poder e prestígio, o tempo
todo mirando no futuro, e não apenas no presente de luta surda (e aberta) contra as ameaças
comunistas na América Latina em plena era da Guerra Fria.
O personagem principal aparece como um intelectual brilhante. Ele poderia, assim, ter
tido sucesso apenas fazendo um pouco mais do que recomendaria o estrito dever funcional; ou
então, como muitos outros na carreira, por meio de um desempenho “correto” numa profissão
certamente exigente em qualidades pessoais, mas também marcada por tarefas
aborrecidamente burocráticas na maior parte do tempo; em qualquer hipótese, ele teria tido a
chance de se distinguir no cumprimento de suas “missões” e, dessa forma, ser promovido
antes dos seus colegas de turma.
Max, no entanto, dotado de uma ambição desmedida, acaba fazendo um pacto
faustiano: cercado, ou encurralado, por um manipulador de carreiras, aceita servir ao SNI,
cooperar com a CIA e colaborar com a inteligência britânica, o MI6 (excusez du peu, como
diriam os franceses). Sim, tudo isso por motivações puramente pessoais, sem qualquer desejo
de vingança; menos ainda por amor ao dinheiro ou qualquer outro motivo mais mesquinho.
Apenas um gosto inexplicável por uma vida de dupla, ou tripla, personalidade. Traço de
caráter que, aliás, permanece não explicado ao longo do “romance”, o que acrescenta ao
mistério (e que poderia ter sido explorado psicanaliticamente, como conviria, talvez, nessa
espécie de Bildungsroman).
Todos os personagens têm nomes próprios no “romance”, ainda que ligeiramente
trocados, por simples precaução do autor, como o agente da CIA morto pelos Tupamaros no
Uruguai, por exemplo. Menos o personagem que introduziu Max no submundo da inteligência
brasileira, alegadamente seu chefe em Montevidéu, um antigo embaixador por demais
conhecido (dos mais velhos) na carreira, como um anticomunista profissional, e que deixou
275
dois volumes de memórias até interessantes pela sinceridade com que revelou seus “golpes”
contra os comunistas da carreira e os de fora dela. O “homem da capa preta” fica sem nome,
mas não é difícil descobrir quem seja, e seria até interessante reler, hoje, certas passagens de
suas memórias.
Os diplomatas também se precipitarão sobre alguns currículos de colegas, vivos ou
“desaparecidos”, para saber o quanto existe de coincidências ou de similitudes, em termos de
postos, datas e situações, com colegas que eles possam ter conhecido e que imaginam
“retratados” no romance. Muitos se sentirão frustrados, mais, talvez, pelas não-coincidências
do que por estas, que são todas absolutamente plausíveis, até mesmo possíveis, tomadas
globalmente, ao longo de um itinerário de descobertas muito bem encadeado na competente e
absorvente escrita do autor.
Como especialista em cinema – tendo, aliás, servido duas vezes em Los Angeles e
dado aulas de cinema na UnB – ele traça um roteiro, um script, melhor dizendo, impecável,
com flashbacks e cenas paralelas que prendem a atenção de qualquer leitor, ainda mais se este
for da carreira e estiver interessado em conhecer um pouco mais do submundo em que o
Itamaraty se envolveu durante os chamados anos de chumbo. O personagem Max,
obviamente, confunde os colegas de carreira do autor, pois não corresponde a um diplomata
em particular, mas sim a um “compósito literário”, elaborado a partir daqueles poucos que
atuaram nas sombras e nos cenários cinzentos que marcaram os anos mais duros do regime
militar: poucos desses, aliás, estariam em condições de assumir completamente a figura
faustiana que emerge nesta obra, aspecto que se encontra na trama de alguns grandes
“romances” clássicos.
Curiosamente, é um livro de Thomas Mann que oferece ao MI6 britânico a chave,
involuntária e inconscientemente fornecida por Max, para penetrar nos segredos do programa
nuclear brasileiro, ainda em gestação no início dos anos 1970 – quando o Brasil colaborava
com a CIA na montagem dos golpes militares no Uruguai e no Chile – mas cuja interface
tecnológica alemã já deixava de cabelos em pé os “não-proliferadores” de Washington. Não,
não se trata do Doktor Faustus (que só veio à luz nos anos 1950), mas de uma primeira edição
autografada pelo autor de Der Zauberberg (A Montanha Mágica, publicado pela primeira vez
em 1924), da qual o embaixador em Montevidéu jamais se separava (mas eu deixo esse spy-
catch para os leitores do livro). Este aspecto talvez seja o “detalhe” mais realista – ainda que
ficcional – do “romance”, pois se as perseguições a comunistas há muito ficaram para trás,
determinadas “opções” nucleares continuam rigorosamente atuais (um pouco como uma

276
baleia que emerge de vez em quando para respirar, segundo uma imagem, hors-roman, do
autor).
Hoje, aliás, os perseguidos dos anos 1970 se encontram em grande medida no poder –
alguns até pretendendo se vingar de seus antigos torturadores – e revelações de arquivos
diplomáticos (muito antes do Wikileaks) já demonstraram algumas facetas da colaboração de
diplomatas com os antigos serviços de repressão. Max, quaisquer que sejam suas encarnações
reais, continuou, no romance, atuando nas entrelinhas desses tempos sombrios, sempre com as
cautelas necessárias, para emergir depois, aparentemente impoluto, e se adaptar aos novos
tempos de república dos companheiros. Ele sobreviveu de um jeito ou de outro, até ver os
antigos perseguidos do regime no comando do novo Estado, em uma situação de poder à qual
ele mesmo aspirava chegar, como uma espécie de Santo Graal meritório, por suas grandes
qualidades intelectuais (também reconhecidas pelos agentes da CIA e do MI6).
Diplomatas e leitores externos ficarão perturbados, por diferentes razões, pelo
desenvolvimento geral da trama deste “romance verdadeiro”, que refaz, por assim dizer, o
itinerário dessa geração de diplomatas que teve de conviver, suportar ou então se aproveitar –
no caso de muitos – das novas condições criadas pelo regime militar no Brasil. Ainda não
existe uma história – por algum insider ou por um historiador profissional – de como o
Itamaraty “conviveu” com – e se adaptou a – esses tempos sombrios, embora eu mesmo tenha
tentado reconstituir uma parte da história neste capítulo de um livro coletivo: “Do
alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, “Tempo
Negro, temperatura sufocante": Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Sem se lograr,
contudo, a colaboração dos envolvidos, é virtualmente impossível reconstituir as tramas mais
importantes desse período que muitos querem esquecer.
Os próprios diplomatas que viveram esses tempos – o que não foi o meu caso, para
aquela fase precisa da “diplomacia blindada”, digamos assim – ainda não escreveram sobre
isso e duvido que venham a empreender a dolorosa tarefa de falar sobre as pequenas e grandes
misérias do período. Que Edgard Telles Ribeiro o tenha feito – ainda que sob a forma de um
“romance verdadeiro” – oferece uma prova de sua coragem, depois de tantos romances e
livros de contos, em lançar-se no que poderia ser chamado de “revisão intelectual” de alguns
dos personagens mais emblemáticos do ancien régime militar.
Um livro perturbador para uns e outros da carreira, certamente curioso, ou mais do que
isso, para os de fora, em todo caso inédito para os padrões reservados ou circunspectos da
Casa de Rio Branco. Os interessados na História, a real, tentarão estabelecer onde termina a
realidade e onde começa a ficção; uma separação muito difícil de se fazer, dado o próprio
277
envolvimento do autor com alguns dos que “colaboraram” – involuntariamente, por certo –
para a montagem do personagem principal. Algum psicanalista talvez diga que a obra
representou a forma de seu autor “matar” uma parte de seu passado, o que também é legítimo,
sobretudo para os que viveram intensa e preocupadamente aqueles anos de escolhas difíceis e
de futuros incertos. Nem todos os “sobreviventes” o fizeram com tanta dignidade e
honestidade intelectual quanto o autor deste “romance”.
Para todos nós, leitores, o importante é saber que o “romance” – quaisquer que sejam
suas partes de verdade e ficção – nos prende do começo ao fim, tão absorvedora é a “história”
e tão cativantes são a escrita e o estilo do autor: dá para ler, em menos de 24 horas, uma trama
de meio século...

Brasília, 8 fevereiro 2011.


Publicada na Revista de Economia e Relações Internacionais
(FAAP-SP; vol. 10, n. 19, julho de 2011, p. 183-186; ISSN: 1677-4973).
Divulgado em versão reduzida, sob o título “Diplomacia de capa e espada?” no Boletim ADB
(ano 17, n. 72, janeiro-fevereiro-março de 2011, p. 29-30).

278
O altermundialismo, uma enfermidade infantil da globalização

Paulo Roberto de Almeida:


Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização
(Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, xx+272 p.; ISBN: 978-85-375-0875-6)

Ridendo castigat mores.


Jean-Baptiste Poquelin, aliás Molière (1622-1673)

“O Brasil converter-se-á num dos mais formosos estabelecimentos do globo


(nada para isso lhe falta) quando o tiverem libertado dessa multidão de impostos,
desse cardume de recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros
monopólios não mais encadearem sua atividade; quando o preço das mercadorias
que lhe trazem não mais for duplicado pelas taxas que andam sobrecarregadas;
quando os seus produtos não pagarem mais direitos ou não os pagarem mais
avultados que os dos seus concorrentes; quando as suas comunicações com as
outras possessões nacionais se virem desembaraçadas dos entraves que as
restringem...”.
Guillaume-Thomas Raynal, conhecido como Abade Raynal,
Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
européens dans les deux Indes (Amsterdam, 1770);
Apud Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil
(3a. ed.; Rio de Janeiro: Topbooks, 1996), p. 58-59.

Incrível atualidade a da frase transcrita no frontispício deste livro, de uma das cabeças
mais lúcidas do século 18 francês. Antiescravagista em plena era do tráfico africano, pensador
iluminista, conhecedor das coisas do mundo, mesmo sem ter viajado fora da Europa ocidental,
o abade Raynal (Guillaume-Thomas) poderia ser descrito, em linguagem moderna, como um
“globalizador esclarecido”, categoria à qual eu mesmo me orgulharia de pertencer, se existisse
entre nós tal clube filosófico. Com efeito, a sua provocadora Histoire philosophique et
politique des établissemens & du commerce des européens dans les deux Indes pode ser
chamada de primeiro tratado da globalização dos tempos modernos, ou le premier traité de la
mondialisation, como prefeririam os franceses, sempre suscetíveis nessas coisas de
anglofonia.
Raynal começa o primeiro livro de sua enorme obra (6 volumes) proclamando a
revolução que tinha sido a passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma revolução então
começou no comércio, na potência das nações, nos costumes, na indústria e no governo dos
povos. Foi nesse momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram necessários:
os produtos dos climas equatoriais são consumidos nos climas vizinhos do polo; a indústria
279
do norte é transportada ao sul; os tecidos do Oriente vestem o Ocidente, e em todas as partes
os homens trocam suas opiniões, suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas enfermidades,
suas virtudes e seus vícios”. Além de lúcido, nosso abade era um visionário: “Tudo mudou e
tudo deve mudar ainda. Mas, as revoluções passadas e aquelas que ainda vão vir, podem ser
úteis à natureza humana? O homem, por causa delas, gozará um dia de mais tranquilidade, de
mais virtudes ou de mais prazeres? Poderão elas torná-lo melhor, ou elas apenas o mudarão
um pouco?” 1
Estas perguntas, filosóficas, de fato, são examinadas à luz da obra colonizadora dos
europeus: “Depois que se conheceu a América e a rota do Cabo, nações que não eram nada se
tornaram poderosas; outras, que faziam estremecer a Europa, se enfraqueceram. Como essas
descobertas influenciaram o estados dos povos? Por que, enfim, as nações mais florescentes
não são exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?” Ele começa a explorar
essas questões, partindo do pressuposto da unificação comercial do mundo sob a hegemonia
do se poderia chamar, hoje em dia, de capitalismo ocidental. A análise de Raynal é
absolutamente atual, podendo-se dizer que seus argumentos parecem referir-se à globalização
contemporânea.

Esta coleção de ensaios pessoais também é colocada sob o signo controverso da


globalização, aliás, bem mais do lado do abade Raynal do que dos modernos êmulos daqueles
representantes das correntes anti-iluministas que colocaram sua obra no index dos livros
proibidos e tentaram calar sua voz incômoda e libertária. Após a publicação da terceira edição
da sua História filosófica das duas Índias, seus inimigos a fazem condenar pelo Parlamento
de Paris, queimando-a em praça pública, enquanto ele se refugiava na Suíça (onde ele faz
construir um monumento em honra à liberdade). Ele frequenta em seguida as cortes de
Frederico II, da Prússia, e a de Catarina II, da Rússia.
Às vésperas da Revolução, ele encarna os ideais do Iluminismo e dos direitos
humanos e protesta contra a autocracia e a escravidão nos territórios coloniais, cujos horrores
ele conhecia por ser descendente de uma família de grandes comerciantes (e de traficantes).
Perseguido pelo ancien Régime, ele logo se coloca também contra os exageros do novo
regime, como declarado em sua carta à Assembleia Nacional em 31 de maio de 1791: “eu
alertei os reis quanto aos seus deveres; inquietai-vos que hoje eu fale ao povo dos seus erros”.

1
As obras de Raynal estão disponíveis em formato digital no site da Bibliothèque Nationale de
France, também através do portal da coleção Europeana: http://www.europeana.eu/portal/brief-
doc.html?start=1&view=table&query=Abb%C3%A9+Raynal.
280
Com efeito, mesmo os bem intencionados cometem erros, como por exemplo, hoje, os
chamados altermondialistes franceses – e seus seguidores miméticos no Terceiro-Mundo,
conhecidos como antiglobalizadores –, ao pretender substituir as iniquidades da globalização
capitalista por sistemas econômicos que fariam os povos das antigas colônias ainda mais
pobres do que eles já são.
De fato, ao examinar os escritos, declarações, manifestos, slogans e consignas dos
antiglobalizadores, e ao confrontá-los com os dados da realidade, tanto no plano da história,
como da atualidade, ou ainda no âmbito da simples lógica formal, impossível não chegar à
conclusão de que eles se equivocam redondamente sobre o mundo, seus problemas e
respectivas soluções. Pode-se, inclusive, parafrasear a velha frase: nunca, tantos se enganaram
tanto, sobre tantos assuntos.

Há muitos anos venho observado o curioso fenômeno da antiglobalização: não posso


me impedir de admirar e também de sorrir face à ingenuidade de tantos jovens, sinceramente
armados de idealismo, desejosos de corrigir os defeitos deste mundo. Mas tampouco posso
evitar uma sensação de cansaço ante tantos slogans repetidos, retomando aborrecidamente
chavões de décadas atrás, quando eu também marchava contra o imperialismo e a dominação
do capital financeiro internacional. Creio, sim, que o movimento altermundialista é uma
enfermidade infantil da globalização. Como não existe uma vacina contra ele, é preciso
esperar que os sinais da enfermidade se tornem cada vez mais tênues, até desaparecer por
completo, quando todos os jovens estiverem devidamente globalizados, como aliás já estão
os da antiglobalização (mas no seu caso, eles pegam continuamente o vírus com professores
alienados da academia).
Tenho menos complacência, justamente, em face desses velhos representantes da
academia, que parecem não ter aprendido absolutamente a partir do itinerário de desastres do
socialismo real, no século 20. Velhos sindicalistas podem ser perdoados por marcharem
contra a “deslocalização”, posto que, afinal de contas, eles não estão fazendo mais do que o
seu dever, ao defender a manutenção dos empregos de seus associados em seus respectivos
países. Mas, intelectuais de gabinete, que repetem slogans monotemáticos, simplificando uma
realidade complexa e induzindo jovens a se engajarem em causas perdidas, não são apenas
equivocados; eles também podem ser considerados intelectualmente desonestos, posto que
dispondo de todos os instrumentos para se informar (e se formar).
A acusação é grave, e ela se refere não apenas a equívocos materiais, digamos de
avaliação econômica da realidade. Ela tem a ver com um slogan absolutamente vazio, o tal de
281
“outro mundo possível”: jamais fomos contemplados com a arquitetura desse outro mundo
prometido, nunca apresentado em seus contornos materiais ou sequer “filosóficos”. Esses
acadêmicos vivem do movimento pelo movimento, numa espécie de moto perpétuo mental,
aliás, girando em circuito fechado, posto que imune e isolado de todo e qualquer debate que
não seja no interior do próprio movimento.
Ao condenar o tal de “pensamento único” – que seria, supostamente, o do
neoliberalismo – esses acadêmicos alienados conseguem ostentar o mais rígido pensamento
único conhecido na atualidade. De resto, o conjunto do movimento antiglobalizador pode ser
acusado de sectarismo e tribalismo: só podem participar dos seus encontros, aqueles que
aderem ao credo filosófico que constitui a “bíblia” do movimento antiglobalizador. Os que
não estão habituados aos rituais da tribo encontrarão nesta coleção de ensaios farto material
probatório.
Os trabalhos aqui compilados falam por si mesmos. Eles tanto dão a palavra ao
movimento antiglobalizador – pois que reproduzindo fielmente suas teses e argumentos mais
repetidos – quanto se dedicam à anatomia desse pensamento redutor e simplista. Cada um dos
ensaios está datado cronologicamente, o que explica pequenas repetições nos argumentos aqui
e ali. De resto, eles devem se sustentar por si mesmos, e submeter-se à crítica dos leitores,
entre os quais espero encontrar muitos jovens idealistas e alguns irredutíveis
antiglobalizadores. Não tenho o hábito de ser politicamente correto, nem o de dobrar-me a
conveniências do momento. Alguns dos trabalhos aqui compilados, já publicados
anteriormente, podem explicar minha posição singular tanto na academia, quanto em outros
ambientes. Não sou de esconder minhas posições. A todos de julgar.

Shanghai, 10 de abril de 2010.


Prefácio ao livro publicado.

282
Na diplomacia, entre a história e as ciências humanas

Paulo Roberto de Almeida:


Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da
globalização
(Rio de Janeiro: LTC, 2012, 330 p.; ISBN 978-85-216-2001-3)

Um livro é como uma garrafa atirada ao mar...


Esta aqui foi lançada pela primeira vez em 1998, novamente lançada ao largo em
2004. Ao que parece, encontrou pela frente muitas ilhas acolhedoras, algumas
enseadas intelectuais, vários portos, talvez um ou dois continentes acadêmicos, tanto
que terminou por desaparecer…
A “garrafa” que é agora lançada, com novo rótulo e um conteúdo algo modificado
(espero que para melhor, ou pelo menos mais amadurecido), está destinada a navegar
por mais alguns anos, a caminho da Ítaca dos livros, minha meta intelectual
inatingível…

Esta garrafa está sendo lançada ao mar pela terceira vez, desta vez com novos bilhetes
e algumas velhas mensagens em formato renovado. O que pode esperar um náufrago
concentrado nas leituras, nos estudos e na escritura, como eu? Talvez que seus recados
encontrem boas praias, aqui e acolá, e possam servir de sinalização ou de boa orientação para
todos aqueles que estejam em busca de alguns mapas acerca da globalização contemporânea.
A cartografia marítima sofreu algumas mudanças, mas o espírito e a motivação com que
foram escritos os estudos aqui “engarrafados” são os mesmos que presidiram à sua feitura,
quando do meu primeiro livro.
A obra que inspirou este novo texto encontrava-se há certo tempo fora de estoque e
talvez até fora do catálogo da editora universitária que responsabilizou-se pelas duas edições.
Muitos alunos me escreviam, assim como professores e pesquisadores, para relatar que
estavam tendo dificuldades de achá-la, mesmo nos sebos. Tentava consolá-los, recomendando
busca nas bibliotecas universitárias, mas é evidente que isso não é suficiente, inclusive porque
as bibliotecas universitárias no Brasil não representam exatamente um modelo de abundância
bibliográfica. Cabia, então, enfrentar o desafio de um novo livro, inspirado no anterior, porém
agora profundamente revisto, ampliado e atualizado: esta nova garrafa, que o leitor tem agora
em suas mãos.
Não vou estender-me sobre os temas já tratados no prefácio, pela simples razão de que
vários daqueles textos foram incorporados a esta edição, com as exceções que menciono
abaixo. Vou aproveitar a oportunidade para abordar novos temas, que me parecem relevantes,
283
mais de uma década e meia depois da “explosão” dos cursos de relações internacionais no
Brasil, assunto que abordei em inúmeros textos breves, geralmente divulgados em blogs, sites
especializados ou em resposta a questionários submetidos por pesquisadores, alunos e
jornalistas.
Tal como concebida, inicialmente, esta obra não se destinava, exatamente, à
preparação de candidatos à carreira diplomática, embora ela possa servir também a esse
objetivo. Ela tinha sido elaborada, um pouco improvisadamente, como uma coleção de
estudos tipicamente acadêmicos em torno de meus temas preferidos de estudo e trabalho,
como por exemplo os que ainda figuram na primeira parte do livro atual. Havia também os
que sintetizavam uma pesquisa empírica sobre o papel dos partidos políticos e do parlamento
na política externa, que ainda figuravam na segunda edição, mas que agora partem para uma
nova aventura ao largo, provavelmente destinada a consolidar minhas reflexões nessa área em
alguma nova obra com maior amplitude temática e alguma ambição comparativa.
Outros, concebidos como livre expressão de minhas reflexões sobre a “ideologia” e a
“economia” da política externa, ou ainda um ensaio histórico sobre a formação da diplomacia
moderna na era dos descobrimentos, também foram “lançados ao mar”, para abrir espaços a
trabalhos mais elaborados. Aqui figuram, pois, engarrafados em nova “embalagem”, a de uma
grande editora, estudos sobre as diplomacias comercial e financeira do Brasil nos últimos
sessenta anos, sobre o impacto das crises financeiras na economia brasileira e, sobretudo,
sobre a inserção desta nas grandes correntes da interdependência contemporânea, revoltas
como podem ser essas ondas turbulentas da globalização, capazes de se transformar
repentinamente em tsunamis gigantescos.
Revisei, ampliei e atualizei escrupulosamente cada um dos trabalhos, inclusive o que
figura ao final, sobre a arquitetura institucional do multilateralismo contemporâneo, um
levantamento que começou a ser feito manualmente quando do momento de sua primeira
concepção e que atualmente se beneficia de bases de dados online e outros recursos de
internet. Este “navegador”, aliás, continua a surfar nas horas vagas (e nas outras também),
anima uma lista de informação e debates sobre os temas que correspondem a suas afinidades
eletivas e também mantém um blog, feito mais para divertimento inteligente do que
propriamente para efeitos didáticos. Para essa função, existe um site pessoal, que parece ter
algum sucesso na “googlemetria” das pesquisas sobre temas de relações internacionais e de
política externa do Brasil. Pelo menos assim constato pela correspondência que chega em
diversos formatos e variados graus de urgência a propósito de trabalhos universitários e de
consultas sobre a carreira diplomática. Acredito que a satisfação derivada dessas horas
284
dedicadas a esse esforço voluntário de educação à distância de tantos jovens em busca de sua
vocação ou de seu aperfeiçoamento universitário ou profissional seja equivalente ao
crescimento progressivo da produção intelectual voltada para esse campo das relações
internacionais, tanto a própria, deste navegante solitário, quanto a da crescente comunidade de
internacionalistas acadêmicos.
O que tem, precisamente, caracterizado esse universo de estudos é o avanço da
produção científica de boa qualidade, o surgimento e a expansão de redes de pesquisa, muitas
delas interconectadas e em ativa cooperação recíproca e a consolidação de uma comunidade
que está quase próxima de uma espécie de “profissionalização”. Quando este livro foi
publicado pela primeira vez estávamos ainda a dez anos do surgimento de uma associação
acadêmica voltada exclusivamente para esse universo em formação – a ABRI, Associação
Brasileira de Relações Internacionais – mas já assistíamos à explosão dos cursos de graduação
nessa área, depois de anos de algumas experiências solitárias e raríssimos programas de
especialização em nível de pós-graduação. O livro não foi composto com o objetivo
específico de atender alguma demanda didática desse universo em expansão, mas pode-se
dizer que ele preencheu um nicho de mercado, no que, aliás, alcançou certo sucesso, já que
estamos em seu terceiro lançamento, aparentemente com boa aceitação da comunidade de
“produtores” e “usuários” de textos especializados.
A intenção, agora, é que esta “garrafa” possa navegar mais alguns anos, em direção de
antigos portos ou, preferencialmente, em busca de novas praias, e consiga manter o prumo em
sua missão de guia dos estudos de qualidade para uma comunidade que possuiu sua própria
identidade intelectual e já criou uma cultura de pesquisa e produção centrada sobre questões
tipicamente brasileiras e regionais, em lugar de se basear apenas nos textbooks importados.
Este livro é parte desse processo e sua navegação continuada parece refletir o sucesso
crescente desse universo em expansão.

Brasília, junho de 2011.


Prefácio ao livro publicado.

285
O Barão, em todos o seus estados...

José Maria Paranhos da Silva Jr.; Manoel Gomes Pereira (editor):


Obras do Barão do Rio Branco, 12 volumes
(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012; ISBN: para cada volume)

Manuel Antonio da Fonseca Couto Gomes Pereira (organizador):


Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória
(Brasília: Funag, 2012, 748 p.; ISBN: 978-85-7631-413-4)

Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos (curador):


Rio Branco: 100 anos de memória
(Brasília: Funag, 2012, 80 p.)

Ângela Porto (organizadora):


Barão do Rio Branco e a caricatura: coleção e memória
(Brasília: Funag, 2012, 176 p.; ISBN: 978-85-7631-414-1)

No ano em que se comemorou o centenário da morte do Barão, as editoras comerciais


brasileiras estiveram estranhamente contidas na publicação de obras dele ou sobre ele. De
interessante, registramos apenas o livro de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, O
evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira, publicado por uma editora
universitária (a Unesp) e objeto de pequena nota no Prata da Casa do n. 78 (julho-agosto-
setembro de 2012) do Boletim da ADB. Em compensação, a Funag, por razões mais do que
óbvias, primou pela presença editorial e pela qualidade do material produzido, sendo
acompanhada no belíssimo empreendimento pelo Centro de História e de Documentação
Diplomática, em sua série de Cadernos do CHDD.
Comecemos pela republicação de suas obras (mais que) completas, um projeto que
recebeu um cuidado especial do seu editor, embaixador Manoel Antonio da Fonseca Couto
Gomes Pereira. Todo o mérito lhe cabe por ter, não apenas mandado redigitar, corrigir e
melhorar todos os nove volumes originais (em dez tomos numerados), bem como o volume
introdutório (não numerado), mas também por ter encomendado a diversos especialistas novas
apresentações e introduções a esses volumes, além de um décimo volume dedicado
inteiramente aos artigos de imprensa, numerosos, só perdendo em volume para os dois tomos
das efemérides brasileiras. Poucas bibliotecas universitárias, nem mesmo grandes bibliotecas
públicas, tinham o privilégio de possuir a coleção preparada em 1944-45, divulgada no
centenário do seu nascimento (e até 1948), quando também se criou o Instituto Rio Branco e
foi publicada a biografia assinada por Álvaro Lins, encomendada pelo MRE (mas preparada

286
em toda autonomia intelectual). Todas essas instituições, mais o público interessado, podem
ter acesso agora aos muitos quilos deste pacote monumental, belo em sua apresentação,
riquíssimo em seus novos conteúdos, inteiramente editado em português, e com todos os
mapas.
Com efeito, as novas apresentações são primorosas e valeriam uma reedição
exclusiva, integrando-as num volume suplementar, a começar pela “introdução da
introdução”, isto é, a “releitura” da Introdução original, antes assinada por um discípulo,
Araujo Jorge, agora por um herdeiro intelectual, o embaixador Rubens Ricupero. Todos os
demais volumes (à exceção do segundo tomo das efemérides) trazem, portanto, apresentações
ou textos introdutórios totalmente inéditos (à exceção, novamente, das Efemérides, já objeto
de uma apresentação do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, para uma edição anterior
do Senado Federal). O primeiro volume, por exemplo, recebe um estudo do historiador e
professor do IRBr, Francisco Doratioto, sobre a questão de Palmas. Os três volumes
seguintes, sobre as questões de limites com a Guiana Inglesa e as duas memórias sobre a
Guiana francesa, foram traduzidas do francês, e mereceram brilhantes apresentações do
historiador José Theodoro Mascarenhas Menck e do diplomata-historiador Gonçalo de Barros
Carvalho e Mello Mourão.
O Barão escreveu sua Mémoire sur... la Guyane Britannique praticamente como uma
extensão de sua redação do caso da Guiana francesa, e ela seria a base das três memórias, em
18 volumes, que Joaquim Nabuco escreveria para a pendência arbitral com a Grã-Bretanha. A
despeito da riqueza do material e da justeza da causa brasileira, a solução dada pelo rei
italiano foi recebida com indignação no Brasil, daí a disposição do Barão em passar,
doravante, a negociar diretamente os novos litígios fronteiriços. A disputa com a França era
bastante complicada, e o Barão dedicou imensos esforços na coleta de material primário e no
ordenamento de seus argumentos; ainda assim ele se queixou de não poder preparar “nem a
quarta parte do que poderia ter dito se com vagar pudesse preparar a nossa defesa” (III, p. 31).
As seis exposições de motivos do vol. V, dedicadas aos tratados e convenções que o
Barão negociou com a Bolívia, Equador, Colômbia, Peru, Uruguai e Argentina, são
apresentadas pelo embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, que observa que o Barão
negociou, ademais, um tratado com a Holanda sobre o Suriname, não constante desse volume,
sem mencionar o curioso fato do tratado de 1904 com o Equador (condicionado, porém, ao
seu ajuste com o Peru), depois nulificado pelos eventos de 1942. Os dois grossos volumes das
Efemérides integram as notas sobre os eventos históricos do dia que o Barão preparava
regularmente e que foram publicadas, em sua maior parte, no Jornal do Brasil, criado em
287
1891; as inéditas foram depois publicadas por Lauro Muller, mas o Barão foi atualíssimo,
chegando a mencionar os funerais de D. Pedro II em Lisboa, em 12 de dezembro de 1891.
As quatro biografias do vol. VII – os combatentes na Cisplatina, capitão de fragata
Luís Barroso Pereira, barão do Cerro Largo e o almirante James Norton, e a do visconde, seu
pai – são apresentadas pelo embaixador Carlos Henrique Cardim, que relembra que estes
trabalhos poderiam ser vistos na perspectiva da história militar e diplomática que o Barão
prometia fazer e que nunca pode cumprir; todos eles foram publicados em revistas, por ele ou
posteriormente (o do pai), este na Revista Americana, que ele mesmo havia criado para
acolher os grandes intelectuais do Brasil e da região. Cardim lembra, ainda, que Rio Branco
tinha perfeita consciência dos erros cometidos por Portugal e da necessidade de estabilizar as
fronteiras do Sul, o que ele de fato fez.
Os quatro estudos históricos do vol. VIII foram introduzidos pelo embaixador Sérgio
Bath, que aliás traduziu o Esquisse da história do Brasil que o Barão tinha feito para a
Exposição Universal de Paris de 1889, e que já tinha sido publicado em 1992. O ultimo
volume (IX) da coleção original contem todos os discursos que foi possível arrebanhar, em
1944, pelo diplomata Roberto Assumpção, e novamente introduzidos pelo curador da coleção
de 2012, embaixador Manoel Gomes Pereira: são 52 discursos, desde 1869, como deputado
na Assembleia Geral do Império, até o último, de 1911, no Clube Militar, quando se
inaugurava o quadro a óleo com o seu retrato; eles sintetizam a imensa atividade de Paranhos
Jr, como político, como historiador, como diplomata e, sobretudo, como homem de ação,
mais talvez do que um teórico de academia. O décimo volume da coleção atual, contendo os
artigos de imprensa, foi organizado pelo próprio curador, novamente, mas conta com prefácio
do embaixador Álvaro da Costa Franco, infatigável organizador de várias outras obras do e
sobre o Barão, já publicadas nos Cadernos do CHDD, com destaque para um número especial
(segundo semestre de 2012) com artigos antigos e atuais, discursos e palestras, coletados pelo
curador da coleção geral. O Barão, agora, está praticamente completo, a não ser que apareçam
inéditos extraviados (no exterior, por exemplo), ou memórias desconhecidas...
A outra publicação relevante de 2012 é a obra coletiva Barão do Rio Branco: 100
Anos de Memória (Brasília: Funag), que recolhe, sob a coordenação do mesmo curador das
obras completas, todas as contribuições ao seminário internacional organizado pela Funag e
pelo IHGB, realizado no Rio de Janeiro, em maio, com a participação de estudiosos
acadêmicos e de diplomatas voltados a essa área de estudos. Como o volume similar
publicado por ocasião do centenário de sua posse como chanceler, em seminário realizado em
Brasília, em 2002 (Carlos Henrique Cardim e João Almino (orgs.), Rio Branco, a América do
288
Sul e a Modernização do Brasil), esta obra apresenta o perfil típico dos empreendimentos
muito vastos, com leituras amplas e diversificadas sobre o desempenho prático e o legado,
realmente grandioso, do patrono da diplomacia brasileira, mas sem que ela exiba,
necessariamente, um fio condutor ou uma mesma identidade conceitual em torno das ideias
ou ações do grande chanceler.
Vários dos trabalhos apresentam, contudo, abordagens inéditas sobre a atuação do
Barão e podem servir de guia para novas pesquisas de estudantes e de profissionais da
diplomacia, na recuperação de algumas das características e permanências da diplomacia
brasileira, antes e depois da era do Barão, ou seja, sua atuação nas questões de limites e,
depois, sua longa gestão à frente do Itamaraty. Ao tomar posse, em 1o. de dezembro de 1902,
Rio Branco explicitou sua concepção da política externa, que não deveria ser uma política de
governo, e sim de Estado: “Não venho servir a um partido político, venho servir ao Brasil...”,
ou seja, a mesma atitude que ele teve nas questões de Palmas e do Amapá, nas quais ele dizia
ter defendido “causas que não eram de uma parcialidade política, mas da nação inteira.”
(Obras, 2012: IX, 108).]
O Barão foi considerado um “herói da pátria” não apenas em função de suas vitórias
em processos arbitrais e negociais, mas também por não ter sido sectário, e por ter conduzido
uma diplomacia voltada unicamente para o interesse nacional, no sentido mais profundo do
termo. Rio Branco, como demonstram vários dos trabalhos coletados, foi um estadista
realista, mas não cínico, e sim um pragmático que buscou reformar a política relativamente
isolacionista do Império na América do Sul; ele conseguiu, sem nenhum apelo a uma vã
liderança regional ou arroubos de grandeza mundial.
Dois outros livros, ou álbuns ilustrados, completam a série de obras comemorativas da
Funag: o guia da exposição organizado pelo historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe
Gomes Santos, que conseguiu coletar um vasto acervo iconográfico em muitas instituições
públicas e privadas do Brasil, e o agradabilíssimo álbum em torno das caricaturas do Barão,
organizado por Ângela Porto. Ambos contaram com a colaboração de muitos pesquisadores e
técnicos, entre os quais se destaca Maria do Carmo Strozzi Coutinho, responsável editorial no
Centro de História e Documentação Diplomática; as duas obras exibem belos projetos
gráficos. A exposição segue linhas clássicas, mas as centenas de caricaturas são reveladoras
do espírito da época e dos verdadeiros sentimentos da população, bem diferentes do discurso
político e do preciosismo diplomático, encobridores de uma realidade bem mais complexa, e
mais divertida, do que o politicamente correto (já naquela época) das versões oficiais. Ambos
são obras de arte, como já tinha sido a magnífica biografia fotográfica, com texto de Rubens
289
Ricupero, e organização, iconografia e legendas de João Hermes Pereira de Araujo, também
publicada pela Funag em 1995 e reeditada em 2002.
Essas muitas obras revelam o Barão em todos os seus estados e situações, em seu
contexto político, em sua grandeza e limitações pessoais, em sua dimensão humana e de
grande estadista, que ele foi. Um homem de todas as estações, que nunca se desdisse e que
nunca permitiu que seu trabalho servisse a outros fins que não o engrandecimento da nação,
bem acima das querelas políticas e das quizílias partidárias.

Hartford, 20 de março de 2013.


Publicado no Boletim ADB
(ano 20, n. 80, janeiro-fevereiro-março 2013, p. 4-7).

290
Integração regional e minilateralismo: um dilema de nossa época

Paulo Roberto de Almeida:


Integração Regional: uma introdução
(São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; Coleção Temas Essenciais em Relações Internacionais n.
3; ISBN: 978-85-02-19963-7)

Este livro, ainda que modesto em suas dimensões, e deliberadamente sintético em seus
argumentos substantivos – como, aliás, requerido pela coleção –, consolida um itinerário
bastante longo de estudos, pesquisas dirigidas, atividades práticas e de escritos publicados
sobre os processos de integração regional, em suas diferentes variantes institucionais e em
suas múltiplas manifestações geográficas e políticas. Trata-se, como o subtítulo indica, de
uma introdução, daí ter o autor resumido muitos outros trabalhos – seus ou de pesquisadores
mais reputados, inclusive estrangeiros – em um texto que se atém ao essencial do que
constitui um dos mais importantes processos dinâmicos da globalização contemporânea e do
sistema multilateral de comércio, administrado, desde 1995, pela Organização Multilateral de
Comércio.

O fenômeno da regionalização, em si, é obviamente bem mais antigo do que isso,


sendo propriamente secular, ainda que sob outros formatos e roupagens; assim como são mais
antigas – mesmo se de apenas duas ou três décadas – as preocupações deste autor com suas
manifestações concretas, aliás despertadas desde o nascimento do Mercosul, que constituiu,
justamente, o tema de seu primeiro livro: O Mercosul no contexto regional e internacional
(São Paulo: Aduaneiras, 1993), obra hoje esgotada. Seguiu-se outro livro, mais sistemático,
sobre esse importante bloco de comércio do hemisfério meridional – Mercosul: fundamentos
e perspectivas (São Paulo: LTr, 1998) – e, dois anos depois, uma sua versão atualizada, em
perspectiva comparada com a União Europeia, publicada na França: Le Mercosud: un marché
commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000). Entre os dois, uma obra
didática, fazia uma análise, de amplo escopo histórico, das experiências existentes nessa
modalidade de liberalização comercial no âmbito do sistema multilateral de comércio: O
Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999).
Seguiram-se artigos, conferências e palestras sobre a integração regional, em especial
sobre o Mercosul e a Alca, inclusive vários capítulos preparados para integrar livros coletivos.
Todos esses escritos tinham a preocupação primordial de situar historicamente esse fenômeno
e de contextualizá-lo no quadro dos experimentos em curso na América Latina; exibiam,
291
também, o cuidado com o lado didático, traço sempre presente neste autor, constantemente
dividido entre a atividade profissional na diplomacia brasileira e o empenho voluntário na
docência universitária.
Muitas dessas reflexões, inclusive sobre o chamado “minilateralismo”, foram mais
recentemente objeto de uma grande síntese multidisciplinar, em livro que reuniu diferentes
estudos meus sobre a integração, no contexto mais vasto da ordem mundial contemporânea:
Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da
globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012). Essas análises abrangentes, elaboradas no
momento mesmo da implementação desses processos – ou no próprio ato de sua criação,
como, por exemplo, no caso do Mercosul – estavam marcadas, em todos os escritos referidos,
por uma tripla combinação metodológica: a de uma abordagem propriamente histórica,
inserida numa explanação basicamente econômica desses fenômenos, mas com a visão
política indispensável que costuma guiar um analista acadêmico doublé de negociador prático,
como este que escreve.
Com efeito, os trabalhos publicados sobre a integração e o Mercosul – cuja lista
completa pode ser conferida no site pessoal deste autor: www.pralmeida.org – se
beneficiaram, certamente, da pesquisa bibliográfica e da reflexão de tipo acadêmico, mas
foram, sobretudo, o fruto do envolvimento do autor com processos concretos de negociações
comerciais regionais e multilaterais ao longo de uma carreira diplomática basicamente
articulada em torno das relações econômicas internacionais do Brasil: primeiro, no contexto
da Rodada Uruguai do Gatt, em Genebra; depois, no foro negociador da Aladi, em
Montevidéu; em seguida, na própria unidade encarregada dessas áreas na Secretaria de Estado
das Relações Exteriores, no Itamaraty, em Brasília; na sequência, em muitas reuniões de
trabalho do processo negociador da Alca, em Miami; ocorreu, também, uma abordagem
paralela, não necessariamente única ou exclusiva, desses fenômenos durante minhas estadas
em Paris – inclusive acompanhando os trabalhos da OCDE nessa área – e em Washington,
sede dos mais importantes organismos multilaterais econômicos – entre eles o Banco
Interamericano de Desenvolvimento e a OEA, que promovem e estimulam importantes
estudos sobre a integração regional nas Américas – e de alguns think tanks e fundações que
também estudam intensamente essas modalidades de liberalização comercial, com destaque,
nessa capital, para o Nafta e, então, para o frustrado processo negociador da Alca.

Estas referências pessoais – aparentemente exageradas – visam unicamente


demonstrar que este pequeno livro não é apenas o reflexo, ou o resultado, de mera pesquisa
292
conduzida em livros ou mediante uma rápida síntese de leituras variadas; ele é,
essencialmente, o resultado de um longo envolvimento prático com negociações concretas de
experimentos de integração regional, bem como de um conhecimento direto do
funcionamento interno do Mercosul, da Aladi e, ainda que de modo indireto, da União
Europeia e do Nafta (para não mencionar a natimorta Alca). Foi a constante convivência com
todos esses mecanismos, instituições e negociações, bem como com seus eventuais percalços
ou retrocessos, que permitiu ao autor discorrer, linearmente, em sucessivos capítulos desta
obra, sobre os mais diferentes exemplos de integração regional, praticamente sem recorrer a
extensas pesquisas preliminares, dispensando até os livros de história, uma vez que ele
assistiu, foi protagonista, ou contemporâneo, de muitos dos processos que vão aqui descritos
em seus traços essenciais.

Sem qualquer falsa modéstia, o livro consolida, por assim dizer, a trajetória pessoal,
tanto intelectual quanto diplomática deste autor, motivo pelo qual possui, legitimamente, uma
credibilidade que poucas obras puramente acadêmicas podem exibir. Ele certamente não está
isento de limitações e de insuficiências – várias motivadas pelo formato voluntariamente
sintético e didático que assumiu por opção – em função das quais deve, como ocorre em todos
os casos, submeter-se às críticas dos especialistas, sejam eles economistas acadêmicos ou
negociadores profissionais.
Em qualquer hipótese, uma característica provavelmente distingue o autor dos
escritores de gabinete e, certamente, de muitos dos diplomatas da área: ele elaborou esta obra
com pleno conhecimento de causa e com toda a honestidade intelectual de que é capaz um
autor que, ainda que pertencendo a uma carreira de Estado, estabelece como sendo as
principais tarefas do analista, sua missão primordial, a fidelidade aos fatos e o indispensável
rigor analítico. Aos leitores, agora, a missão de avaliar se este esforço atende às suas
expectativas.

Brasília, outubro de 2012.


Prefácio ao livro publicado.

293
Personagens da diplomacia brasileira, de 1750 a 1964

José Vicente Pimentel (organizador):


Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-
1964)
(Brasília: FUNAG, 2013, 1138 p. em 3 volumes; ISBN 978-85-7631-462-2)

Não parece haver dúvidas que a diplomacia brasileira dispõe, historicamente, de


ideias, ou de um pensamento, a sustentar-lhe as ações. Uma adesão inquestionável ao direito
internacional, o não recurso à força para a resolução de disputas entre Estados, o respeito a
não-ingerência e à não intervenção nos assuntos internos de outros países, a observância dos
direitos humanos e de um conjunto de valores próprios ao nosso patrimônio civilizatório, são
todos elementos constitutivos da ação diplomática brasileira, ainda que não se possa dizer que
eles sejam exclusivamente ou essencialmente brasileiros, na forma e mesmo no conteúdo.
Não obstante, ao longo de sua história, o Brasil teve de apelar para todos os recursos
do direito internacional, para as suas capacidades próprias e, algumas vezes, até para a força
das suas armas, para fazer valer a sua integridade territorial, sua soberania nacional, a honra e
a defesa da pátria, quando ameaçadas por algum contendor regional ou extra-atlântico. Para
tanto apoiou-se naquelas ideias, naquele conjunto de valores e princípios, eventualmente
adaptados às suas necessidades específicas e às circunstâncias que presidiram a cada tomada
de decisão em relação ao desafio em causa. Os desafios estiveram geralmente ligados à
definição dos limites do “corpo da pátria” – sempre pelas negociações, desde a independência
–, ao equilíbrio de poderes e à liberdade de acesso nas fronteiras platinas, às relações com as
grandes potências europeias e, depois, com o grande poder hemisférico, à abertura de
mercados para os seus produtos e o acesso às fontes de financiamento para o seu
desenvolvimento, à participação, em bases equitativas, nas grandes definições relativas à
ordem mundial, sua manutenção e funcionamento em bases adequadas à cooperação
multilateral.
As ideias e as ações foram as de seus líderes políticos, seus dirigentes estatais, seu
corpo de profissionais da diplomacia, seus intelectuais e os membros da elite, de forma geral.
Essas ideias e essas ações não existem, portanto, em abstrato, mas sim conectadas a pessoas
que a elas aderem e que as fazem movimentar-se, em função de seu próprio substrato
intelectual, de seu envolvimento com os assuntos públicos, de sua iniciativa e mobilização
numa causa que ultrapassa a dimensão específica das vidas privadas e das atividades
profissionais: as pessoas passam a encarnar os interesses do Estado. (...)
294
O ponto de partida desta obra antecede o ano da constituição formal do Estado
brasileiro, em 1822, já que não se poderia excluir de uma obra de referência como a que se
pretendia elaborar a contribuição do chamado “avô da diplomacia brasileira”, o personagem
que aliás dá o nome à Fundação que se responsabilizou pelo projeto: Alexandre de Gusmão.
Ele foi, justamente, o foco do primeiro capítulo substantivo do livro, na parte que tratou das
concepções fundadoras da diplomacia brasileira. Essa parte ainda abriga alguns dos “pais
fundadores” da nação e do Estado brasileiro, assim como da própria diplomacia: José
Bonifácio, seguido de Paulino Soares de Souza, Duarte da Ponte Ribeiro, Francisco
Varnhagen, Honório Hermeto Carneiro Leão, o Visconde do Rio Branco e o “mais longo”
secretário geral da história do ministério, Cabo Frio.
A segunda parte, voltada para a política internacional da Primeira República, tratou de
alguns grandes nomes que vieram do Império, mas que engrandeceram a diplomacia
republicana, começando por Joaquim Nabuco. O Barão do Rio Branco ocupa papel de
destaque nessa fase, mas também seus amigos, e eventuais auxiliares, Ruy Barbosa e Euclides
da Cunha, que também cumpriram missões diplomáticas sem serem profissionais do serviço
exterior. Dois outros diplomatas, Manoel de Oliveira Lima, também historiador e articulista, e
Domício da Gama, completam esse primeiro ciclo republicano. Aqui entrou também o jurista
Afrânio de Melo Franco, que iniciou uma carreira diplomática, foi para a política, exerceu
diversas missões diplomáticas durante a República Velha – entre elas a frustrada missão de
colocar o Brasil no conselho da Liga das Nações – mas que também foi o primeiro chanceler
do novo regime, em 1930, na verdade da junta militar que negociou com os revolucionários, e
que continuou sob o governo provisório de Getúlio Vargas.
A terceira e última parte cobre toda a era Vargas e a República de 1946, começando
pela própria reforma do Estado e a modernização da diplomacia, iniciada sob Afrânio de
Melo Franco e continuada por Oswaldo Aranha, o homem que terminou de unificar as
carreiras do ministério, e que não só liderou a revolução de 1930, como também manteve
firmemente o Brasil no campo democrático durante os tempos sombrios da ascensão do nazi-
fascismo e do Estado Novo no Brasil. O nome que primeiro representou a diplomacia
multilateral do Brasil foi o de Cyro de Freitas Valle, que teve em sua vertente econômica a
importante contribuição de Edmundo Penna Barbosa da Silva, ambos relativamente
desconhecidos, hoje, dos mais jovens. Outros nomes que ilustraram tanto a era Vargas quanto
o período democrático ulterior foram os do empresário e político José Carlos de Macedo

295
Soares (chanceler nos dois regimes) e o de um militar, o Almirante Álvaro Alberto, bastante
identificado tanto com o CNPq quanto com o primeiro programa nuclear brasileiro.
O final do período, cobrindo a fase otimista da presidência JK e os anos turbulentos
dos governos Jânio Quadros e João Goulart, foram representados pelas figuras do sociólogo
Hélio Jaguaribe, do historiador José Honório Rodrigues, pelo poeta Augusto Frederico
Schmidt, e pelos juristas e políticos Afonso Arinos e San Tiago Dantas. Finalmente, encerra o
exame das grandes personalidades, o nome do embaixador Araújo Castro, o último ministro
de Goulart e uma das cabeças que continuou a moldar a política externa brasileira nos anos à
frente, influente até nossos dias. Vários nomes ficaram de fora, não por exclusão deliberada,
mas por dificuldades práticas do próprio projeto, já de si bastante amplo e talvez ambicioso
demais; entre estes poderíamos citar Raul Fernandes, um jurista que vem do tratado de
Versalhes e da criação da primeira Corte Internacional de Justiça – dita de Arbitragem, à qual
seu nome está associado pela chamada “cláusula facultativa de arbitragem obrigatória” – e
João Neves da Fontoura, colega de Vargas e de Oswaldo Aranha na revolução de 1930 e duas
vezes chanceler sob a república de 1946.
A opção pelo corte ao início do regime militar deveu-se a considerações de ordem
prática: alguns dos personagens que atuaram na fase recente continuam presentes, de certa
forma, no desenho ou na execução da diplomacia. Um projeto para a fase contemporânea,
quase de “história imediata”, teria de balizar-se por outras exigências metodológicas. (...)

Esta obra afirma-se como um dos mais sérios projetos de natureza intelectual
implementados pelo Itamaraty. Não apenas uma coleção de biografias sintéticas, com muitas
considerações analíticas sobre as ideias e ações dos personagens selecionados, este
empreendimento pode ser visto como um exemplo de história intelectual, mesmo se alguns
personagens tenham atuado mais pela prática dos telegramas, dos memoranda, e dos
discursos, do que sob a forma de escritos sistemáticos (mas mesmo eles tinham uma
concepção precisa do como deveria ser a diplomacia brasileira à qual serviam). Todos eles
produziram narrativas sobre como viam e sobre como deveria ser a política externa, nos
expedientes de serviço ou nas obras e memórias produzidas. Foram estadistas, na concepção
lata da palavra, no sentido em que uma certa ideia do Brasil, geralmente grandiosa, estava
sempre presente nesses escritos, a guiar-lhes os passos nas decisões mais relevantes.
Foi essa tradição que o projeto pretendeu resgatar e expor. Com as eventuais
limitações que ela possa conter, este livro constitui um esforço pioneiro de identificação e de
apresentação das ideias e dos conceitos que balizaram, orientaram ou guiaram a formulação e
296
a execução prática das relações exteriores do Brasil, desde seu alvorecer, enquanto Estado
autônomo, até quase o final do segundo terço do século 20; espera-se que ela possa servir de
inspiração para outros empreendimentos do gênero ou para a continuidade do mesmo projeto.

Hartford, 14 de outubro de 2013.


Excertos da nota metodológica introdutória ao livro.

297
Terceira Parte
Livros de relações internacionais e de política
externa do Brasil
Resenhas de livros interessando diplomatas e acadêmicos

299
Pierre Renouvin, ou a aspiração do total
Contribuições à História Diplomática

Pierre Renouvin (ed.):


Histoire des Relations Internationales
(nouvelle édition; Paris: Hachette, 1994, 3 volumes; présentation du Prof. René Girault,
président de l’Institut Pierre Renouvin)
Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (876 p.)
Volume II: De 1789 à 1871 (706 p.)
Volume III: De 1871 à 1945 (998 p.).

A reedição, agora em três volumes de capa dura, da monumental coleção organizada


na década de 50 por Pierre Renouvin é uma grande notícia para todos os estudiosos que, por
simples curiosidade intelectual ou por obrigação professional, interessam-se ou são levados a
ocupar-se da temática das relações internacionais. Com efeito, todos aqueles que se dedicam à
pesquisa, ao ensino ou à mera leitura diletante nessa área, sempre souberam apreciar a riqueza
analítica e fatual, a qualidade estilística, bem como a abundante aparelhagem bibliográfica e
cartográfica dos oito volumes (encadernados nas edições precedentes) coordenados pelo
grande mestre francês da história diplomática global.
Desde essa época, os oito tomos sequenciais – por quatro autores – da Histoire des
Relations Internationales (publicados pela mesma editora entre 1953 e 1958) foram motivo de
leitura obrigatória e objeto de referência indispensável de todo e qualquer estudioso das
relações internacionais, de modo geral, e das políticas exteriores dos Estados modernos em
particular, sobretudo a partir de uma perspectiva europeia. Reeditados pela última vez em
1972, eles tinham se tornado praticamente inacessíveis, sobretudo do outro lado do Atlântico,
constituindo-se em verdadeiras preciosidades de bibliófilos e colecionadores. Junto com
outros trabalhos de história diplomática do mesmo mestre, falecido em 1974, assim como de
Jean-Baptiste Duroselle, seu discípulo e sucessor na Sorbonne, essa obra coletiva (mas
concebida por Renouvin em torno de 1950) marcou época na então nascente disciplina das
relações internacionais e constitui, ainda hoje, um marco da pesquisa histórica, mesmo se
aparentemente influenciada por uma “visão francesa” da política externa dos Estados.
Quarenta anos depois de seu lançamento original e tendo em conta não só a
multiplicação de estudos nesse campo, mas também a diversidade de abordagens e o acesso
ampliado a determinadas fontes documentais, como se sustenta o trabalho coordenado por
Pierre Renouvin?

301
Uma Totalgeschichte
O que distingue, antes de mais nada, os textos de François-L. Ganshof, Gaston Zeller,
André Fugier e do próprio Pierre Renouvin é uma vontade de ultrapassar os limites da história
política tradicional, na qual se comprazia ainda grande parte da história diplomática elaborada
nas universidades e academias do velho mundo. Estamos bem longe da chamada histoire
historisante, aquela feita de homens brilhantes e de momentos solenes, que aliás estava sendo
cruelmente “massacrada” pelos partidários da histoire structurelle agrupados em torno da
revista Annales, fundada nos final dos anos 20 por Lucien Febvre e Marc Bloch e retomada
depois da guerra por Fernand Braudel.
Trabalhando de forma independente ou paralelamente aos esforços desses
renovadores, Pierre Renouvin, recusando-se a deixar levar unicamente pelos documentos
revelados pelos arquivos diplomáticos, decide desde muito cedo colocar sua produção sob o
signo da “história global”. Na verdade, antes mesmo de vários representantes da école des
Annales (com a qual ele nunca foi formalmente identificado, provavelmente por trabalhar
num setor mais restrito), Renouvin já mantinha uma preocupação primordial com a história
totalisante, ou seja, com uma pesquisa extremamente diversificada, capaz de integrar de
forma harmônica os resultados e métodos das diversas áreas da disciplina.
Desde princípios dos anos 30, como explica o Prof. René Girault em sua apresentação
à esta nova edição do Histoire des Relations Internationales, Renouvin sublinha o caráter
relativo dos arquivos diplomáticos e faz apelo às “forças” morais e materiais que agitam o
mundo, convertidas vinte anos depois em “forças profundas” (Volume I, p. vi). Consciente de
que a análise dessas “forças profundas” levariam o seu trabalho um pouco além dos limites
estritos da disciplina à qual iria dedicar toda sua vida, o próprio Renouvin diz nas conclusões
gerais de sua obra: “A história das relações internacionais é (...) inseparável da história das
civilizações” (vol. III, p. 913). Na mesma época, aliás, Maurice Crouzet dirigia os muitos
volumes da Histoire Générale des Civilisations, vasto empreendimento editorial que serviria
de inspiração para Sérgio Buarque de Holanda propor entre nós uma História Geral da
Civilização Brasileira.
Abrindo o empreendimento, em princípios dos anos 50, Renouvin afirmava que a obra
então iniciada não era um “grande manual” de história da política internacional, mas pretendia
ser un essai de synthèse (Volume I, p. 7). Deve-se reconhecer que ela realizou plenamente seu
objetivo, tendo sido completada, dez anos depois, por outra obra de síntese metodológica,

302
escrita em colaboração com Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations
internationales (Paris: Armand Colin, 1964).

As bases da história global


O conceito que mais popularizou a obra de Pierre Renouvin é, sem dúvida alguma, o
de “forças profundas”. No vasto e ambicioso panorama traçado pelo historiador francês, não
são apenas os Estados que estão em causa, mas também os povos e os interesses dos agentes
econômicos, enfim o conjunto das circunstâncias históricas em um momento dado. Ao
introduzir o primeiro volume de sua monumental série de história das relações internacionais,
assim se exprimiu o historiador francês:
Nós tentamos, portanto, ‘situar’ as relações internacionais no quadro da
história geral – história econômica e social, história das ideias e das instituições.
Papel das condições geográficas, dos interesses econômicos ou financeiros e da
técnica dos armamentos, das estruturas sociais, dos movimentos demográficos;
impulsão dada pelas grandes correntes de pensamento e pelas forças religiosas;
influências exercidas pelo comportamento de um povo, seu temperamento, sua
coesão moral: estes são os pontos de vista que nós sempre tivemos em mente. Nós
não negligenciamos, contudo, o papel dos homens de governo que foram, de
forma mais ou menos consciente, influenciados por essas forças, ou que tentaram
controlá-las e que por vezes o conseguiram; mas sua ação pessoal nos interessa
sobretudo na medida em que ela modifica o curso das relações internacionais. Nós
também achamos necessário estudar as condições do trabalho diplomático onde
esse estudo (é o caso da Idade Média) jamais tinha sido empreendido. (...) Mas,
nós não quisemos que esta busca de explicações estivesse destacada do estudo dos
fatos... Era indispensável colocar na base de nosso relato o ‘quadro factual’ [cadre
événementiel], retraçando en consequência o desenvolvimento das rivalidades e
dos conflitos e mostrando sua trama. Estudar as influências que se exercem sobre
as relações internacionais deixando de lado o conjunto de circunstâncias de um
momento ou de uma época, seria falsear a perspectiva histórica.” (vol. I, p. 12)

Esse método, que tinha sido traçado por Pierre Renouvin antes mesmo de conceber
sua coleção mais famosa, seria seguido à risca no desenvolvimento dos diversos textos que se
ocuparam das relações entre os Estados e da evolução do sistema internacional desde a Idade
Média até 1945. Com efeito, como se encarrega de lembrar Girault, desde 1931 Renouvin
buscava escapar ao ponto de vista trop étroit da documentação diplomática. Apresentando na
Revue historique um balanço dos trabalhos de uma comissão sobre a história da guerra de 14-
18 que ele integrava, dizia o professor de história diplomática da Sorbonne:
Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro
que eles permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda
que eles tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais,
interesses econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem
inteiramente essas forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir
303
maior importância à atitude das chancelarias e dos ministros, a analisar a
influência do fator pessoal. É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores
poderão e deverão se aplicar. (“La publication des documents diplomatiques
français, 1871-1914”, Revue historique, tome CLXVI, 1931, p. 10; citado na
Apresentação do Prof. René Girault, vol. I, p. v)

Vinte anos mais tarde, na introdução geral do Histoire des Relations Internationales,
Renouvin confirmaria essa recusa do curto prazo e sua visão mais ampla do processo
histórico:
Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a
contestações; é o seu método, tal como o praticam muito frequentemente seus
adeptos. (...) Ora, as instruções [das chancelarias] se aplicam muitas vezes a nada
dizer de essencial, e os relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também
frequentemente a busca das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de
muitos embaixadores atribui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória,
às questões econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as ‘forças
profundas’ – porque, para o diplomata de então, a ‘grande política’ plana muito
acima dessas contingências. (vol. I, p. 10).

Ele não pretende, no entanto, descartar o estudo do papel dos homens de Estado –
retendo apenas os “movimentos profundos” da história econômica e social, ao estilo da
“história estrutural” – mas, tão somente, recolocá-lo numa perspectiva mais ampla: “na
origem desses conflitos, as condições econômicas desempenharam o seu papel; mas, a crise
só apareceu quando as paixões entraram em jogo” (Idem, p. 11). Em todos os seus cursos
dados na Sorbonne (na qual ele se aposenta em 1964) ou alhures, Renouvin dava a seus
alunos uma orientação ilustrada por notas deste tipo: “Nunca fazer unicamente história
diplomática, mas procurar ver o pano de fundo ec. financ. pol. int., em seus diversos aspectos,
preocupações pessoais H. de Estado, estado dos armamentos e estado op. pública” (segundo
papéis de curso depositados no Institut Pierre Renouvin, citados na Apresentação do Prof.
René Girault, op. cit., p. vii).

Os historiadores engajados e a divisão intelectual do trabalho


Para realizar a vasta síntese que ele pretendia (que deveria comportar apenas cinco
volumes), Renouvin convida profissionais que, como ele, tinham uma visão global da história
das relações internacionais: o professor belga François Ganshof, especialista em história
medieval; seu colega na Sorbonne, Gaston Zeller, autor de diversos trabalhos sobre a
diplomacia de Luís XIV; André Fugier, professor da Universidade de Lyon, autor de uma tese
sobre Napoleão e a Espanha publicada nos anos 30. Ele próprio, finalmente, se encarregaria
dos séculos XIX e XX.
304
Ganshof trabalha portanto no primeiro tomo da coleção, não sem algumas reticências
metodológicas, pois que ele era inovadoramente dedicado ao estudo das técnicas de relações
internacionais na Idade Média (Tome premier: Le Moyen Âge, publicado em janeiro de 1953).
O trabalho de Gaston Zeller, cobrindo a idade moderna, estendeu-se perigosamente, num
sentido “narrativo” e “cronológico” (o que Renouvin reprovava em parte), tendo então de ser
dividido em dois volumes (Tome second: Les Temps modernes, I. De Christophe Colomb à
Cromwell, junho de 1953; Tome troisième: Les Temps modernes, II. De Louis XVI à 1789,
outubro de 1954). André Fugier terminou por sua vez a redação de seu texto sobre o período
napoleônico desde fevereiro de 1952, cuja publicação antecipou-se portanto ao volume
precedente a cargo de Zeller (Tome quatrième: La Révolution française et l’Empire
napoléonien, fevereiro de 1954).
Quanto a Renouvin, seus dois volumes dedicados respectivamente aos séculos XIX e
XX estenderam-se desmesuradamente: o primeiro volume tinha não menos de 692 páginas, o
que obrigou à sua divisão em dois tomos, o mesmo acontecendo em relação ao século XX.
Entre novembro de 1954 e novembro de 1958 são portanto publicados os quatro outros
volumes da coleção: Tome cinquième: Le XIXe siècle, I. De 1815 à 1871. L’Europe des
nationalités et l’éveil de nouveaux mondes; Tome sixième: Le XIXe siècle, II. De 1871 à 1914.
L’apogée de l’Europe; Tome septième: Les Crises du XXe siècle, I. De 1914 à 1929; Tome
huitième: Les Crises du XXe siècle, II. De 1929 à 1945.
A nova edição, em três volumes, introduzida pelo Professor René Girault, atual
presidente do Institut Pierre Renouvin e eminente herdeiro da noção “renouviana” de “história
dos tempos presentes”, reproduz fielmente o texto da última edição dos oito tomos da série,
com apenas duas modificações: a bibliografia de cada um dos capítulos foi suprimida,
conservando-se a bibliografia geral de cada tomo, e os fac-símiles das cartas geográficas
foram reagrupadas no final de cada volume. Dessa forma, a introdução geral a cargo de
Renouvin e os três primeiros tomos de Ganshof e de Zeller estão contidos no primeiro
volume, que vai portanto da Idade Média a 1789. O trabalho sobre as relações internacionais
na época da Revolução francesa, a cargo de Fugier, e o primeiro tomo sobre o século XIX da
responsabilidade de Renouvin ocupam o segundo volume, indo portanto de 1789 a 1871.
Finalmente, o terceiro volume cobre os três últimos tomos, tratando da época 1871 a 1945,
escritos inteiramente por Renouvin.
O sucesso da obra, desde a primeira edição foi rápido, justificando reimpressões em
princípios dos anos 60 e traduções imediatas em italiano e em espanhol (não sem problemas
de censura franquista, que recusava o termo “guerra civil” ou o conceito de “fascista” em
305
relação à guerra espanhola de 1936-1939). A obra tornou-se um “clássico”, portanto, da
história das relações internacionais, o que se explicava plenamente pelo caráter inovador do
método ou a vastidão de propósitos, mas também pela fama já consagrada do seu autor
principal.
O impacto fora das fronteiras francesas, e propriamente internacional, deveu-se
também ao fato de que, no imediato pós-guerra, a escola histórica francesa estava na
vanguarda da renovação metodológica então empreendida em vasta escala. Se assistia então a
uma rejeição clara do “positivismo esclarecido”, praticado pelos mestres de princípios do
século, como também à incorporação de conceitos e metodologias marxistas na pesquisa
histórica, como revelado nos trabalhos de Ernest Labrousse, de Pierre Villar e, mais tarde, de
Jean Bouvier.

Múltiplas causalidades, relações complexas entre atores


Mas, não se pode dizer que os autores da Histoire des relations internationales
tenham rejeitado a história diplomática tradicional (ou seja, política) em favor de uma nova
determinação “materialista” do processo, com causas econômicas “dominantes” das crises ou
dos conflitos entre Estados. A concepção é mais complexa, colocando em relevo o jogo de
causalidades diversas e as diversas teias de relações entre fatos econômicos e financeiros,
ação das personalidades e influência das mentalidades. O historiador italiano Federico
Chabod, cuja Storia della politica estera italiana del 1870 ao 1896 havia impressionado
Renouvin, era aliás um dos promotores do estudo do papel da psicologia coletiva nas relações
internacionais.
Não só as perspectivas analíticas são múltiplas, mas o campo geográfico é vasto,
cobrindo praticamente o mundo inteiro, com uma ênfase lógica na Europa, afinal de contas, o
centro das relações internacionais até praticamente o final da segunda guerra mundial. Os
desafios eram, portanto, imensos. Como advertiu o Prof. Girault, havia o duplo perigo de se
reduzir a multiplicidade dos fatos a algumas ideias simplificadoras ou de deixar esses fatos
heterogêneos sem nenhum ordenamento em função de algumas explicações globais. “Para
evitar esses dois obstáculos, apenas os aspectos gerais e os fatos significativos deveriam ser
considerados. Em consequência, apesar da imensidade do campo coberto por essa história
englobando o mundo inteiro, desde a alta Idade Média até 1945, o leitor tem a impressão de
estar sendo conduzido com simplicidade e naturalidade até o essencial, saltando, no caminho,
da Europa ao resto do mundo, das querelas dinásticas às rivalidades mercantis, dos grandes

306
diplomatas aos homens de negócios, das nacionalidades às Internacionais, etc.”
(Apresentação, vol. I, p. xiv).
O mesmo historiador sublinha o fato de que, apesar de terem renovado os dados e a
própria maneira de escrever a história diplomática, convertendo-a verdadeiramente numa
reflexão sobre as relações internacionais contemporâneas, terreno antes exclusivamente
ocupado pelo direito ou pelos cientistas políticos, os aportes da “escola” de Renouvin e
seguidores (a expressão não é de Girault) deixaram de suscitar a atenção que mereceriam por
parte dos partidários da escola dos Annales, sempre tímidos em face da história política.
Também aqui parece ter se operado uma espécie de divisão intelectual do trabalho, que
deixou a estes últimos uma espécie de monopólio, para não dizer o exercício de uma certa
“ditadura conceitual”, sobre a história econômica e social.
Fazendo o balanço dos ensinamentos de Renouvin, Girault renova a visão de uma
história das relações internacionais concebida de maneira não-linear e sem fatores dominantes
invariáveis, como o peso das guerras ou das relações interestatais. Para ele, “as relações
internacionais conheceram estágios diferentes porque elas são descendentes das civilizações
que as cercam” (Apresentação, op. cit., p. xxvi, ênfase no original). No século XIX,
predominaram as relações entre Estados, sobretudo na Europa. Um segundo tipo de
civilização se desenvolve entre 1914 e meados dos anos 50, estendido ao mundo inteiro pela
crise da dominação colonial e imperialista a partir de 1945. Nessa fase, as relações entre
Estados permanecem dominantes, mas dois processos mudam a civilização: por um lado, a
mundialização real da economia e das técnicas (transportes e comunicações) reforça o papel
das relações econômicas; de outro, as relações internacionais são transformadas pela
intervenção das ideologias (fascismos, racismo hitlerista, comunismo e anticomunismo). Uma
terceira geração de civilizações aparece a partir do final dos anos 50, com o término da guerra
fria “quente”. De um lado, sob o sistema capitalista, desenvolveu-se uma sociedade
transnacional, na qual o Estado-nação perdeu peso em face das novas organizações
internacionais e inter-regionais: esse sistema privilegia as relações econômicas obedecendo às
leis do mercado e à potência nuclear, verdadeiro critério de poder. De outro, o sistema dito
comunista faz da ideologia sua alavanca mais importante e do centralismo ditatorial um meio
de conduzir as relações internacionais. Em posição à parte, os Terceiros Mundos hesitam na
busca de uma via autônoma, na verdade submetida às pressões contraditórias dos dois outros
contendores (p. xxvi-xxvii).
Teria a queda do mundo comunista gerado um novo período das relações
internacionais, através do estabelecimento de uma nova civilização mundial?, pergunta
307
Girault. O transnacional tornou-se dominante e, mesmo se atores em alguns Estados
continuam a acreditar em sua capacidade de atuar isoladamente, as ideologias parecem ter
morrido, pelos menos as que se pretendiam globais. Mas, segundo Girault, ainda é muito cedo
para pretender descrever as formas e a extensão geográfica dessa civilização, podendo ela
mesmo ser composta de civilizações regionais (mundo islâmico, chinês, africano), cuja
natureza particular deve levar em conta as situações geográficas e humanas.
O extraordinário crescimento das instituições regionais de cooperação política e
econômica é talvez indicativo de uma nova era histórica. Em todo caso, os diversos níveis
interdependentes de análise – política, econômica, social, cultural – no estudo das relações
internacionais desses vastos conjuntos regionais de civilizações ou de “sistemas” (para
empregar o conceito dos cientistas políticos), nos traz de volta, como sublinha Girault, à
fórmula de Pierre Renouvin: “A história das relações internacionais é inseparável da história
das civilizações”.

O Brasil chez Renouvin


Uma tão larga perspectiva e um tratamento inevitavelmente centrado sobre as relações
interestatais e internacionais europeias ofereceria, como parece óbvio, pouco espaço a grandes
digressões históricas ou políticas voltadas para um país como o Brasil, economicamente
periférico, dependente politicamente, pois que, durante a maior parte de sua história, colônia
de um país que era por sua vez essencialmente periférico e dependente. De resto, sem nunca
ter constituído um centro de poder político, econômico ou militar próprio, o Brasil sempre foi
relativa ou absolutamente marginal do ponto de vista das relações internacionais globais.
Não obstante, o Brasil comparece nas páginas dos vários volumes da Histoire des
relations internationales, a partir da idade moderna evidentemente, sendo que metade das 35
citações se referem à sua condição de colônia ou ao movimento de independência, cabendo o
resto ao próprio Renouvin dentro do período independente. Seria excesso de otimismo esperar
encontrar, nos diversos textos, desenvolvimentos minuciosos sobre as relações exteriores ou a
posição internacional do Brasil, pois que a coleção tem um compromisso básico com o seu
objeto próprio, as relações internacionais, no mais amplo sentido geopolítico da palavra. Mas,
uma verificação rápida permitirá algumas constatações interessantes.
As primeiras referências se encontram no texto escrito por Gaston Zeller para cobrir as
relações internacionais na alvorada da idade moderna, tomo segundo da obra (Les Temps
Modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell), tratando basicamente das consequências
dos descobrimentos para as relações recíprocas entre Portugal e Espanha e destes com as
308
demais potências europeias (em especial, como seria de se esperar, com a França, de certo
modo o centro do primeiro concerto europeu, antes e depois de Westfália). Uma atenção
particular é dada aos interesses mercantis do comerciantes bretões na exploração dos parcos
recursos florestais da maior e mais recente colônia portuguesa (vide Volume I, p. 280 e 283).
Outras menções são feitas a propósito da substituição de hegemonias que se opera na
Europa do século XVII, quando comerciantes e soldados mais agressivos, vindos da Holanda,
Inglaterra e França, começam a dominar os principais circuitos de bens e metais, em
detrimento dos antigos monopólios espanhóis e portugueses (vide o capítulo VIII do tomo
segundo: L’Océan: les politiques d’expansion coloniale, vol. I, p. 411-419, esp. 413 e 415,
bem como o capítulo X, La guerre de trente ans et la fin de la prépondérance espagnole, p.
438-464, cf. p. 448). A ascensão da potência inglesa terá, a partir de então, consequências
decisivas não só para Portugal como para o próprio Brasil.
O mesmo Zeller oferece, no tomo terceiro (Les Temps Modernes, II. De Louis XIV à
1789), um panorama dessas mudanças hegemônicas, que consolidam ao mesmo tempo a
dominação terrestre da França sobre o continente e a marítima da Inglaterra sobre quase todos
os mares. Portugal, pressionado a escolher, mas procurando conservar sua autonomia, torna-
se um mero pião nessas disputas, mesmo se ele consegue preservar o essencial de suas
colônias, com destaque para o Brasil e Angola (vol. I, p. 513). Novamente, um grande atenção
é dada à França e à política de Luís XIV (em um grande capítulo I: La puissance française au
temps de Louis XIV, p. 499-578), com uma breve referência à expedição de Duguay-Trouin de
1710-1711 ao Rio de Janeiro (vide p. 567-8 desse volume).
Essa história de conflitos entre imperialismos rivais será retomada por André Fugier
no quarto tomo do Histoire des relations internationales, sobretudo nos capítulos tratando das
lutas entre a Espanha, de um lado, e os interesses respectivos de ingleses e franceses, de outro.
A “vassalagem” política e militar de Portugal em relação à Inglaterra se faz cada vez mais
presente, enquanto sua vida econômica passa a depender, cada vez mais estreitamente da
“produção de ouro brasileiro, [da] frutuosa redistribuição de açúcar, café e algodão, compra
de mercadorias inglesas...” (p. 66 do vol. II).
No momento do grande enfrentamento entre a “pérfida Albion” e o cônsul Bonaparte,
Portugal se vê, no dizer de seus próprios diplomatas “entre l’enclume et le marteau”, mas
continua seus proveitosos negócios com o “immense Brésil” (capítulo IV, Pacifications
(1801-1802), p. 105-133; cf. 119-120). As contradições da política portuguesa eram também
de alcova, pois que o Príncipe Regente João tinha casado com Carlota, filha dos soberanos
espanhóis, que no momento eram aliados de Napoleão. Essa situação iria prolongar-se até
309
novos desenvolvimentos em 1807, quando uma vez mais, em razão da política de bloqueio
continental e do jogo de pressões militares, Portugal tem de submeter-se ou enfrentar a ira de
Bonaparte. A “economia política” dos bloqueios inglês e francês são objeto de duas seções
bastante instrutivas no capítulo VII do tomo a cargo de Fugier (II. Économie de blocus
britanique, p. 187-190, III. La stratégie napoléonienne du blocus, p. 190-196), nas quais se
insere precisamente a circulação de mercadorias brasileiras (sobretudo algodão e produtos
tropicais) em direção de um ou outro beligerante (pp. 190 e 194).
André Fugier trata igualmente das razões estruturais da dominação europeia sobre o
resto do mundo, com um excelente capítulo sobre seus fundamentos espirituais, intelectuais,
demográficos, militares, científicos e econômicos (capítulo X, Courants d’Europe, p. 269-
294), onde se insere a questão das “transferências demográficas”, ou seja a emigração
europeia para o novo mundo, e a própria partida de toda a elite e administração portuguesa
para o Brasil, em 1807 (p. 284). O capítulo seguinte, sobre a independência das colônias
americanas (XI, Émancipation du Nouveau Monde, pp. 295-312), não trata exatamente do
processo brasileiro de autonomia, mas das iniciativas de Carlota Joaquina no Prata, a partir de
1808 (p. 306-7), e da sustentação econômica e financeira da Inglaterra pela Coroa portuguesa,
com as relações privilegiadas (e desiguais) que são então estabelecidas pelos tratados
comerciais de 1809 e 1810. Data dessa época, igualmente, o estabelecimento de novas
correntes de comércio entre o Brasil e seus parceiros do continente, a começar pelos Estados
Unidos (p. 311).
O próprio Pierre Renouvin tratará da independência brasileira, no quinto tomo de sua
coleção, todo ele dedicado ao século XIX. Depois de quatro capítulos iniciais sobre as “forças
profundas”, sobre os “homens de Estado e as políticas nacionais”, as “ameaças à ordem
europeia” e os “movimentos revolucionários” no velho continente, Renouvin dedica todo o
capítulo V à independência da América Latina. O tratamento é bastante sumário e os
autonomistas brasileiros são chamados de “créoles portugais”, que seguem o exemplo dado
pelos “créoles espagnols” nos demais países (p. 401). Mas, os eventos são enquadrados por
Renouvin num panorama mais vasto:
“Nas relações internacionais, o lugar desses dois eventos é bastante desigual. A
independência do Brasil só chama a atenção da Grã-Bretanha: o governo inglês que, em 1810,
tinha defendido Portugal contra a França, aproveitou para se ver atribuída, no Brasil, uma
tarifa alfandegária bastante favorável à importação dos seus produtos manufaturados; em
1822, frente ao ‘fait accompli’, ele se preocupa em manter essa vantagem; à medida em que
Pedro consente, a política inglesa faz pressão sobre o governo português para levá-lo a
310
reconhecer a independência do Brasil. Mas, a independência das colônias espanholas é uma
questão de grande impacto para os Estados Unidos e as potências europeias” (vol. II, p. 401).
Ele ainda faz uma pequena referência ao Brasil, no contexto dos primeiros esforços de
“solidariedade pan-americana”, com o convite bolivariano ao congresso do Panamá, de 1825,
que deveria reunir os novos Estados do continente. Nem os Estados Unidos, que já tinha
proclamado sua “doutrina Monroe” (1823), nem o Brasil ou a Argentina participarão da
conferência (p. 412). A derrota do esforço de cooperação política dá lugar ao começo da
preponderância britânica sobre o continente, hegemonia que vai durar cerca de um século.
Uma última menção ao Brasil nesse texto intervém nas conclusões gerais do tomo sob
sua responsabilidade, quando Renouvin se contenta em apontar o papel dos fluxos migratórios
europeus no crescimento de países como os Estados Unidos, a Argentina ou o “Brasil
meridional” (vol. II, p. 653), questão repetidamente levantada em diversas passagens
ulteriores e mesmo na conclusão geral da obra (vol. III, p. 910). Não há, em contrapartida,
para o período em que as jovens nações sul-americanas já se tinham completamente
desvencilhado da tutela metropolitana, qualquer referência às lutas entre caudilhos na própria
região, como os conflitos do Prata ou a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai: o
equilíbrio de poderes, numa região tão excêntrica para a política mundial como a América do
Sul, não entra certamente nos esquemas conceituais das relações internacionais vistas da
Europa.
O terceiro e último volume da nova edição dessa obra clássica, traz os três tomos
finais do Histoire des relations internationales, todos redigidos pessoalmente por Pierre
Renouvin e cobrindo o período de 1871 a 1945. Em cada um deles, as referências ao Brasil
são, para dizer o mínimo, reduzidas e, em geral, insatisfatórias do nosso ponto de vista: as
relações internacionais do continente sul-americano são sempre consideradas a partir de uma
perspectiva europeia ou norte-americana. É o caso, por exemplo, do capítulo XVI do sexto
tomo, Les Influences Européennes en Amérique Latine (p. 237-244), onde Renouvin começa
por afirmar:
O campo de predileção para a expansão europeia, não apenas do ponto de
vista demográfico ou do ponto de vista econômico e financeiro, mas no terreno da
vida intelectual, é a América do Sul. A influência demográfica é importante
sobretudo na Argentina e no Brasil. (p. 237)

Seguem, nas páginas seguintes, comentários e informações sobre esses imigrantes,


sobre os investimentos estrangeiros ou sobre infraestrutura ferroviária no Brasil que, lidos na
ótica da historiografia contemporânea, seriam considerados ingênuos ou, enquanto dados

311
parciais, mesmo irrelevantes, mas que podem ser provavelmente explicados pelo estado da
bibliografia disponível sobre o Brasil à época da elaboração do trabalho: velhas monografias
de Pierre Denis sobre o café, alguns outros estudos de Roger Bastide (sobre raças ou a
dualidade da geografia humana), de Pierre Monbeig (sobre os pioneiros e fazendeiros de São
Paulo) ou de Charles Morazé (sobre a evolução política do Brasil), por exemplo.
Da mesma forma, seus argumentos sobre a influência cultural francesa nas repúblicas
sul-americanas – marcadas por um “latinisme de sentiments, de pensée et d’action, avec tous
ses avantages primesautiers et ses défauts de méthode”, segundo Georges Clemenceau, que
voltava de viagem (p. 243-244) – e sobre as lacunas de sua prática efetiva, beiram o ridículo,
tanto o amalgama e o julgamento superficial caracterizam o discurso: “Vassales de l’Europe
au point de vue économique et financier, ces Républiques en restent profondement séparées
para l’esprit de la vie politique” (p. 244).
No tomo seguinte, sobre as crises do século XX entre 1914 e 1929, Renouvin retoma o
argumento sobre a influência cultural e econômica da Europa, agora contestada pela
influência dominante dos Estados Unidos em ascensão. O capítulo XIV, especificamente
dedicado à posição internacional da América Latina, não agrega nenhum dado significativo
sobre o Brasil e o amalgama com outras repúblicas sul-americanas continua a ser praticado
com o agravante da visão política eurocêntrica: o conflito entre o Chile e o Peru a propósito
de Tacna e Arica, por exemplo, é pensado em termos de “Alsace-Lorraine”.
Segundo a interpretação de Renouvin, a existência da Sociedade das Nações poderia
dar a esses Estados “plus de courage” para enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos: “não
podem eles esperar que o organismo genebrino lhes dará apoio e lhes fornecerá talvez um
meio de escapar ao sistema pan-americano?” (p. 575). Na mesma linha, Pierre Renouvin
parece lamentar que, tendo assinado o “tratado Gondra”, de 1923, os Estados latino-
americanos se comprometem em resolver seus litígios no quadro pan-americano (“dominé par
les États-Unis”), em lugar de entregá-los à Sociedades das Nações. Em todo caso, Renouvin
nota o apoio apenas discreto (“nuancé”), em contraste com a vigorosa tomada de posição
argentina, que o Brasil concede, na conferência de Havana em 1928, ao projeto de declaração
da Comissão de juristas interamericanos – Comissão do Rio – sobre os princípios da “não-
intervenção” (dos Estados Unidos, entenda-se) e da igualdade de direito entre os Estados
americanos, como normas consagradas do direito internacional americano (p. 578).
No último tomo, finalmente, Les Crises du XXe siècle de 1929 à 1945, o Brasil e a
América Latina comparecem muito pouco, apenas a título de figurantes secundários num ou
noutro episódio ligado à guerra mundial (p. 820) ou como fornecedores de matérias-primas
312
(p. 883), ou seja, numa posição reiteradamente marginal do ponto de vista das relações
internacionais. Durante o conflito mundial, ele reconhece, por exemplo, que a América Latina
contraiu em relação aos Estados Unidos “des liens de dépendance” que se desdobram numa
hegemonia financeira a partir de 1947. (p. 884).

A Permanência de Renouvin
Profundamente marcado, como todos os homens de sua geração, pelas tragédias
guerreiras que, de 1871 a 1945, retiram todo peso político ou econômico e toda influência
internacional à Europa e à França, Pierre Renouvin consegue ainda assim produzir uma obra
de referência que traz como fundamento metodológico e como premissa filosófica básica a
essencialidade das relações interestatais europeias para as relações internacionais. Esse tipo de
perspectiva pode ser considerado como fundamentalmente correto para a maior parte do
período coberto, mas um historiador do novo mundo, eventualmente chamado a preparar um
trabalho equivalente de síntese, provavelmente produziria uma obra com maior ênfase no
peso relativo dos Estados Unidos ou nos fundamentos materiais e políticos da bipolaridade
que passaria a dividir o mundo do pós-segunda guerra.
Caberia entretanto observar que as relações internacionais, numa determinada era do
desenvolvimento das civilizações, devem ser apreciadas em seu próprio contexto histórico, e
não em função do futuro. Aplica-se aqui a famosa frase de Marx em seu 18 Brumário de Luís
Bonaparte, segundo a qual a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o
cérebro dos vivos.
Em sua Conclusion Générale (vol. III, p. 907-918), Renouvin retém os dois elementos
que lhe parecem essenciais ao cabo de uma vista de conjunto sobre o desenvolvimento das
relações internacionais no curso de dez séculos: “um, o mais destacado sem dúvida, é a
permanência das rivalidades e dos conflitos entre os grandes Estados, é o espetáculo das
mudanças incorridas na hierarquia desses Estados; o outro é, por iniciativa dos europeus, o
progresso das relações entre os continentes, ao ritmo dos progressos técnicos que facilitaram
os deslocamentos dos homens, o transporte das mercadorias e o intercâmbio das ideias. A
história das relações internacionais deve procurar identificar como esses dois aspectos de
completam e se penetram; ela estende seu olhar sobre o mundo inteiro” (p. 907).
Depois de passar mais uma vez em revista o papel das condições econômicas,
demográficas e psicológicas – as “forças profundas” – que influenciam essas relações
internacionais, Renouvin volta a confirmar o papel essencial dos Estados nas relações
internacionais. Ao mencionar “l’action déterminante des États”, sobretudo daqueles Estados
313
que conseguiram salvaguardar, de século em século, seu poder, ele deveria certamente estar
pensando na França, então ocupada em reconstruir seu poderio material e em recuperar seu
antigo prestigio imperial. A mensagem de Renouvin é talvez um pouco voluntarista, mas o
parti pris é digno de ser sublinhado: “O Estado impõe sua marca nas forças profundas, que
ele acomoda ou utiliza em proveito do seu poder” (p. 915).
Essa mesma opção preferencial, de ordem metodológica e empírica, em favor do
Estado comparece no conhecido manual, em coautoria, de história das relações internacionais.
Sua importância, para os estudantes da área, justificaria talvez uma longa citação:
O estudo das relações internacionais está voltado sobretudo para a análise
e a explicação das relações entre as comunidades políticas organizadas no quadro
de um território, isto é, entre os Estados. Sem dúvida, ele deve levar em conta as
relações estabelecidas entre os povos e entre os indivíduos que compõem esses
povos – intercâmbio de produtos e de serviços, comunicações de ideias, jogo das
influências recíprocas entre as formas de civilização, manifestações de simpatias
ou de antipatias. Mas, ele constata que essas relações podem raramente ser
dissociadas daquelas que são estabelecidas entre os Estados: os governos,
frequentemente, não deixam a via livre a esses contatos entre os povos; eles lhes
impõem regulamentos ou limitações, quer se trate do movimento de mercadorias
ou de capitais, de movimentos migratórios, ou mesmo de circulação de ideias;
eles podem também, por outros procedimentos, orientar as correntes sentimentais.
Essas intervenções não têm somente como resultado mais frequente a restrição ou
a atenuação das relações estabelecidas pelas iniciativas individuais; elas também
lhes modificam o caráter. Deixadas a elas mesmas, essas relações entre os
indivíduos poderiam constituir, algumas vezes, um fator de solidariedade; pelo
menos, os antagonismos entre esses interesses individuais não acarretariam, na
maior parte dos casos, consequências políticas diretas. Regulamentadas pelos
Estados, elas se tornam elemento de negociações ou de contestações entre os
governos. É portanto a ação dos Estados que se encontra no centro das relações
internacionais.
(Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle: Introduction à l’histoire des
relations internationales; Paris: Librairie Armand Colin, 1964, Introd., p. 1)

Essa mensagem de história global e ao mesmo tempo de confirmação do papel


primordial do Estado nas relações internacionais constitui, por assim dizer, a lição de Pierre
Renouvin às gerações de nossa própria época histórica, um ensinamento que se pretende
também um convite à modéstia de pretensões explicativas em sua disciplina. Com efeito, ele
termina sua monumental Histoire des relations internationales por uma lição que é sobretudo
uma advertência contra as pretendidas “lições da história”:
A política exterior está ligada a toda a vida dos povos, a todas as
condições materiais e espirituais dessa vida, ao mesmo tempo que à ação pessoal
dos homens de Estado. Na busca de explicações, que permanece o objetivo
essencial do trabalho histórico, o maior erro consistiria em isolar um desses
fatores e atribuir-lhe uma primazia, ou mesmo em querer estabelecer uma

314
hierarquia entre eles. As forças econômicas e demográficas, as correntes da
psicologia coletiva e do sentimento nacional, as iniciativas governamentais se
completam e se penetram; sua parte de influência respectiva varia segundo as
épocas e segundo os Estados. A pesquisa histórica deve tentar determinar qual foi
essa parte. Ela oferece assim oportunidade para necessárias reflexões; mas, ela
não pretende dar receitas e muito menos ditar lições. (vol. III, p. 918)

Esta é a grande lição que mestre Pierre Renouvin deu em sua Histoire des relations
internationales e na maior parte de suas obras: seu sentido e seus propósitos continuam
plenamente válidos. Voilà !

Paris, 8 de agosto de 1994.


Publicado na seção Livros da revista Política Externa
(São Paulo: vol. 3, n. 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194).

315
Do fim da História ao fim da Geografia:
o acabamento de Hegel por Fukuyama

Francis Fukuyama:
“The End of History?”
The National Interest (n. 16, Summer 1989, p. 3-18)

The End of History and the Last Man


(New York: Free Press, 1992)

No verão de 1989, a revista americana National Interest publicava um ensaio teórico –


mais exatamente de filosofia da História – do intelectual nipo-americano Francis Fukuyama
sobre os sinais – até então simplesmente anunciadores – do fim da Guerra Fria, cujo título
estava destinado a deslanchar um debate ainda hoje controverso: “The End of History?”.
A proposta de Fukuyama sobre o “fim da História” – a interrogação do título é
importante –, apresentada com um suporte hegeliano aparentemente consistente, é de tão fácil
aceitação, do ponto de vista intelectual, quanto desprovida de maior importância explicativa,
do ponto de vista prático. Em sua roupagem puramente acadêmica, ela oferece um excelente
terreno de manobras para divagações inocentes sobre o “triunfo definitivo” do liberalismo
ocidental. Quando se trata, no entanto – parafraseando a décima-primeira tese de Marx sobre
Feuerbach –, de não mais “interpretar” o mundo, simplesmente, mas de “transformá-lo”, essa
nova tese “jovem hegeliana” perde-se em seu próprio pântano ideológico.
Em outros termos, se a História aproxima-se de seu final filosófico – isto é, se a Razão
exauriu as possibilidades conceituais de explicar o Real – e se a organização formal do mundo
material confunde-se com sua atual configuração histórica, isto não quer dizer que a história
esteja perto de seu final concreto – isto é, que o Real tenha esgotado de vez as possibilidades
práticas de ordenar o mundo em conformidade com o reino da Razão – ou que a organização
material do mundo potencial esteja limitada a um determinado sistema sociopolítico.
A tese principal era a de que, após um século de emergência e declínio dos regimes
fascistas e comunistas, de enormes turbulências políticas e de crises econômicas, de
contestação intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de corte ocidental, o
mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual seja o do triunfo inquestionável – an
unabashed victory, nas palavras de Fukuyama – do sistema liberal ocidental. Segundo ele,
tratava-se de um triunfo da “ideia ocidental”, tornada evidente pela exaustão das alternativas
viáveis ao liberalismo ocidental. Esse triunfo era mostrado, em primeiro lugar, pela

316
disseminação da cultura consumista ocidental nos dois países mais importantes do ‘mundo
alternativo’, a China e a União Soviética (cabe registrar, imediatamente, que em nenhum
momento de sua análise, Fukuyama esperava a dissolução imediata do regime monocrático e
o rápido desaparecimento do próprio império soviético). Como ele mesmo observou logo ao
início do artigo, “a vitória do liberalismo ocorreu primariamente no domínio das ideias, ou da
consciência, e é ainda incompleta no mundo real ou material”.
Mas como afirmou, logo em seguida, o próprio Fukuyama, “há razões poderosas para
acreditar que é essa ideia que irá governar o mundo real no longo prazo” (ênfase original). Se
aceitarmos o conhecido aforismo keynesiano, segundo o qual, a longo prazo, todos estaremos
mortos, essa afirmação do cientista político americano o deixa inteiramente à vontade para
acomodar quaisquer desenvolvimentos políticos e econômicos imediatos e de médio prazo,
retirando sua responsabilidade sobre a validade de sua tese na perspectiva do cenário de curto
prazo. Esse fato pode transformar sua tese principal no equivalente acadêmico dessas
previsões de cartomantes ou adivinhos, que deixam a um futuro indefinido a realização de
seus exercícios de futurologia amadora, mas caberia aceitar, em princípio, as premissas de
Fukuyama como uma proposta passível de discussão apoiada em metodologia rigorosa.
Em todo caso, seu texto engajava, a partir daí, uma discussão em torno das questões
teóricas relativas à natureza da mudança histórica, processo que ele remonta a Hegel e Marx,
sobretudo o primeiro, formulador da teoria do progresso na história universal.1 O fim da
história, na concepção hegeliana (tal como interpretada por Kojève), estava identificado com
a afirmação dos princípios do direito universal à liberdade e da legitimação de um sistema de
governo apenas com o consentimento e a aprovação explícita dos governados, o que foi
chamado de “Estado homogêneo universal”. Uma vez que todas as contradições anteriores já
teriam sido resolvidas com a aceitação e por meio do estabelecimento desse Estado – e como,
para Hegel, o mundo real deveria corresponder ao mundo ideal, pelo menos aquele que
figurava na cabeça do filósofo –, então não existiriam mais espaços para conflitos de maior
escopo em torno da organização política desse Estado, restando apenas encaminhar e resolver
os pequenos problemas da atividade econômica e da política corrente. O mundo se
converteria, então, numa simples “administração das coisas”, segundo a frase de Engels para

1
Hegel não foi o primeiro, em termos absolutos; antes dele, filósofos escoceses (como Ferguson) e
franceses (como Condorcet) já tinham debatido a idéia do progresso da civilização, muitas vezes numa
perspectiva linear, seguindo a flecha do tempo; mas foi Hegel quem deu à idéia de progresso um
sentido de necessidade histórica, que o fez situar-se no centro da evolução possível das sociedades
humanas.
317
representar a situação das sociedades humanas na fase pós-socialista, quando supostamente já
não mais existiriam a exploração dos trabalhadores e a dominação política sobre os homens.
Obviamente, Hegel não era tão simplista como a exposição acima poderia sugerir,
sobretudo com esse ‘idealismo filosófico’ de equalizar o mundo ideal ao mundo real. Para o
filósofo alemão – mais especificamente prussiano, talvez –, as contradições existentes no
mundo real se formam a partir de um conflito de ideias, ou seja, de diferentes concepções
sobre como deveria ser organizado o mundo real da política e da economia. As distinções
entre um mundo e outro seriam apenas aparentes, posto que as ideias que encontravam abrigo
na consciência dos homens acabariam por se tornar necessidades do mundo real, fechando
assim o ciclo de realização da ideia universal.2
A consequência prática dessa concepção seria a de que, posto que as democracias de
mercado provaram sua capacidade de não apenas resistir aos desafios colocados por crises
econômicas e por guerras devastadoras, mas também de atender aos requerimentos suscetíveis
de trazer prosperidade e riqueza a todos os países que aderiram a seus princípios
organizadores, elas estavam habilitadas a cumprir seu mandato hegeliano de realizar o
‘Estado universal homogêneo’, fechando, assim, um ciclo completo da história. À pergunta –
sempre o ponto de interrogação – de saber se chegamos ao fim da história, deve-se agregar
esta outra, sobre se existem contradições tão fundamentais na vida humana que não possam
ser encaminhadas através de qualquer outra forma alternativa de estrutura político-econômica
que não o liberalismo moderno de mercado. Não se trata de saber o que pode ocorrer, em
termos práticos, na Albânia ou em Burkina Faso, mas o que importa, realmente, em termos de
‘herança ideológica comum da humanidade’.
Sem dúvida alguma, muito ainda resta a ser feito para que o homem comum possa
trabalhar pela manhã, pescar na hora do almoço e dedicar-se à filosofia pela tarde, como
queria o Marx hegeliano da juventude. Em todo caso, a maior parte da humanidade não foi
ainda advertida sobre essas novas possibilidades de épanouissement individuel.
Para ser honesto com Fukuyama, sua tese é basicamente correta em sua aparente
simplicidade propositiva: não há mais contestação ideológica possível – de origem
“socialista”, entenda-se bem – à hegemonia filosófica, política e econômica do liberalismo
ocidental. Este último emergiu claramente vencedor das contendas ideológicas do período de
Guerra Fria. Parodiando o autor da Critique de la Raison Dialectique, até se poderia adivinhar
2
Marx inverteu esse processo, como se sabe, mas apenas para converter o socialismo na realização
necessária, em última instância, da idéia universal, uma espécie de fatalismo pelo lado da sucessão
inevitável dos ‘modos de produção’, um conceito que ele cunhou e que ainda hoje é usado por
discípulos, de modo geral, mas também por opositores dos próprios sistemas hegeliano e marxista.
318
a brincadeira outre tombe que, a propósito do liberalismo ocidental, Raymond Aron dirigiria a
Jean-Paul Sartre: à diferença do marxismo, ele, sim, teria se tornado o “horizonte insuperável
de nossa época”.
É altamente improvável, porém, que Aron concordasse com a previsão de Fukuyama
sobre os états d’âme associados a um liberalismo fin-de-siècle: uma clara época de tédio (a
very sad time, prospects of centuries of boredom, diz Fukuyama em seu artigo), marcada pela
preocupação quase que exclusiva com exigências materiais, sem as experiências “heróicas”
ou “excitantes” que todo período maniqueísta sói suscitar. Relativamente pessimista – dotado
de um scepticisme serein, preferiria dizer o ex-colega de liceu de Sartre – no que se refere às
realidades dos Estados e dos sistemas de poder existentes, Aron não alimentaria nenhuma
ilusão quanto a que o alegre “enterro do socialismo”, operado na última década do século XX,
pudesse conduzir a uma “primavera das democracias” razoavelmente estável ou a uma versão
atualizada da “paz universal” prometida em meados do século XVIII por um prelado francês e
um pouco mais tarde pelo próprio Kant.3. Em todo caso, a anarquia política característica da
ordem interestatal contemporânea, bem como os enormes diferenciais de recursos e de poder
entre os Estados, no quadro de um sistema internacional ainda fortemente hierarquizado,
parecem garantir um “fim da História” bem movimentado para os atores que continuarem a
participar deste cenário pós-socialista.
Entendamo-nos bem. Aron certamente não se importaria em que os aléas de l'Histoire
conduzissem a Humanidade a um fin-de-siècle bem pouco aroniano, isto é, livre de uma vez
por todas da terrível ameaça do holocausto nuclear. Mas, para ele, a superação da
Machtpolitik da era bipolar não significava em absoluto que as relações internacionais
contemporâneas – e presumivelmente as do futuro também – passassem a ser desprovidas,
mesmo num cenário multipolar, de todo e qualquer elemento de “política de poder”. A
despeito da crescente afirmação do primado do direito internacional – ou seja, da “força da
razão” sobre as soluções baseadas na violência primária –, a Machtpolitik continuará a existir
por largo tempo ainda, inclusive em seus aspectos mais elementares de exercício puro e
simples da “razão da força”.
A diferença está, provavelmente, em que, no cenário otimista traçado por Fukuyama, o
desafio ideológico representado pelo socialismo – the socialist alternative, em suas palavras –
simplesmente deixou de existir. Mesmo imaginando-se (no l’au-delà) o “sorriso cético” de
3
Ver, a esse propósito, meu ensaio “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era
contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria Celina d’Araujo e Samuel Alves Soares (orgs.),
Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas: II Encontro da Abed (Campinas: Mercado de Letras,
2009, p. 19-38; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf).
319
Raymond Aron – que, todavia, nunca reduziu o confronto interimperial a um mero
enfrentamento ideológico –, não podemos descartar, de plano, a versão revista e melhorada
por Fukuyama da tese de Bell sobre o “fim das ideologias”. A differentia specifica
representada pelo afastamento do concorrente ideológico – isto é, o socialismo – pode ser
funcionalmente explicativa para justificar um futuro “estado universal homogêneo”.
Numa época em os modernos ideólogos identificaram, repetidas vezes, sinais de “fim
das ideologias” (ou, agora, do próprio “fim da História”), perde-se facilmente a visão de como
o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. O Ocidente em
geral, nos últimos setenta anos, e a Europa em particular, nos últimos quarenta anos, viveram
sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais ameaçadora produziu o que,
acertadamente, ficou identificado sob o conceito de Guerra Fria. Depois de pelo menos quatro
décadas de livre circulação, essa verdadeira hantise estratégico-ideológica parece agora estar
finalmente encaminhando-se para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e
da roca de fiar (como queria Engels em relação ao Estado). Surpresas nesse terreno não
podem contudo ser descartadas, já que o conceito mesmo de Guerra Fria se refere à
confrontação de interesses políticos (e o consequente não-enfrentamento direto) entre duas
potências rivais e não, simplesmente, à competição econômica entre grandes países.
A Guerra Fria entre as duas superpotências, que marcou indelevelmente toda a história
da segunda metade do século XX, não foi, provavelmente, apenas um produto de ideologias
conflitantes. Mas, foram certamente as racionalizações políticas e militares construídas a
partir das “intenções malévolas” do concorrente estratégico que lhe deram uma dimensão
jamais vista nas antigas disputas hegemônicas (seja entre os impérios da antiguidade clássica,
seja entre os Estados-nacionais da era moderna).
Mais que tudo, foi a crença ideológica – quase religiosa, podemos dizer – em uma
“missão histórica” especificamente “socialista”, qual seja, a de enterrar não apenas o “inimigo
burguês”, mas o próprio “modo de produção capitalista”, que exacerbou tremendamente o
“conflito ideológico global” (como diriam os generais da “geopolítica”), levando-o, em
algumas ocasiões, ao limiar da “escalada nuclear”.
O afastamento da “espoleta ideológica” – a iskra leninista – do socialismo, antecipada
pela tese sobre o “fim da História”, significaria agora que o mundo estaria encaminhando-se,
finalmente, para uma era de paz (ou pelo menos de não-guerra)? Descartando-se a
permanência dos chamados conflitos regionais e das guerras locais conduzidas por motivos
étnicos ou territoriais, é provável que sim, mas, isto tem pouco a ver com o fim do “desafio
socialista”. Como veremos mais adiante, o abafamento das paixões bélicas nas sociedades
320
contemporâneas é mais o resultado de mudanças substantivas na ordem econômica global do
que devido a motivos de natureza política ou ideológica (a derrocada do socialismo).
Com efeito, querer responsabilizar a ideologia socialista pelas “guerras de religião”
contemporâneas (do que não se pode acusar Fukuyama) nada mais significa senão uma
racionalização filosófico-sociológica a posteriori, pouco condizente com uma realidade
histórica muito mais complexa que todas as vãs “filosofias da história”, mesmo em versão
supostamente hegeliana. Num século marcado pelo “triunfo” avassalador das ideologias, o
socialismo não foi, de longe, a mais belicista ou a mais agressiva delas: na triste competição
entre hitlerismo, stalinismo e maoísmo (acrescente o pol-potismo ou o senderismo quem
quiser), o primeiro ainda resulta largamente vencedor. Não se trata aqui, meramente, de uma
contabilidade quanto aos números respectivos de mortos induzidos, como poderiam nos
lembrar um Robert Conquest ou alguns demógrafos da era pós-Deng Xiao-Ping: o hitlerismo
ainda representa o projeto mais acabado de aplicar o burocratismo weberiano à planificação
industrial do genocídio.
Um exame imparcial da história do período anterior a 1945, mostraria que não foi a
oposição entre, de um lado, as ideologias “capitalistas” – ou, digamos, liberais – e, de outro as
“socialistas” – pode-se dar-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas – que provocou o
quadro de instabilidade política e militar durante a primeira metade do século XX e que
precipitou os conflitos que retirariam definitivamente da Europa as alavancas do poder
mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza quase “feudal” – como diria o
historiador Arno Mayer – latentes no continente europeu desde finais do século XIX que
permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele, do conflito ideológico global. Basta
mencionar a ação agressiva das novas potências da mittel-Europa para escapar ao cerco das
“velhas potências imperiais”, ou o papel das ideologias fascistas do “espaço vital” e da
“regeneração nacional” no entre-guerras, para dar a exata dimensão da responsabilidade do
“socialismo” no caótico quadro político-militar da modernidade. A “ameaça socialista”
sempre foi menor do que se imaginou e poderia mesmo ter sido irrelevante, para todos os
efeitos práticos, não fosse por um desses imponderáveis do acaso – os famosos “ifs” dos
livros de historia virtual – que costumam esconder-se nas já mencionadas dobras da História.
Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no
contexto político europeu é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo,
“acidente” histórico, desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a
Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados,
praticamente desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias em sua terra natal. O
321
voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno
“tremor” político na frente de guerra oriental, podendo servir a interesses militares imediatos,
transformou-se porém em um cataclismo histórico de proporções inimagináveis, dando
nascimento aliás ao próprio conceito de relações Leste-Oeste.
Uma vez instalado o novo poder bolchevique, as diversas intervenções das potências
ocidentais em território russo (ou “soviético”) contribuíram mais para alimentar a oposição
ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma suposta “luta de classes” em
escala internacional. No segundo pós-guerra, igualmente, a busca constante do rompimento
do “cerco imperialista” era mais ditada por considerações de natureza estratégica (segurança
militar) do que por reflexos de princípios “ideológicos”. Para Stalin, por exemplo, a razão de
Estado sempre teve preeminência sobre o “internacionalismo proletário”, este último
invariavelmente servindo de disfarce ideológico aos interesses do poder soviético.
Seja qual for o destino futuro da “ideologia socialista”, seu itinerário terá pouco a ver
com o ocaso da História. Na verdade, estamos assistindo, não tanto ao “fim da história”,
quanto, mais propriamente, aos “limites da geografia”, a partir da crescente globalização dos
circuitos produtivos e da interdependência acentuada das economias desenvolvidas. O próprio
Fukuyama observou que o desafio da alternativa socialista nunca esteve, realmente, no terreno
das possibilidades concretas no Atlântico norte, região de capitalismos bem estabelecidos e de
democracias de mercado relativamente estáveis – com a exceção, talvez, da periferia
mediterrânea – e que o sucesso dessa alternativa foi, na verdade, sustentado por experiências
em sua periferia: na Ásia, na África e numa simples ilha da América Latina.
De fato, foi na Ásia onde o socialismo conseguiu alguma penetração duradoura – hoje
largamente simbólica – mas é nas universidades públicas da América Latina – em grande
medida medíocres em termos de produção humanística significativa – onde o marxismo
esclerosado ainda consegue uma ridícula sobrevivência, embora desprovido de qualquer
inovação filosófica ou de melhorias significativas nas suas propostas econômicas relevantes.
Não se imagine, contudo, que o disfarce ‘socialista’ da liderança plutocrática chinesa
constitua um sobrevivência qualquer da ideologia marxista, ou que ela represente um desafio
fundamental ao capitalismo real: os líderes chineses, desde Deng Xiao-Ping, perceberam que
a sobrevivência do ‘comunismo’ na China só se daria por obra e graça do capitalismo, e à sua
construção eles vem se dedicando com extraordinário esforço e o zelo engajado dos
verdadeiros crentes, os ‘novos cristãos’ da verdadeira fé nas virtudes do regime de mercados.
O que está em causa, obviamente, não é o futuro, sequer o destino do socialismo, mas
pura e simplesmente o poder político nas mãos dos novos mandarins chineses, uma nova
322
classe basicamente similar à antiga nomenklatura soviética, mas que foi esperta o bastante
para construir um sistema de dominação que transforma os novos capitalistas em seus aliados
permanentes, já que, como ensina Fernand Braudel, o capitalismo só triunfa, de verdade,
quando ele transforma em Estado, quando ele é o Estado.4 Alguns observadores já chamaram
esse novo sistema de “corporativismo leninista”,5 mas o nome, na verdade, importa menos do
que a realidade tangível do novo sistema chinês: esse sistema é essencialmente capitalista,
mesmo se ele não é democrático e muito menos liberal, no sentido político da palavra; mas as
políticas econômicas mobilizadas são, no seu sentido básico, de corte liberal. Aliás, a partir da
crise econômica mundial de 2008-2009, vários observadores se perguntaram se, depois do
‘comunismo’ chinês ter sido salvo pelo capitalismo, não seria ele agora, pela pujança da
demanda e da produção manufatureira de alcance global, a salvar o capitalismo. Ao que se
sabe, o ensaio de Fukuyama não recebeu uma edição revista e atualizada para poder capturar
esta última ‘astúcia da Razão’, ou essa “artimanha da História”, uma ironia suprema que seria
bem recebida por Marx, mas certamente não por Lênin e seguidores.
Não é seguro que uma alternativa credível em termos de sistema econômico e político
se apresente nos palcos da História, ainda que as viúvas do comunismo e os deserdados da
causa mantenham uma esperança quase religiosa – que se renova febrilmente a cada crise do
capitalismo – de que isso seja possível em suas vidas terrenas. O mais provável é que as
últimas ‘terras incógnitas’ do capitalismo realmente existente – que são alguns tresloucados
‘socialistas do século 21’, perdidos em seus próprios desastres econômicos, e um punhado
mais numeroso de satrapias africanas, mas que não constituem Estados, no sentido hegeliano
do termo – se juntem à locomotiva da interdependência mundial em algum momento deste
século: embora atrasados, eles também serão bem-vindos, mesmo que tenham de
desempenhar funções subalternas no capitalismo, até sua própria qualificação produtiva.
Alternativas políticas à democracia liberal sempre podem existir, posto que as molas
do poder respondem em grande medida mais às paixões humanas – o que os dramaturgos
gregos, Shakespeare e Maquiavel já sabiam desde sempre – do que aos mecanismos de
produção e de distribuição de ativos reais, e isto vem sendo provado a cada instante da
história mundial. Não se imagina, porém, que o ‘som e a fúria’ da luta pelo poder, nas
comunidades contemporâneas conduza a novos tipos de conflitos globais como os conhecidos

4
Ver a trilogia braudeliana, Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV-XVIIIème siècles
(Paris: Armand Colin, 1979, 3 vols.).
5
Cf. Jean-Luc Domenach, La Chine m’inquiète (Paris: Perrin, 2008), p. 58 e 65-66.
323
desde a era napoleônica até a ‘segunda guerra de trinta anos’ do século 20. Nenhuma
Realpolitik se exerce da mesma maneira depois que o gênio do poder nuclear saiu da garrafa.
A Realpolitik da atualidade tem um novo nome, superioridade tecnológica, e o cenário
de seu desenvolvimento é a própria Weltwirtschaft, num mundo cada vez mais borderless.
Com efeito, assiste-se hoje em dia a um deslocamento de hegemonias, menos devido à força
das canhoneiras do que ao peso dos navios cargueiros. Mais exatamente, a tendência não é
mais à constituição de rivais imperiais, mas ao estabelecimento de competidores mais
eficazes, guerreiros de uma nova espécie, que buscam não tomar de assalto velhas fortalezas,
mas inundá-las com pacíficos obuses eletrônicos, manufaturados segundo os mais modernos
requisitos da tecnologia.
Os cavaleiros mais dinâmicos dessa nova ordem mundial consideram os arsenais
nucleares como catapultas pouco práticas do ponto de vista das modernas técnicas de
conquista, da mesma forma que eles tendem a desdenhar os conflitos ideológicos como
querelas teológicas de reduzido poder agregador: os hábitos de consumo unificam mais os
povos, hoje em dia, do que as velhas crenças. Teutônicos ou samurais, os novos cavaleiros da
economia mundial não buscam exatamente dominar ou converter outros povos, mas tão
simplesmente extrair recursos pela via comercial.
A estratégia econômica desses novos cruzados é verdadeiramente internacional, no
sentido mais planetário do termo: busca de vantagens comparativas dinâmicas, rápido
deslocamento geográfico de fatores, divisão racional de mercados, em suma, uma
globalização acabada dos circuitos produtivos e de distribuição. A característica mais saliente
dessa nova ordem mundial é a crescente interdependência dos países mais inseridos na
economia de mercado. Mas, assim como na fábula orwelliana sobre a “igualdade” na fazenda
“socialista” dos animais, nessa nova “fazenda capitalista” das nações, alguns membros são
mais “interdependentes” do que outros. Não se trata apenas de saber quem é mais
“transnacional” nessa confraria, mas sim de determinar quem melhor sabe maximizar os
mecanismos de controle da racionalidade instrumental própria à economia de mercado: o
lucro e o investimento produtivo.6
Assim, se o “fim da História” – compreendido, não no sentido de que o mundo estaria
a ponto de se tornar um havre tranquille para o exercício da democracia política, mas no do
término da busca dos princípios fundamentais que devam reger a organização da sociedade –

6
Para os menos afeitos à esotérica terminologia weberiana, estabeleçamos simplesmente que a
“racionalidade instrumental própria à economia de mercado” pode ser definida como o “retorno
ampliado do capital”.
324
está ou não próximo de converter-se em realidade, esta é uma questão ainda em aberto. Uma
alternativa política ao liberalismo ocidental não parece, em todo caso, perto de nascer. Isto
não quer dizer que não existam alternativas práticas, reais, à democracia burguesa, como o
próprio caso da China o demonstra. O que se pretende constatar é que o sistema chinês de
dominação política não oferece atrativos para qualquer país que se pretenda ‘normal’ no
quadro da interdependência contemporânea: esse sistema simplesmente não constitui um
modelo que possa ser replicado em caráter voluntário por outras comunidades políticas.
Não fosse assim, a plutocracia chinesa não precisaria manter um formidável aparato
de repressão, disseminar a censura pelos terrenos sempre fugidios da internet, continuar a
condenar “dissidentes” e “violadores da legalidade” com o mesmo ardor – embora com menor
brutalidade – que seus antecessores declaradamente marxistas-leninistas. A tese de
Fukuyama, em seus contornos filosóficos, ainda não foi desmentida pelos defensores do
ancien régime leninista. Em outros termos, a “boa e velha” democracia burguesa, em que pese
algumas rugas vitorianas, ainda não foi vencida por alguma “contradição insanável”, do tipo
das que costumavam frequentar o universo conceitual do marxismo clássico.
Em contrapartida, no terreno da economia, o “final da Geografia” parece mais à vista,
sobretudo quando se considera o escopo espacial das atividades empresariais: o mundo
material está sendo progressivamente unificado por uma “cultura comum”, senão da
abundância, pelo menos no que respeita os padrões de consumo. Os jovens iranianos de uma
das teocracias mais reacionárias que possa existir, os jovens chineses do “socialismo de
mercado” e os jovens bolivarianos de um novo socialismo surrealista, todos eles desejam
encontrar satisfação em padrões de consumo relativamente similares: filmes série B de
Hollywood, fast-food, iPhone, iPad e internet. Os que ficam de fora – cubanos, coreanos do
norte – estão loucos para entrar...
O processo de constituição de um borderless-world não deve ser confundido com o
“declínio do Estado-nação”, tendência desmentida pelo ressurgimento do nacionalismo nos
mais diversos quadrantes do globo. O que ocorre, exatamente, é uma combinação do
policentrismo interestatal com a unificação dos espaços geoeconômicos, nos quais as
competências estritas dos Estados nacionais no terreno econômico passam a ser exercidas por
blocos de integração (zonas de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns).
O socialismo nouvelle manière só poderá sobreviver nesse “admirável mundo novo”
do “fim da Geografia” se ele, além de aprender a coexistir com o liberalismo político, passar a
conviver em bons termos com a interdependência econômica, ou seja, além de “democrático”,
o socialismo terá de ser cada vez mais “de mercado”. Os países “pós-socialistas” da mittel-
325
Europa, por exemplo, deram passos enormes no estabelecimento de regimes formalmente
democráticos, mas eles ainda não tiveram tempo de organizar, sobre bases mais racionais, um
sistema de “exploração do homem pelo homem”. Em todo caso, eles são bem-vindos à
realidade. Quanto aos “socialistas radicais” ainda existentes nos países em desenvolvimento,
entre eles o Brasil, eles terão, mais dia menos dia, de fazer o caminho da Canossa capitalista,
o que significa fazer a sua própria versão de Bad Godesberg, com os sorrisos irônicos, à
distância, de Edward Bernstein.7
Se o socialismo, tout court, não desaparecer nesse movimento de recomposição
radical de suas bases de funcionamento, ele inevitavelmente se converterá em uma espécie de
socialismo formal, onde o mercado e a democracia política convivem tranquilamente com
esquemas diversos de seguridade social e de intervencionismo estatal, um pouco, aliás, como
na maior parte dos países do “capitalismo realmente existente”. Seu caráter formal – isto é,
respeitador das desigualdades individuais que tendem inevitavelmente a se desenvolver sob as
mais diversas formas – não deve contudo assustar os mais puros ideologicamente. Se a
chamada “democracia burguesa” conseguiu sobreviver durante tanto tempo, foi exatamente
devido a seu caráter essencialmente formal, ou seja, uma democracia simplesmente política,
destituída de qualquer conteúdo real, em termos de direitos econômicos ou sociais. A simples
garantia da igualdade jurídica e da liberdade individual representa, contudo, um enorme passo
à frente no itinerário da sociedade civil, pelo menos para grande parte da Humanidade.
É possível, assim, que a administração da “coisa pública” nesse socialismo formal do
futuro seja uma tarefa tão “aborrecida” e fastidiosa quanto, digamos, atualmente, em certas
democracias avançadas do Ocidente, algo que já tinha sido percebido por um filósofo tão
inteligentemente socialista (e “hegeliano”) como Norberto Bobbio. O fato, porém, de que
nenhum sistema social humanamente concebido poderá resolver a contento a questão da
distribuição dos bens raros e socialmente valorizados – e a mercadoria “poder” é a primeira a
inscrever-se nessa categoria – garante que os palcos da História continuarão, durante muito
tempo, a ser excitantes. Em outros termos, o emprego de “filósofo público” de Fukuyama
parece assegurado pelo futuro previsível.
Vinte anos depois, em vista das muitas críticas feitas naquela conjuntura – e ainda
hoje – às principais teses do autor, vale a pena retomar seus principais argumentos e verificar
se eles ainda conservam alguma validade para nossos tempos, que poderiam ser considerados
7
Bad Godesberg epitomiza o memorável congresso do SPD alemão, em finais dos anos 50, no qual o
velho partido marxista de Liebknecht aceitou, finalmente, a lógica do mercado capitalista e a do
reformismo político como seus pressupostos filosóficos e práticos, como aliás recomendava, desde o
começo do século, contra Rosa Luxemburgo, o renegado Bernstein.
326
como de pós-Guerra Fria, mas que alguns interpretam, ou consideram efetivamente, como de
volta à Guerra Fria, ainda que sob novas modalidades (com uma Rússia singularmente
diminuída e uma China hesitante em se posicionar como contendor estratégico dos Estados
Unidos).8
Antes, contudo, de ingressar numa descrição linear desses argumentos, qualquer que
seja sua validade relativa ou absoluta para o tema que nos interessa – qual seja, o da natureza
das opções abertas aos países em termos de reforma e desenvolvimento paralelos do sistema
econômico e do regime político, que Fukuyama identificava com a redução dessas opções à
democracia de mercado – cabe chamar a atenção para uma peculiaridade geralmente
descurada no debate anterior (e talvez atual) sobre a validade das teses de Fukuyama,
sobretudo por aqueles que recusam, in limine, a essência mesma do argumento do autor. Esta
peculiaridade tem a ver, basicamente, com um simples sinal diacrítico: o ponto de
interrogação ao final do título, geralmente ignorado pelos críticos das teses de Fukuyama, e
provavelmente também por aqueles que apoiam, em grande medida, o sentido dos seus
argumentos. Ou seja, Fukuyama não fazia uma afirmação peremptória, mas levantava uma
hipótese, a do final presumido da história, numa análise de corte essencialmente conceitual,
ainda que fortemente embasada nos fatos históricos, e nunca pretendeu formular uma
sentença de caráter terminativo, indicando um “congelamento” das formas possíveis de
organização social, econômica e política. O interrogante básico de seu argumento tem a ver
com a possibilidade de alternativas credíveis às democracias liberais de mercado, ponto.
O ponto de interrogação, por si só, tem o poder de desmantelar boa parte das críticas
superficiais, embora ele não elimine uma discussão responsável sobre a essência de sua tese,
que caberia discutir, após o resumo inicial de seus argumentos. A tese – vale a pena resumir
desde o início – tem a ver com o caráter incontornável da democracia de mercado como sendo
uma espécie de ‘horizonte insuperável de nossa época’, como poderia argumentar – mas a
propósito do marxismo – Jean Paul Sartre, um dos estudantes, junto com Raymond Aron, da
tese original de Hegel, através de Alexandre Kojève.
Como indica corretamente Fukuyama, no decorrer do século 20, foram dois os
desafios mais importantes ao liberalismo político e econômico: o fascismo e o comunismo.
Ambos poderiam, na verdade, ser abrigados sob o conceito comum de regimes anti- ou
aliberais, no terreno político, e sob o conceito de sistemas coletivistas no domínio econômico
8
Ver, a esse propósito, meu artigo “A economia política da velha Guerra Fria e a nova “guerra fria”
econômica da atualidade: o que mudou, o que ficou?”, Revista da Escola de Guerra Naval (Rio de
Janeiro: vol. 17 n. 2, dezembro de 2011, p. 7-28; ISBN: 1809-3191; link:
https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/revistaEgn/novaRevista/pagina_revista/n17_2/_edicao17_2.pdf).
327
(embora o comunismo, ou o socialismo soviético, tenha sido muito mais ‘coletivista’ do que o
fascismo). Tendo este último sido enterrado sob os escombros da Segunda Guerra Mundial,
restava o comunismo, que, no momento em que Fukuyama redigia seu panfleto hegeliano,
ainda não tinha sido enterrado de vez. Essa recordação é importante: afinal de contas, na
segunda metade de 1988 e o início de 1989, quando ele redigiu seu ensaio especulativo,
Gorbachev ainda se debatia para implementar sua glasnost e sua perestroika, destinadas,
como se sabe, não a enterrar o comunismo, mas a introduzir elementos de mercado em seu
funcionamento efetivo, de maneira que a nova NEP sob o comando de um reformista do
Partido Comunista pudesse assegurar a continuidade do sistema e do império; por outro lado,
a China de Deng Xiao-Ping exibia, naquela conjuntura, apenas 20% de sistema de mercado
como locus da produção global do país e, ao que se sabe, a plutocracia do PCC pretende, até
hoje, construir um fantasmagórico “socialismo de mercado com características chinesas”.9
Fukuyama não deixa de ironizar o fato de que entre os maiores opositores do
marxismo e das economias coletivistas nos países ocidentais estão os ‘perfeitos materialistas’
de Wall Street, que cultivam o mais acirrado anticomunismo e não deixam de ser defensores
de princípios similares aos dos marxistas. Como ele escreve: “A inclinação materialista do
pensamento moderno é uma característica não apenas do pessoal da Esquerda, que podem ser
simpáticos ao Marxismo, mas de muitos antimarxistas passionais também. De fato, existe na
direita o que se poderia rotular de escola do Wall Street Journal do materialismo determinista,
que relativiza a importância da ideologia e da cultura e vê o homem como sendo
essencialmente um indivíduo racional, maximizador dos lucros. É precisamente esse tipo de
indivíduo e a sua busca de incentivos materiais que aparece como a base da vida econômica
nos manuais de economia.”
Não se trata de mera ironia gratuita, pois como lembra em seguida Fukuyama, é essa
mesma escola do materialismo determinista de Wall Street Journal que aponta para os
notáveis sucessos de países dinâmicos da Ásia nas últimas décadas como uma evidência da
viabilidade da economia de mercados livres, com a implicação decorrente de que todas as
sociedades poderiam conhecer desenvolvimentos similares se elas simplesmente deixassem as
pessoas perseguirem livremente seus interesses materiais. O próprio Fukuyama aponta para os
elementos “ideais” presentes nessa transformação e na ulterior transição do socialismo ao

9
Sobre essa verdadeira “contradição nos termos” – como disse Marx a propósito do sistema de
Proudhon, exposto em Filosofia da Miséria, e criticado por ele em Miséria da Filosofia (1847) –, ver
meu artigo: “Falácias acadêmicas, 13: o mito do socialismo de mercado na China”, Espaço Acadêmico
(ano 9, n. 101, outubro de 2009, p. 41-50; disponível:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8295/4691).
328
capitalismo, ao dizer que os dirigentes dessas fracassadas experiências do socialismo real já
tinham constatado há muito tempo que o sistema simplesmente não funcionava. Registre-se
que Fukuyama escrevia antes que o socialismo implodisse de fato e que os chineses
formalizassem sua receita original de transição do socialismo ao capitalismo, com as
justificativas teóricas disponíveis, o que foi feito apenas a partir de 1991-92.
Resumindo: Fukuyama não afirmou, mas se perguntou se tínhamos atingido, de fato, o
fim da história. “Existem, em outras palavras, quaisquer ‘contradições’ fundamentais na vida
humana que não possam ser resolvidas no contexto do liberalismo moderno, e que poderiam
ser solucionadas por uma estrutura político-econômica alternativa? Se aceitarmos as
premissas idealistas expostas acima, precisaremos buscar uma resposta a esta questão no
terreno da ideologia e da consciência.” Não há, aqui, nenhum pessimismo de princípio quanto
a que, no terreno do mundo material pelo menos, se possa um dia realizar a conhecida utopia
socialista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”.
Mas, é altamente improvável, conhecendo-se a natureza humana, que se possa cumprir, com
ou sem “final da História”, a profecia de Engels segundo a qual, no futuro, “o comando dos
homens será substituído pela administração das coisas”.

Brasília, 2 de junho de 1992; revisão ulterior: 13 de janeiro de 2010.


Inédito em sua maior parte; acréscimos mais recentes publicados em
Meridiano 47 (n. 114, janeiro de 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link:
http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291)

329
A Parábola do Comunismo no Século XX

François Furet:
Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle
(Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995, 580 p.)

A parábola, em sua versão eclesiástica, é uma narração alegórica dos livros santos,
possuindo um claro fundo moral ou pretendendo registrar um ensinamento. Mas, em sua
acepção matemática, o conceito pode também significar uma linha curva, com um lado
arredondado e uma base truncada, na qual todos os pontos se situam a igual distância do
centro. Tomando como base tais parâmetros, a marcha do comunismo no século XX, tanto em
seu sentido religioso como no geométrico, pode ser efetivamente comparada ao itinerário de
uma parábola. Esta é pelo menos é a conclusão a que chegaria o observador imparcial que,
num fin-de-siècle decididamente pós-comunista, se decidisse por um balanço do estado atual
desse movimento político (mas também social e econômico) que marcou indelevelmente,
junto com o fascismo, esta “época dos extremos”, como Hobsbawm caracterizou de forma
pertinente nosso “breve século XX”.1
Com efeito, como no caso da alegoria religiosa, o comunismo também pretendia
realizar, com base nas “santas escrituras” de Marx e Lênin, um objetivo moralmente elevado
– o ideal do socialismo perfeito – que representaria o acabamento da verdadeira democracia
prometida pelas revoluções de 1905 e de 1917. E, como em seu equivalente geométrico, o
itinerário do comunismo reproduziu o dessa curva oblonga que segue para o alto e para baixo
a partir de uma base plana e na qual os pontos estão sempre à mesma distância de um ponto
fixo ou de uma diretriz – o marxismo –, este servindo de álibi e de justificativa ideológica
durante os setenta anos que durou a experiência. Tendo alcançando o ápice de seu processo de
desenvolvimento durante o período áureo do estalinismo triunfante (no imediato pós-segunda
guerra), o comunismo veio a declinar progressivamente enquanto guia moral, para conhecer,
no final dos anos 80 e princípios dos 90, uma brusca interrupção de seu movimento real,
desfazendo-se então em suas contradições insuperáveis na outra ponta da parábola, quando
ele já não tinha nada mais a ensinar.2

1
Ver Eric Hobsbawm, Age of Extremes: the short twentieth century, 1914-1991 (Londres: Michael
Joseph, 1994); em especial capítulos 13, “Real Socialism”, e 16, “End of Socialism”, p. 372-400
e 461-499.
2
Este artigo já estava largamente redigido quanto o Autor tomou conhecimento do pequeno estudo
histórico de Massimo L. Salvadori, La parabola del comunismo (Bari: Laterza, 1995), que traça
330
Como interpretar esse final surpreendente para um movimento que, nos últimos dois
séculos dispôs, aparentemente, de sólidas raízes sociais nos movimentos sindicais e político-
partidários de inúmeros países e que apelava fortemente para os ideais de igualdade e de
justiça social presentes no imaginário popular? Para o historiador francês François Furet, a
cuja obra mais recente é dedicada a análise conduzida neste artigo, essa ruptura histórica foi
causada por iniciativas do próprio partido que ocupava o poder na “pátria do socialismo”,
tendo o universo comunista se “desfeito por suas próprias mãos”.3

A Obra e seu Mestre


Quando do festejado lançamento do livro, essa obra de Furet4 foi apresentada como “a
primeira grande síntese histórica sobre o comunismo no século XX” (a contracapa é da
responsabilidade dos Editores), o que evidentemente constitui um certo exagero. O próprio
Furet reconhece que ele não pretendeu fazer uma história política do comunismo neste século:
o autor afirma ter desejado tão somente escrever um ensaio sobre a permanência da ideia
comunista – a grande ilusão – nos países em que ela vicejou material ou intelectualmente. Por
outro lado, seu magnífico ensaio de história intelectual trata, antes de mais nada, das “ideias”
francesas sobre o desenvolvimento do marxismo e do comunismo e das diversas polêmicas
por eles suscitados na França e na Europa nos últimos setenta anos, reconstituindo assim, em
grande medida, a dialética das paixões revolucionárias francesas neste século.
Na verdade, independentemente do inegável valor que possui sua reconstrução
conceitual do movimento comunista (e sua confrontação com a experiência fascista) neste
“breve século XX”, a discussão intelectual conduzida no ensaio de Furet é – Révolution de
1789 oblige – fortemente franco-cêntrica, como costuma acontecer com uma certa frequência
nos debates entre intelectuais gauleses.5 Nesse sentido, a questão central numa análise dessa
obra não está tanto na avaliação de seu trabalho como historiador do processo histórico
concreto de desenvolvimento do comunismo realmente existente – empresa largamente

um rápido panorama da história do comunismo, de suas origens à queda do império soviético.


Seu título, assim, não deve nenhum “copyright” a esse especialista da história do socialismo,
podendo no máximo reconhecer seus “moral rights” quanto à precedência no uso do conceito.
3
François Furet, Le passé d’une illusion, op. cit., p. 11-14.
4
Dentre os demais trabalhos do conhecido especialista da Revolução francesa podem ser citados
La Révolution française (com Denis Richet, 1965); Penser la Révolution française (1978);
L’Atelier de l’Histoire (1982); Marx et la Révolution française (1986) e, com Mona Ozouff,
Dictionnaire critique de la révolution française (1988).
5
Isso a despeito de um bom conhecimento da bibliografia anglo-saxã sobre ambos os problemas,
fruto certamente de seus últimos anos passados na Universidade de Chicago.
331
realizada anteriormente sob a condução do próprio Hobsbawm6 – como na apreciação crítica
de seu desempenho em explicar verdadeiramente as razões de décadas de sucesso da ideia
comunista em largas frações da opinião pública e da intelectualidade ocidental.7 O argumento
central do ensaio de Furet é o de que a experiência soviética representou uma “illusion
fondamentale”, ilusão que foi constitutiva de sua própria história. Estando basicamente de
acordo com essa concepção global, inclusive no que se refere ao paralelismo histórico – o que
não quer dizer funcional – traçado com o fascismo, discutiremos entretanto a insuficiência da
interpretação essencialmente política que ele desenvolve sobre a ilusão comunista, assim
como no que se refere à natureza da crise final e da derrocada do comunismo soviético.
Um dos problemas mais importantes tocados por Furet nesse ensaio é o da
comparabilidade entre os sistemas comunista e fascista, comparação geralmente rejeitada por
gerações de intelectuais instintivamente movidos por um “antifascismo” visceral (em vista do
horror genocida que sua versão nazista representou), quando não posicionados no
“anticomunismo” de direita.8 De fato, grande parte da obra de Furet trata dessa oposição-
atração entre duas ideologias que tinham na democracia pluralista seu inimigo comum e no
anti-capitalismo um apelo igualmente estimulado pelos movimentos políticos que as
sustentavam. Para sermos mais precisos, apenas o comunismo rejeitava de forma absoluta o
capitalismo enquanto forma de organização econômica e social, mas também o fascismo tinha
alimentado sua penetração nas camadas proletárias da sociedade com esse ódio ao “ burguês
capitalista” que é sua marca distintiva nos primeiros anos de ascensão ao poder.
A estrutura da obra é relativamente linear e apresentaremos aqui apenas um sumário
dos capítulos. Depois de uma introdução geral ao problema da “paixão revolucionária”
(capítulo 1), na qual são discutidos os principais elementos da mitologia política que
6
Remeto à monumental coleção dirigida por Eric J. Hobsbawm Georges Haupt, Franz Marek,
Ernesto Ragionieri, Vittorio Strada e Corrado Vivanti, Storia del Marxismo (Torino: Giulio
Einaudi, 1979-1983; 4 vols.; publicados no Brasil: Paz e Terra), que, a despeito do nome, trata
igualmente da história do comunismo soviético e das sociedades do socialismo real; ver em
especial os tomos 2 e 3 do terceiro volume: “Il marxismo nell’età della Terza Internazionale”,
respectivamente “Dalla crisi del ‘29 al XX Congresso” e “Il marxismo oggi” (1981 e 1983), nos
quais se retraça efetivamente a história do comunismo e das ideias marxistas no século 20.
7
Essa reconstituição do “sucesso” da ideia comunista no século XX representa para Furet uma
espécie de balanço intelectual e de “acerto de contas” pessoal com sua “tribo” de origem, na
medida em que ele não esconde sua militância partidária no PCF, entre 1949 e 1956. O mesmo
poderia ser dito, em pura honestidade intelectual, do autor destas linhas que, apesar de jamais ter
pertencido a qualquer partido socialista ou comunista no Brasil ou no exterior, não recusa, ainda
hoje, uma antiga filiação teórica marxista: a crítica aqui desenvolvida é, assim, uma espécie de
autocrítica intelectual da “grande ilusão” que também frequentou seus anos de juventude.
8
Essa comparação entre os dois sistemas totalitários não foi contudo desprezada por uma
intelectual como Hannah Arendt, como se encarrega de lembrar o próprio Furet numa das
passagens de seu livro.
332
asseguraram o sucesso (curto, no primeiro caso) do fascismo e do comunismo neste século,
Furet mergulha nas entranhas do imenso cataclismo militar, político, econômico e social que
explicam a emergência respectiva desses sistemas antinômicos, mas bastante próximos um do
outro (capítulo 2: A Primeira Guerra mundial). Não se deve, com efeito, esquecer o papel
crucial da Primeira Guerra para o surgimento, no contexto político europeu, dos dois grandes
movimentos antiliberais que mais marcaram o século XX. Assim, o comunismo de tipo
soviético pode ser virtualmente visto como o resultado prático de um pequeno, mas fecundo,
“acidente” histórico, 9 desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a
Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, quase
desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias. O voluntarismo oportunista da
diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente
oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em
“cataclismo” histórico de proporções inimagináveis, dando origem aliás a parte dos
desenvolvimentos subsequentes que viriam a minar o próprio império alemão e justificar,
mais adiante, a tomada do poder por Hitler.
No capítulo seguinte (O charme universal de Outubro), Furet demonstra como Lênin
conseguiu “inventar”, num país atrasado como a Rússia czarista, um regime social e político
que passou a servir de exemplo à Europa e a todo o mundo, na continuidade da história
ocidental. O capítulo 4 (Os crentes e os desencantados) apresenta retratos de alguns dos
grandes pioneiros do combate bolchevique e de seus primeiros “renegados” (Pierre Pascal,
Boris Souvarine, Gyorg Lukacs). A revolução se congela em seguida, no “socialismo em um
único país” (capítulo 5), quando Stalin consegue consolidar-se no poder e apimentar seu
leninismo com algumas pitadas de nacionalismo e grandes doses de brutalidade. Os três
capítulos seguintes (Comunismo e fascismo, Comunismo e antifascismo e A cultura
antifascista) tratam basicamente da política europeia nos anos 20 e 30, com as diferentes
manobras de uma e outra corrente para manter-se no poder, ou barrar o caminho à outra, da
política de “frente popular” e da formidável recusa dos intelectuais de esquerda em aceitar a
realidade dos crimes stalinistas. Eles constituem, por assim dizer, o cerne da obra, onde são
analisadas verdadeiramente as ideias políticas que marcaram nosso século, ou pelo menos os
principais elementos da mitologia política do comunismo de tipo soviético.
A Segunda Guerra mundial, objeto do capítulo 9, encontrava-se em germe
praticamente desde o final da Primeira, mas seu deslanchar foi paradoxalmente permitido por

9
Esta digressão sobre a origem “acidental” do poder bolchevique não se encontra no livro de
Furet, sendo de minha própria responsabilidade.
333
um acordo sórdido entre Hitler e Stalin sobre a partilha da Polônia e a incorporação de novos
territórios ao renascido império russo. A reintegração da URSS ao antifascismo e a aliança
com as potências ocidentais, depois do traiçoeiro ataque de Hitler em junho de 1941, e a
vitória na guerra consolidarão a imagem e o prestígio de uma ditadura comunista chegada ao
suprassumo do totalitarismo: é o “stalinismo, etapa suprema do comunismo” (capítulo 10). O
“comunismo da guerra fria” ocupa o capítulo seguinte, no qual Furet analisa as primeira
fissuras no edifício (Tito) e continua a discutir a obra de alguns dissidentes da ideia comunista
(Koestler, Silone, por exemplo), de intelectuais independentes, como a já citada Arendt, ou
“liberais”, como Nolte.
Comparados às seções que examinaram o surgimento do socialismo soviético ou
traçaram sua aproximação com o fascismo, os capítulos finais deixam algo a desejar, em
termos de profundidade de análise ou de inovação conceitual. O “começo do fim” do
comunismo (capítulo 12) se abre com a morte de Stalin, período marcado aliás pelas
surpreendentes revelações de Kruschev durante o 20° congresso do PCUS: seu relatório
representa para a história do comunismo, segundo Furet, “o texto mais importante que foi
escrito no século XX”. A crise do sistema monolítico se amplia (dissidências chinesa e
albanesa, o fenômeno cubano, distanciamento dos partidos europeus, surgimento dos
primeiros dissidentes, como Vassili Grossman) e a análise de Furet se faz aqui mais rápida,
menos abrangente (trinta ou quarenta páginas, no máximo, para esse longo enterro do
comunismo). O “Epílogo”, finalmente, tanto continua a apresentação do novo clima de
contestação interna dos princípios sacrossantos do comunismo (Pasternak, Solzhenitsyn),
como tenta um pequeno balanço sobre as razões da queda. Gorbatchev, para Furet, epitomiza
a morte de todos os comunismos alternativos (maoísmo, castrismo) que possam ter surgido e
se desenvolvido no pós-guerra. O comunismo poderia ter perdido a guerra fria e sobrevivido
como regime ou dado lugar a Estados rivais, sem desaparecer como princípio; mas, não: ele
desaparece “corps et biens” no tribunal da História (p. 571).
Esta é, basicamente, a estrutura da obra, escrita em linguagem agradável e leve, sem
deixar de ser densa (mesmo se as referências documentais e bibliográficas foram reduzidas ao
mínimo). O essencial dos argumentos de Furet, como dissemos, está centrado numa
apresentação e discussão das “ideias” que explicaram ou sustentaram o comunismo neste
século, com uma ênfase especial nos intelectuais que se distinguiram nesse debate. Mas, dois
grandes problemas podem ser identificados em maior detalhe para esta apreciação crítica, não
desprovida de uma certa “deformação” sociológica. O primeiro deles é a já referida questão
da comparabilidade (e identidade) entre comunismo e fascismo. O segundo seria o das
334
condições da crise final e desaparecimento do comunismo, algo não abordado diretamente ou
extensamente por Furet em seu livro, mas que ele considera como um processo ainda em
grande medida misterioso (“A maneira pela qual se decompôs a União Soviética, e em
seguida seu Império, permanece misterioso”, p. 567).

A Grande Ilusão do Comunismo


Deve-se, em primeiro lugar, fazer uma referência, ainda que breve, ao tema-título da
obra, apontando para o “passado” da ilusão entretida pela ideia comunista. Por que o
“passado” e não o “final” de uma ilusão, já que uma das conclusões do livro é de que o
comunismo se termina no “néant” (p. 13), “como se se acabasse de fechar a maior via jamais
oferecida à imaginação em matéria de felicidade social” (p. 571)? Furet argumenta em defesa
do conceito de “passado”, explicando que a ilusão propriamente dita preserva ainda, sob uma
outra forma, um certo futuro, simbolizado na esperança em uma sociedade vindoura que
poderá continuar a alimentar os debates. O que morreu, na ideia comunista, foi não só o papel
messiânico da classe operária como também sua projeção “territorial”, tal como expressa no
ex-império soviético. 10
No que se refere, de um modo geral, à “grande ilusão” do comunismo, dificilmente se
poderia discordar dos argumentos de Furet quanto à “cegueira” literal que abateu-se sobre
levas sucessivas de intelectuais e militantes na Europa e no resto do mundo durante décadas
inteiras. A fascinação do projeto comunista só pode explicar-se, à esquerda, pela força da
filosofia marxista, que prometia um mundo novo, liberado das misérias do real e mais
conforme à “razão da História”. Mesmo à direita, ainda que recusando os princípios da
organização soviética, não se podia deixar de reconhecer que a Revolução de Outubro possuía
uma certa filiação com as grandes revoluções do passado europeu, a Revolução francesa em
primeira lugar. A aparente imobilidade e rigidez da sociedade socialista então criada
tampouco deixou de surpreender os sociólogos: mesmo para alguns analistas esclarecidos,
parecia inconcebível que o mais perfeito modelo de ditadura burocrática – uma verdadeira
“gaiola de ferro” weberiana – pudesse desmembrar-se como um castelo de cartas.
Daí a impressão de uma certa permanência e mesmo resiliência do poder socialista, a
despeito mesmo de sua evidente degenerescência política e de sua manifesta incapacidade em
assegurar o correto funcionamento do aparelho econômico da sociedade. Ainda que alguns
espíritos mais argutos tenham antecipado o final do comunismo, a queda brutal da URSS foi

10
Entrevista concedida por François Furet a Bernard Lecomte, “S’il n’y avait pas eu Lénine...”,
L‘Express (Paris, 19 janeiro 1995), p. 76-78.
335
uma surpresa para muitos, para Furet como para o autor destas linhas.11 A razão da
preservação da ilusão comunista (como, de certo modo, do fascismo, durante e após sua
vigência efetiva) pode estar, sob o risco de parecer óbvio, na própria força das ideologias
políticas, geralmente consideradas, no seguimento da crítica arrasadora de Marx, como um
simples disfarce do real, a serviço de interesses das classes dominantes ou de grupos
organizados.
Numa época em que alguns representantes modernos dos ideólogos – que são os
sociólogos – identificam sinais de “fim das ideologias” (Daniel Bell) e mesmo de “fim da
História” (Francis Fukuyama), perde-se por vezes a visão de como o elemento ideológico
influenciou a construção do mundo contemporâneo. Caberia com efeito recordar que a Europa
e o mundo em geral nos últimos setenta anos estiveram sob o signo e conviveram com a
“promessa” ou a “ameaça” (segundo a posição do interessado) de uma ou de ambas as
ideologias colocadas em paralelo por Furet. O historiador alemão Karl Bracher, que
sintomaticamente caracterizou nossa época como a “idade das ideologias”, indicou com
razão: “O século XIX foi dominado pelo desenvolvimento das nações e pelas reivindicações
dos Estados nacionais; o século XX, pelo confronto entre os nacionalismos e as ideologias,
entre a independência dos Estados individuais e os novos universalismos”. 12 A Primeira
guerra, objeto de um brilhante capítulo na obra de Furet, não foi certamente provocada pelo
choque entre ideologias conflitantes, mas foi ela que permitiu as racionalizações (ou
mistificações) a partir das quais iriam emergir as duas grandes ideologias de nosso século.
O fascismo, como se sabe, pereceu nos escombros das catástrofes que ele mesmo
provocou. Quanto ao comunismo, essa hantise ideológica de burgueses e proletários, ele
também terminou por encaminhar-se ao museu das antiguidades, ao lado do machado de
bronze e da roca de fiar (onde Engels havia também previsto um lugar para o Estado). Antes,
contudo, ele seria legitimado e revivificado pela vitória contra o primeiro, ganharia um certo
atestado de racionalidade econômica no seguimento das políticas intervencionistas

11
Tentei fazer, numa série de artigos interligados, uma análise evolutiva sobre o fenômeno da
“transição do socialismo ao capitalismo” nos países do socialismo real: “Retorno ao Futuro: A
Ordem Internacional no Horizonte 2000”, “Retorno ao Futuro, Parte II” e “Retorno ao Futuro,
Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, todos publicados na Revista Brasileira de
Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXXI, 1988/2, n. 123-124, p. 63-75; Ano XXXIII,
n. 131-132, 1990/2, p. 57-60 e ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, p. 51-71).
12
Cf Karl Dietrich Bracher, Zeit der Ideologien (Stuttgart: Deutsche Verlags, 1982), livro
consultado em sua edição italiana: Il Novecento: secolo delle ideologie (Bari: Laterza, 1984), p.
206. Furet cita em sua obra vários trabalhos deste historiador alemão, tendo entretanto
consultado este livro específico em sua edição americana: The Age of Ideologies: a history of
political thought in the XXth century (New York: St Martin’s Press, 1984).
336
conduzidas pelos Estados ocidentais no pós-guerra e circularia ainda enquanto movimento de
“liberação nacional” durante várias décadas pelos mais variantes quadrantes do globo.
A análise de Furet quanto ao poder de sedução da ideia comunista em nosso século é
propriamente impecável e podemos dizer que aí se situa o ponto forte de sua obra. Terminada
a ilusão, nós somos condenados “à vivre dans le monde où nous vivons” (p. 572), um mundo
povoado de contradições e de questões sociais não resolvidas. A velha democracia é chamada
uma vez mais à frente dos problemas.

Comunismo = Fascismo?
Um dos problemas mais importantes abordados por Furet em seu livro, é, como
dissemos, é o da possibilidade conceitual (e empírica) de se comparar e de traçar uma
identidade funcional entre os sistemas comunista e fascista, que entram, como ele diz,
“presque ensemble sur le théâtre de l’Histoire” (p. 38). Mesmo se ele não elabora essa
comparação do ponto de vista da ciência política, isto é, segundo uma abordagem teórico-
formalista, mas enquanto historiador, Furet isola e disseca os elementos materiais e
ideológicos de cada um dos sistemas (o partido-Estado, a ideocracia, o controle total da
informação, o sistema dos campos de concentração, por exemplo). O comunismo e o fascismo
são, para Furet, “ennemis complices”, o que não quer dizer que eles possam ser considerados
idênticos.
A analise de Furet sobre os dois sistemas é, também neste caso, pertinente: ele releva
os pontos discordantes, mas não deixa de sublinhar o que os aproxima. O comunismo, ou
melhor, o marxismo é um universalismo a pretensões democráticas, que sempre cultivou a
ambição de emancipar o conjunto da humanidade, enquanto que o fascismo é uma ideologia
particularista (raça, povo) abertamente antidemocrática. Mas, eles partilharam o mesmo
desprezo pelo direito, o mesmo culto da violência, a perseguição religiosa e a adoração do
partido e do chefe; eles também mobilizaram as paixões revolucionárias, o ódio do
individualismo burguês, a angústia pela salvação através da história, a religião da unidade do
povo e a intolerância fanática. Sobretudo, relembra Furet, eles têm no liberalismo ou na
democracia burguesa seu inimigo comum.13 Ele também demonstra a interação dos dois
sistemas nos palcos da história: “bolchevismo e fascismo se seguem, se engendram, se imitam
e se combatem, mas antes eles nascem do mesmo solo, a guerra; eles são os filhos da mesma
história” (p. 197), inaugurados pelo mesmo movimento de massas ao fim da Primeira Guerra.

13
Cf. “Nazisme et communisme: la comparaison interdite” (entrevista com François Furet),
L’Histoire (Paris, n. 186, março de 1995, p. 18-20).
337
Pode-se efetivamente considerar como importante, historicamente, o impacto da
Revolução bolchevique na emergência dos fascismos europeus: grande parte das reações da
direita, que levaram ou sustentaram os regimes fascistas na Europa dos anos 20 e 30, se deve
ao medo do contágio soviético, assim como a “ameaça” comunista e o exemplo da Revolução
cubana alimentariam os golpes militares de direita na América Latina dos anos 60.14 A mesma
filosofia antiliberal ou conservadora, segundo os casos (misturada à ideologia da “segurança
nacional” em nosso continente), estão presentes num e noutro lado do Atlântico, numa versão
atualizada da “grande peur” que havia sido estudada por Lucien Febvre na segunda fase da
Revolução francesa (a propósito dos camponeses, nesse caso).
Entretanto, importância histórica não quer necessariamente dizer relevância causal.
Cabe assim legitimamente perguntar se os fascismos italiano e alemão, entre outros menos
conhecidos, não teriam de toda forma ascendido ao poder mesmo na ausência de vitória da
Revolução bolchevique ou de uma menor “agressividade” do movimento comunista no
continente, inclusive na própria Alemanha e na Hungria (“república dos sovietes” na Baviera
e em Budapeste). A História teria sido certamente outra, sobretudo a da Segunda Guerra
Mundial, que tanto como o hitlerismo se alimenta e emerge das frustrações alemãs com o
armistício da Primeira Guerra e as “consequências econômicas” do Tratado de Versalhes
(para retomar o título da conhecida obra de Keynes15). Mas, os movimentos mussolinista e
hitlerista possuem suas lógicas próprias e suas respectivas dinâmicas históricas, buscando
raízes em crises econômicas, políticas e até mesmo morais propriamente nacionais. A
revolução bolchevique não explica, por exemplo, a inflação alemã de 1923 ou a crise de 1929,
que muito fizeram para ajudar a ascensão de Hitler.
Assim, é provável que os fascismos teriam de toda forma modificado a tipologia dos
regimes políticos no século XX, numa forma não idealizada por Weber. O mussolinismo e o
hitlerismo teriam, em todo caso, desfrutado de maiores oportunidades de expansão e de
afirmação, numa escala inimaginável retrospectivamente, com muito maiores perigos reais
para as poucas democracias existentes. Mas, mesmo divertida, a História dos “ifs” é de certa
forma impossível: se os alemães não tivessem embarcado Lênin no “trem blindado” em 1917;
se, em 1938, as democracias tivessem resistido a Hitler em Munique; se Ribbentrop e

14
Ver, para cada um dos casos, Charles S. Maier, Recasting Bourgeois Europe: stabilization in
France, Germany and in Italy in the decade after World War I (Princeton: Princeton University
Press, 1975) e Albert Hirschman, “The turn to authoritarianism in Latin America and the search
for its economic determinants” in David Collier (ed.), The New Authoritarianism in Latin
America (Princeton: Princeton University Press, 1975, p. 61-98).
15
Cf. John Maynard Keynes, The Economic Consequences of the Peace (London: MacMillan,
1919).
338
Molotov não tivessem confirmado o Pacto de agosto de 1939 que permitiu a invasão e a
liquidação da Polônia e, de fato, o início da Segunda guerra; se, dois anos depois, Hitler não
tivesse decidido atacar a URSS, se... : a lista dos imponderáveis históricos parece
interminável. Em todo caso, voltando ao problema da eventual vinculação da Revolução
bolchevique com suas congêneres fascistas, caberia lembrar que as situações históricas são
sempre únicas e originais e o mesmo evento ou processo não deveria necessariamente poder
repetir-se, na presença de outras circunstâncias.
Que a presença de Lênin tenha precipitado o “putsch” bolchevique parece uma
verdade indiscutível; mas que, em sua ausência, toda conjuntura revolucionária, com chances
para uma ascensão dos comunistas ao poder, teria sido impossível, é uma conclusão que não
podemos tirar da situação então prevalecente. Algumas das vinculações causais que poderiam
ser extraídas de um exercício de aproximação entre comunismo e fascismo, tal como o
conduzido por Furet, devem assim ser consideradas com extrema cautela. Ele, em geral,
prefere não se dedicar a essas especulações do espírito que, em larga medida, estão fora de
sua agenda de trabalho.
Alguns poderiam discordar da análise conduzida por Furet nesta parte (capítulo 6:
Comunismo e fascismo), como eventualmente eivada por uma tendência a “personalizar” em
demasia o movimento histórico que conduziu à emergência e consolidação do sistema
soviético por Lênin e Stalin, num caso, e à “invenção” do Estado fascista por Mussolini e
construção do nazista por Hitler, no outro.16 Mas, uma simples constatação de ordem prática
reverteria a confirmar o papel excepcional desses homens no destino histórico de seus
sistemas respectivos: “un trait apparente encore les trois grandes dictatures de l’époque: leur
destin est suspendu à la volonté d’un seul homme” (p. 199).17
Deve-se contudo observar que, chez Furet, o aspecto contingencial do processo
histórico é quase que levado ao extremo: “Suprimamos a personagem de Lênin da história e
não há mais Outubro de 1917. Retiremos Mussolini e a Itália do pós-guerra seguiria um outro
curso. Quanto a Hitler, se é verdade que, como Mussolini aliás, ele toma o poder em parte
graças ao consentimento resignado da direita alemã, ele não perde por outro lado sua
desastrosa autonomia: ele vai fazer funcionar o programa de Mein Kampf, que pertence a ele

16
É o caso, por exemplo, da crítica de Rudolf Augstein, diretor do Der Spiegel, de Hamburgo, em
artigo republicado, sob o título “François Furet, c’est de la vieille histoire”, em Courrier
International (Paris, n. 230, 30 março-5 abril 1995, p. 6).
17
Furet critica as inclinações “massistas” de certa historiografia: “Obcecada por uma história
abstrata de classes, nossa época fez tudo para obscurecer essa verdade elementar” (p. 199-200).
339
tão somente” (p. 200). Pode-se concordar com esse tipo de colocação,18 sem descurar porém a
probabilidade de que, na ausência de personalidades magnéticas como as dessas três figuras
históricas, os movimentos comunistas e fascistas já presentes em diversos países europeus
teriam oportunamente produzido líderes e circunstâncias favoráveis à ascensão dessas
correntes ao poder, com consequências eventualmente menos catastróficas em termos de
custos humanos, mas igualmente densas de significado político e social.

A Economia Política da Ilusão Comunista


O livro de Furet pretende, e consegue amplamente, explicar as razões do sucesso da
ideia comunista – e do prestígio da Revolução bolchevique, estendido à URSS – em largas
frações da opinião pública e da intelectualidade ocidental, especialmente francesa, durante os
setenta anos que durou a aventura soviética. Sua análise sobre as condições de ascensão ao
poder do bolchevismo (e do fascismo) no seguimento da Primeira Guerra mundial
permanecerá certamente como uma das realizações mais convincentes da historiografia
recente do comunismo; não sem um certo exagero – ligado ao prestígio do autor como
historiador “revisionista” da Revolução francesa – seu livro já é aliás considerado um
“clássico” nessa área de estudos.
Brilhante ensaio sobre a ilusão comunista, enquanto a URSS lhe emprestou
consistência e vida, ele é no entanto muito menos convincente sobre as condições materiais –
em especial as econômicas – que cercaram o colapso desse sistema no seguimento da queda
do muro de Berlim. Furet confessa que, como muitos outros observadores, não esperava que
as tentativas de reforma gorbacheviana fossem conduzir ao impasse e, finalmente, à derrocada
de todo o edifício comunista. Lembre-se a propósito que nem mesmo o “profeta” do “fim da
História”, Francis Fukuyama, previu a falência da estrutura soviética: ao contrário, ele estava
convencido de que a URSS seria preservada, mesmo com o abandono completo dos dogmas
econômicos do socialismo.19

18
Como diria o próprio Marx, “os homens fazem sua própria história...”, o que supostamente
compreende também as grandes personalidades individuais.
19
Cf. Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest (n. 16, Summer 1989, pp.
3-18), onde ele afirma, por exemplo: “A questão real do futuro é o grau pelo qual as elites
soviéticas lograram adequar-se à consciência do Estado homogêneo universal [conceito que
Fukuyama retira da leitura feita por Alexandre Kojève da obra de Hegel] que é a Europa depois
de Hitler. (...) Ainda que possam restar alguns verdadeiros crentes isolados em lugares como
Manágua, Pyongyang ou Cambridge (Massachusetts), o fato de que não exista um único grande
Estado no qual [o marxismo-leninismo] represente a ideia-chave elimina completamente sua
pretensão de ser a vanguarda da história humana”, pp. 17-18. Esse artigo foi ulteriormente
incorporado ao livro The End of History and the Last Man (New York: Free Press, 1992).
340
A explicação de Furet para a formidável ruptura histórica que o mundo viveu entre
1989 e 1991 é, como vimos, que, embora ainda largamente misteriosa em seus detalhes, ela
foi causada sobretudo por iniciativas do próprio partido no poder: “Mesmo os inimigos do
socialismo não imaginavam que o regime soviético pudesse desaparecer, e que a Revolução
de Outubro pudesse ser ‘apagada’; menos ainda que essa ruptura pudesse ter por origem
iniciativas do partido único no poder” (p. 11). Em grande medida, a interpretação de Furet
guarda uma certa relação com a análise tocquevilliana sobre os perigos da reforma política
num sistema caracterizado pela rigidez das relações sociais. A concepção “liberal” de
Tocqueville sobre as origens da Revolução francesa tende a descartar, como se sabe, os
elementos de crise econômica privilegiados na análise marxista tradicional – a famosa
contradição entre forças produtivas “capitalistas” emergentes e relações de produção ainda
“feudais” –, preferindo em seu lugar o choque político provocado ou precipitado por um
confronto entre elites sociais já próximas do poder, num contexto de tentativa monárquica de
reforma moderada.
Mesmo acreditando que o universo comunista se desfez nas “próprias mãos do Partido
hegemônico” e sobretudo por razões políticas (incapacidade de gerir o processo de reformas),
Furet não deixa contudo de mencionar alguns elementos materiais que contribuíram, ainda
durante a fase do “brejnevismo triunfante” (a expressão não é dele), para apressar a
decadência e queda do poder soviético. Ele cita, por exemplo, o trabalho de um demógrafo
francês que, já em 1976, indicava a deterioração do sistema como refletida na alta da taxa de
mortalidade infantil.20 Ele também não deixa de referir-se, em sua introdução e conclusão, à
incapacidade do poder socialista em atender os mínimos requisitos da população em termos
de conforto material, bem como à impossibilidade para o sistema de seguir a potência
americana na corrida aos armamentos mais sofisticados (programa “guerra nas estrelas” de
Reagan).
Sua reconstituição histórica sobre os setenta anos de ilusão comunista permanece,
entretanto, basicamente política, consistindo essencialmente numa “história das ideias” (ou
das mitologias políticas) do século XX. Não se poderia, portanto, acusar Furet de não levar
em conta o peso dos “fatores econômicos”, tanto no sucesso como na derrocada do sistema
soviético, já que não era esse o objetivo primordial de seu trabalho de pesquisa e de
interpretação. O problema, ainda assim, é que ideias políticas também têm fundamentos
econômicos e que, no caso específico do comunismo, sua mitologia política – sua “ilusão

20
Furet cita o trabalho de Emmanuel Todd, La Chute Finale: essai sur la décomposition de la
sphère soviétique (Paris: Robert Laffont, 1976); cf. p. 567.
341
fundamental”, diria Furet – foi alimentada não só por sua promessa de igualdade e de justiça,
no plano social, mas sobretudo e principalmente pela concepção marxista de que um sistema
regulado democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores seria mais suscetível do que a
“anarquia da produção capitalista” de afastar crises periódicas e escassez, de aportar
abundância material, bem-estar individual e progresso tecnológico. A premissa básica da
mensagem marxiana quanto ao “fim da história”, dos primeiros escritos da juventude até o
Capital, refere-se, antes de mais nada, à apropriação coletiva dos meios de produção, por
iniciativa e sob o comando da classe operária, transformada em redentora universal: de fato, a
abolição da propriedade privada, “mãe de todas as injustiças”, sempre apresentou um
formidável poder de atração para as massas de deserdados de todo o mundo e mesmo para
milhões de proletários de países desenvolvidos.
Não se poderia igualmente esquecer que grande parte das mensagens simpáticas ao
socialismo enquanto sistema de organização social – não apenas soviético, mas também
chinês e “terceiro-mundista”, onde foi o caso – tinha como fundamento a ideia (falsa, mas
isso não importa aqui) de que ele trazia o final das crises capitalistas de produção e emprego,
introduzia um nível de subsistência mínimo para o conjunto da população e permitiria,
progressivamente, liberar excedentes que o fariam alcançar e em última instância ultrapassar
os sistemas capitalistas “realmente existentes”. As ideias econômicas marxistas sobre uma
futura “idade da abundância”, sobre a racionalidade superior do sistema socialista e em
especial as profecias engelsianas sobre o futuro da sociedade dos trabalhadores (“de cada um
segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”) alimentaram, em muito, a
ilusão comunista neste século.21
Essas ideias econômicas, é dispensável dizê-lo, estão escassamente refletidas no
ensaio de Furet e elas não comparecem em nada na explicação funcional do “sucesso” da
ideia comunista neste século. Ora, desde o final do século XIX, pelo menos, que o debate em
torno das ideias marxistas e socialistas prolongava-se no terreno econômico, chegando até
mesmo a influenciar o curso da economia política “burguesa”. Sem referir-se às primeiras
críticas pertinentes (e não respondidas) formuladas por John Stuart Mill ao próprio Marx,
caberia lembrar que Vilfredo Pareto dedicou dois alentados volumes ao estudo dos sistemas
socialistas, que Hobson antecipa a análise leninista sobre a natureza econômica do

21
Não é o caso de lembrar aqui que a própria sobrevivência do comunismo, enquanto sistema
viável de organização social da produção, pode apenas ser assegurada, na difícil conjuntura dos
anos 1920-21, por um retorno estratégico às práticas capitalistas de mercado e de apropriação –
consagrado na NEP –, retorno que Bukarin (e alguns outros) gostaria de ver consolidado como a
única forma possível de socialismo real.
342
imperialismo contemporâneo, que Hilferding e Rosa Luxemburgo terçaram armas em torno
do capital financeiro e da acumulação capitalista, que toda uma “teoria das crises cíclicas”
frequentou a produção acadêmica na economia (de Schumpeter a Keynes, de Robinson e
Sraffa a Kindleberg) e que, ainda no começo dos anos 60, economistas respeitados como John
Kenneth Galbraith ou sociólogos atentos como Raymond Aron podiam prever uma certa
convergência entre o capitalismo e o socialismo com base no fato de terem ambos os sistemas
chegados a uma etapa industrial avançada.
De maneira ainda mais relevante, as primeiras experiências de planificação sob a
República de Weimar, a própria organização econômica “fascista”, os projetos de “welfare
state” nos países escandinavos e anglo-saxões, bem como as nacionalizações e o acentuado
intervencionismo (com agências estatais dedicadas ao planejamento indicativo) conduzidos
no segundo-pós guerra nos principais países capitalistas europeus, podem ser considerados
como o resultado direto do impacto exercido pelas ideias econômicas “comunistas” nas
sociedades do Ocidente desenvolvido. Da mesma forma, a industrialização da URSS, a
“solução” do problema da fome na China (contra sua suposta manutenção na Índia
“capitalista”), o desenvolvimento “acelerado” dos países atrasados do Terceiro Mundo, todos
esses elementos, reais ou imaginários, da “grande transformação” da segunda metade do
século XX foram, com ou sem razão, creditados à alavancagem ideológica das ideias
econômicas socialistas, ou pelo menos vinculados à aceitação da inevitabilidade (ou mesmo
desejabilidade) de uma maior intervenção do Estado na economia, em contraposição ao
menor poder transformador ou modernizador das estruturas “capitalistas” de mercado.
Em outras palavras, a legitimação ideológica do comunismo se deu tanto pela via da
economia como da política, em que pese o balanço francamente desfavorável na confrontação
com o capitalismo (mas, explicável em termos de guerra civil, de destruições “imperialistas”,
de espoliação “colonial” etc.), que tanto a URSS como a China ou outros países menores
(Cuba, Vietnã) nunca deixaram de apresentar, mesmo em comparação com países capitalistas
“subdesenvolvidos”. Os partidos comunistas dos países capitalistas europeus – em especial na
Itália e na França – conseguiram reter uma certa audiência popular mesmo durante os anos de
descrédito político do socialismo real com base na antiga crença de que uma “economia
planificada” ou pelo menos controlada pelo Estado conseguiria refrear a “exploração
capitalista” e introduzir um pouco mais de igualdade na repartição funcional capital-trabalho.
Finalmente, em nosso próprio continente, a única justificativa – aceita de certo modo pela
própria “direita” – para a ausência completa de liberdades democráticas e até mesmo de certos
direitos humanos na Cuba “socialista” era o suposto avanço no plano dos indicadores sociais
343
(saúde, educação, nutrição), continuamente agitados em face das desigualdades e mazelas
sociais existentes nos demais países da região.
Esse tipo de ilusão foi tão, ou mais, importante do que aquela derivada da “paixão
revolucionária” que analisou Furet em seu livro: a afirmação da vontade na História, a
invenção do homem por ele mesmo, o ódio ao burguês (alimentado não tanto por proletários
verdadeiros, como por artistas e intelectuais “burgueses”), a promessa de um novo mundo de
justiça social construído pela própria coletividade redimida pela classe operária, a recusa do
individualismo em favor da liberação de toda humanidade e não apenas de uma raça ou um
povo particulares como no fascismo, tudo aquilo, enfim, que fazia o “charme universal de
Outubro” e que o grande historiador francês analisa sobretudo – era talvez inevitável, no seu
caso – como uma herança e como uma realização da Revolução francesa de 1789. De certo
modo, talvez a grande ilusão econômica do socialismo seja a única a sobreviver à derrocada
do regime político baseado no partido único e na “democracia real” (isto é, não burguesa,
formal), este definitivamente enterrado pela superioridade filosófica, moral e empírica da
ideia democrática. Se as ideias movem o mundo, as ideias econômicas com muito maior razão
podem ter a pretensão de continuar a determinar o curso de nossos destinos individuais e de
nossas realizações coletivas. A essa título, a ilusão econômica socialista (pelo menos aquela
que se baseia no papel regulador e distribuidor do Estado) não está perto de extinguir-se,
mesmo depois de ter sido bastante maltratada por várias décadas de planejamento centralizado
e de “socialismo real”.
Julgado com base nesses parâmetros – ressalve-se que tal não era a intenção do
historiador francês –, o ensaio de Furet deixa muito a desejar, mesmo numa perspectiva
puramente historiográfica ou do ponto de vista de uma história política ou das ideias.
Finalmente, o grande objetivo do projeto comunista não era tanto eliminar o burguês enquanto
agente social – objetivo julgado relativamente fácil pelos protagonistas de Outubro e seus
êmulos em outras partes – como construir um sistema socialista de organização social da
produção em tudo oposto ao execrado regime capitalista, que se devia eliminar da face da
terra.22 O jacobinismo bolchevique se dirigia, obviamente, contra o “Estado burguês”, mas a
coletivização total dos meios de produção era o elemento essencial da construção da nova
ordem socialista. Era essa a promessa contida no Manifesto Comunista, reafirmada no

22
Caberia também observar que tampouco o fato do comunismo ter vencido apenas em países
atrasados do ponto de vista capitalista retém a atenção de Furet em sua análise do “sucesso”
desse regime.
344
programa leninista e ainda confirmada em pleno revisionismo krusheviano.23 Até o final de
sua administração, quando ele já tinha consentido em introduzir elementos de mercado no
funcionamento econômico do socialismo, Gorbatchev também preservou sua confiança num
futuro comunista, isto é, não capitalista, para a URSS.
Um historiador “marxista” como Hobsbawm não deixa de considerar, praticamente
em igualdade de condições, os elementos econômicos e políticos do mundo do “socialismo
realmente existente”. A primeira coisa a ser observada a respeito da região socialista do
globo, diz ele em seu citado capítulo, “é que durante a maior parte de sua existência ela
formou um sub-universo separado e largamente autossuficiente tanto economicamente como
politicamente. Suas relações com o resto da economia mundial, capitalista ou dominada pelo
capitalismo dos países desenvolvidos, eram surpreendentemente reduzidas. Mesmo durante a
fase alta do grande boom do comércio internacional nos Anos Dourados, apenas algo em
torno de 4% das exportações das economias desenvolvidas de mercado iam para as
‘economias centralmente planificadas’ e, em torno dos anos 80, a parte das exportações do
Terceiro Mundo dirigidas a elas não era muito maior”.24 Hobsbawm reconhece que a razão
fundamental da separação entre os dois campos era, sem dúvida alguma política, mas ele
desenvolve em seguida uma brilhante análise da “economia política” do socialismo real, ainda
que ele tenda a acreditar, mesmo retrospectivamente, nas estatísticas do socialismo estalinista,
que “evidenciariam” um crescimento superior ao das economias capitalistas nos anos 30
(“acumulação primitiva socialista”) e durante uma certa fase do pós-guerra. Igualmente, ele
dedica toda a primeira parte de seu capítulo sobre o “fim do socialismo” a uma análise do
“subdesenvolvimento econômico” (a expressão não é dele, tampouco) desse regime, mesmo
se, mais adiante, ele reconhece, acertadamente, que é a “política, tanto a grande como a
pequena, [que] deveria acarretar o colapso Euro-soviético de 1989-1991”.25
O que importa sublinhar aqui não é tanto o desempenho econômico efetivo dos
socialismos realmente existentes – que poderia ser objeto de uma história econômica do
socialismo – mas, na perspectiva da história intelectual, o “peso” das ideias econômicas na
formação e manutenção da “ilusão comunista”, algo completamente descurado por Furet. Sua
análise – embora sumária – da crise prolongada do socialismo deixa ao largo os elementos
relativamente “objetivos” da estagnação econômica, para concentrar-se nas ideias dos

23
Em 1961, por exemplo, no 22º Congresso do PCUS, Krushev prometia ultrapassar a produção
“per capita” dos Estados Unidos por volta de 1970 e construir uma “sociedade comunista
acabada” perto de 1980.
24
Cf Hobsbawm, Age of Extremes, op. cit, p. 374.
25
Idem, p. 475.
345
dissidentes e no crescente descrédito político do regime. Apesar de que seu ensaio, como
sublinhado, pretendesse abordar apenas e tão somente a história das “ideias”, deve-se ressaltar
que, ainda assim e especificamente neste caso, as ideias econômicas deveriam ser
consideradas como parte integrante da “ilusão comunista”, como elemento indissociável da
mitologia política do socialismo de tipo soviético.

A transição marxista do socialismo ao capitalismo


Sem pretender fazer ironias com a História, caberia observar que a crise e a débâcle do
comunismo soviético podem ser interpretadas inteiramente em termos das idéias marxistas, a
fortiori para um antigo adepto da religião como Furet. Com efeito, ninguém melhor do que
Marx – de cujos escritos sobre a Revolução francesa Furet já tinha tratado em profundidade –
sabia colocar com clareza, ainda que de forma profética, o inexorável desenrolar do processo
histórico e social. Como ele escreveu no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia
Política (1859), “numa certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas de uma
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas
sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se tinham
desenvolvidos até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações
[de produção] se tornam seus próprios entraves. Abre-se então uma época de revolução
social. A transformação na base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme
superestrutura”.26
Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo de tipo soviético a partir do
final dos anos 70, muito embora suas sementes existissem desde muito tempo antes. As
razões dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada em termos “marxistas”,
foram as mesmas que, no passado, levaram ao declínio do feudalismo como “modo de
produção”: as relações “socialistas” de produção se tinham inegavelmente convertido num
formidável entrave ao desenvolvimento das forças produtivas e ao avanço das condições
econômicas de produção. Qualquer marxista não comprometido com os esquemas de poder
existentes na área soviética poderia reconhecer que a forma “socialista” da propriedade
representava, em nível estrutural, um enorme obstáculo ao avanço contínuo do processo de
produção social.27

26
Tradução livre a partir da edição francesa; vide Karl Marx, Contribution à la Critique de
l’Économie Politique (Paris: Editions Sociales, 1957).
27
Este artigo já estava praticamente redigido, como dissemos, quando tomamos conhecimento da
obra de Massimo Salvadori sobre a história do comunismo. É curioso, assim, observar que ele
faz o mesmo tipo de análise “marxista” sobre a contradição fundamental do comunismo
346
De fato, as relações socialistas de produção sempre foram uma forma contraditória
de organização social da produção, uma vez que, segundo a própria teleologia marxista, a
sociedade burguesa não poderia desaparecer – e assim dar lugar ao socialismo – sem que ela
pudesse antes desenvolver todas as suas potencialidades intrínsecas em termos de forças
produtivas. Mas, uma vez implementadas essas relações socialistas de produção – de maneira
mais ou menos improvisada no seguimento da revolução bolchevista –, elas sempre
representaram (no vocabulário do próprio Marx) “uma forma antagônica do processo de
produção social, não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que
nasce das condições sociais de existência dos indivíduos”.
Segundo os próprios termos da análise histórica marxista seria portanto inevitável
esperar o deslanchar de uma etapa revolucionária no desenvolvimento do socialismo, uma vez
que a deterioração da base econômica do sistema, já visível desde o final da estagnação
“brejnevista”, estava conduzindo a um impasse, ele mesmo anunciador de uma mudança
radical em toda a superestrutura jurídica e política da sociedade socialista. É assim muito
provável que, ao iniciar seu período de “reformismo esclarecido”, Gorbachev tenha chegado à
conclusão que a base técnica do sistema socialista, enquanto forma de organização social da
produção, fosse essencialmente conservadora, uma vez que, ao contrário do sistema
capitalista, não possuía em si mesma os impulsos para uma contínua transformação das
condições de produção.
Gorbachev, aparentemente em bom marxista, admitiu-o abertamente: antes mesmo de
assumir a liderança do PCUS, em dezembro de 1984, ele advertia que a injustificada
preservação de “elementos obsoletos nas relações de produção pode ocasionar uma
deterioração da situação econômica e social”. Em junho de 1985, já como Secretário-Geral do
PCUS, ele declarava que “a aceleração do progresso científico e técnico requeria
insistentemente uma profunda reorganização do sistema de planejamento e de administração

soviético: “Aplicando ao caso soviético as categorias marxianas, se pode dizer que na União
Soviética, a superestrutura sufocava dali em diante [anos 80] as condições de desenvolvimento
da sociedade, criando uma situação de crise orgânica do sistema. Tornava-se mais e mais
evidente, de fato, que a rigidez planificadora burocrático-centralista, que tinha podido obter
substanciais sucessos no âmbito da modernização tardia baseada na indústria pesada, na cadeia
de montagem, no controle autoritário da mão-de-obra, na compressão do consumo em proveito
dos investimentos nos setores considerados estratégicos, em primeiro lugar militares, não estava
estruturalmente em condições de realizar o salto qualitativo indispensável para conduzir o
sistema à era da telemática disseminada e de produções sujeitas à rápida obsolescência e,
portanto, adaptá-lo à necessidade de rápidas reconversões, implementadas por uma pluralidade
de centros de decisão sensíveis às exigências da inovação permanente”: cf. La Parabola del
Comunismo, op. cit., p. 56.
347
do mecanismo econômico em sua totalidade”.28 O que Gorbachev pretendia implementar era
uma espécie de NEP da era eletrônica, algo bem mais complicado, deve-se reconhecer, que as
banalidades conceituais em torno do modelo leninista de comunismo, descrito como sendo o
“socialismo mais a eletricidade”.
Não havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer aquele socialismo tomar o
“carro da História” a partir das relações de produção existentes: não só a “base técnica” do
socialismo estatal, nos termos de Marx, era essencialmente conservadora, como também sua
base social e política era profundamente reacionária. A União Soviética parecia representar
para Gorbachev o que a Alemanha guilhermina representava para Marx no século passado:
um país atrasado e dividido que tinha necessariamente de passar por uma revolução política
radical para quebrar os grilhões que impediam sua modernização econômica e social.
Fazendo uma grosseira analogia histórica, poder-se-ia dizer que as relações socialistas
de produção e a classe burocrática associada ao Partido Comunista representavam, na maior
parte dos países da área soviética, o mesmo papel que o sistema corporativo e a classe
aristocrática desempenhavam no ancien régime de tipo feudal: um obstáculo intransponível
ao desenvolvimento das forças produtivas materiais e um entrave formidável ao progresso
político da sociedade. Como afirmaram Marx e Engels no Manifesto Comunista: “numa certa
etapa do desenvolvimento dos meios de produção e de troca... as relações feudais de
propriedade deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno crescimento. Elas
entravavam a produção em lugar de fazê-la avançar. Elas se transformaram em grilhões. Esses
grilhões tinham de ser quebrados: eles foram quebrados”.29
No que concerne as relações socialistas de propriedade, esses grilhões foram
efetivamente rompidos nos países da antiga área soviética, muito embora o processo de
construção da nova ordem esteja ainda a meio caminho. Em suas manifestações e
desenvolvimento, o processo de ruptura com o ancien régime foi, evidentemente, político, e
não poderia deixar de ser exclusivamente político, como observaram Furet e Hobsbawm.30 O

28
Citado por Francis Fukuyama, “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol. 64, n. 4,
Spring 1986, p. 715-731).
29
Tradução livre a partir da edição da Pléiade; vide Karl Marx, Oeuvres I: Économie (Paris:
Gallimard, 1968).
30
Hobsbawm, por sua parte, combina elementos políticos e econômicos em sua análise sobre a
queda final do comunismo: “O que levou a União Soviética em marcha acelerada em direção ao
precipício foi a combinação da glasnost, que significava a desintegração da autoridade, com a
perestroika, que resultou na destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia
funcionar, sem prever nenhuma alternativa; e consequentemente o colapso crescentemente
dramático do padrão de vida dos cidadãos”; “A desintegração econômica ajudou o progresso da
desintegração política e foi alimentada por ela”; Age of Extremes, op. cit., p. 483 e 485.
348
ponto de não retorno, diz ironicamente Hobsbawm, foi atingido na segunda metade de 1989,
bicentenário do deslanchar da Revolução francesa, “cuja não existência ou irrelevância para a
política do século XX, os historiadores franceses ‘revisionistas’ estavam ocupados em tentar
demonstrar naquele momento. A ruptura política seguiu-se (como na França do século XVIII)
à convocação de novas assembleias democráticas, ou passavelmente democráticas, no verão
daquele ano. A ruptura econômica tornou-se irreversível no decorrer de alguns poucos meses
cruciais entre outubro de 1989 e maio de 1990”.31
Assim, se a crise política é evidente, em meu julgamento foram razões estruturais de
natureza essencialmente, senão inteiramente, econômica que levaram à crise fundamental, à
sua fratura irremediável e à queda final do sistema. Um pouco de materialismo histórico, por
uma vez, não pode fazer mal à causa do socialismo, ou pelo menos à da análise histórica de
sua derrocada final.
A base econômica explica, ainda desta vez, a transição de um modo de produção a um
outro. Para chegar a um verdadeiro sistema econômico de mercado, na antiga zona soviética,
só falta agora atravessar o que Marx chamava de purgatório capitalista. O comunismo chegou
efetivamente ao final de sua parábola no século XX: ele terá constituído, finalmente, uma
longa etapa de transição que levou do capitalismo ao... capitalismo.

Paris, 8 de maio de 1995.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: vol. 38, n. 1, janeiro-junho de 1995, p. 125-145).

31
Hobsbawm, op. cit., p. 486. Salvadori também faz uma análise similar: “O sistema [já sob a
direção de Gorbachev] demonstrou não ser renovável por causa de sua rigidez; e o movimento
de reforma, que investiu a economia e as instituições políticas, teve efeitos destabilizadores, de
tal forma a romper a máquina existente e provocar um verdadeiro processo de ‘descolamento’.
O primeiro resultado foi o precipitar da crise econô mica, que em 1990 assume o caráter de
catástrofe”. “O sistema... desagregou-se sob o peso de dois elementos fundamentais, um ligado
ao outro. O primeiro foi a incapacidade estrutural de um sistema centralista-burocrático-
totalitário (...) em responder aos desafios colocados pela economia complexa do mundo
capitalista entrado na era pós-industrial. O segundo foi a incapacidade final do sistema de poder
comunista em controlar, seja pelo consenso, seja pela coerção, a sociedade, colocada sob um
domínio brutal...”; cf. La Parabola del Comunismo, op. cit., p. 57 e 91.
349
Odor de Petróleo

Daniel Yergin:
The Prize: The epic quest for Oil, Money and Power
(Nova York: Simon and Schuster, 1991, 877 + xxxiii p.)

Edição brasileira:
O Petróleo: Uma História de Ganância, Dinheiro e Poder
(São Paulo: Scritta Editorial, 1992, 932 p.)

Nos últimos três séculos, a sociedade ocidental conheceu sucessivas revoluções


industriais, cada uma animada por um produto ou sistema produtivo específico: a máquina a
vapor, o carvão e o aço, a química e a eletricidade, os novos materiais e a informática. Nada
define melhor a moderna sociedade industrial do que o veículo automotor, em todas as suas
variantes, do automóvel individual ao tanque militar; com todas as suas indústrias associadas,
ele é a base inquestionável de uma civilização ainda em fase de expansão planetária O que
tornou possível o desenvolvimento inaudito da civilização do automóvel foi um velho. (e
nauseabundo) conhecido do homem, a petra oleum dos romanos, o petróleo.
Diferentemente da máquina a vapor ou do circuito integrado, o petróleo não costuma
estar associado a um paradigma industrial ou tecnológico determinado. Sendo utilizado de
forma recorrente por diferentes povos, tampouco sua história está ligada a um ciclo de
produto específico, já que sua transformação química a partir do século XIX permitiu o
desenvolvimento de uma imensa gama de subprodutos. Na verdade, sua utilização – em forma
final ou como insumo produtivo – recobre épocas sucessivas da moderna sociedade industrial,
desde o querosene de iluminação do século passado até a atual “civilização do plástico”.
Pela sua natureza, ele pareceria ainda pertencer ao mundo da máquina a vapor, ou seja
o da primeira revolução industrial. Esse antigo modelo de desenvolvimento industrial está
associado a uma fase ainda elementar da relação entre o homem e o mundo natural: trata-se da
transformação de elementos materiais existentes através da utilização da energia em suas
diversas formas: a energia térmica, os combustíveis fósseis, a eletricidade. A atual etapa de
desenvolvimento industrial, ao contrário, dá uma maior importância à produção e à
manipulação da informação, atribuindo menor peso relativo à energia e à matéria. O novo
paradigma industrial se baseia no desenvolvimento de forças produtivas cada vez mais
exigentes em elementos imateriais e crescentemente poupadores de matérias brutas e de
energia.

350
Se podemos dizer, metaforicamente, que o circuito integrado é a “máquina a vapor” da
terceira revolução industrial, assim como a eletricidade – aliada à química – o foi da segunda,
o petróleo permeia várias revoluções industriais ao mesmo tempo e permanecerá
provavelmente, durante muito tempo ainda, como uma das bases materiais mais essenciais a
qualquer tipo concebível de organização social da produção e de circulação de bens e pessoas
que a sociedade humana possa implementar.
O impacto propriamente tecnológico do petróleo sobre a moderna sociedade
industrial, apesar de imenso e multifacético, é usualmente descurado, talvez em razão da
própria “normalidade” com que costumamos encarar a enorme quantidade de subprodutos do
petróleo que frequentam nossa vida cotidiana. Isso é provavelmente devido à natureza
evolutiva da indústria petrolífera, desde a etapa propriamente energética de utilização desse
produto até as transformações tecnológicas mais sofisticadas do período atual. Mais do que
“tomar de assalto” a sociedade contemporânea, o petróleo “impregnou” progressivamente
todos os poros da moderna civilização industrial.
O surgimento da energia nuclear, em contraste – antes mesmo da atual revolução da
informação – significou uma transformação muito mais “espetacular” (e assustadora) da
relação entre a sociedade e o conhecimento tecnológico. A capacidade científica e técnica
associada à possibilidade de utilização da energia nuclear representou o estabelecimento de
uma nova relação de forças entre as nações, muito mais do que a pólvora o havia feito nos
albores da era moderna. Os países pioneiros na tecnologia nuclear pretenderam mesmo
congelar em seu exclusivo benefício a relação de poder então criada, situação evidentemente
inaceitável para muitos países que não pretendem fechar-se a nenhuma das conquistas da
civilização moderna.
Na área do petróleo, contudo, à parte a desigual dotação de recursos naturais entre os
países e um igualmente desigual domínio sobre circuitos comerciais e estruturas produtivas –
que deriva contudo de estágios diferentes de desenvolvimento industrial – não há
propriamente um monopólio tecnológico de uma determinada categoria de nações sobre
outras, ao estilo, por exemplo, do atual monopólio nuclear.
Mas, o petróleo é inquestionavelmente a força de maior impacto social e econômico,
senão político, na conformação da era contemporânea. Depois de 150 anos de intensa e
diversificada utilização produtiva, ele continua no âmago de formas diversas de organização
material da produção, de circulação de bens e pessoas e de repartição de riquezas. Ele ainda é,
pelo menos até o advento de formas mais baratas e eficientes de energia, o sustentáculo
material mais importante do trabalho humano, o primus inter pares da moderna estrutura
351
energética da civilização industrial. Apesar de que sua história contemporânea tenha
começado desde meados do século passado, é apenas no século XX que o petróleo passa a
exercer todo o seu impacto econômico, social e político sobre as sociedades envolvidas na
produção, comércio e transformação produtiva do chamado “ouro negro”.
A esse título, a exemplar história do petróleo contida na monumental obra de Yergin –
quase 800 páginas de texto, 60 páginas de notas, 25 para a bibliografia e 32 para o índice – é
insubstituível, constituindo-se provavelmente na “história definitiva” do petróleo até quase o
final do século XX. Embora linear no que se refere ao desenvolvimento do tema, seu livro é,
contudo, muito mais do que uma “mera” história do petróleo: ele é a própria história de
nossos tempos, vista sob a ótica do único “bem” que conseguiu reunir diferentes qualidades
ao mesmo tempo: o single product mais importante na moderna estrutura produtiva, aquele
economicamente de maior impacto na repartição das riquezas mundiais, o estrategicamente
decisivo nos grandes enfrentamentos militares deste século e, também, politicamente, a
matéria-prima de maior força na ascensão e queda de governos e mesmo regimes políticos.
Daniel Yergin já era bastante conhecido do público acadêmico por seu clássico estudo
sobre as origens da Guerra Fria,1 onde ele discorria sobre os momentosos meses que, de 1945
a 1947, conformaram o mundo em que vivemos até bem recentemente. Ele volta agora
consagrado como um dos maiores especialistas em questões energéticas da atualidade ao
contar, num estilo tão cativante quanto denso, a história política e econômica do petróleo no
século XX.
O “prêmio” do título é retirado diretamente de uma frase de Winston Churchill no
limiar da I Guerra Mundial, quando o então Lord (ministro) do Almirantado teve de
confrontar-se ao problema da modernização da Royal Navy, face à crescente ameaça
representada pelo build-up naval alemão. Firmemente convencido de que deveria basear a
supremacia naval britânica sobre o petróleo (estrangeiro), e não mais sobre o carvão (inglês),
Churchill dedicou-se com toda energia e entusiasmo a um custosíssimo programa de
reconversão da frota. Nas palavras de Churchill, não havia escolha, já que próprio domínio
britânico estava comprometido no empreendimento: “Mastery itself was the prize of the
venture” (p. 12 e 156).
Daniel Yergin sublinha, na introdução a esta história global do petróleo, os três
grandes temas presentes em sua “biografia social” do petróleo, por ele descrita como uma
“crônica de eventos épicos que tocaram nossas vidas”.

1
Cf. Daniel Yergin, The Shattered Peace (Boston: Houghton Mifflin, 1978; edição revista: New York:
Penguin Books, 1990).
352
Em primeiro lugar, está a emergência e o desenvolvimento do capitalismo e da
economia contemporânea. O petróleo é, nas palavras do autor, “the world’s biggest and most
pervasive business”, a maior das grandes indústrias que surgiram nas últimas décadas do
século XIX. A Standard Oil, que dominava a indústria americana do petróleo no final daquele
século, esteve entre as primeiras grandes empresas multinacionais. “A expansão do negócio
[petrolífero] no século XX... corporifica a evolução da economia neste século, da estratégia
empresarial, da mudança tecnológica e do desenvolvimento dos mercados e, efetivamente, das
economias nacionais e internacional” (p. 13). Yergin reconhece no entanto que, “à medida em
que olhamos para o século XXI, está claro que a dominação [mastery] certamente derivará
tanto do chip de computador quanto do barril de petróleo”. Mas, a indústria petrolífera
continuará ainda assim a ter um enorme impacto no futuro previsível. Das primeiras vinte
companhias relacionadas na revista Fortune, sete são companhias de petróleo. Nas palavras de
um magnata entrevistado por Yergin: “Oil is almost like money” (p. 13).
O segundo tema é que o petróleo, enquanto produto primário [commodity], está
intimamente vinculado às estratégias nacionais de política global e de poder. Apenas
emergente na Primeira Guerra Mundial, o petróleo foi decisivo para os destinos da Segunda,
tanto na Europa quanto no Extremo Oriente. Durante a Guerra Fria, a batalha pelo controle do
petróleo entre as grandes companhias e os países em desenvolvimento representou um dos
elementos mais dramáticos da descolonização e do nacionalismo nascente. Na atualidade,
mesmo com o fim da guerra fria e a conformação progressiva de uma nova ordem mundial, o
petróleo manterá sua qualidade de produto estratégico, decisivo tanto para a política
internacional como para as estratégias nacionais. O petróleo, para Yergin, está no epicentro do
conflito no Golfo Pérsico.
O terceiro tema na história do petróleo serve para ilustrar, segundo o autor, como a
nossa sociedade tornou-se uma “Hydrocarbon Society” e o próprio homem moderno, na
linguagem dos antropólogos, um “Hydrocarbon Man”. Até o final do século passado, a
indústria petrolífera sobrevivia apenas do “querosene” de iluminação e a gasolina era
praticamente um “useless by-product”. Mas, assim como a invenção da lâmpada
incandescente parecia assinalar a obsolescência da indústria petrolífera, o desenvolvimento do
motor a combustão interna movido a gasolina abriu uma nova era. Como diz o autor: “The oil
industry had a new market, and a new civilization was born” (p. 14).
No século XX, complementado pelo gás natural, o petróleo substituiu o Rei Carvão
em seu trono como a fonte energética do mundo industrial, modificando de maneira
fundamental as paisagens urbanas e o estilo de vida moderno. “Hoje em dia, somos tão
353
dependentes do petróleo, e ele está tão embebido em nossas atividades cotidianas, que
raramente paramos para pensar em sua dimensão penetrante e universal. É o petróleo que
torna possível o lugar onde vivemos, como vivemos, como nos deslocamos para o trabalho,
como viajamos – e mesmo onde vamos namorar. Ele é o sangue vital das comunidades
suburbanas [uma realidade típica da classe média americana]. O petróleo (e o gás natural) são
os componentes essenciais dos fertilizantes de que depende a agricultura mundial; o petróleo
torna possível o transporte de alimentos para as megacidades totalmente dependentes do
planeta. O petróleo também fornece os plásticos e os produtos químicos que são os tijolos e o
cimento da civilização contemporânea, uma civilização que entraria em colapso se os poços
de petróleo do mundo se tornassem repentinamente secos” (p. 14).
Mais recentemente, como resultado das novas preocupações ecológicas, o petróleo
tornou-se o grande vilão da poluição atmosférica e do efeito estufa, junto com o carvão e
alguns outros agentes químicos. Ainda assim, o “Hydrocarbon Man” mostra-se extremamente
reticente em abandonar não só os confortos, mas a própria essência do moderno estilo de vida
permitido pelo petróleo.
Estes são os grandes temas que animam a “história épica” do petróleo por Daniel
Yergin, uma história recheada de homens empreendedores (mas também corruptos),
permeada de forças econômicas poderosas, de mudanças tecnológicas decisivas, de lutas
políticas e de conflitos internacionais. Em suas páginas comparecem tycoons e magnatas
como Rockefeller, Gulbenkian, Hammer ou Getty, estadistas, militares ou líderes
nacionalistas como o já citado Churchill, De Gaulle, Eisenhower, Mossadegh e Cárdenas,
políticos e acadêmicos como Anthony Eden, Henry Kissinger e George Bush, soberanos
independentes ou manipulados como Ibn Saud, Faiçal ou Rheza Pahlevi, ademais de ditadores
como Stalin, Hitler e, last but not least, Saddam Hussein.
A própria invasão do Kuwait pelo Iraque, bem como a mobilização militar ocidental
sem precedentes que a sucedeu, são vistos pelo autor na ótica da luta pelo controle das fontes
de petróleo, leitura provavelmente exagerada tanto do ponto de vista dos motivos iraquianos
como das razões para a intervenção militar norte-americana. Outros elementos não
propriamente econômicos – ou seja, não necessariamente vinculados à “geopolítica do
petróleo” stricto sensu – estiveram provavelmente em jogo nessa região que continua sendo,
apesar de tudo e segundo a imagem consagrada, um imenso barril de petróleo.
Mas, sem dúvida alguma, assim como o petróleo é essencial para a afirmação da
“vontade de poder” por parte de líderes nacionalistas no Oriente Médio, ele continua a ser
estratégico para os interesses algo egoístas do chamado Ocidente. Esses interesses são
354
definidos pelo autor, legitimamente ou não, pelos seguintes conceitos: “security, prosperity
and the very nature of civilization”.
Um árabe, ou qualquer outro cidadão de um país em desenvolvimento, veria talvez a
questão de outro modo, assim como um scholar não norte-americano – ou pelo menos não
comprometido com uma visão “global”, ou imperial, do mundo – escreveria uma “história do
petróleo” provavelmente diferente, em conteúdo e estilo, daquela elaborada por Daniel
Yergin. Entretanto, não há como negar que, não só para os países ricos, mas também para os
países em desenvolvimento, a “segurança, a prosperidade e a própria natureza da civilização”
continuarão a ser determinados, no horizonte histórico previsível, pelo que poderíamos
chamar de “economia política” ou de “geopolítica” do petróleo.
A obra de Daniel Yergin é, antes de mais nada, um típico scholarly work at its best, na
melhor tradição acadêmica norte-americana, aliando descrição minuciosa dos fatos (inclusive
com diálogos dos personagens principais) e interpretação objetiva de suas consequências. As
fontes primárias – arquivos públicos e das grandes companhias, entrevistas com atores de
primeiro plano responsáveis governamentais e especialistas, coleções manuscritas,
documentos de história oral, diversos bancos de dados – são extensivamente utilizadas e
avaliadas.
Ainda que esse tipo de prática editorial facilite a vida do leitor apressado, as notas e
referências bibliográficas estão, para desespero do estudioso ou do simples curioso, reunidas
no final do livro, sendo ainda excessivamente compactas e concentradas em vários parágrafos.
A bibliografia é predominantemente norte-americana e quase que exclusivamente em língua
inglesa, com algumas poucas exceções (um livro em russo, outro em italiano, uma publicação
oficial mexicana sobre o planejamento econômico naquele país e quatro ou cinco livros em
francês), o que não é necessariamente uma falha, tendo em vista o virtual “monopólio” anglo-
saxão, e mais especificamente norte-americano, no universo científico-tecnológico,
empresarial, acadêmico e jornalístico do petróleo.
Nem por isso, se poderia acusar sua descrição histórica de “americano-centrista”, já
que igual peso é dado aos desenvolvimentos políticos, econômicos e militares nos mais
distintos cenários geográficos. A visão de Yergen é propriamente global e, se a presença de
atores e interesses americanos é propriamente “overwhelming”, ela deve ser avaliada à luz
dos fatos, mais do que do ponto de vista de uma pretensa questão de princípio metodológica
que pretendesse assegurar uma relativa (e falaciosa) “imparcialidade” descritiva. Os Estados
Unidos – seus homens de negócios, suas companhias petrolíferas, suas forças militares e seus
agentes de informação – sempre foram a principal alavanca econômica, política, tecnológica e
355
militar durante toda a “história social” do petróleo e não poderiam, assim, ser simplesmente
considerados como um ator entre outros nesse drama geoestratégico de primeira grandeza que
é a dominação sobre as fontes mundiais do combustível que move o mundo.
Apesar das enormes transformações tecnológicas em curso, sobretudo no que se refere
à emergência dos chamados “novos paradigmas” industriais, o autor consegue sustentar
bastante bem seus argumentos sobre a centralidade do petróleo para a civilização
contemporânea (e para aquela imaginável no cenário histórico previsível). “O petróleo ajudou
a tornar possível a dominação sobre o mundo físico. Ele nos deu nossa vida diária e,
literalmente, por meio dos insumos químicos agrícolas e do transporte, nosso pão de cada dia.
Ele também impulsionou as lutas globais pela primazia econômica e política. Muito sangue
foi vertido em seu nome. A procura audaz e muitas vezes violenta de petróleo – e das riquezas
e poder que ele traz consigo – vai certamente continuar tão longe quanto o petróleo continuar
ocupando esse papel central. Isto porque vivemos num século no qual cada aspecto de nossa
civilização foi transformado pela alquimia moderna do petróleo. A nossa época permanece
verdadeiramente a era do petróleo” (p. 781).
Reconhecida a importância do petróleo para a economia mundial no futuro previsível,
cabe ainda assim verificar algumas lentas mudanças na “geopolítica” de curto prazo da
economia petrolífera. Segundo o editor da Petroleum Intelligence Weekly, Edward L. Morse,
em artigo prospectivo,2 “nós estamos entrando numa nova era política em matéria de petróleo
que requer a cooperação internacional não apenas para manter a estabilidade política, mas
também vínculos mais estreitos entre países produtores e importadores de petróleo” (p. 37).
Com efeito, a grande onda nacionalista dos anos 70 parece estar cedendo terreno a
novos tipos de associação pragmática entre os monopólios nacionais e as grandes companhias
de petróleo, enquanto que as próprias companhias estatais de muitos países produtores
realizam grandes investimentos em países abertos, reforçando assim as tendências à
internacionalização e à transnacionalização à outrance da indústria petrolífera. A própria
OPEP, “vista durante muito tempo como o foco principal dos mercados internacionais de
petróleo, parece agora ter entrado em decadência institucional, sendo seu papel
crescentemente superado pela lógica econômica e política da evolução do setor petrolífero”
(Morse, idem, p. 46).
A abertura de novas regiões à exploração petrolífera multinacional, na América Latina
(Venezuela, por exemplo), no Oriente Médio e sobretudo na ex-URSS, promete alterar de

2
Cf. Edward L. Morse, “The Coming Oil Revolution”, Foreign Affairs (Winter 1990-91).
356
maneira dramática a geopolítica e a geoeconomia do petróleo na próxima década. Deve-se
esperar, antes de mais nada, uma diminuição no fenômeno da cartelização – que, de toda
forma, nunca foi homogêneo e persistente – e um aumento consequente no poder do
“mercado”. Mesmo se os preços podem voltar a favorecer os países produtores, dificilmente a
fixação política de preços referenciais voltará a determinar o mercado, já que o
desenvolvimento das bolsas de futuros promete alterar sua estrutura e comportamento.
E o nosso país nisso tudo? Cabe assinalar, antes de mais nada, que o Brasil sequer
comparece no livro de Daniel Yergin, et pour cause: tendo ingressado tardiamente na era do
petróleo, produtor marginal e consumidor moderado, o Brasil simplesmente não contava na
geoestratégia petrolífera mundial. Os dois únicos países latino-americanos presentes na
história política do petróleo são, evidentemente, o México e a Venezuela, ambos sob a ótica
de suas relações com os Estados Unidos, tormentosas ou cooperativas segundo a ocasião. O
Brasil participava do mercado internacional sobretudo como comprador, apesar dos
investimentos externos realizados pela Petrobrás desde os anos 70. As perspectivas nesse
terreno parecem ser moderadamente otimistas, já que o País tem chances de se firmar como
fornecedor potencial de tecnologia de exploração off-shore. Nos setores produtivo e
comercial, não é difícil prever-se um aumento progressivo do auto-abastecimento e uma
diversificação ainda maior das fontes de aprovisionamento externo. A integração regional –
com as interligações em matéria de gás e novos acordos comerciais para o fornecimento de
crus – é outro elemento que deverá influenciar positivamente a “geopolítica” de nossa matriz
energética, devendo também contribuir para a internacionalização ainda maior da estatal
Petrobrás.
Em qualquer hipótese, o Brasil não aspira a conquistar nenhum prize no sentido
descrito por Daniel Yergin: ainda que o petróleo seja verdadeiramente estratégico para a
realização de todo e qualquer projeto nacional minimamente significativo, a ausência de
qualquer pretensão imperial ou hegemônica como objetivo político auto-assumido faz com
que, de toda forma, nossas necessidades em petróleo continuem a ser asseguradas pelas vias
tradicionais do comércio exterior e do investimento em fontes domésticas.
Mais modestamente, nosso “prêmio” já será grande se, em lugar de uma ilusória
dominação de caráter geopolítico, conseguirmos garantir um aumento razoável nos níveis de
bem-estar da população. E, se o petróleo é fundamental em qualquer processo de
desenvolvimento, o elemento estratégico da equação, mais do que a projeção externa de uma
política de poder, continua sendo a capacitação tecnológica interna e a definição de uma
correta política energética.
357
Em todo caso, as lições que se podem tirar do livro de Daniel Yergin são relativas: o
cenário ali descrito já pertence, em grande parte, ao passado. Novas forças começam a se
movimentar neste mesmo momento no vasto mundo do petróleo. Talvez o próprio “oil
power” venha a ser progressivamente substituído pelo “microchip power” e pelas novas
técnicas de processamento da informação. Como sempre, os caminhos do desenvolvimento
são múltiplos: mas, também é claro que com um pouco mais de petróleo sempre será mais
fácil chegar aonde se pretende ir.

Montevidéu, 24 de novembro de 1991; Brasília, 25 de abril de 1993.


Publicado, sob o título “O ‘Prêmio’ do poder mundial é o petróleo”
no Caderno Internacional do Correio Braziliense (Brasília: 3 agosto 1992, p. 6);
publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(nova série: Brasília: ano 36, n. 1, 1993, pp. 158-163).

358
Velhos Bárbaros, Novo Império

Jean-Christophe Rufin:
L’Empire et les Nouveaux Barbares
(Paris: Editions Jean-Claude Lattès, 1991, 249 p.)

O tema está, sem dúvida alguma, na ordem do dia: a emergência de uma nova ordem
mundial após a derrocada do sistema soviético. As teses e argumentos do autor não deixam
tampouco de ser provocantes: a solidão das democracias ocidentais em face, não mais do
inimigo ideológico tradicional, mas, da preocupante nebulosa dos povos divididos do Terceiro
Mundo. Ambos se contemplam de um lado e outro do limes, a fronteira imprecisa entre dois
mundos: o Norte, recentemente reunificado e supostamente depositário dos valores do direito
– o Império – e o Sul, caótico e incontrolável na diversidade dos povos: os novos bárbaros.

Vinho Novo, Velhos Odres


Como todas as teses dicotômicas, o ensaio de Jean-Christophe Rufin incita não só ao
debate, mas também à contestação. E, como todos os argumentos razoavelmente
“catastrofistas”, o sucesso de mídia parece igualmente assegurado. Esses parecem, aliás, ter
sido os objetivos do autor: provocar a indignação, quando não a rejeição das teses
“defendidas” e, por isso mesmo, suscitar um movimento de reação ao curso aparentemente
irreprimível tomado na atualidade pela chamada “nova ordem mundial”: a conformação de
um novo tipo de “apartheid”, mais insidioso e generalizado que o velho sistema em vias de
desaparecimento no país que o criou.
Como demonstrado pela experiência de denso best-seller do historiador Paul Kennedy
sobre a ascensão e queda das grandes potências,1 discursos sobre a decadência ou o sucesso
relativos das nações sempre despertam sentimentos ambíguos em cada um de nós. Desta vez
não se trata de uma pergunta dirigida apenas aos dinossauros da política mundial, mas ao
conjunto dos países em desenvolvimento, isto é, à maioria dos membros da já imensa
comunidade mundial. Todos devemos, assim, perguntar-nos: a sociedade onde vivo caminha
para a frente, para níveis mais elevados de progresso econômico e de bem-estar social, ou
seja, no sentido da História, ou, ao contrário, estaria ela condenada ao declínio, à estagnação,

1
Cf. Paul M. KENNEDY, The Rise and Fall of Great Powers: Economic Change and Military
Conflict from 1500 to 2000 (Nova York, Random House, 1987). Edição brasileira: Ascensão e Queda
das Grandes Potências (Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989, tradução de Waltensir Dutra).
359
ao caos social? Numa palavra: como meu país se situa em relação à modernidade encarnada
pelos países já avançados?
Nesse particular, o diagnóstico de Rufin é aparentemente inapelável: o Norte, agora
liberado da confrontação Leste-Oeste, prossegue pacientemente seu rumo em direção do
futuro, acumulando riquezas e dispensando bem-estar a seus habitantes. O Sul, ao contrário,
pareceria condenado ao marasmo econômico, aos conflitos militares e raciais, enfim, à
anarquia social e política.
O que é mais preocupante é que não se trata de um simples “atraso histórico” em
relação às realizações materiais, econômicas, científicas e culturais do Norte desenvolvido: o
que os países do Sul apresentam, na verdade, é uma realidade substancialmente diferente
daquela observada no hemisfério setentrional. Os valores greco-latinos são, segundo Rufin,
rejeitados ao sul do Equador, a anarquia incontrolável de determinadas porções do planeta
estaria transformando territórios mais ou menos vastos em novas terrae incognitae, onde
nenhum ocidental ousa mais se aventurar, catástrofes e guerras se disseminam no mais
completo descaso em diversas regiões.
Para garantir sua própria segurança, o Norte se fecha aos influxos humanos do Sul e
passa a reforçar barreiras materiais à penetração dos novos bárbaros. Essas paliçadas
modernas são constituídas por Estados tampões, cuja função é a de frear as correntes
migratórias, diminuir os pontos de conflito e, em última instância, garantir as fronteiras do
Império.
Este é o quadro geopolítico global – amargo, talvez, e mesmo cínico, mas realista –
que, segundo Rufin, caracterizaria a nova ordem mundial em construção. O cenário traçado
não poderia ser mais claro em sua crueza dicotômica, sob risco de parecer simplista. Mas,
antes de rejeitarmos a tese principal de Rufin como irremediavelmente contaminada por um
novo tipo de maniqueísmo – ao substituir a hoje defunta oposição Leste-Oeste pelo conflito
Norte-Sul, em versão revista, corrigida e ampliada – cabe reconhecer a seriedade e pertinência
dos argumentos desenvolvidos em seu ensaio, quando não a fundamentação empírica da
maior parte de suas afirmações.
Seu ensaio é, porém, deficiente em razão de duas ordens de problemas: por um lado,
um reagrupamento arbitrário, algumas vezes incoerente, de uma série de dados objetivos –
demografia, mores social, comportamento político, conflitos militares – sobre diferentes
países do Terceiro Mundo; por outro lado, um pecado metodológico comum a todos os
comparatistas trans-temporais: o desejo de encaixar novas realidades em velhos moldes

360
históricos. Vamos tratar sucessivamente dessas duas questões, ao mesmo tempo em que
repassamos os argumentos de Rufin.

Existe um Terceiro Mundo?


Todo o livro de Rufin é construído sobre a oposição entre o Norte, que adere aos
valores democráticos e humanos mais ou menos identificados com a ideologia americana, e o
resto do mundo, isto é, os novos bárbaros. Nem o Sul, nem o Norte são entidades
homogêneas, como o reconhece o autor, mas um conjunto de elementos os diferenciam entre
si, ou melhor, diversos traços negativos afastam de maneira inquestionável o destino sombrio
dos países do Sul do itinerário relativamente satisfatório seguido pelos países do Norte.
Já sabíamos, desde Max Weber, que toda ciência social é permeada de subjetividade e
que todo comparatismo está irremediavelmente comprometido pela nossa própria visão do
que seria o “padrão normal” de desenvolvimento histórico e social. O mesmo Weber, que
fazia seus exercícios de comparação sociológica com base nos famosos “tipos ideais”, seria
extremamente cauto em fazer a análise dessa imensa variedade de problemas ao abrigo da
noção de “terceiro mundo”, um conceito tão carregado de contradições quanto a própria
realidade que ele pretende descrever.
Na verdade, os elementos selecionados por Rufin para descrever o quadro político,
econômico, social, demográfico e cultural dos países do Sul são todos relevantes quando
tomados individualmente ou de maneira tópica para cada um dos países mencionados. A
dificuldade está, precisamente, em subsumir elementos de origem diversa num mesmo
cenário “unificador”: o assim chamado “terceiro mundo”.
Dito isto, não há como recusar a realidade atual dos países do Sul, tal como
evidenciada de maneira dramática no livro de Rufin. Senão vejamos: aparecimento e
ampliação de zonas de insegurança relativa em diversas regiões, seja na América Latina (onde
o caso mais evidente é o do Peru), na África (Etiópia, Somália, Libéria, etc.), no Oriente
Médio (Líbano) ou na Ásia (Índia, Sri Lanka, Indochina), conformando as já mencionadas
terrae incognitae do novo mapa planetário; colusão do crime organizado com as zonas de
pobreza urbana, em diversas megalópoles do Terceiro Mundo; diferenciação gritante das
taxas de natalidade ao sul e ao norte do Equador, desmentindo as teses antimalthusianas sobre
a “transição demográfica”; acumulação de “arquipélagos de miséria”, nas zonas de refugiados
políticos ou econômicos em vários pontos do mundo ou nas próprias cidades do Sul, como
resultado do êxodo rural; desenvolvimento de novas ideologias insurrecionais, em ruptura
com o marxismo tradicional, sustentando movimentos guerrilheiros virulentamente
361
antiocidentais e anti-humanistas (Sendero Luminoso, Khmer Vermelho, fundamentalistas
islâmicos, etc.); disponibilidade de armas e equipamentos sofisticados nas mãos de grupos
radicais ou simplesmente criminosos; ineficiência relativa ou absoluta dos programas de
desenvolvimento, seja pela ausência de mínimas condições favoráveis à implementação dos
projetos, seja pela dilapidação dos recursos da cooperação internacional nas mãos de agentes
corruptos. Enfim, um pouco em todas as partes do Sul o que se observa é uma situação geral
que não é de simples “atraso histórico” em relação aos países do Norte – atraso que poderia,
teoricamente, ser coberto em prazos mais ou menos curtos, segundo os níveis de
desenvolvimento já alcançados – mas, uma condição fundamentalmente diversa da dos países
avançados, uma diferença estrutural quanto ao modo mesmo em que se processa o
“desenvolvimento”.
Rufin tem, sem dúvida alguma, razão no que se refere à maior parte de suas
constatações “objetivas” sobre a situação dos países do Sul. De uma forma geral, o quadro é
desalentador: avanço da miséria, da instabilidade política e militar, deterioração das condições
de vida na maioria das megalópoles do Sul, progressão do crime organizado e da corrupção,
falência geral das instituições públicas, numa palavra, recuo geral da sociabilidade e avanço
da anomia. Tudo isso é bem real no Terceiro Mundo, mas não necessariamente verdadeiro
para os países individualmente.
O cenário assustador do território de “bárbaros” é construído com base nos exemplos
mais deploráveis que se oferecem aos olhos dos observadores do Império, elementos de
natureza diversa pinçados aqui e ali na atualidade sempre trágica dos chamados “pontos
quentes” do terceiro mundo. Esse terceiro mundo do livro de Rufin é o mesmo que comparece
regularmente nos telejornais do Norte: guerrilhas, catástrofes naturais e sociais, ditadores
sanguinários e líderes corruptos, criminalidade generalizada nas grandes cidades, violência
gratuita contra mulheres, abusos dos direitos humanos, camponeses famintos, crianças
abandonadas, menores assassinados, em suma, um novo pátio dos milagres com nome e
endereço. O Terceiro Mundo não deixou de existir apenas pelo desaparecimento do Segundo:
ele prospera, e sua face é horrenda, merecendo mesmo o epíteto de território de bárbaros.
Não se pode, evidentemente, negar a manutenção de altas taxas de fecundidade em
muitos países do Sul, bem como a preservação e ampliação de focos de miséria, de
desigualdade e de injustiça social na maior parte deles. O que é, entretanto, contestável, do
ponto de vista da “boa” ciência social, é o agrupamento de todos esses exemplos “objetivos”
numa mesma construção ideal – o chamado “terceiro mundo” – que corresponderia, cela va
de soi, às expectativas mentais dos habitantes do Império.
362
Em outros termos, os “novos bárbaros” do terceiro mundo constituem um aglomerado
de “primitivos” irremediavelmente divorciados dos valores e práticas conhecidas no Norte.
Como trabalho jornalístico, o livro de Rufin é o que se poderia chamar de bom exemplo de
“reportagem catástrofe”; como análise objetiva da situação real dos países do Sul, contudo, é
um mero emaranhado de horrores, tentando apresentar-se sob forma de edifício coerente.
Essa construção, porém, em que pese toda sua força de atração dramática,
simplesmente não consegue manter-se de pé, pelo menos vista pelo ângulo da ciência social.
Em primeiro lugar, porque não há esse terceiro mundo descrito por Rufin, mas tão
simplesmente lugares e países diversos, apresentando problemas de distinta natureza,
derivados de múltiplas causas estruturais ou conjunturais que existem episódica ou
permanentemente nos diferentes continentes que compõem esse amálgama maior conhecido
por Terceiro Mundo. Em segundo lugar, porque a coleção de tragédias que ele vislumbra nos
territórios dos novos bárbaros é por demais incoerente, do ponto de vista analítico, para
justificar esse agrupamento parcial e simplificador de elementos heterogêneos numa única
construção ideal – o Sul – que se oporia ao Norte em todas as frentes possíveis do
desenvolvimento histórico e social.
Pode-se tentar compreender as razões do pessimismo extremo de Rufin: coopérant
francês em diversas regiões miseráveis do terceiro mundo (redundância?), coordenador de
ajuda humanitária (Médecins Sans Frontières) em regiões de conflito, responsável por
diversos programas de socorro urgente em zonas de guerra civil e de refugiados, ele já passou
por diversos “infernos” terrestres, feitos pela própria mão do homem (com armas do primeiro
mundo, é verdade). Rufin conhece, por assim dizer, as “entranhas” do mundo bárbaro:
Líbano, Sudão, Somália, etc.
O que não se pode admitir, no entanto, é uma generalização duvidosa e um amálgama
indevido dessas diversas situações de crise extrema e sua extensão abusiva ao conjunto dos
países em desenvolvimento, como se, d’un coup, os “bárbaros” dominassem de maneira
uniforme os territórios ao sul do novo Império.

A Miséria dos Modelos


O problema fundamental do discurso de Rufin, entretanto, não se resume à incoerência
dessa agregação de dados dispersos para dar uma imagem caótica de um terceiro mundo
unido em seu barbarismo. Ele é, mais bem, resultante do desejo secreto de todo aprendiz de
comparatista de encontrar um precedente histórico e um paradigma analítico para uma
oposição pré-fabricada e aprioristicamente definida entre o Norte e o Sul. A comparação ou,
363
melhor, o modelo adotado no ensaio de Rufin recua longe na História, quando o Império
romano, após derrotar Cartago – uma espécie de União Soviética da antiguidade – encontrou-
se só em face da maré de bárbaros que batia às portas do mundo civilizado. Uma vez vencido
o “império do mal” cartaginês, tratava-se de consolidar as fronteiras do “império do bem”,
instalando, nos postos avançados da conquista romana, uma fronteira bem demarcada que
tomará o nome de limes.
Hoje em dia o limes, na versão apresentada por Rufin, iria do Rio Grande, na fronteira
México-EUA, passaria pelo Mediterrâneo, penetraria nas montanhas do Cáucaso e nas estepes
mongóis para terminar nos rios Amur e Ossuri, entre a Sibéria oriental e a China. Esses
limites correspondem, grosso modo, ao que, no vocabulário onusiano, foi identificado como o
conjunto dos países em desenvolvimento, em oposição aos demais grupos da comunidade
internacional. Em outros termos, não há, à primeira vista, novidades geopolíticas no novo
mapa traçado por Rufin. Tampouco é surpreendente vê-lo caracterizar o México ou o
Marrocos como Estados tampões, isto é, zonas de segurança e de estabilidade na fronteira
imediata entre o Norte e o Sul.
Mais interessante, por sua vez, é sua caracterização do Irã e da China como sendo
igualmente Estados tampões. Independentemente, portanto, da ideologia política ou do regime
econômico e social adotados por cada um desses países, eles desempenhariam o mesmo papel
no limes: imobilismo, estabilidade, garantia de paz para o Norte. Vale a pena retomar a
descrição de Rufin para o papel da China, que também valeria, mutatis mutandis, para o caso
do Irã: “Perfeitamente à vontade no seu papel de Estado tampão, ela não é uma escória, um
vestígio do mundo soviético em vias de extinção. Ela é, ao contrário, enquanto tecnologia da
estabilidade, um modelo: o dos futuros Estados tampões que se instalam ao longo do limes. A
característica desse modelo é uma mistura bastante surpreendente de eficiência política – no
controle e na opressão – e de marasmo econômico” (p. 197).
“Estabilidade, dependência, eis o que o Norte pede aos Estados tampões. No demais,
suas vociferações contam muito pouco. No caso dos totalitarismos marxistas de tipo chinês, a
retórica anticapitalista pode se desenvolver sem inconvenientes. Ela serve, ao contrário, para
reunir o que resta dos movimentos revolucionários internacionalistas no mundo e a evitar sua
dispersão anárquica. Mas, a ineficiência econômica é a garantia de que o tigre tem os dentes e
as garras limadas. Pode-se deixá-lo morder, pode-se deixá-lo rugir. Ele se mantem
solidamente em suas patas, eis tudo que lhe é pedido” (p. 198).
Assim, a despeito de uma discordância fundamental com Rufin a propósito mesmo do
modelo Império/novos bárbaros adotado em seu ensaio, cabe reconhecer a agudeza de sua
364
análise política a propósito do papel da China (e do Irã) na nova ordem mundial em
construção. Ao Norte interessa muito mais um Estado opressor, mas estável em sua função de
fronteira, do que uma democracia insegura e problemática.
Sobre as condições de funcionamento e de manutenção do novo “apartheid”, as
posições de Rufin são igualmente pertinentes. “O Império deve, em primeiro lugar,
estabelecer um equilíbrio militar ao longo do limes. Depois, ele deve poder se precaver contra
perigos longínquos, aqueles que intervêm nas profundezas do mundo bárbaro. Enfim, ele deve
aprender a conduzir, ao longo do limes, uma diplomacia da desigualdade” (p. 212).
A utilização do conceito de “apartheid” pode parecer chocante, ademais de
extremamente forte para caracterizar as possíveis relações futuras entre os países do Norte e
as nações em desenvolvimento. Ela não é, contudo, em nada exagerada. Aliás, a aplicação
desse princípio já foi explicitamente recomendada, embora ao abrigo de um pseudônimo, por
um alto funcionário do Governo francês especialista em questões de defesa, devendo o novo
regime ser observado antes de mais nada nas transferências ditas “dualistas” de tecnologia
(hoje em dia quase todas o são).2 Apesar de vinculado ao problema das tecnologias de
emprego militar, o argumento, exposto brutalmente, é o de que se deve reforçar e adaptar os
regimes atualmente em vigor (TNP, Cocom, regime de controle de tecnologia de mísseis),
abandonando-se a distinção entre tecnologias civis e militares e estabelecendo-se um
“secretariado internacional permanente” para coordenar as exportações de tecnologias
“sensíveis”. Considerando-se que mesmo a concepção e manufatura de circuitos integrados já
foi declarada pelo Pentágono como do interesse da segurança nacional norte-americana, pode-
se deduzir facilmente até onde poderia chegar um tal regime de controle.
Jean-Christophe Rufin deseja, evidentemente, o fim do “apartheid”, de preferência
através de uma decidida ação de caráter universalista e humanista que, ao mesmo tempo em
que busca perseverar nos projetos de cooperação para o desenvolvimento, faça a denúncia
constante de todos os tipos de despotismos: o do dinheiro, o do fanatismo religioso, o da
injustiça social. O único problema é que a iniciativa, mais uma vez, deve vir do Norte: assim,
os que no Sul se batem pela transformação – são expressamente citados Vargas Llosa e
Fernando Collor – deveriam receber mais “ajuda” do Norte. Sua denúncia das hipocrisias
mantidas tanto ao Norte quanto ao Sul é, entretanto, muito bem vinda, em que pese o
anacronismo da comparação da situação atual com a Roma antiga.

2
Vide Jean Villars, “Pour l’Apartheid Technologique”, L’Express (14 de Setembro de 1990, p. 30-31).
365
Resta uma última observação, não só em relação ao título da obra, como no que se
refere à adequação do adjetivo “novo” aplicado aos “bárbaros”. Estes, como a miséria e a
opressão, sempre existiram e continuam a carregar uma existência dramática através dos
séculos. O Norte, por sua vez, encontra-se numa situação historicamente inédita: já não se
vive a “bipolaridade” dos últimos quarenta anos, nem tampouco retornou-se ao “equilíbrio de
potências” do século passado. Dessa forma, o império, sim, é que é novo, pois os “bárbaros”
são nossos velhos conhecidos.

Brasília: 28 Fevereiro 1992.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, p. 97-103).

366
Desconstruindo Estados (ma non troppo...)

Francis Fukuyama:
Construção de Estados: governo e organização no século XXI
(Rio de Janeiro: Rocco, 2005, 168 p.)

Não houve, no decorrer dos anos 90, uma ideia mais equivocadamente rejeitada
(sobretudo pela esquerda) do que o pretenso “fim da história”, que teria sido decretado pelo
autor nipo-americano. Até a orelha deste livro incorre no equívoco, ao afirmar que
“Fukuyama previu o ‘fim da história’ com a ascensão da democracia liberal e do capitalismo
global”.
Nada mais errado, inclusive porque ele não defendia uma tese, mas discutia uma
hipótese, e ela vinha seguida de um ponto de interrogação ignorado pelos críticos “de orelha”.
Em todo caso, Fukuyama parte agora para o fim dos Estados, ou, pelo menos, dos Estados
falidos. Ele parece dar substância intelectual às teses do “novo império”: seria perigoso deixar
estados falidos nas mãos de terroristas e traficantes, daí a proposta de colocá-los sob
assistência de estados “responsáveis” até que eles possam “melhorar”.
Dito com tal franqueza, parece que ele redigiu o manual do intervencionismo para os
propugnadores da “ação preventiva”. Não é bem isso, mas Fukuyama oferece, sim, uma
justificativa para revisar Westfália, isto é, os arranjos políticos que se baseiam na soberania
absoluta dos estados constituídos. Ele lembra que as bases para a erosão da soberania foram
lançadas antes da doutrina Bush, nas intervenções humanitárias dos anos 90. Em face de
violações dos direitos humanos, as grandes potências, agindo em nome da legitimidade
democrática, têm não apenas o direito, mas o dever de intervir.
Ele coloca claramente sua nova tese: promover a governança dos Estados fracos,
melhorar sua legitimidade democrática e fortalecer instituições autossustentáveis, passa a ser
o projeto central da política internacional contemporânea. É o chamado Nation building, mais
fácil de dizer do que fazer, como demonstrado pela experiência macabra do Iraque. Na
verdade, construir uma nação é algo virtualmente impossível, ainda que a remodelagem dos
Estados seja possível, mesmo se o caso do Haiti também demonstra que, na ausência de
forças nacionais comprometidas com o projeto, nenhuma imposição externa é bem sucedida.
Esta é, porém, a parte mais política (e polêmica) do livro, seu terceiro capítulo, no
qual ele critica inclusive os falcões republicanos que estão conduzindo a desastrosa
experiência de “reconstrução” do Estado iraquiano. Os dois primeiros capítulos tratam da

367
chamada “estatidade” e do “buraco negro” criado pelos Estados fracos. Este é o problema
crucial da nossa época, que nunca viu tanta prosperidade e tantos fracassos acumulados. Ele
não vê nada de errado no consenso de Washington, reconhecendo que o Estado precisa ser
reduzido em certas áreas, mas fortalecido em outras.
Fukuyama estabelece as funções do Estado ao longo de um eixo que parte de funções
mínimas (bens públicos, segurança e um pouco de equidade), passa por funções
intermediárias (fatores externos, educação, serviços públicos e regulação, com alguma
redistribuição social) e chegando a funções ativistas (políticas setoriais e redistribuição de
ativos). Em função dessa tipologia, ele divide os estados em diferentes quadrantes, segundo a
força das instituições e a amplitude das ações do Estado: infelizmente, muitos estados de
países em desenvolvimento assumem muitas funções que não conseguem desempenhar bem.
O Brasil é citado como um exemplo de problema com o seu federalismo fiscal, o que pode
acarretar déficits orçamentários.
Sua conclusão é a de que o Estado precisa ser menor, porém mais forte, isto é, dotado
de instituições capazes de responder aos desafios que são colocados pelo crescimento da
economia global.

Brasília, 12 de fevereiro de 2006.


Inédito.

368
Anatomia da sociedade internacional contemporânea

Ricardo Seitenfus:
Manual das organizações internacionais
(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, 352 p.).

Dentre os oito Estados “cristãos” que se reuniram no Congresso de Viena, em 1815,


cinco indiscutivelmente dominavam o chamado “concerto europeu”, que presidiu ao
nascimento da Europa pós-napoleônica, estabeleceu novas regras de convívio entre as “nações
civilizadas” e determinou, em grande medida, como seria moldado o mundo burguês que
emergia da primeira Revolução Industrial. O equilíbrio persistiu durante todo o longo século
XIX e apenas seria rompido em virtude da “segunda Guerra de Trinta Anos” em que parece
ter vivido a Europa na primeira metade deste século.
Cinco grandes países continuavam a dominar, no final do século XX, o inner circle do
poder mundial e a determinar, via monopólio da arma nuclear, o curso da vida no planeta.
Entretanto, do ponto de vista quantitativo, ao menos, o cenário é mais populoso: partindo de
apenas 50 Estados independentes em seu ato constitutivo, o sistema onusiano evoluiu para
cerca de 190 países membros. Do ponto de vista qualitativo, por outro lado, a mudança é
substancial: no lugar da antiga diplomacia secreta dos príncipes e dos agentes dos reis, temos
uma real diplomacia parlamentar exercida em mais de 350 organizações, interestatais e não-
governamentais, constituídas em dezenas de foros econômicos, políticos, técnicos e culturais,
nas quais as armas da crítica substituíram a crítica das armas. O poder talvez não se tenha
tornado menos concentrado hoje do que 180 anos atrás, mas ele já não pode mais
legitimamente ser exercido de forma crua e direta, devendo obrigatoriamente passar, mesmo
no caso da superpotência remanescente, por diferentes instâncias de discussão e de
encaminhamento de soluções aos variados problemas enfrentados pela humanidade.
A resposta encontrada a esses problemas pelos Estados nacionais, o elemento mais
consistente do legado de Westfália, é a construção de uma sociedade mundial que encontra
nas organizações internacionais seu tijolo mais sólido. Se o mandato de Versalhes, com seus
vícios revanchistas, não frutificou, a Carta de São Francisco ainda permanece uma referência
válida para a construção de uma sociedade internacional livre da diplomacia da canhoneira. O
livro de Ricardo Seitenfus trata precisamente desse fenômeno organizacional que constitui o
multilateralismo contemporâneo, formado pelas dezenas de coletividades autônomas que se
revezam na agenda internacional para tratar dos diferentes temas aos quais, nos planos
369
regional ou mundial, elas estão dedicadas: comércio, trabalho, clima e meio ambiente,
finanças, padrões de comunicação, normas de saúde, patentes e direitos do autor, transportes,
energia, direito e justiça, produtos de base, correios, segurança, integração econômica, enfim,
todas elas voltadas para a promoção dos direitos humanos, a causa da paz e, sobretudo, do
desenvolvimento.
O título talvez peque por excessiva modéstia: o livro de Seitenfus é muito mais do que
um simples manual, no sentido didático que se empresta correntemente ao vocábulo.
Tampouco ele é um mero diretório das organizações ali elencadas, interessando apenas aos
estudiosos do Direito Internacional. Trata-se de uma obra densa, voltada em primeiro lugar
para os aspectos teóricos, históricos, doutrinários, classificatórios e ideológicos do
multilateralismo contemporâneo, enfocando em seguida a personalidade jurídica, a
competência e os instrumentos dessas organizações, para então discorrer, na maior parte do
volume, sobre as mais importantes entidades multilaterais e regionais a partir da Liga das
Nações. A ONU e suas agências especializadas recebem muita atenção, mas também os
organismos políticos e econômicos do continente americano, sem descurar os demais órgãos
regionais e mesmo as organizações não-governamentais. Um conjunto de anexos traz um
utilíssimo quadro cronológico sobre a participação do Brasil nessas organizações
internacionais e os textos dos convênios constitutivos das mais importantes entidades do
ponto de vista da diplomacia brasileira.
A formação multidisciplinar e “transnacional” do seu autor – que transita facilmente
da história ao direito e da economia à sociologia – por certo contribuiu para a elegante
abrangência dessa verdadeira summa das organizações internacionais, relativamente inédita
para os padrões acadêmicos brasileiros. Também é notável a clareza das definições; vejamos
apenas a que interessa ao objeto da obra: as organizações internacionais são associações
voluntárias de Estados, constituídas através de um tratado, com a finalidade de buscar
interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros. Elas
representam, segundo outra definição, um subconjunto das relações internacionais e sua
ideologia está vinculada às concepções defendidas por seus Estados membros (como foi o
caso das Nações Aliadas nos estertores da Segunda Guerra). Elas passaram por fases, desde o
funcionalismo dos primeiros anos da ONU até o atual globalismo, passando pelo
desenvolvimentismo e pelo transnacionalismo. Os processos decisórios e seus mecanismos
(ou relações de força) são obviamente muito importantes, mas as organizações internacionais
parecem querer levar o mundo contemporâneo a uma espécie de “hegemonia consensual”.

370
Elas constituem, inquestionavelmente, um dos elementos mais dinâmicos e
importantes das relações internacionais deste final de século e do futuro previsível. Conhecer
sua anatomia institucional, a trajetória de cada uma delas, seus respectivos mandatos
constitucionais, compreender, por fim, suas competências específicas e suas limitações
intrínsecas impõe-se a qualquer estudioso do mundo globalizado em que vivemos. O manual
de Ricardo Seitenfus torna mais fácil a apreensão dessa realidade múltipla a qualquer leigo no
assunto e consegue agregar conhecimentos novos mesmo ao mais escolado dos diplomatas.

Brasília, 3 de dezembro de 1997.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(vol. 40, n. 2, julho-dezembro 1997, p. 183-185).
Republicado, in GEDIM
(Globalização Econômica e Direitos no Mercosul), Anuário GEDIM 2001
(Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; p. 599-601).

371
A ordem mundial, para principiantes

Henrique Altemani de Oliveira e Antonio Carlos Lessa (orgs.):


Política Internacional Contemporânea: mundo em transformação
(São Paulo: Saraiva, 2006, 115 p.).

O livro é modesto em dimensões e em pretensões, mas ele cumpre razoavelmente a


missão que se propunha: uma introdução didática à ordem mundial atual. Não há teoria aqui,
mas os organizadores acreditam que mundo se defronta com o desafio político de redefinição
das relações de poder (o Sistema Internacional) e de reorganização das instituições e regras
que regulamentam as relações internacionais (Ordem Internacional).
Consoante sua perspectiva didática, cada um dos capítulos é fechado por um número
limitado de “questões para discussão”, é apresentado um glossário das expressões mais usadas
em cada um deles, assim como são apontados alguns títulos de livros para aprofundamento do
problema. O capítulo 1, sobre a “nova ordem mundial”, é assinado por Carlos Eduardo
Vidigal, que busca os elementos constitutivos dessa ordem e, segundo o modelo braudeliano
conhecido, tenta identificar os eventos de curta duração, os processos de média intensidade e
as estruturas de lento desenvolvimento. Rupturas e permanências pontuam o texto, onde se lê
que a globalização molda uma sociedade marcada pelo “fetichismo da mercadoria” e cuja
face perversa é o desemprego estrutural e a exclusão social e territorial.
No capítulo 2, Cristiano Garcia Mendes oferece uma boa síntese sobre o papel da
ONU no mundo contemporâneo, comparando-a inclusive com sua predecessora, a Liga das
Nações. São enfocados mais os problemas dos direitos humanos, das missões de paz, os
objetivos do milênio e a difícil reforma da organização. José Flávio Sombra Saraiva trata, no
capítulo 3, da hegemonia dos Estados Unidos, com um tratamento especial do caso da
América Latina e do Brasil. O autor acredita que a “construção de alianças ao Sul” representa
um desafio à hegemonia americana, como prega a diplomacia do governo Lula em sua
política de aproximação com a Índia e a China.
Antonio Carlos Lessa, especialista em questões europeias, trata, no capítulo 4, do
processo de integração e dos organismos da atual União Europeia. Ele acredita que ela seja
uma “verdadeira superpotência”, com condições de “influenciar de modo decisivo os rumos
políticos e econômicos das relações internacionais contemporâneas”, algo que tem sido
desmentido pelo seu baixo dinamismo econômico e pela relutância em investir em armas e
projeção estratégica internacional. A grande inovação institucional foi, em 1991, o tratado de
372
Maastricht, que deu forma jurídica à UE e permitiu o surgimento da moeda comum,
implementada entre 1991 e 2001. Dos seis membros em 1957, a Europa chega em 2004 a 25
países, mas o autor conclui que, ainda assim, se trata de um “ágil gigante”.
A América Latina é tratada por Pio Penna Filho no capítulo 5, reconhecendo ele os
fatores de adversidade em sua inserção internacional, bem como o descaso dos EUA. A
redemocratização, nos anos 1980, coincide com novos esforços integracionistas, mas o autor
acredita que a adesão às regras neoliberais teve efeitos sociais “catastróficos”. Ele também
acha que esse modelo não serve para a inserção econômica internacional da região. A seção
sobre o Mercosul, porém, contém diversos erros conceituais e factuais. A Ásia é tratada por
Henrique Altemani, conhecido especialista, que dá ênfase à região do Pacífico, em vista de
sua importância econômica e estratégica. A Ásia central ainda está sob a influência da Rússia
e a Ásia do Sul ostenta muitas tensões interestatais. A região do Pacífico apresenta enorme
dinamismo econômico e graves problemas de segurança, com ressentimentos latentes, o que
abre o espaço para a influência continuada dos EUA.
Pio Penna Filho comparece novamente para tratar da África e do Oriente Médio, mas
essas duas regiões são um poço de problemas e uma fonte inesgotável de crises e ameaças à
segurança, dentro e fora de seu contexto próprio. Ele aponta corretamente a questão palestina,
o controle das fontes de petróleo e o fundamentalismo islâmico como os desafios principais à
estabilidade regional e mundial, mas o texto é insuficiente para traduzir a complexidade
desses problemas. O livro pode ser uma boa aproximação aos principais temas da ordem
mundial contemporânea, a ser complementado por obras especializadas.

Brasília, 14 de abril de 2006.


Publicado, em formato resumido e sob o título de “A nova ordem, para iniciantes”, em
Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 3, n. 22, maio de 2006, p. 63)

373
Fronteiras da sociedade global

Eduardo Felipe P. Matias:


A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global
(São Paulo: Paz e Terra, 2005, 556 p; ISBN: 85-219-0763-X)

Este livro é uma tese, aprovada, aliás, com distinção numa banca da USP. O livro
também contém várias teses, sendo a mais importante a que figura no seu subtítulo, ou seja,
que estamos saindo do paradigma do Estado soberano para o da sociedade global. Pode-se
admirar o livro, sua estrutura ideal enquanto tese acadêmica, sua perfeita cobertura dos mais
importantes temas e problemas do direito internacional contemporâneo, mas cabe uma ou
duas ressalvas quanto ao novo paradigma proposto pelo autor.
A primeira ressalva seria de ordem propriamente conceitual. No sentido mais
corriqueiro da palavra, o termo paradigma refere-se a um padrão ou modelo de algo, tangível
ou intangível, mas sempre definido de modo explícito. No que se refere ao modelo proposto
neste livro, não se sabe bem a qual tipo específico de nova configuração civilizacional
corresponderia à “sociedade global”, uma vez que seus atributos restam indefinidos. Pode-se
dizer, paradoxalmente, que ela não tem fronteiras, ou então que suas fronteiras ainda são,
justamente, as dos Estados nacionais. No sentido mais filosófico, ou “kuhniano”, da
expressão, trata-se de um conjunto de crenças ou “teorias”, aceitas como verdadeiras, até
serem desbancadas por algum outro conjunto superior de explicações racionais que, a partir
de certo momento – usualmente definido como “revolução científica” –, passam a ser
consideradas como a nova verdade estabelecida. Em nenhum desses dois sentidos, porém, o
novo paradigma da sociedade global proposto por Matias parece já ter sido estabelecido e
reconhecido no âmbito acadêmico.
Mas, há igualmente um enorme problema de ordem prática: se eu quiser falar com a
tal de sociedade global, telefono para quem? Para falar com chefes de Estado ou com o
secretário-geral da ONU, sei que posso encontrar os números em diretórios, mas o telefone do
novo paradigma ainda é desconhecido, na verdade inexistente. Ou seja, ela não possui
institucionalidade. Ao que tudo indica, continuará a ser assim no futuro previsível, por mais
que a globalização empurre as “coisas” na direção desse novo paradigma. Os Estados
nacionais continuarão a dar as cartas no jogo global, ainda que as regras de conduta e o
substrato mesmo dos intercâmbios internacionais deixem a esfera do bilateralismo e se
projetem, cada vez mais, nos planos multilateral e global.
374
Independentemente, porém, destas ressalvas feitas à “tese” principal de Matias, pode-
se considerar que a “sociedade global” constitui, de fato, um bom arquétipo, ou modelo, de
como foram e são importantes as transformações nos sistemas econômico e político
internacional, desde o final da contestação “alternativa” – socialista ou outra – ao moderno
regime democrático de mercado, para a conformação da nova ordem internacional, cujos
contornos ainda não estão precisamente definidos. Esta tese acadêmica apresenta um pouco
da nova arquitetura naquilo que constitui a especialidade do autor: o direito internacional e os
mecanismos de regulação e de cooperação existentes no mundo contemporâneo. Desse ponto
de vista, ele representa uma das melhores tentativas de síntese, já conhecidas na comunidade
acadêmica brasileira, para apreender o que há de especificamente novo no cenário
internacional com incidência sobre o campo do direito e das organizações internacionais.
A estrutura quadripartite da tese, presumivelmente mantida no livro, é relativamente
simples: uma parte introdutória trata do Estado soberano, isto é, das fronteiras tradicionais
que dividem, desde Westfália, os Estados-nacionais reconhecidos como tal, e reciprocamente,
desde o século XVII. A primeira parte se ocupa da globalização em geral, na qual o subtítulo
explicita seu objeto: “o papel da globalização e da revolução tecnológica na alteração do
modelo do Estado soberano e na ascensão do modelo da sociedade global”. A segunda parte,
“globalização jurídica”, se ocupa especificamente – e talvez repetitivamente – do papel da
globalização jurídica e das organizações internacionais “na alteração do modelo do Estado
soberano e na ascensão do modelo da sociedade global”. A parte final chega à “sociedade
global”, definida como as novas fronteiras da humanidade. Uma conclusão de apenas três
páginas e a bibliografia se estendendo por mais de trinta páginas completam este imponente
volume de doze capítulos bem escritos e abundantes remissões bibliográficas.
Os estudiosos da história do direito encontrarão, no primeiro capítulo, um resumo de
como os teóricos da política – Maquiavel, por exemplo – e da ciência jurídica – Grotius,
Bodin, entre outros – trataram da emergência e da afirmação do Estado soberano a partir do
Renascimento. O segundo capítulo aprofunda a construção do modelo de Estado soberano,
seus significados (poder e supremacia, por exemplo), assim como as distinções entre
soberania de direito e de fato. Seguem-se as duas partes centrais, com quatro capítulos cada
uma, descrevendo e discutindo as forças principais da globalização contemporânea, a
revolução tecnológica e o papel das empresas transnacionais, incluindo aqui os operadores
financeiros. O interessante a observar em relação ao tratamento dado pelo autor a esse
fenômeno tão suscetível de receber abordagens dicotômicas é que ele integra de modo

375
satisfatório análises de autores notoriamente contrários à globalização com trabalhos de
estudiosos bem mais favoráveis a esse processo.
Na parte da globalização jurídica – segunda parte da tese –, o foco do autor é posto na
regulamentação internacional e no fortalecimento das organizações internacionais de
cooperação e de integração. Ele constata, por exemplo, como as entidades mais notoriamente
vinculadas a esses processos, a OMC, o FMI e o Banco Mundial, ao mesmo tempo em que
preservam certos atributos da tradicional soberania dos Estados, acabam por minar as bases
do poder e do arbítrio alocado exclusivamente às políticas de base nacional. Paradoxalmente,
isto ocorre com o próprio consentimento dos Estados. De fato, como confirma o autor,
permanecer à margem ou retirar-se dessas instâncias de regulação trans- ou supranacional
representaria custos enormes, que poucos Estados estariam dispostos a pagar, uma vez que os
benefícios advindos da regulação internacional são patentes e visíveis, no comércio e nas
transações financeiras.
A parte final contém o que o autor chama de “novo paradigma”, isto é, o
estabelecimento de um “novo contrato social” e de uma “nova soberania”. Os mecanismos
para a criação dessas novas realidades são a cooperação e a interdependência entre os
Estados, o que acaba resultando num novo tipo de contrato. Uma nova lex mercatoria, por
exemplo, se impõe, por via do método arbitral, à margem e fora do alcance do poder dos
Estados. No tratamento da questão da supranacionalidade, implícita em alguns modelos de
integração, o autor acaba mencionando a Comunidade Andina, onde esse atributo, previsto
originalmente nos tratados constitutivos, foi totalmente teórico e na prática inexistente. De
todo modo, as bases do novo pacto estão postas, e elas corroem os fundamentos da soberania
westfaliana.
Os motivos que levam os Estados a diluírem a sua própria soberania nas novas formas
de organização inter- ou supra-estatais não derivam tanto da harmonia que existiria entre eles,
como da necessidade de superar as fontes de conflito, substituindo-o pela cooperação. O
cenário hoje se aproxima de uma soberania compartilhada, ou de uma “governança sem
governo”, e o próprio direito deixa de ser, nas palavras de Celso Lafer, um “direito
internacional de coexistência” – baseado em normas de mútua abstenção – para tornar-se um
“direito internacional de cooperação”, com a missão de promover interesses comuns. Quais
seriam, então, os elementos que compõem o novo paradigma da “sociedade global”, segundo
o autor deste livro?
Entre eles se situam a sociedade civil organizada, composta pelas ONGs, e os
fenômenos de natureza trans- ou supranacional já analisados no livro: as empresas
376
multinacionais e os esquemas de integração econômica e política. Esses atores integram os
novos regimes criados para regular a cooperação entre os atores tradicionais, os Estados
soberanos (ma non troppo, poder-se-ia dizer). Como diz o autor, o novo sistema de
governança global possui aspectos internacionais, transnacionais e supranacionais. Porém, a
diluição da soberania estatal trazida pela globalização econômica interessa sobremodo às
empresas transnacionais, em especial as do setor financeiro.
Dois problemas permanecem para a nova “sociedade global”: ela não dispõe de um
poder judiciário – já que a corte da Haia só trabalha sob convocação e aprovação dos Estados
– e ela não dispõe de um poder militar, ou policial, próprio, uma vez que a ONU nunca foi
dotada, pelos Estados membros – a fortiori os cinco grandes do seu Conselho de Segurança –
de forças armadas atuando sob um comando unificado a seu serviço (sem mencionar o poder
de veto, que é atribuição individual de cada um dos cinco permanentes). Um terceiro
problema seria a dimensão do desenvolvimento, uma vez que a pobreza e a desigualdade
continuam a caracterizar boa parte da humanidade. Paz, segurança, justiça e desenvolvimento
parecem ser, de fato, os obstáculos atuais à plena consecução da sociedade global almejada
pelo idealismo jurídico. Não é certo que esses aspectos venham a ser resolvidos no plano
global, pela “comunidade internacional”, como pretendem alguns; o mais provável é que eles
ainda dependam, basicamente, da atuação dos Estados soberanos para sua resolução.
O autor acredita que “somente no momento em que os indivíduos de cada nação
viessem a compartilhar um amplo conjunto de valores e interesses seria possível esperar que
os conflitos hoje provocados pela divisão do mundo em Estados pudessem deixar de existir” e
que o direito tem um papel fundamental nesse processo de confluência de valores (p. 515).
Examinando-se o estado atual do mundo e a “educação” das massas, tal perspectiva aparece
como sumamente idealista. Mas, ele também reconhece que a soberania pode ser uma das
últimas salvaguardas para Estados fracos ou vulneráveis. Os princípios legitimadores da nova
“sociedade global” deveriam ser os da democracia e das liberdades individuais, algo ainda
distante do modo de vida de milhões de indivíduos na face da terra.
Em sua conclusão, o autor frisa bem que a sociedade global não é uma sociedade sem
Estados ou sem fronteiras. Ele também acredita que a riqueza global esteja se concentrando e
que a humanidade se torna cada vez mais desigual, daí sua afirmação segundo a qual o “bom
combate é aquele em favor da justiça social na sociedade global” (p. 523). Essas “realidades”,
no entanto, vêm sendo desmentidas por estudos empíricos solidamente embasados em dados
sobre a distribuição de renda na dimensão individual (como por exemplo em diversos
trabalhos de Xavier Sala-i-Martin). O autor diz lutar para que as “políticas adotadas por essas
377
instituições [que assumem parte da antiga soberania estatal] sejam não apenas justas, mas
socialmente justas, para que a parte do planeta que pouco ou nada tem seja resgatada por
aqueles que conseguiram alcançar grau maior de desenvolvimento -- seja por seu mérito
próprio, seja por uma história desigual” (p. 523). Essa “nova utopia”, encarregada de efetuar a
redução da exclusão social em escala global, estaria baseada na “ideia de fraternidade”.
Pode até ser que o autor tenha razão, mas o que a história e a experiência da
cooperação internacional nos ensinam, justamente, é que depois de mais de meio século de
ajuda oficial ao desenvolvimento, em especial aquele dirigido à África, o “resgate” pela
assistência e pela ajuda financeira não foram e não são suficientes para retirar essas massas da
miséria mais abjeta ou da simples pobreza. Apenas o crescimento econômico, em bases
propriamente nacionais, tem sido capaz de fazê-lo, como ensinam os casos recentes da China
e da Índia. Que a África e, em certa medida, a América Latina não tenham sido capazes de
superar os aspectos mais pungentes da pobreza e da desigualdade não deve ser visto como um
fracasso da globalização ou das políticas econômicas ditas “neoliberais”, como pretendem
aqueles que militam na antiglobalização. O fato é que esses continentes ainda estão muito
longa da “sociedade global” proclamada pelo autor. Isso por decisão própria, por insistirem
nas chamadas “políticas soberanas” de desenvolvimento – ou no caso da África, por
corrupção mesmo, que se traduz no fenômeno da falência dos Estados – não porque o
capitalismo global tenha pretendido excluir esses continentes de suas redes e fluxos
integradores.
Em outros termos, a construção da “sociedade global”, a tese principal defendida neste
livro, parece ser, ainda, uma obra essencialmente dependente da vontade dos Estados
nacionais, vale dizer da capacidade de ação de seus dirigentes, nem todos estadistas, para
dizer o mínimo. Isto, obviamente, em nada diminui o interesse desta tese de doutorado para o
avanço dos estudos de direito internacional no Brasil. Que sua tese principal seja aprofundada
e debatida...

Brasília, 11 de fevereiro de 2007.


Publicada na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados; ano IV, n. 4, maio de 2007, p. 257-260).

378
A produção do conhecimento nas sociedades contemporâneas:
a concentração e as desigualdades são inevitáveis?

Fernando Antonio Ferreira de Barros:


A tendência concentradora da produção de conhecimento no mundo contemporâneo
(Brasília: Paralelo 15-Abipti, 2005, 307 p.)

A orelha do livro apresenta o que parece ser, ao mesmo tempo, a maior virtude e a
maior fraqueza deste livro importante. Ela começa afirmando o seguinte, com o que
concordamos inteiramente: “O conhecimento técnico-científico representa no mundo
contemporâneo [não apenas nele, diríamos nós] uma base fundamental para o
desenvolvimento socioeconômico das nações. Sua maior ou menor utilização nas estruturas
organizacionais e produtivas de cada sociedade pode ser um dos fatores explicativos dos
diferentes graus de desenvolvimento alcançados”. Até aí pode-se concordar com o autor, ou
com quem elaborou a orelha, mas logo em seguida vem o argumento que justifica o título do
livro: “Sua produção e apropriação [isto é, do conhecimento técnico-científico] encontram-se,
entretanto, muito concentradas num grupo de países mais desenvolvidos”.
Minha discordância fundamental do autor, devo adiantar desde logo, localiza-se nesta
premissa inicial e fundamental, vale dizer, a que dá sentido ao título e sustenta toda a
argumentação da obra. Mas o livro tem várias outras qualidades, que vou agora enfatizar,
antes de voltar para uma crítica substantiva, na segunda parte desta resenha.

O autor e sua obra


Doutor em sociologia pela UnB e integrante do corpo técnico do CNPq há mais de
duas décadas, o autor possui várias obras nessa mesma área, entre elas o livro Confrontos e
contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil, resultado de sua dissertação de
mestrado. Sua orientadora nesta tese de doutoramento, a prefaciadora Ana Maria Fernandes,
enfatiza sua concordância com algumas teses do autor – e não poderia ser de outro modo –,
como o papel do Estado no processo de desenvolvimento científico e tecnológico e na
reversão dessas tendências concentradoras, com base nas conhecidas teses do economista
coreano Ha-Joon Chang, em Chutando a Escada. O apresentador Lynaldo Cavalcanti destaca
por sua vez, que no Brasil “as autoridades têm dedicado atenção quase exclusiva à geração de
conhecimento científico, com negligência à sua apropriação, traduzida em novos produtos,
serviços e mercados”. Seguindo o autor, porém, o apresentador conclui que, “não obstante os
379
intensos esforços dos países, a distribuição regional dos poderes científico e tecnológico, bem
como de desenvolvimento econômico e social, não mudou de forma significativa nos últimos
20 anos” (p. 16-17). Ora, o que caracteriza os últimos 20 anos de desenvolvimento científico e
tecnológico no plano mundial é, precisamente, a gradual emergência de países antes
dependentes tecnologicamente – Coréia do Sul, China, Índia, vários outros asiáticos, alguns
latino-americanos, como o Brasil – nesse panorama antes monótono, dominado
tradicionalmente por um punhado de líderes tecnológicos da OCDE.
Em sua introdução, o autor parece concordar com a tese de que, a despeito da
dispersão global da produção do conhecimento na atualidade, “as desigualdades de riqueza
tendem a persistir, ou mesmo a aumentar”, fazendo com que, as perspectivas de mudança no
quadro da capacidade de pesquisa sejam “muito remotas” (p. 23). Ele também acha que essa
tendência concentradora da produção e apropriação do conhecimento científico e tecnológico
no mundo contemporâneo pode ser a base de uma “nova divisão internacional do trabalho
mais rígida, que poderá implicar maior desigualdade de riqueza e exclusão social no contexto
mundial” (p. 23). Como ele enfatiza corretamente, “não existem fórmulas mágicas que
possam garantir saltos qualitativos a curto prazo para o progresso técnico-científico almejado”
(p. 25).
Para montar sua análise, o autor conduziu uma série de entrevistas com dezoito
personalidades brasileiras e internacionais dessa área, com base num roteiro de dez grandes
questões cobrindo os campos principais de sua pesquisa (nomes e perguntas figuram em dois
dos três anexos, sendo o terceiro a agenda de propostas e recomendações efetuadas no projeto
“Inventando um futuro melhor”, que o InterAcademy Council sugeriu como forma de para
reforçar a C&T em todos os países.
O livro compõe-se de cinco capítulos e três anexos, como listados a seguir. O primeiro
dá o quadro teórico da produção de conhecimento e sua organização social, com as tendências
atuais a uma maior aproximação entre ciência e tecnologia, à pesquisa em rede e a um maior
controle e participação social nos rumos de C&T. O capítulo termina, porém, sublinhando a
concentração espacial dessa produção nos países desenvolvidos.
O segundo capítulo traça, justamente, o balanço das tendências e características da
produção em C&T nos países avançados. Nos EUA, por exemplo, onde ocorreu uma notável
constância dos investimentos em P&D de 1960 a 2000, em torno de 2,7% do PIB, observou-
se uma tendência à duplicação dos esforços voltados para a pesquisa básica, uma estabilidade
na pesquisa aplicada e uma diminuição nos gastos com o desenvolvimento, consoante,
provavelmente, a passagem do país de uma sociedade industrial avançada para uma sociedade
380
pós-industrial ou de serviços. Ao longo desse período, o governo federal tem sua importância
diminuída no financiamento em quase três vezes, ao passo que aumenta significativamente a
participação da indústria, e em menor proporção a das universidades e instituições não-
governamentais. É patente, igualmente, a concentração de C&T nos EUA, com um terço da
produção científica mundial, em 1988, e mais de dois quintos das patentes registradas nos
EUA em 1990 (não exclusivamente americanas, portanto). Não há dúvida de que a tríade
mundial nessa área é representada pelos EUA, UE e Japão e o autor enfatiza as principais
diferenças entre eles nas diversas vertentes do complexo C&T.
O terceiro capítulo trata da C&T nos países em desenvolvimento, com destaque para
China, Índia e Brasil. Uma primeira abordagem enfatiza a precariedade extrema da África
nesse particular, o que não configura nenhuma novidade. Não há dúvida, tampouco, de que o
Estado é o principal motor dos investimentos nos três grandes do mundo em
desenvolvimento, em contraste com a predominância do setor privado na tríade dos
desenvolvidos. Os três grandes atores em desenvolvimento também se esforçam para
aumentar os investimentos em P&D em proporção do PIB e mesmo que os valores da China
possam ser relativamente modestos, as cifras envolvidas, dado o enorme PIB alcançado, já
são propriamente gigantescas. A execução de P&D nos três países também é diferenciada,
com uma maior proporção para as universidades no caso do Brasil e uma predominância dos
institutos nacionais no caso da Índia e em menor proporção no caso da China.
O capítulo quarto enfatiza as desigualdades científicas tecnológicas no contexto da
globalização, destacando o autor, em epígrafe, uma frase do SG-ONU Kofi Annan, segundo a
qual o mundo atualmente é muito mais desigual do que há 40 anos. Este é o pressuposto do
trabalho, que associa a tendência à globalização a um agravamento da crise econômica,
explicada segundo duas visões alternativas, a dos regulacionistas e a dos neoschumpeterianos.
A bibliografia citada é classicamente acadêmica, no sentido mais tradicional da palavra, com
a complementação oferecida pelas estatísticas de gastos em P&D, de registros de patentes e
entrevistas com os especialistas da área. Parecem naturais, nesse contexto, as críticas à
privatização da pesquisa e as “possíveis interferências negativas dos interesses do mercado no
direcionamento e apropriação da pesquisa científica” (p. 207). A análise do papel das
multinacionais tende a enfatizar seus efeitos negativos, considerados ainda mais sérios no
caso dos países em desenvolvimento, que tiveram de fazer os ajustes liberalizantes requeridos
pela globalização. As desigualdades entre os países ricos e os em desenvolvimento são
maiores no plano tecnológico (patentes) do que no científico, ainda assim avassaladoras.

381
O foco do quinto e último capítulo é, precisamente, o da concentração espacial da
produção de conhecimento, que o autor acredita esteja tendencialmente em expansão. O autor
reconhece a interdependência tecnológica existente entre os países avançados, mas prefere
acompanhar os que enfatizam que essa “dispersão” se dá, basicamente, dentro da tríade
desenvolvida. Ou seja, as empresas multinacionais podem contribuir para a capacitação
tecnológica dos países menos desenvolvidos, mas isso não chega a ser “um fato transformador
no quadro de enormes desigualdades relativas à produção tecnológica no contexto mundial”
(p. 253). O autor não é totalmente negativo quanto às tendências futuras, mas acredita que
uma reversão da concentração só poderia ocorrer, no caso dos países em desenvolvimento, a
partir de um papel mais ativo dos governos nacionais: o Estado nacional “continua sendo o
ator fundamental na condução desse importante processo de capacitação técnico-científica e
no estabelecimento e na execução de medidas que poderão trazer mudanças mais
significativas no atual mapeamento mundial, regional e nacional da concentração da produção
científica e tecnológica” (p. 264).
As conclusões retomam muitos dos argumentos já expostos acima, com algumas
seleções capciosas. Por exemplo, enfatizar o lado negativo da globalização: apenas porque em
meia centena de países as pessoas são mais pobres do que eram uma década atrás (e a África
responde muito por isto), não quer dizer que a humanidade está mais pobre, ao contrário, pois
apenas a China e a Índia concentravam algumas centenas de milhões de miseráveis extremos
que foram alçados a uma condição de pobreza modesta. A ênfase na concentração,
igualmente, não deveria eludir o fato de que a produção própria dos países em
desenvolvimento também está crescendo. O autor recorre ao já citado economista coreano
Ha-Joon Chang, que acredita que os países desenvolvidos querem impedir os em
desenvolvimento de alcançá-los nos planos industrial, científico ou tecnológico, esquecendo
este, talvez, que o seu próprio país desmente a hipótese. As perspectivas não parecem
animadoras, portanto, e a única maneira de revertê-las, na visão do autor, seria pelo
empreendimento de ações dirigidas pelas autoridades políticas, uma vez que os mercados
seriam incapazes de reverter a tendência à concentração.
Este é o livro e suas premissas, apresentados de maneira relativamente objetiva. Cabe
agora empreender uma avaliação qualitativa em torno dos principais argumentos.

A crítica
O título do livro já representa uma tese: obviamente, a de que a produção do
conhecimento tende a se concentrar. Onde, exatamente? Nos países avançados, claro. A tese
382
do livro, aliás defendida na Universidade de Brasília, deve recolher o assentimento de muitos
colegas do autor. Em geral, acadêmicos das universidades públicas, que são as que
concentram a produção do conhecimento (não no mundo contemporâneo, mas pelo menos no
Brasil), tendem a pensar segundo as linhas convencionais, que dividem o mundo em
produtores e consumidores de conhecimento especializado, com tendências ao monopólio e à
concentração.
Como seria de se esperar, eles também devem partilhar várias outras teses do autor,
que são relativamente tradicionais na academia brasileira, a começar pela própria divisão
entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e a exploração destes últimos pelos
primeiros. Não existe qualquer critério legitimamente racional que possa justificar a separação
entre as duas categorias de países, a não ser certa preguiça mental dos seus formuladores, o
conservadorismo das instituições internacionais, a acomodação política dos próprios países
em desenvolvimento e algumas evidências prima facie que tenderiam, aparentemente, a
justificar essa divisão que já tem mais de meio século.
Entre essas evidências, ademais dos conhecidos indicadores relativos à renda,
disponibilidade de bens e outros critérios de bem-estar, em geral, se situariam aqueles
relativos à produção de ciência e tecnologia em bases propriamente nacionais. Que seja: a
autonomia tecnológica, de fato, representa um poderoso indicador de riqueza e poder; mas as
linhas divisórias entre os países, nesse particular, são bem mais matizadas do que o simples
agrupamento dos membros da ONU em duas ou três categorias de países – havia também o
grupo dos socialistas, que desapareceu de forma melancólica na grande transição ao
capitalismo dos anos 1990 – o que permitiria circunscrever, inclusive porque é apenas
indiretamente que a produção de conhecimento está correlacionada à renda per capita. Em
outros termos, a relação não é causal, mas circunstancial, sendo bem mais dependente da
educação do que da renda.
A divisão entre os vários grupos de países remonta aos primeiros tempos da ONU,
quando se tratava de organizar as agências e comissões setoriais da ONU e suas agendas de
prioridades. Do lado mais importante estavam as responsabilidades pela paz e pela segurança
internacionais, a cargo, em última instância, de um pequeno grupo de países encastelados,
como resultado da Segunda Guerra Mundial, no Conselho de Segurança. Pode-se dizer que os
EUA, a França e o Reino Unido, estes dois últimos dispondo de vastos impérios coloniais,
constituíam, efetivamente, países desenvolvidos. Mas o que dizer da Rússia e da China,
devastadas no conflito, possuindo imensos contingentes populacionais na miséria,
contribuindo minimamente, não apenas para os fluxos globais de comércio, finanças e
383
tecnologia, mas, sobretudo, para o estoque global de saberes acumulados nos planos científico
e tecnológico? Tratou-se de uma decisão eminentemente política e militar como sabemos.
Do outro lado, a agenda da ONU sempre revelou uma preocupação primordial, quase
obsessiva, pode-se dizer, com a questão do desenvolvimento. Cabe lembrar que, nas últimas
seis décadas, a ONU ocupou-se bem mais de desenvolvimento do que de paz e de segurança,
sendo que suas incursões neste terreno foram bem menos felizes, dada a relutância de grandes
e pequenas potências em aceitar intromissão em suas querelas internas ou nos conflitos inter-
estatais nos quais estivessem envolvidas. A ONU tem registro de poucas operações de peace-
making e bem mais de peace-keeping, quando os maiores danos já foram cometidos contra as
populações inocentes. Mas, tampouco sua ação no campo do desenvolvimento foi muito mais
feliz, já que passadas várias décadas ditas de desenvolvimento (e muitos bilhões de dólares
destinados à cooperação oficial – bilateral e multilateral – ao desenvolvimento), poucos países
alteraram radicalmente as condições de partida, e os poucos que o fizeram, não parecem dever
nada à ONU ou aos programas oficiais de ajuda ao desenvolvimento. Aqueles poucos países
que de fato conseguiram fazer o “salto de barreira” – se é que existe algum – entre a condição
anterior de “subdesenvolvidos” para a de “desenvolvidos”, pouco parecem dever à ajuda
externa e muito menos aos programas da ONU. Tanto a Coréia do Sul quanto Cingapura, os
dois exemplos mais conspícuos, devem suas trajetórias em direção à prosperidade mais ao
investimento produtivo – com base na poupança doméstica e na tecnologia importada,
legalmente ou não – do que à ajuda externa, de qualquer tipo.
Daí o ceticismo com que devem ser recebidas essas obras que tendem, com uma
aborrecida repetição, a dividir o mundo entre os produtores de conhecimento – que seriam,
ipso facto, os concentradores – e os demais, em princípio classificados como em
desenvolvimento. O modelo adotado é bem mais evidente nas escolas econômicas ditas
desenvolvimentistas, que continuam a ver o mundo segundo a estrutura centro-periferia. Mas
ele também se reproduz nessas análises sobre a produção científica e tecnológica no plano
mundial, que tendem a considerar como um dado fixo que a produção de conhecimento, tanto
científico quanto prático, isto é, tecnológico, tende a se concentrar cada vez mais num
pequeno grupo de países. A tese é tão auto-induzida quanto sua equivalente no plano do
desenvolvimento econômico: como os países atualmente ricos são os que mais produzem
tecnologia avançada e seus produtos derivados, essa situação só pode ter tido origem na
concentração de recursos, capitais e outros fatores nesses países, em detrimento e com a
“colaboração involuntária” dos demais, que transferiram recursos e excedentes – a famosa

384
“extração de mais-valia” da tradição marxiana – para os países do centro, identificados a
dominadores e exploradores.
Como estes países “centrais” e “produtores” de conhecimento mantêm políticas e
programas de capacitação tecnológica e de qualificação científica, conclui-se, então, que foi
devido a essas políticas e programas que eles conseguiram se desenvolver. Daí à criação de
novos programas e políticas, sob a égide da ONU (e suas agências) ou dos países mais ricos
que prestam cooperação oficial ao desenvolvimento, vai um pequeno passo que é alegremente
dado por todos esses “cooperadores” e “cooperados”, com resultados altamente
insatisfatórios, como já constatado depois de seis décadas de ativa assistência aos países
menos desenvolvidos, especialmente africanos. Nenhum deles conseguiu de fato se
desenvolver, para dizer o mínimo. A mesma situação se reproduz, no plano nacional, em
matéria de políticas macroeconômicas setoriais tendentes a “produzir” o tão aspirado
desenvolvimento: políticas agrícolas, industriais, tecnológicas e muitas outras ainda, como
constatado na experiência latino-americana. Não se pode dizer que o resultado tenha sido
magnífico, muito pelo contrário, ao ponto de um conhecido economista do chamado
“mainstream” – Gustavo Franco, em uma das suas “crônicas da convergência”1 – ter clamado
por uma “política não-industrial”.
O fato é que os países hoje desenvolvidos o são não necessariamente em virtude da
aplicação de políticas industriais e tecnológicas, ou da implementação de programas
governamentais nessas áreas, mas simplesmente em razão de terem conseguido chegar, desde
muito cedo, a uma situação de virtual educação universal, bem mais nos ciclos básico e
intermediário (inclusive técnico-profissional) do que necessariamente no ciclo superior (que
emergiu gradualmente e naturalmente a partir da capacitação prévia e ampla nas fases
precedentes). O processo pode ter variado aqui e ali, mas nenhum deles chegou ao píncaro
sem ter feito antes o dever de casa nas etapas elementares.
Compreende-se, por outro lado, a obsessão com o processo de desenvolvimento –
econômico ou tecnológico – dos países ditos retardatários, já que os últimos dois séculos
(grosso modo a partir da aceleração das duas primeiras revoluções industriais) conheceram o
fenômeno, ao qual os historiadores econômicos dão o nome de “grande divergência”, ou seja,
a defasagem crescente entre os níveis de desenvolvimento dos países avançados
industrialmente, de um lado, e todos os demais, de outro. Como esse é um fato empiricamente
verificável, tende a se considerar essa divergência como algo irrecorrível, inevitável ou

1
Vero o livro de Gustavo Franco, Crônicas da convergência: ensaios sobre temas já não tão
polêmicos (Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, 598 p.).
385
tendencialmente agravante, não colmatável pela simples força dos mercados ou da evolução
natural das sociedades. Mas, como revelado em alguns trabalhos de Jared Diamond – como
em Germes, Armas e Aço, por exemplo – dotados de maior escopo geográfico e abrangência
histórica, não há nada de inevitável nesse curso da história. De fato, o processo de divergência
parece estar sendo revertido sob nossos olhos, operando-se atualmente uma relativa
convergência entre os níveis de desenvolvimento industrial, de renda disponível e de
conhecimento autogerado, pelo menos em relação a alguns dos atores participantes da grande
divergência dos últimos dois ou três séculos, como podem ser, com grande visibilidade, a
China e a Índia.
Esses dois países – juntamente com o Brasil – estão justamente no âmago do terceiro
capítulo deste livro de Fernando Barros, que constitui uma tentativa acadêmica (relativamente
bem sucedida, nesse contexto) para identificar os fatores indutores da “grande divergência”
científica entre “concentradores”, de um lado, e os “penalizados”, de outro. China e Índia,
precisamente, foram os grandes “divergentes” dos séculos XIX e XX, não necessariamente
porque tenham sido dominados, humilhados e expropriados pelos mais ricos – o que também
se passou, reconheçamos – mas porque perderam, em algum momento de suas histórias
respectivas, a capacidade de continuar inovando nos terrenos tecnológico e militar e se
deixaram, assim, dominar e expropriar pelos mais ricos, ou mais capazes militarmente.
Considerar que o processo histórico tenha sido o inverso do que realmente foi – isto é, que os
mais ricos só se tornaram ricos porque “extraíram” riquezas dos explorados – representaria
considerar que basta vontade política para se tornar imperialista, independentemente de uma
“acumulação primitiva” (que sempre é propriamente nacional) em capacitação industrial e
militar.
O fato é que, a partir das duas últimas décadas do século XX esses dois países
convergem, novamente, em direção a padrões de industrialização e a níveis de produção
científica mais próximos dos países da OCDE, bem mais rapidamente do que foi o caso nesse
período de relativa estagnação (ou mesmo retrocesso, para a China) dos dois séculos
anteriores. Um dos problemas da análise conduzida por Fernando Barros em torno do
desempenho científico e tecnológico – em geral muito rudimentar – dos países em
desenvolvimento é que ele parte de uma suposta tendência dos governos desses países, nas
duas últimas décadas, a “se alinhar a programa de ajustamento estrutural e [a] medidas de
estabilização de suas economias” (p. 122), supostamente concordes com ditames dos
mercados globais. Estas reformas se teriam traduzido “numa maior abertura das economias
nacionais [desses países] aos investimentos externos, na eliminação de barreiras
386
protecionistas para toda uma série de produtos manufaturados, na passagem do modelo de
substituição de importações para a promoção das exportações, na expansão do setor privado,
sobretudo de empresas multinacionais”. “Todas essas medidas de liberalização e
privatização”, continua o autor, “implicaram numa redução dos investimentos que o Estado
mantinha para determinados setores como a educação e a ciência e a tecnologia” (p. 122).
O problema desse tipo de análise é que China e Índia, nas duas últimas décadas,
fizeram exatamente isso que ele parece considerar como fatores negativos e que os problemas
dos países mais pobres, com sua inserção econômica internacional e sua dependência
tecnológica, não data, em absoluto, das fases de ajuste estrutural e de abertura externa, mas
são problemas estruturais que atravessam décadas, senão séculos. Como diria Nelson
Rodrigues, o subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos. A mesma falta de
visão histórica abrangente que aparece ao se pretender datar a preeminência econômica,
tecnológica e militar dos países mais ricos a partir de suas eventuais fases imperialistas (já
que os EUA não se conformam ao padrão europeu de dominação direta de outros povos), se
reproduz aqui ao especular que o “esmagamento” das capacidades de pesquisa de países em
desenvolvimento poderia ser devido aos ajustes estruturais, à la Consenso de Washington, da
fase recente.
Que os países mais pobres – notadamente os africanos – continuem a divergir em
relação ao desempenho dos mais avançados, não elimina o fato de que grande parte dos países
emergentes, entre eles o Brasil (malgrado sua medíocre taxa de crescimento econômico nessa
fase, justamente), caminha no sentido de colmatar as diferenças mais gritantes de
desenvolvimento – de renda, de capacitação industrial e de inovação tecnológica – em relação
aos países mais ricos. Falar de uma tendência à concentração do conhecimento no mundo
contemporâneo, como evidenciado no título deste livro, parece, assim, uma contradição nos
termos, e isso a mais de um título. Ainda que as desigualdades sejam um fato, a tendência é
desconcentradora, paradoxalmente.
O paradoxo é apenas aparente, uma vez que os frutos do progresso científico e
tecnológico, a despeito do que afirmam os antiglobalizadores, tendem a se disseminar
rapidamente pelo mundo, acompanhando a deslocalização de empresas e a integração de
mercados propiciados pela terceira onda de globalização capitalista (as duas primeiras tendo
ocorrido, obviamente, na era dos descobrimentos marítimos e na fase de ascensão do
capitalismo industrial que precedeu à belle Époque, ou seja, antes da Primeira Guerra
Mundial). Hoje em dia – e isso é válido também para o mais pobre dos países africanos, à
condição que ele tenha acesso à internet – a maior parte do estoque de conhecimento
387
científico acumulado pela humanidade está livremente disponível a quem tiver acesso às redes
eletrônicas de dados.
Nesse sentido, o mundo nunca foi tão “igualitário” como atualmente – ainda que as
pressões à desigualdade e a certa tendência concentradora sejam processos residuais –, mas
isso não é, necessariamente, uma perversidade dos “produtores de ciência”, e sim o resultado
da incapacidade dos mais pobres em acompanhar o ritmo da pesquisa e do desenvolvimento
científico e tecnológico para fins produtivos. O que sempre distinguiu, basicamente, os países
entre si – sem falar aqui de desenvolvidos e em desenvolvimento – foram os diferenciais de
produtividade do trabalho humano, algo intrinsecamente ligado à capacitação educacional de
cada um, não à sua capacidade “extratora” de recursos de uns pelos outros.
A visão conspiratória transparece da adesão do autor às teses de Ha-Joon Chang
(Chutando a escada), que acha que os países desenvolvidos querem impedir os menos
avançados de alcançá-los e por isso recomendam receitas neoliberais que eles mesmos não
seguiram nos seus processos de industrialização. Os fundamentos metodológicos e empíricos
desse tipo de raciocínio já foram contestados por diversos autores que não deixaram de
apontar suas inconsistências lógicas e históricas, o que não impede sua boa recepção nos
meios acadêmicos opostos ao mainstream economics.
As teses desenvolvimentistas, por sua vez, já receberam muitas ressalvas, mas suas
bases continuam intactas, como revelado no movimento antiglobalizador. O autor não diz,
exatamente, que “um outro mundo científico é possível”. Mas ele talvez gostasse que isso
ocorresse segundo as vias tradicionais do investimento estatal e da coordenação das agências
públicas com o capital privado. Talvez falte um pouco de confiança na capacidade da própria
sociedade se organizar para produzir o saber científico, mas isso começa pela impulsão da
educação de base, não necessariamente pelo pródigo apoio à superestrutura algo elitista da
comunidade científica. Em todo caso, poucos cientistas acadêmicos dos países em
desenvolvimento – como revelado em diversas entrevistas conduzidas pelo autor – parecem
confiar na capacidade de suas indústrias nacionais, assim como dos próprios mercados, de
forma similar ao que sempre ocorreu nos países desenvolvidos, de colmatar as brechas que os
separam destes últimos em matéria de produção e apropriação de conhecimento científico-
tecnológico.
O que parece uma constante histórica, na verdade, não é tanto o aprofundamento da
brecha científica e tecnológica entre os países, mas, aparentemente, as lamúrias sobre a
concentração de saberes nessa área e uma falta de confiança básica na capacidade dos países
ditos periféricos de diminuir a distância na produção de ciência e tecnologia. A crer em
388
muitos autores desses países, as desigualdades, quaisquer que sejam suas razões, devem
continuar no futuro previsível, configurando assim uma situação estrutural. Este resenhista
acredita que a história desmentirá esse tipo de visão pessimista.

Brasília, 25 de novembro de 2006.


Publicada na revista Parcerias Estratégicas
(Brasília: CGEE; n. 23, dezembro de 2006, p. 435-446; ISSN: 1413-9375).

389
Geoestratégia do Atlântico Sul: uma visão do Sul

Hervé Couteau-Bégarie:
Géostratégie de l’Atlantique Sud
(Paris: Presses Universitaires de France, 1983)

Tomando como ponto de partida analítico o conflito global entre as duas grandes
potências, o pensamento geopolítico norte-atlântico tem tendência a negligenciar as
dimensões propriamente regionais da segurança estratégica no Atlântico Sul e os aspectos
propriamente políticos do equilíbrio de forças nessa região. A superestimação da ameaça
soviética no terreno militar e o espantalho de um estrangulamento econômico do Ocidente
constituem os elementos mais característicos dessa geopolítica from above. Uma visão a partir
do Sul tenderia a enfatizar, de sua parte, a multipolarização dos conflitos políticos e militares
na região sul-atlântica e a privilegiar a passagem de um cenário de confrontação geopolítica a
uma estratégia regional de cooperação política e econômica.

Geopolítica do Atlântico Sul: a visão do Norte


A inconsistência das doutrinas baseadas na retaliação maciça produziu, ao longo dos
anos setenta, um gradual retorno às estratégias convencionais de enfrentamento localizado e
limitado e à reavaliação, nesse contexto, do papel reservado às forças navais. Crescia, no
mesmo momento, o poder naval soviético, que passou a ser considerado, pela Aliança
Atlântica, como a “principal ameaça para a segurança dos mares”. Um Grupo de Trabalho do
Conselho Atlântico dedicou-se especialmente ao estudo dessa questão, elaborando, no final da
década, um relatório completo sobre o desafio naval soviético que ainda hoje permanece uma
fonte indispensável de referência.1
Sintomaticamente, pouca atenção é dada nesse trabalho ao Atlântico Sul, listado em
último lugar numa série de cinco possíveis “teatros de operações” para enfrentamentos navais,
ao lado do Atlântico Norte, do Mediterrâneo, do Índico e do Pacífico. Ao criticar essa
negligência dos especialistas em poder marítimo, o estrategista e cientista político francês
Hervé Couteau-Bégarie formula a hipótese, em seu importantíssimo estudo sobre a
Géostratégie de l’Atlantique Sud, de que essa indiferença seja em primeiro lugar devida a
fatores propriamente ideológicos, ou seja, a existência nos dois lados do Atlântico Sul de
1
Paul H. Nitze, Leonard Sullivan, Jr., and the Atlantic Council Working Group on Securing the Seas:
Securing the Seas: the Soviet Naval Challenge and Western Alliance Options (Boulder, Co.: Westview
Press, 1979).
390
países marcados por ditaduras militares ou por um regime racista condenado ao ostracismo
mundial.2 Sua visão, neste particular, parece muito marcada pela voga de estudos sobre os
regimes militares latino-americanos, pois o processo de redemocratização no cone sul já
apresentava uma certa consistência quando seu livro foi publicado em meados de 1985, e não
cessou de aprofundar-se desde então, sem que isso pudesse representar qualquer mudança
significativa no status estratégico-militar do Atlântico Sul para os países ribeirinhos ou para
as superpotências navais.3
O obstáculo ideológico é assim relativamente incongruente, pelo menos deste lado do
Atlântico Sul, o que nos leva aos fatores propriamente geográficos da marginalização do
Atlântico Sul nos planos estratégicos dos principais poderes navais. Couteau-Bégarie não
deixa de considerar a posição “excêntrica e finalmente secundária” do Atlântico Sul em
relação aos demais espaços oceânicos, caráter ainda mais reforçado depois da abertura de
Suez e do canal do Panamá.4
Mas, não é apenas a geografia que condena o Atlântico Sul à sua condição de “quinto
teatro de operações”, mas sobretudo o próprio caráter “periférico” da região, em termos de
sua participação nos grandes fluxos do comércio internacional ou sua importância estratégica
para o equilíbrio do poder mundial. O tráfico marítimo comercial é, nessa região, rarefeito e
secundário, sendo importante sobretudo no sentido sudeste-noroeste entre o Cabo da Boa
Esperança e as Ilhas de Cabo Verde, dispersando-se a partir daí em duas rotas bem
frequentadas, uma em direção ao Mediterrâneo e Europa do Norte, outra em direção à costa
leste dos Estados Unidos. O Atlântico Sul sempre foi, por outro lado, o menos militarizado de
todos os oceanos, permanecendo ainda hoje ao largo dos conflitos entre as grandes potências
navais: foi preciso que entrassem em cena fatores históricos essencialmente contingentes,
derivados de conflitos militares relativamente imprevisíveis, para que frotas armadas
passassem a frequentar suas duas margens, de um lado com a instalação da Fortress
Falklands, de outro com o estacionamento irregular de navios soviéticos em Angola. Ainda

2
Hervé Couteau-Bégarie, Géostratégie de l’Atlantique Sud (Paris: Presses Universitaires de France,
1985); dividido em quatro grandes partes, dedicadas respectivamente ao “quadro geoestratégico do
Atlântico Sul”, à “penetração soviética” nessa região, à “desintegração da defesa ocidental” e aos
esforços tendentes à integração das defesas navais na área, e, finalmente, aos “antagonismos
geopolíticos na América Latina”, o estudo de Couteau-Bégarie representa o ensaio mais bem sucedido,
até agora, de apresentar a visão “norte-atlântica” sobre os problemas da segurança estratégica do
Atlântico Sul. Sem deixar de reconhecer os méritos próprios dessa obra é preciso desde logo apontar
seu comprometimento com o pensamento típico da OTAN sobre essa problemática.
3
Ver a esse propósito Alain Rouquié, L’Etat Militaire en Amérique Latine (Paris: Seuil, 1982), que
parece ser a única fonte de referência de Couteau-Bégarie sobre a questão militar na América Latina.
4
Cf. Couteau-Bégarie, Géostratégie de l’Atlantique Sud, op. cit., p. 13-14.
391
assim, esses dois conflitos devem ser considerados numa perspectiva sobretudo regional,
extraindo sua dinâmica interna de fatores propriamente locais, e não no quadro de um suposto
enfrentamento global entre potências marítimas rivais, o que pode ser confirmado pela
diminuta presença nuclear ostensiva de uma ou outra das duas grandes frotas bélicas da
atualidade.

Desde a publicação do livro pioneiro de Alfred T. Mahan em 1890, The Influence of


Sea Power upon History, e do estudo do já conhecido pensador alemão Karl Haushofer em
1924, Die Geopolitik des Pazifischen Ozeans, o pensamento geopolítico busca integrar os
espaços marítimos a sua conhecida equação “Espaço é Poder”.5 O estudo já referido de Hervé
Couteau-Bégarie é – com a notável exceção do livro editado por Carlos Moneta, Geopolitica
y Politica del Poder en Atlantico Sur6 – o primeiro ensaio de conjunto sobre os problemas
geopolíticos e militares, ou, como ele prefere chamar, sobre a geoestratégia dessa região
marítima. O autor já tinha se notabilizado pela publicação, em 1983, de uma pequena mas
consistente monografia sobre La Puissance Maritime Soviétique,7 tendo prometido a
continuação por meio de um estudo sobre as potências marítimas do Índico e do Pacífico,
além de um trabalho, em colaboração, sobre as “geopolíticas latino-americanas”.
Segundo suas próprias palavras, o objetivo de Géostratégie de l’Atlantique Sud “é o de
estudar o desenvolvimento dos meios militares nessa região do mundo com vistas a identificar
suas implicações para a política das grandes potências. O Atlântico Sul não é portanto
considerado como um sistema fechado, mas como um elemento de um conjunto planetário.
Neste nível de análise, apenas dois países contam: os Estados Unidos e a União Soviética”.8 O
especialista francês, cujo excepcional poder de síntese deve ser prontamente reconhecido,
partilha, neste livro, da tendência do pensamento geopolítico tradicional a pensar as
problemáticas regionais sob o ângulo dos enfrentamentos globais, dominados
inquestionavelmente, em nossa época, pela oposição irredutível entre os EUA e a URSS.

5
Sobre o trabalho pioneiro de Mahan sobre o poder naval, consultar o excelente artigo de Joao Carlos
G. Caminha: “Mahan: Sua Época e suas Ideias”, Política e Estratégia (vol. IV, n. 1, janeiro-março
1986, p. 54-103); para a referência ao livro de Haushofer ver o artigo de Lewis Tambs: “A Influência
da Geopolítica na Formação da Politica Internacional e da Estratégia das Grandes Potências”, Política
e Estratégia (vol. I, n. 1, outubro-dezembro de 1983, p. 73-104), p. 90.
6
Carlos J. Moneta y otros, Geopolitica y Politica del Poder en Atlantico Sur (Buenos Aires: Pleamar,
1983).
7
Hervé Couteau-Bégarie: La Puissance Maritime Soviétique (Paris: Economica-Institut Français des
Relations Internationales, 1983).
8
Cf. Géostratégie de l’Atlantique Sud, p. 15. Para evitar o apelo frequente às notas de rodape, as
referências ao livro de Couteau-Bégarie, extensivamente citadas neste artigo, serão a partir de agora
colocadas entre parênteses ao final de cada transcrição.
392
Ora, como justamente observou Álvaro Vasconcelos em seu artigo no número
inaugural de Estratégia, “se o mundo é cada vez mais acentuadamente bipolar à dimensão da
estratégia global, é também, paradoxalmente, cada vez mais multipolar à dimensão regional”.9
É essa tendência a considerar os problemas da região sul-atlântica sob a ótica da “política de
poder”, e num contexto essencialmente bipolar, que caracteriza o estudo de Couteau-Bégarie.
Se a ênfase nas questões de segurança e de estratégia militar, inclusive naval, constitui a pedra
angular dos estudos geopolíticos, nada diz que essa pretendida “ciência” da projeção
geográfica dos Estados deva ignorar o conceito histórico que Wolfram Eberhard chamou de
world time,10 para congelar as relações de poder entre os Estados sob um mesmo padrão de
comportamento que seria trans-histórico e autoaplicável.
Esse congelamento da História – em contradição talvez com uma geopolítica mais
“esclarecida” – está por exemplo presente na seguinte passagem retro-prospectiva de
Géostratégie: “as antigas potências coloniais praticamente desertaram [do Atlântico Sul] sem
que tenha aparecido um verdadeiro ‘grande’ regional: mesmo o Brasil é apenas um grande
potência em perspectiva [en devenir]. Ele reivindica [sic] uma hegemonia regional, mas ele
ainda não a exerce” (p. 15). Além do “pecado venial” de praticar uma geopolítica
historicamente “congelada”, Couteau-Bégarie parece operar aqui uma transposição da
doutrina do “destino manifesto” no quadro de uma “política de poder” que deveria ser
inexoravelmente assumida pelo Estado brasileiro, em sua atual e futura política externa
regional. A geopolítica não consegue conviver com “vazios de poder”, reais ou supostos: ela
estará sempre à procura de “potências em perspectiva” para preencher seus próprios “vácuos”
teóricos.
Na concepção geoestratégica dos especialistas norte-atlânticos, haveria um “vácuo de
poder” no Atlântico Sul, cujo preenchimento deveria ser assegurado por um arranjo
multilateral calcado no modelo da OTAN ou por garantias estratégicas assumidas
bilateralmente, no quadro de um “relacionamento especial” unindo a principal potência
ocidental e um “grande regional”. A importância do Atlântico Sul é definida de maneira
unilateral na visão estratégica ocidental, de que e exemplo a seguinte passagem do livro de

9
Álvaro Vasconcelos: “Os Desafios do Sul e a Segurança Regional”, Estratégia, Revista de Estudos
Internacionais (n. 1, Primavera 1986, p. 147-170), p. 149. A multipolaridade – política, econômica e
militar – é com efeito o traço mais saliente de nossa época, a despeito mesmo das tentativas de
verticalização operadas por um ou outro dos dois grandes poderes em suas respectivas áreas de
influência.
10
Wolfram Eberhard, Conquerors and Rulers: Social Forces in Medieval China (Leyden: E.J. Brill,
1965), vide “Introduction”, transcrita em Reinhard Bendix (ed.): State and Society: a reader in
comparative political sociology (Berkeley: University of California Press, 1973), p. 16-28.
393
Couteau-Bégarie: “o Atlântico Sul voltou a ser [depois da crise de Suez] uma artéria vital de
comunicações; ele é cercado de países importantes para o Ocidente; enfim, ele poderia
adquirir um lugar na [estratégia de] dissuasão, com o aparecimento de submarinos lança-
mísseis em suas águas” (p. 57; nós sublinhamos). Não parece ocorrer aos propugnadores
dessa visão a possibilidade dos países sul-atlânticos defenderem uma visão própria de seus
interesses nacionais nessa região, garantindo a segurança e a liberdade de navegação através
dos instrumentos do Direito Internacional e não por meios de pactos militares, que aliás soem
constituir a exceção e não a regra na maior parte dos oceanos.
O pensamento geoestratégico identifica no Atlântico Sul todos os elementos da
tetralogia das missões atribuídas às grandes frotas navais: domínio dos mares, projeção de
potência, presença naval e dissuasão estratégica, este último apenas em esboço. “Mesmo se
sua importância não alcança a do Oceano Índico ou a do Pacífico, o Atlântico Sul ocupa um
espaço próprio na estratégia marítima. Mas, até uma data recente, apenas os soviéticos
parecem ter se conscientizado plenamente disso” (p. 71). Couteau-Bégarie partilha aqui da
visão norte-americana do problema, que parece caracterizar-se por um pessimismo exagerado
na construção de cenários de ameaças à segurança marítima e ao aprovisionamento em
matérias-primas para melhor justificar um military building acrescido. Uma consideração
adequada de cada um dos elementos importantes em jogo, de um ponto de vista sul-atlântico,
poderá eventualmente introduzir um pouco mais de equilíbrio nessa visão geoestratégica do
Atlântico Sul.

Presença Militar na Região: Ameaça à Leste


O controle das principais artérias de comunicação constitui a mais importante e
inadiável tarefa das frotas ocidentais. A presença de navios soviéticos na região sul-atlântica
representa, para Couteau-Bégarie, “uma séria ameaça em caso de conflito”; ora, como esses
navios “sont déjá sur place” (p. l9), é preciso pensar no pior: “Deve-se esperar ataques
simultâneos em diversos pontos. A luta pelo domínio dos mares vai ocupar toda a situação
estratégica no Atlântico Sul. Esta é a primeira missão das marinhas da OTAN, a mais
importante, a mais constante, em face da ameaça permanente” (p.64). Dada a “insuficiência
das frotas da OTAN”, deve-se pensar nas possibilidades de uma “defesa ocidental” através da
“cooperação com os países ribeirinhos”, cuja missão, na visão norte-atlântica, deveria ser a de
integrar seus próprios planos estratégicos nos esquemas defensivos concebidos pela primeira
potência ocidental.

394
É preciso, em primeiro lugar, observar que a presença naval soviética no Atlântico
Sul, embora tenha crescido no período recente, está longe de justificar a inquietação
despertada pelos estrategistas ocidentais. A região é, de todas, a mais distante dos pontos de
apoio da frota soviética e a que apresenta o maior número de dificuldades logísticas e
estratégicas, o que tornaria altamente custoso qualquer esforço da URSS se decidisse
interromper ali as rotas de suprimento dos países da OTAN. O próprio Comitê de Defesa da
União da Europa Ocidental reconheceu o fato de ser “o Atlântico Sul a área mais improvável
para uma ameaça naval [soviética] à navegação aliada”.11 Deve-se igualmente lembrar que,
em caso de necessidade, a aliança ocidental conseguiria reunir na região, num espaço
reduzido de tempo, um número razoável de navios e submarinos, com o correspondente apoio
aéreo e logístico. Não se conhece, por fim, qualquer tentativa soviética no sentido de
interromper o fluxo normal das rotas marítimas ocidentais, no Atlântico Sul ou alhures, e é
razoável supor que uma tal iniciativa só seja concebível no quadro de uma séria deterioração
no padrão global do relacionamento bipolar.
Hervé Couteau-Bégarie reconhece que os riscos de um ataque soviético contra as
linhas de comunicação ocidentais nessa região são extremamente reduzidos, “mas, no caso em
que a dissuasão fracassasse, o cenário de ataque ao tráfico ocidental é um dos que comporta o
menor risco de escalada, pois uma batalha no mar não provoca perdas colaterais” (p. 98). Na
verdade, um eventual fracasso da dissuasão comportaria um cenário muito mais complexo
que o imaginado pelo especialista francês, mas, mesmo admitindo-se a hipótese de uma
resposta marítima soviética, o Atlântico Sul é a região que menos se presta a um ataque
diversionista da frota soviética. De toda forma, a Marinha norte-americana, e por extensão a
aliada, parece dispor de todas as condições para deter, mesmo preventivamente, qualquer ação
soviética nessa ou em outra região, mantendo acompanhamento permanente da localização de
navios e submarinos soviéticos em diversos oceanos.

O Abastecimento em Matérias Primas: Temor à Oeste


A ameaça suposta ou real contra as linhas de comunicação marítimas do Ocidente não
é tudo porém, pois “a estratégia [da URSS] comporta um segundo painel, muito mais
ambicioso e cuja eficácia poderia se revelar bem mais temível: a busca do controle das
matérias-primas” (p. 99). A crer no especialista francês, que retoma um dos temas mais

11
Cf Committee on Defence Questions and Armaments of the Assembly of the Western European
Union, European Security and the South Atlantic (WEU, 26 October 1981).
395
conhecidos na literatura sobre o assunto, “Moscou busca atualmente incorporar à sua órbita os
principais países produtores de matérias-primas” (p. 99).
O temor ocidental é tanto maior que a história e a geografia já pareciam ter assegurado
ao Atlântico Norte um seguro monopólio sobre os recursos do Sul. “O geopolítico Haushofer
foi sem dúvida o que melhor observou a verticalidade do sistema internacional. Ele não
deixou de sublinhar a continuidade entre a Europa e a África (a ‘Eurafrica’) e entre as duas
partes do continente americano (a ‘PanAmerica’). Isto é ainda mais verdadeiro na atualidade.
A zona sul-atlântica é, antes de mais nada, um fantástico reservatório de matérias-primas” (p.
64; nós sublinhamos). Mas, o Atlântico Sul não serve apenas ao simples aprovisionamento em
materiais estratégicos para as economias ocidentais: “Os países do Atlântico Norte não
poderiam viver sem sua periferia latino-americana ou africana” (p. 66). “Os países do
hemisfério sul não são apenas produtores de matérias-primas, eles são também uma área de
expansão econômica e cultural sem a qual o mundo norte-atlântico seria asfixiado. (...) Ora, a
conservação da África e da América Latina passa antes de mais nada pelo controle das águas
adjacentes, e em primeiro lugar, do Atlântico Sul” (p. 67; nós sublinhamos). Não parece vir à
mente dos geoestrategistas norte-atlânticos que os países do Sul possam pretender controlar
eles mesmos seus próprios recursos minerais, colocando suas matérias-primas a serviço de
seu próprio desenvolvimento nacional, ou que eles não têm exatamente como um de seus
objetivos estratégicos o de servir de “área de expansão” para os países ocidentais. Ao ler
Couteau-Bégarie fica-se na dúvida sobre se o famoso Lebensraum representou apenas e tão
somente uma passageira deformação nazista da geopolítica ou se ele é um componente
indispensável de suas formulações ideológicas.
A visão alarmista ocidental sobre a dependência do Atlântico Norte em relação às
matérias-primas estratégicas provenientes do Sul originou-se da crise política e econômica
criada com o embargo petrolífero de 1973 e ampliou-se com a intervenção soviética por
ocasião da independência angolana em 1975. Acredita-se, por um lado, que os assim
chamados “minerais estratégicos” da África austral representarão, nos anos 80 e 90, o que o
petróleo representou nos anos 70. Hervé Couteau-Bégarie considera, por outro lado, que a
guerra de Angola marca o tournant decisivo no desenvolvimento da penetração soviética
nessa área africana: “No total, o assunto angolano se apresenta como um deslumbrante
sucesso para a União Soviética” (p. 85). Nenhuma dessas crenças parece encontrar
fundamento na realidade.
O cientista político Bruce Russett, após rigorosa análise quantitativa, conclui, por
exemplo, que a visão alarmista sobre a dependência mineral do Ocidente, ademais de ser
396
baseada em fundações conceituais muito primitivas, não encontra justificativa real nos dados
disponíveis sobre o aprovisionamento estratégico dos principais países desenvolvidos
capitalistas. O risco da dependência de fontes externas para a maior parte das matérias-primas
foi simplesmente exagerado, pelo menos para os Estados Unidos.12 Outro especialista norte-
americano considera que “a dependência de importações da África austral e o problema do
acesso ininterrupto aos suprimentos minerais não representam ameaças críticas ou estratégicas
imediatas para os Estados Unidos e seus aliados. E a ameaça principal não vem da União
Soviética”.13 Para esse autor, uma eventual ameaça nessa área, traduzindo-se por interrupções
caóticas e imprevisíveis na produção ou fornecimento de minerais estratégicos, poderia
ocorrer não em conexão com uma intervenção soviética, mas devido a problemas internos nos
países produtores: a instabilidade doméstica, e não a ameaça soviética, representa assim o
perigo maior.14 De toda forma, “os Estados Unidos poderiam perder uma parte substancial de
suas importações de minerais estratégicos sem que isso significasse qualquer ameaça a sua
segurança nacional”.15 Para o mesmo analista, a medida mais importante para garantir e
aumentar a segurança mineral do Ocidente está no terreno da política externa e não no da
segurança estratégica: “Os Estados Unidos deveriam usar a diplomacia para tentar prevenir
conflitos interestatais nas regiões produtoras de minerais”.16 Outras medidas incluiriam a
estabilização dos preços, a assistência econômica e ajuda bilateral aos fornecedores do
Terceiro Mundo.
A outra vertente da “guerra de recursos” seria dada pela “modificação radical” da
estratégia soviética a partir de 1975: apoiando-se na intervenção angolana, a URSS teria
passado a buscar integrar suas novas “aquisições” num novo “Terceiro Mundo”, seguindo
uma política em dois eixos: a) o país protegido deve operar uma “restruturação idêntica”
segundo o modelo socialista; b) o país protegido deve custar o menos possível e render o
máximo possível.17
Não é contudo o que parece indicar a política “terceiro-mundista” da URSS nos
últimos cinco ou seis anos, e particularmente desde a morte de Brejnev em novembro de
1982. Como demonstra Francis Fukuyama, em artigo na Foreign Affairs, passou a época das
generosas ofertas de ajuda econômica e militar aos “países liberados”: o programa do 27°

12
Bruce Russett: “Dimensions of Resource Dependence: some elements of rigor in concept and policy
analysis”, International Organization (vol. 38, n. 3, Summer 1984, p. 481-499).
13
Michael Shafer: “Mineral Myths”, Foreign Policy (n. 47, Summer 1982, p. 154-171), cf. p. 155.
14
Idem, p. 161.
15
Idem, p. 165.
16
Idem, p. 168.
17
Ver Peter Wiles, The New Communist Third World (London: Croom Helm, 1982).
397
Congresso do PCUS, encerrado em outubro de 1985, consigna apenas a “profunda simpatia”
com as aspirações dos povos que estão se libertando do jugo colonial, uma frase tépida para
indicar os limites da assistência soviética a seus clientes do Terceiro Mundo.18 Os Estados
“orientados para o socialismo” devem, segundo o programa do partido, desenvolver suas
economias “por meio de seus próprios esforços”, sendo-lhes implicitamente recomendado
“aprofundar a cooperação com os países que percorrem a via capitalista”.19 A desilusão com
os resultados obtidos no Terceiro Mundo e a consequente proposta de “desengajamento” são
expressamente reconhecidos no recentemente divulgado manifesto da “oposição clandestina”
ao PCUS, que reproduz na verdade o pensamento oficioso sobre a matéria: “A política
externa soviética tem experimentado sérios reveses em países que foram colônias do
Ocidente. Apesar dos vastos recursos investidos na Indonésia, no Egito, na Argélia e no
Iraque, a URSS não obteve nenhum dividendo político ou econômico”.20
É altamente improvável, portanto, que Moscou disponha de meios para, ou tenha a
intenção efetiva de, conduzir uma “guerra de recursos” contra o Ocidente com base na
intervenção direta em países da África austral: ao contrário de pensar na asfixia econômica do
Ocidente, a URSS procura desesperadamente intensificar suas relações econômicas e os
vínculos de cooperação com a zona capitalista. Uma “guerra de recursos”, aliás, não apenas
iria contra os próprios interesses da URSS, como afetaria igualmente interesses substanciais
de seus aliados socialistas e parceiros “não-alinhados”, além de, mais uma vez, só ser
concebível no contexto de um enfrentamento global entre os dois campos.
Contrariamente, portanto, ao que sugeriu Peter Wiles em sua tese sobre o novo
“Terceiro Mundo” soviético, as tendências indicam que a postura da URSS em relação aos
países em desenvolvimento caminha no sentido de relativizar o ímpeto da mudança
revolucionária em direção ao “socialismo” e de reconhecer o próprio potencial transformador
da “via capitalista”. As evidências são tanto de caráter teórico, como o demonstra uma recente
resenha da literatura soviética a esse respeito,21 quanto de natureza prática, de que são
exemplos diversos discursos e pronunciamentos oficiais soviéticos do período recente, a
começar pelo próprio Gorbachev. Isto não quer dizer que a URSS deixará de aproveitar as

18
Cf. Francis Fukuyama: “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol. 64, n. 4, Spring
1986, p. 715-731), p. 715.
19
Idem, pp. 715-6.
20
Ver “The Secret Dream of a Soviet tomorrow”, The Guardian (August 3, 1986), p. 10. O manifesto
do “Movimento de Renovação Socialista” foi publicado no Brasil pela Folha de São Paulo
(31.08.1986).
21
Ver o excelente artigo-resenha de Elizabeth Kridl Valkenier: “Revolutionary Change in the Third
World: recent soviet assessments”, World Politics (vol. 38, n. 3, April 1986, p. 415-434).
398
oportunidades locais que se abram à sua ação no Terceiro Mundo, e na África austral em
particular, mas suas prioridades atuais são bem diferentes de uma política de “guerra total”
contra o Ocidente.

Da Geoestratégia à Cooperação: Uma Visão do Sul


A segurança, na visão geopolítica, tende a ser alcançada não por meios políticos e
diplomáticos, mas através da dissuasão estratégica. O argumento não deixa de ter sua
legitimidade, tanto teórica quanto prática, e parece justificado em face do conhecido quadro
de enfrentamento bipolar à dimensão global. O problema começa quando, num quadro
regional caracterizado por baixo coeficiente de polarizações dicotômicas e, portanto, com
tendências à multipolarização, se pretende introduzir à força o cenário da dissuasão
estratégica. O Atlântico Sul corre hoje esse risco, menos provavelmente pelo
desenvolvimento de uma dinâmica própria de conflitos interestatais do que pela vontade dos
ideólogos da geoestratégia.
Hervé Couteau-Bégarie reconhece implicitamente a realidade da multipolarização no
Atlântico Sul, quando afirma que “o desenvolvimento das forças navais latino-americanas não
pode ser considerado como uma resposta ao aparecimento de navios soviéticos na região. Ele
decorre mais exatamente de fatores locais que de modificações no equilíbrio planetário de
forças” e, dentre esses fatores, o autor alinha a busca de “prestígio”, a defesa da soberania, o
“efeito induzido” de outras frotas vizinhas ou mesmo “ambições hegemônicas, bastante
nítidas na América Latina, onde se digladiam antagonismos irredutíveis” (p. 17-18). Mas, o
cenário global, segundo ele, é dominado pelo surgimento dos submarinos dotados de mísseis
estratégicos – “o elemento mais estável dos arsenais” – acarretando a militarização ampliada
dos oceanos. Nesse contexto, o Atlântico Sul é inevitavelmente elevado “à categoria de zona
de patrulha para os submarinos estratégicos” (p. 68).
Assim, a despeito da reconhecida multipolarização dos cenários regionais – evidente,
entre outros motivos, pela multiplicação de conflitos locais no Sul – a estratégia da dissuasão
global é transposta para o Atlântico Sul, observando-se mesmo uma tentativa de
verticalização nos espaços geográficos considerados fundamentais pela superpotência
americana. A visão americana da problemática do Atlântico Sul, assumida inteiramente por
Couteau-Bégarie, caracteriza-se tanto pela exacerbação do potencial de conflitos globais
nessa área, como pelo total desconhecimento das aspirações e preocupações específicas dos
países ribeirinhos, considerados como meros instrumentos da defesa dos interesses ocidentais
na região. Condizente com essa visão, cogitou-se no passado – e talvez alguns ainda
399
mantenham a ilusão – não apenas da constituição de uma OTAS alinhada com sua irmã do
Norte, mas também de um delírio geopolítico popularizado sob o nome de “Aliança de todos
os Oceanos”, nova versão da Liga Ateniense, que pretenderia ser uma transposição da OTAN
em escala mundial.22 O alinhamento com os EUA, nesse contexto, é considerado como algo
natural, ou mesmo como uma obrigação dos países do hemisfério sul, assim como a garantia
de acesso ocidental às fontes de recursos estratégicos, em primeiro lugar as matérias-primas
minerais. A estabilidade política dos países da região sul-atlântica é considerada, nessa visão,
como meramente funcional para os objetivos da segurança estratégica do Ocidente, não
possuindo valor próprio em termos de requisito adequado para as metas de desenvolvimento
econômico, bem-estar social e democracia política nos países contemplados.
A segurança econômica e política dos países ribeirinhos do Atlântico Sul não pode, é
certo, dispensar um nível adequado de segurança militar, mas esta, por sua vez, nunca será
completa se persistirem focos de tensão e de agitação decorrentes não de uma ameaça externa
mas das próprias condições de subdesenvolvimento e atraso econômico-social.
Concretamente: a penetração soviética no Atlântico Sul é contraria aos interesses de todos os
países da região, mas enquanto para as duas superpotências a zona sul-atlântico é apenas um
cenário a mais, e necessariamente secundário, no quadro da confrontação global, para as
nações ribeirinhas ela é uma área essencial e prioritária para seus próprios objetivos nacionais
de paz e desenvolvimento.
Aos países do Atlântico Sul interessa a segurança da região não em termos de sua
integração à dissuasão estratégica, mas em termos de mantê-la à margem das tensões
externas, de modo a promover as condições favoráveis ao desenvolvimento da cooperação
horizontal entre os países que a margeiam. Do ponto de vista da segurança, tanto a Carta da
OEA, quanto o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, no âmbito da América
Latina, contêm disposições relativas à segurança dos Estados Membros, aplicáveis dentro ou
fora da área específica coberta por esse último Tratado. Não parece, assim, haver necessidade
de uma organização de defesa específica para garantir a segurança do Atlântico Sul, do ponto
de vista da América Latina. Qualquer tentativa nesse sentido, aliás, daria à totalidade dos
Estados participantes a mera função de coadjuvantes menores em face do grande irmão do
Norte, aproximando portanto a organização proposta mais do modelo do Pacto de Varsóvia do
que do da OTAN. Em todo caso, nada há que impeça a continuidade de empreendimentos
bilaterais de cooperação naval – como as operações Unitas – ou mesmo projetos multilaterais

22
A proposta é de Ray Cline, o conhecido autor de World Power Assessment; cf. “Avaliação do Poder
Mundial”, Política e Estratégia (vol. I, n. 1, Out-Dez 1983, p. 7-19).
400
fora do marco de um tratado específico como ocorreu com a “Ocean Venture 81”. Qualquer
esquema de cooperação entre os países ribeirinhos do Atlântico Sul e os parceiros do Norte –
os EUA ou a OTAN – só poderia concretizar-se adequadamente a partir do reconhecimento
dos interesses específicos dos países da área e considerando seus objetivos nacionais em
primeiro lugar; em uma palavra, cabe aos interesses do Atlântico Norte coordenar-se com os
do Atlântico Sul e não o contrário.
A questão essencial para os países do Atlântico Sul é a do estabelecimento de uma
presença própria, autônoma e independente na região, exatamente para atingir aos objetivos
do desenvolvimento e da cooperação regional. Não pode haver qualquer incompatibilidade
entre esses objetivos e o interesse ocidental na região e é com base neles, portanto, que se
deve buscar as formas de cooperação mais adequadas entre os países do Norte e os do Sul.
Em síntese, as possibilidades de cooperação devem estar subordinadas, como não poderia
deixar de ser, aos interesses políticos, econômicos e estratégicos próprios e permanentes dos
países do Atlântico Sul. À estratégia geopolítica da dissuasão, o Atlântico Sul deve opor a
estratégia política da cooperação e do desenvolvimento.

Brasília, 24-26 de setembro de 1986; revisão: 12 de janeiro de 1987.


Publicado, sob o título “Geopolítica do Atlântico Sul”,
na Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro, vol. XXIX, n. 115-116, 1986/2, p. 131-138);
sob o título “Geoestratégia do Atlântico: uma Visão do Sul”
em Estratégia (Lisboa, 3, Primavera 1987, pp. 117-128)
e, sob o título “Geoestratégia do Atlântico Sul: uma Visão do Sul”,
em Política e Estratégia (São Paulo, vol. V, n. 4, outubro-dezembro 1987, pp. 486-495)

401
A economia mundial em perspectiva histórica

David Hackett Fischer:


The Great Wave: price revolutions and the rhythm of History
(New York: Oxford University Press, 1996, 536 p.)

Charles P. Kindleberger:
World Economic Primacy: 1500 to 1990
(New York: Oxford University Press, 1996, 270 p.)

Harold James:
International Monetary Cooperation since Bretton Woods
(Washington: IMF; New York: Oxford University Press, 1996, 742 p.)

Jacob A. Frenkel e Morris Goldstein (eds.):


International Financial Policy: essays in honor of Jacques J. Polak
(Washington: International Monetary Fund-The Nederlandsche Bank, 1991, 508 p.)

Brad Roberts (ed.):


New Forces in the World Economy
(Cambridge: Massachusetts: The MIT Press, 1996, 438 p.)

Craig N. Murphy:
International Organization and Industrial Change: global governance since 1850
(New York: Oxford University Press, 1994, 338 p.)

Daniel Verdier:
Democracy and International Trade: Britain, France and the United States, 1860-1990
(Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1994, 388 p.)

Todos os livros aqui resenhados tratam, em função de prazos mais ou menos longos,
da história do desenvolvimento econômico capitalista visto na perspectiva da longue durée.
As exceções parciais são o trabalho de James e os ensaios coletados em Frenkel-Goldstein
sobre o primeiro meio século de vida do FMI e do sistema financeiro internacional e, de modo
mais afirmado, a obra coletiva editada por Roberts que, constituindo uma coletânea de artigos
contemporâneos, previamente publicados na revista de relações internacionais da
Universidade de Washington, The Washington Quarterly, refere-se mais bem à “economia
política internacional atual”, discutindo assim questões diversas do novo ordenamento
econômico mundial no contexto dos anos 90.
Os demais trabalhos, contudo, abordam, segundo ênfases temáticas, cortes geográficos
e contextos diacrônicos que lhes são próprios, a emergência original, a afirmação progressiva,
o desenvolvimento e a própria restruturação atual das grandes forças econômicas, políticas,
402
monetárias e sociais que, atuando conjuntamente (ainda que não de forma coordenada),
moldaram esse mesmo ordenamento mundial, a partir da época das grandes descobertas dos
séculos XV-XVI – ou mesmo antes, no caso do livro de Fischer – até a crise e esgotamento do
mundo de Bretton Woods, que simboliza a própria essência do sistema liberal-capitalista no
último meio século. Esses livros condensam o que de melhor o pensamento acadêmico anglo-
saxão produziu recentemente em termos de pesquisa comparada e de síntese de boa qualidade
de história econômica, suscetível de acolher diferentes abordagens metodológicas na
iluminação do itinerário econômico da sociedade capitalista através de vastos períodos de
tempo. Em espírito e motivação, eles também inovam substancialmente em relação àquela
“velha” vertente eclética da história econômica universitária, de inspiração sobretudo
britânica, ao estilo de um Eli Heckscher, de um Robert Tawney, ou da Economic History
Review, na qual um “liberal” como Charles Wilson, de Anglo-Dutch Commerce and Finance
e de Economic History and the Historian, digladiava intelectualmente com os “marxistas”
Maurice Dobb, de Studies in the Development of Capitalism, Edward Thompson, de The
Formation the English Working Class, Christopher Hill de The Century of Revolution e
Reformation to Industrial Revolution ou, ainda, Eric Hobsbawm de Industry and Empire.
Não se trata tanto, nestes livros, de história das “ideias” econômicas – à la Hobson,
Sombart ou Schumpeter –, de análise de processos e tendências “fundacionais” – do tipo
Capitalism and the Decline of Religion de Tawney, ou o seu contrário, Religion and the
Decline of Capitalism de Canon Demant –, menos ainda de grandes “sínteses” de história
econômica mundial – tais como as produzidas por Rostow, Rondo Cameron ou Herman van
der Wee –, ou de ensaios de tipo “estrutural” – a exemplo de Simon Kuznets e Alexander
Gerschenkron – ou, ainda, de “new economic history” – tal como produzida por cliometristas
como Robert Fogel ou institucionalistas como Douglass North – mas, mais propriamente, de
estudos comparados ou singulares sobre desenvolvimentos econômicos globais – os ensaios
de amplo escopo histórico de Fischer e de Kindleberger –, de interpretações inovadoras sobre
a emergência e evolução de organizações internacionais e de políticas nacionais – os livros de
James, de Murphy e de Verdier – e de artigos de acadêmicos e de “policy-makers” sobre os
elementos dinâmicos da economia mundial em transformação – as compilações de Roberts e
de Frenkel-Goldstein. Vejamos cada um deles em particular.

Revoluções nos preços e mudanças sociais


O imenso trabalho de David Fischer, The Great Wave trata, como indica seu subtítulo,
das revoluções nos preços e seu impacto no processo histórico, desde a Idade Média até
403
nossos dias. Ele começa a obra por uma citação de Marc Bloch, retirada de um artigo
publicado nos Annales em 1933, segundo a qual os fenômenos monetários são os mais
sensíveis da economia, podendo atuar não apenas como sintomas, mas também como causas,
algo como um “sismógrafo” que não contente de registrar os movimentos da terra, por vezes
os provocariam. O “ritmo da História”, que figura na segunda parte do subtítulo, é dado pela
concepção de Fischer de que “the history of prices is the history of change”. Suas fontes
primárias são os registros de preços, que são mais abundantes para o estudo da mudança
histórica do que qualquer outro tipo de dado quantitativo. Fischer utiliza-se desses dados para
elaborar uma narrativa dos movimentos de preços na economia ocidental desde o século XI
até a atualidade. É evidente que os preços tenderam a subir nesse período, mas esse aumento
aconteceu em quatro grandes ondas de inflação, que ele chama de revoluções de preços dos
séculos XIII, XVI, XVIII e XX.
Essas quatro grandes ondas tiveram características comuns: todas elas apresentaram os
mesmos movimentos de preços relativos, queda dos salários reais, altas taxas de retorno do
capital e disparidades crescentes entre ricos e pobres. Elas também foram relativamente
similares, estruturalmente falando, no que se refere às mudanças: começaram
silenciosamente, suscitaram uma crescente instabilidade e terminaram em crises dramáticas
que combinaram desordens sociais, transtornos políticos, colapsos econômicos e contrações
demográficas. Essas crises aconteceram nos séculos XIV, XVII e no final do XVIII e elas
foram seguidas por longos períodos de relativo equilíbrio: o Renascimento, o Iluminismo e a
era vitoriana. Em todos esses períodos, os preços caíram e se estabilizaram, os salários
aumentaram e as desigualdades diminuíram. Neste século, uma nova onda de aumento de
preços teve início, mas o padrão não parece estar se repetindo da mesma forma.
Em cada um desses movimentos de longa duração, Fischer analisa as vinculações
entre tendências econômicas, processos sociais, eventos políticos e correntes culturais. Ele
descobre que longos períodos de equilíbrio de preços são caracterizados por uma crença na
ordem, harmonia, progresso e o predomínio da razão. Inversamente, as revoluções nos preços
criam culturas do desespero em suas etapas intermediária e final. Fischer examina não só a
causa desses movimentos e discute os modelos que foram usados para explicá-los, mas
também tenta considerar suas consequências. Uma de suas descobertas mais importantes é a
estrita correlação entre a revolução nos preços e o crescimento na desigualdade, crime
violento, ruptura familiar, drogas e bebidas. Períodos de estabilidade e de equilíbrio nos
preços tendem a facilitar os processos opostos: taxas declinantes de delinquência, alta coesão
familiar e menor uso de drogas e bebidas, além, é claro, de maior igualdade. Atualmente,
404
estaríamos vivendo a fase final de uma grande onda que teria ganho impulso a partir dos anos
1890. Os problemas de nossa época são típicos das grandes ondas do passado.
Fischer não tenta prever o que vai acontecer proximamente, observando que a
“incerteza acerca de nosso futuro é uma fato inexorável de nossa condição”. Ele, na verdade,
termina com uma análise sobre para onde poderíamos nos dirigir a partir daqui, e quais
poderiam ser nossas escolhas agora. “Between Past and Future” refere-se aos que preferem
deixar o destino final às forças de mercado, mas isso acontece apenas depois que crises
maiores provocam um certo grau de sofrimento humano. Na história econômica, “equilibrium
is the exception, rather than the rule”, ademais do fato de que, em nossa época “there are no
truly markets any more”. Numa de suas mais controvertidas opiniões, Fischer acredita que “o
livre mercado no século XX é uma ficção econômica, assim como o estado da natureza o foi
na teoria política do século XVIII” (p. 252). A questão real não seria a de saber se deve haver
intervenção no mercado, mas que tipo de interferência se deveria fazer, quem deve fazê-la e
com que extensão. O problema, nesse sentido, estaria não com a inflação enquanto tal, mas
com seus efeitos desestabilizadores.
Numa discussão que poderia ser aplicada ao processo de estabilização no Brasil,
Fischer diz que “o registro histórico dos últimos 800 anos mostra que as pessoas comuns
estão certas ao temer a inflação, uma vez que elas têm sido suas vítimas – muito mais que as
elites”. Mas, “as recentes políticas anti-inflacionárias também causaram prejuízos, de diversos
modos” (p. 253). O que fazer? Deve-se em primeiro lugar pensar historicamente, já que a
história não trata apenas do passado, mas da mudança e da continuidade: o maior erro do
planejamento econômico é o de impor um pensamento de curto prazo a problemas de longo
prazo. Assim como os generais estão sempre lutando a última batalha, os economistas tendem
a evitar que a última crise aconteça novamente: mas, a próxima crise é sempre diferente. Em
segundo lugar, há necessidade de mais informação sobre tendências de longo prazo e
contextos mais amplos. O aumento do conhecimento, em terceiro lugar, deve ajudar-nos a
instituir mecanismos mais eficazes para administrar a economia moderna, sobretudo os
instrumentos monetários, mas também a política fiscal e os estoques de mercadorias, sem
esquecer um sistema preventivo (stand-by) de monitoramento de preços: o dogma de que
“price controls don’t work” é desmentido por exemplos nos próprios Estados Unidos. Em
quarto lugar, deve-se atuar no campo das políticas sociais, uma vez que o crescimento das
desigualdades diminui o crescimento econômico, perturba a ordem política e causa graves
danos ao tecido social: não se trata de distribuir recursos diretamente, mas de fazer
investimentos educacionais e de estabelecer programas habitacionais, de saúde e de
405
seguridade social vinculados ao esforço de poupança e de acumulação privada. Por fim, deve-
se considerar tais projetos como um esforço coletivo e não como objetivos individuais.
A parte de texto ocupa apenas 255 páginas do número total, já que as 280 adicionais
são ocupadas por 58 páginas distribuídas em 15 apêndices (sendo o último uma interessante
discussão metodológica sobre a economia e a história), 44 de notas detalhadas e nada menos
que 140 páginas de bibliografia, dividida em fontes primárias, obras secundárias (onde
comparece um trabalho da historiadora greco-baiana Katia Mattoso sobre preços na Bahia em
1798), além de material sobre períodos específicos. Fischer declara, num reconhecimento
final, sua dívida acadêmica para com Frederic Chapin Lane, o grande historiador econômico
norte-americano, companheiro de Fernand Braudel nos estudos sobre a economia de Veneza
no Quattrocento, assim como em relação a Henry Phelps-Brown, o britânico que
revolucionou o estudo dos preços.

Ascensão e queda das economias nacionais no contexto mundial


O livro de Charles P. Kindleberger, World Economic Primacy: 1500 to 1990,
inscreve-se num projeto mais amplo do Instituto de Estudos Europeus e Internacionais de
Luxemburgo sobre a “vitalidade das nações”, isto é, a velha questão da “ascensão e queda”
dos países centrais, tema que já tinha feito a fortuna acadêmica, stricto e lato sensi, de Paul
Kennedy e suscitado a emergência de um outro tipo de indústria, a do “declinismo” das
grandes potências. Em dois capítulos iniciais, o emérito Professor do MIT e conhecido
economista nas áreas do comércio internacional e da história econômica europeia apresenta
sua metodologia sobre o que ele chama de “ciclo nacional” e descreve as características
básicas das “primazias sucessivas” de oito formações econômico-sociais que, em momentos
diversos da história, afirmaram sobre outros países ou culturas sua superioridade econômica
ou tecnológica e candidataram-se, ainda que por breves momentos, a uma situação de relativa
(ou absoluta, em certos casos) dominação econômica e hegemonia política.
O processo descrito no capítulo inicial – uma curva em S alongado, de começo lento,
aceleração, queda na taxa de crescimento, expansão sustentada e depois declínio, geralmente
relativo, mas às vezes absoluto, em termos de regiões ou setores – é pensado para aplicar-se
mais aos países desenvolvidos, que apresentam aquilo que ele chama de social capability. O
modelo, que não pode ser exclusivamente econômico (mas deve-se reconhecer a realidade da
competição), não explica exatamente porque países individuais alcançam e ultrapassam os
demais em termos de primazia econômica ou porque alguns antes no topo conhecem um
declínio absoluto: mas, ainda que, como disse Fernand Braudel, não existe um “modelo de
406
decadência”, não se pode deixar de notar que vários concorrentes conseguiram ultrapassar a
renda per capita da Grã-Bretanha neste século. Os recursos próprios contam menos no sucesso
de um país do que a capacidade de inovar no momento certo, a abertura para o exterior
(comércio, migração), a manutenção da produtividade, financiamento adequado e, por que
não?, mentalités, isto é, valores sociais.
A questão da primazia econômica e da busca de hegemons ou de novos centros – no
sentido braudeliano – pode ser historicamente enganosa: seria incorreto deduzir da dominação
britânica no século XIX e da americana neste, que o mundo tenha necessariamente de contar
com uma potência dominante no próximo século, seja ela o Japão ou qualquer outra. Mas, o
meio circulante usado nas trocas internacionais pode ser indicativo de uma certa dominance: o
comércio mediterrâneo já passou por fases de ducado veneziano, florim florentino, maravedi
espanhol, rixdollar holandês, libra britânica e dólar americano, num caso típico de
darwinismo de mercado. Alguma agressividade política ou militar pode também se
manifestar, como na demanda por um “lugar ao sol” para a Alemanha imperial ou a atitude
desafiadora do Japão militarista, mas, mesmo tendo acumulado muita riqueza desde suas
derrotas na Segunda Guerra, nenhum desses países, ou suas moedas nacionais, parecem pertos
de desafiar a posição hoje dominante dos Estados Unidos e do dólar. As duas nações
abandonaram aliás uma concepção territorial-militar do poder em favor do que Rosecrance
chamou de “Estados comerciais”.
Em todo caso, é difícil estabelecer uma teoria abrangente da primazia econômica sem
verificar os elementos históricos à disposição. Kindleberger começa as análises nacionais
pelas cidades-estado italianas dos séculos XIV a XVI (Veneza, Florença, Gênova e Milão),
analisando, particularmente em relação aos aspectos inovadores do comércio marítimo e das
finanças, as razões de seu sucesso e declínio, este explicável não apenas em termos do
esgotamento dos recursos naturais (madeira) ou de concorrência de holandeses e britânicos
(que passaram a imitar grosseiramente os produtos de luxo venezianos, ampliando no entanto
o círculo de consumidores), mas igualmente em função da deterioração dos negócios própria
às situações estabelecidas de monopólio e, portanto, tendencialmente conservadoras ou
criadoras de maus hábitos (má administração bancária, consumo conspícuo, tendência ao
emprego público). Como para comprovar que os problemas da globalização e da “cláusula
social” não constituem, a rigor, nenhuma novidade histórica, Kindleberger cita o caso de
mestres venezianos que emigraram com segredos industriais para produzir tecidos em áreas
de salários mais baixos.

407
Mas, pode-se considerar também o desafio das especiarias trazidas, a partir de um
certo momento, pelos desbravadores portugueses que, junto com os vizinhos espanhóis,
constituem o segundo caso de ascensão e declínio estudado no livro: a primeira “conferência
de Ialta”, finalmente, é representada pela divisão do mundo entre portugueses e espanhóis
pelo Papa Alexandre VI em 1493 e pelo tratado de Tordesilhas do ano seguinte. Portugal
começou a ficar rico ao estender suas atividades além de seus próprios horizontes,
combinando golpes de audácia e monopólios lucrativos (escravos da África); mas, o sucesso
foi efêmero e, depois da breve recuperação trazida pelo ouro das minas gerais, Portugal
decaiu em face da concorrência, de novo, de holandeses e britânicos. O declínio da Espanha
foi talvez mais político do que econômico, uma vez que, a despeito da riqueza trazida pela
conquista e exploração brutal do Novo Mundo, o país nunca foi de fato economicamente
desenvolvido. Três grandes historiadores (Elliot, Hamilton e Vicens Vives) escreveram livros
de títulos semelhantes, o “declínio da Espanha”, o que se explica pela combinação de fatores
detectados por esse estudiosos: incapacidade de competir no mar, temperamento guerreiro,
desprezo pelo trabalho e preocupação com o status de hidalgo, hostilização dos judeus e
mouros, Inquisição, restrições às corporações de ofícios (úteis em determinadas
circunstâncias), distância social entre os proprietários latifundistas e os agricultores, precoce
êxodo rural. Os precursores dos economistas, os arbitristas, já denunciavam em pleno século
XVII a primogenitura, a mão-morta, a vagabundagem, o desflorestamento, a redundância de
eclesiásticos, as restrições ao trabalho manual, o caos monetário e a taxação opressiva,
propondo em seu lugar a educação técnica, a imigração de artesãos, a estabilidade monetária,
a extensão da irrigação e a melhoria dos canais internos. Hamilton diz que a História mostra
poucos exemplos de tão hábeis diagnósticos e um tal desprezo por tão sábios conselhos.
Os Países-Baixos representam justamente a passagem histórica da predominância
econômica da Europa mediterrânea e atlântica – para não dizer católica – para a Europa do
norte, industriosa e comerciante, dotada da famosa ética protestante que animou mais de um
debate sociológico. A unificação do comércio marítimo mundial – mediterrâneo, hanseático,
báltico, atlântico e extra-europeu – foi feita em grande medida pelos mercadores de Bruges,
de Antuérpia e pelos holandeses que dominavam as províncias unidas dos Países-Baixos
setentrionais: o “milagre econômico” do séculos XVI e XVII e o “desconforto da riqueza” daí
decorrente têm muito a ver com a “acumulação primitiva” permitida por um tipo de
mercantilismo extremamente ativo no comércio de mercadorias e nas finanças (alta taxa de
poupança interna e juros baixos), ademais da construção naval e da oferta de produtos da
indústria doméstica. O crescimento e a riqueza têm a ver com trabalho, capital e tecnologia
408
(que podem ser importados, como foi o caso dos judeus ibéricos e dos huguenotes franceses),
mais a capacitação social própria, que depende da educação: muitos anos antes do
protestantismo, os holandeses já valorizavam a boa formação do povo.
Os holandeses foram pioneiros nos mercados de “futuros”, de “opções”, títulos, bônus
governamentais e na especulação com produtos de base, demonstrando mais uma vez que
nossa época não inovou em nada. Em pleno mercantilismo, os Estados Gerais permitiam a
livre circulação de metais preciosos, escapando do “complexo de Midas” que afetava vários
outros países. Persiste um debate entre “braudelianos” e outros historiadores (Jonathan Israel,
por exemplo) sobre as fontes principais dessa riqueza, se o comércio de commodities ou de
“bens de luxo”, mas o fato é que a primazia holandesa no comércio mundial foi praticamente
total entre 1585 a 1740, cedendo terreno depois a outros competidores em virtude de vários
golpes decisivos: o Navigation Act britânico de 1651, três guerras anglo-holandesas e a guerra
tarifária contra a França colbertista, culminando com a invasão francesa da Holanda em 1672.
Depois da ascensão de Guilherme de Orange ao trono britânico, em 1688, banqueiros
holandeses instalaram-se em Londres, precipitando talvez a transferência de hegemonia
financeira e comercial. A concorrência estrangeira e a Revolução francesa foram golpes fatais
à economia da região, que já vinha declinando por uma série de outras razões internas.
A França é, para Kindleberger, o “perpetual challenger”, querendo ele dizer com isso
que ela nunca exerceu um predomínio econômico mundial, mas tampouco experimentou uma
decadência visível em relação ao resto da Europa. Para Braudel, a França sempre foi
despojada dos principais elementos para tornar-se um centro econômico dominante: produção
abundante, crédito disponível, negociantes empreendedores e volume de comércio marítimo.
Poderíamos completar que, em contrapartida, ela sempre teve uma abundância de frondes,
jacqueries e revoluções sociais: mesmo um historiador marxista como Hobsbawm reconhece
o relativo atraso do capitalismo francês, a despeito da révolution bourgeoise e de uma
“tecnocracia” saint-simoniana. No terreno econômico, precisamente, pode-se observar que o
Bank of England foi fundado em 1694, mas apenas em 1800 Napoleão instituía a Banque de
France. As “grandes écoles”, cartesianas, dedutivas (e arrogantes), que traziam prestígio e
gloire à burocracia pública, foram estimuladas, mas não necessariamente a pragmática
educação de base ou o aprendizado das técnicas para as grandes massas. Na França se falava
de ferrovias, na Inglaterra elas eram fabricadas.
Numa seção apropriadamente intitulada “Mentalités”, Kindleberger demonstra como,
a despeito da Revolução, as atitudes francesas sempre foram condicionadas por valores
aristocráticos do ancien régime: “le commerce n’est pas noble”. Seus empreendimentos
409
coloniais, nas Américas, na Ásia ou na África – não cobertos nesta análise – foram mais
fontes de despesas (ainda que de prestígio), do que de riqueza real, como constatou Jacques
Marseille em Empire colonial et capitalisme français: histoire d’un divorce (1984).
Finalmente, a retomada do crescimento no pós-guerra foi mais devida ao choque da ocupação
e ao pavor de uma Alemanha reconstruída, o que facilitou a integração europeia, do que às
virtudes intrínsecas da planification e do dirigismo estatal. Mas, uma vez estancado o impulso
das trente glorieuses, a França volta a patinar na resistência corporativa e na indefinição
política.
A Grã-Bretanha é, evidentemente, o caso clássico do ciclo nacional de Kindleberger,
de rápido crescimento inicial no comércio, indústria e finanças, alcançando a primazia
econômica mundial e declinando lentamente depois. A descrição habitual começa com a
Revolução industrial de 1760 a 1830, a adoção do livre comércio em 1846, o apogeu
tecnológico na Grande Exposição do Palácio de Cristal em 1851, sendo que a fase industrial
foi precedida pela ascensão do comércio nos séculos XVII e XVIII, seguido de um século de
dominação nas finanças e o gold standard, ao passo que a decadência foi acelerada pelas duas
guerras mundiais. Historiadores revisionistas podem até contestar um ou outro aspecto desse
itinerário clássico, mas o fato é que a Grã-Bretanha forneceu matéria-prima para várias
análises comparadas, inclusive para o próprio Marx, preocupado com o atraso da Alemanha
(de te fabula narratur), ou Rostow e sua tipologia das etapas de crescimento econômico.
Competição da Alemanha, difusão tecnológica, reversão para a proteção tarifária, passagem
da liderança financeira de Londres para Nova York, desvinculação monetária do ouro, ajudam
a explicar o declínio experimentado em todo o século XX, a ponto de se poder dizer:
“Goodbye, Great Britain”.
A Alemanha, que não se encaixa bem no modelo do ciclo nacional proposto, é um late
comer que, tendo atuado como aprendiz durante a primeira metade do século XIX,
ultrapassou a Grã-Bretanha antes de seu final, para retomar sua importância com o
Wirtschaftswunder do pós-guerra e a liderança subsequente do processo de integração
europeia. Mas, apesar de seu Sonderweg, a Alemanha também enfrenta problemas de relativo
declínio na atualidade, como revelado nos planos do Chanceler Kohl para uma reforma
completa do esgotado sistema de “economia social”. Em todo caso, depois de duas tentativas
frustradas, “ela não parece buscar a primazia econômica e política, contente de seguir a
liderança americana mesmo se esta é vista como esvaindo-se” (p. 168). Kindleberger acredita
que sua entrada no Conselho de Segurança da ONU, junto com a do Japão parece ser uma
simples questão de tempo.
410
Em dois séculos de vida independente, o ciclo nacional americano passou de um
pequeno país isolado a uma nação líder na economia mundial, tendo inovado na produção de
massa já na passagem do século e contribuído para a liberalização das finanças e do comércio
internacional no segundo pós-guerra. Um quarto de século de “Golden Age” e de hegemonia
industrial deu lugar a relativo declínio nos anos 80, mas a vitória na Guerra Fria confirmou a
liderança mundial dos Estados Unidos. A despeito da existência de “moedas sintéticas”
(Direitos Especiais de Saque, ECU na Europa), do término do padrão de Bretton Woods em
1971 e sem que a Alemanha ou o Japão favoreçam o uso externo indiscriminado de suas
moedas, o dólar permanece, faute de mieux, a moeda de referência do sistema financeiro
internacional. Mesmo numa era de “diminished expectations” (Krugman), o argumento do
declínio é certamente exagerado e os EUA continuarão a exercer a primazia econômica
mundial pelo futuro previsível, independentemente das (ou graças às) crises que poderão
apresentar-se nos mercados cambiais e financeiros.
Outra parece ser a situação do Japão, o país que mais cresceu neste século, mas que
começou a padecer de certos males que podem dificultar seu movimento de “irresistível”
ascensão para a liderança mundial. Partilhando certas características da Grã-Bretanha, a ilha
alcançou e de certa forma superou a tecnologia ocidental, tornando-se uma potência
exportadora (mas de modo nenhum livre-cambista), primeiro em produtos labour-, depois
capital-intensive. O Japão aderiu ao GATT e à OCDE não porque acreditasse nos princípios
do livre mercado, mas porque queria ser aceito como membro pleno da comunidade
internacional. Mas, depois de anos de sucesso, o modelo japonês também apresenta fissuras,
tornando mais improvável a substituição da Pax Americana por uma hipotética Pax Niponica.
A evolução normal do ciclo nacional de Kindleberger é do comércio para a indústria e
daí para as finanças, mas os agentes econômicos passam de risk-takers para a condição de
rentiers, voltados mais para o consumo do que para a poupança ou inovação. As causas do
declínio podem ser externas — guerra, extensão indevida, competição aguda — ou internas
— esclerose do sistema produtivo, resistência às mudanças — e não é certo que o processo
possa ser alterado por políticas nacionais ou pela vontade apenas. A mudança de um hegemon
nem sempre ocorre de imediato e a substituição de um líder econômico por outro pode exigir
um longo interregnum: os Estados Unidos já eram a economia dominante em princípios do
século, mas foi preciso esperar o final da Segunda Guerra para que eles passassem a exercer a
liderança mundial. Talvez um G-7 ampliado possa representar, coletiva e cooperativamente,
um centro econômico dominante nesta nova fase do sistema mundial de poderes, mas sua
atual representatividade é questionável, segundo Kindleberger. So what next?, ele pergunta no
411
final, para responder em seguida: muddle, isto é, confusão e desordem. Haverá algum
regionalismo e alguma cooperação entre as grandes potências, e a persistência de conflitos de
baixa intensidade. No momento oportuno, algum país emergirá da confusão como uma nova
economia dominante: os EUA novamente, o Japão, a União Europeia, ou algum dark horse
como a Austrália, o Brasil ou a China? “Who knows? Not I”.

O não-sistema financeiro internacional: desenvolvimento e dilemas atuais


Os dois livros que tratam de questões monetárias e financeiras e a coletânea sobre as
novas forças na economia mundial são desiguais em conteúdo e objetivos: International
Monetary Cooperation since Bretton Woods, de Harold James, foi encomendado pelo próprio
FMI como parte das comemorações do cinquentenário das instituições de Bretton Woods,
mas não constitui, por assim dizer, uma “história oficial” do Fundo, já que o autor trabalhou
em completa independência e autonomia intelectual. Os artigos recompilados por Brad
Roberts da The Washington Quarterly representam uma contribuição de acadêmicos e
responsáveis governamentais para a “boa administração” do mundo nos conturbados anos 90.
Já o livro editado por Frenkel e Goldstein, International Financial Policy, ao coletar ensaios
apresentados numa conferência em homenagem a um de seus mais famosos diretores, o
holandês Jacques Polak, conserva a saudável anarquia de todo Festschrift: dezenove
contribuições variadas por 22 autores, entre os quais está o brasileiro Alexander Kafka com
um interessante artigo sobre o papel do FMI depois do colapso do sistema de paridades fixas.
Seria impossível resenhar tal tipo de livro, que cobre temas tão diversos como a teoria
quantitativa da moeda e a integração monetária da Europa, sem esquecer a supervisão
bancária e a política de condicionalidade do Fundo; deve-se no entanto recomendá-lo como
uma contribuição útil à compreensão das preocupações principais que mobilizam a atenção do
staff do Fundo e ao próprio modo de funcionamento dessa instituição agora de meia idade.
O livro monográfico, como indica o seu título, não é tanto sobre o FMI,
exclusivamente, mas sobre o sistema monetário internacional desde 1944, na verdade sobre o
não-sistema a partir de 1971. Ao utilizar-se dos arquivos do Fundo e de entrevistas com todo
o seu staff, mas conservando plena liberdade de julgamento em relação a uma instituição
muitas vezes considerada secreta ou pouco comunicativa, James consegue apresentar uma
descrição objetiva sobre seu funcionamento desde a famosa conferência de 1944 até a crise do
México e o reingresso dos trânsfugas socialistas em seu seio. Nesse ponto ele se distingue de
volumes precedentes editados por “historiadores” do próprio FMI, que fizeram mais uma
“inside history”, ao tratar mais das atividades do Comitê Executivo ou das Assembleias de
412
Governadores, do que dos efeitos das políticas monetárias preconizadas na economia
mundial.
O Professor de História da Universidade de Princeton não deixa de tocar em questões
controversas, combinando justamente o itinerário do FMI com o desenvolvimento da
economia internacional no último meio século. Fundado em plena era de cooperação na
Segunda Guerra Mundial, o FMI estava pronto a acomodar as diferenças estruturais entre
economias socialistas e capitalistas, mas foi de certa forma condenado a atuar apenas num
campo depois da divisão irremediável do pós-guerra. Ele na verdade teve um papel restrito na
fase de estabilidade cambial que durou até 1971, quando os EUA abandonaram o sistema de
paridades fixas; no período subsequente, de não-sistema financeiro, o FMI tentou, sem
exatamente conseguir, conviver com a anarquia monetária criada pela flutuação das moedas.
Seu papel de “vilão”, talvez ignorado durante os anos 50 e 60, deveu-se, na fase de grandes
desajustes que se seguiram ao choque de 1971, aos dois choques do petróleo (1973 e 1979) e
à crise da dívida em 1982, às famosas condicionalidades impostas aos países que buscaram
socorrer-se de algumas linhas de crédito para paliar déficits crescentes em suas balanças de
pagamentos sem necessariamente estar dispostos a enfrentar todas as consequências de
penosas, mas inevitáveis, políticas de ajuste das contas públicas.
A história começa bem antes de Bretton Woods, atravessa todas as etapas de
funcionamento e de reformas do FMI, segue as políticas nacionais dos grandes países
membros, analisa os grandes problemas da economia mundial do pós-guerra — inflação,
reservas internacionais, liberalização comercial, crise de crescimento, unilateralismo — e
avalia o novo papel da instituição numa fase de mercados globais de capitais e de volatilidade
financeira. No tratamento da crise da dívida, há um subcapítulo sobre o Brasil, no qual são
abordados os problemas de recomposição de créditos por parte dos bancos internacionais e a
própria permissividade monetária do Governo brasileiro nessa época, a famosa moratória de
1987 e as tentativas subsequentes de renegociação até o acordo de 1994. Casos como o do
Brasil ou do México, assim como a reinserção dos ex-socialistas na economia mundial
revelam como essas mudanças conceituais produziram um novo consenso sobre as políticas
macroeconômicas adequadas, que é o sentido da “good governance”: do chamado “consenso
de Washington” passou-se hoje a um consenso verdadeiramente global, e o FMI situa-se,
junto com o G-7, no centro dessa nova concepção de prosperidade econômica.
Brad Roberts capturou, em New Forces in the World Economy, os melhores artigos
publicados na revista do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade de
Washington, entre 1993 e 1996, sobre os dilemas dos EUA sobre como enfrentar os
413
problemas recorrentes dos anos 90 numa era de incertezas: globalismo-regionalismo,
volatilidade-controle dos fluxos mundiais de capitais, multilateralismo-unilateralismo,
liberalização-competitividade, comércio e meio ambiente, investimentos e cláusula social,
convergência no Norte e conflito no Sul, relações com a Rússia, a China e as novas
economias emergentes, enfim coordenação no G-7 ou isolacionismo por parte da grande
potência remanescente. A despeito do perfil norte-americano dos autores, eles logram discutir
com bastante profundidade e pertinência as grandes questões da “economia política
internacional” neste final de século: de especial interesse são as seções reservadas aos
problemas da economia global, das novas orientações do comércio e dos investimentos, dos
mercados financeiros e da agenda da “governabilidade”.

A estrutura normativa e institucional das relações econômicas internacionais


Os trabalhos de Craig Murphy e de Daniel Verdier, respectivamente sobre as
organizações internacionais e as políticas comerciais nacionais, tocam no próprio âmago da
construção da ordem econômica internacional, a partir da segunda metade do século XIX até
a atual fase de restruturação dessa mesma ordem. Embora centrado, o primeiro, na
coordenação de esforços entre os países desenvolvidos para impulsionar as forças do
capitalismo industrial e, o segundo, na limitação tentativa dessas mesmas forças externas
representadas pelo industrialismo e pelo liberalismo comercial por parte dos movimentos
políticos nacionais e de grupos de interesse setoriais, ambos estudos contribuem, em função
do vasto espectro histórico coberto e da perspectiva cross-national neles adotada, para uma
compreensão mais acurada sobre como a soberania política absoluta dos Estados, mesmo
desenvolvidos, vem sendo continuamente erodida pela construção de uma ordem econômica
impessoal que, desde a paz de Viena e a expansão subsequente da “ordem burguesa”, afeta
cada vez mais a vida diária dos cidadãos.
International Organization and Industrial Change é, em parte, uma história das
organizações intergovernamentais de cunho cooperativo nos terrenos da regulação industrial
(patentes, normas técnicas, pesos e medidas), dos transportes e comunicações (uniões
telegráfica, postal, de ferrovias), do comércio (união para a publicação das tarifas, direito
comercial privado, estatísticas comerciais), das questões sociais (Liga contra o trabalho
escravo, Oficina internacional do trabalho), jurídicas (corte permanente de arbitragem), de
higiene pública ou de direitos humanos ou da educação e pesquisa (sismologia, geodésica,
cartografia). As uniões ou organizações concebidas grosso modo durante a segunda
Revolução industrial – a primeira foi a União Telegráfica Internacional, em 1865 –
414
prosperaram enormemente desde então, contribuindo decididamente para impulsionar a
global governance a partir de meados do século passado até o surgimento da mais jovem
dentre elas: a Organização Mundial do Comércio, que começou a funcionar em 1995.
Suas sedes ficam, na maior parte dos casos, na Europa, simplesmente porque, como
diz Murphy, “European states controlled much of the world” (p. 47). Ao lado dessas muitas
entidades intergovernamentais, deve-se mencionar as centenas de conferências europeias ou
mundiais, de fato um verdadeiro sistema global de consulta e coordenação entre
representantes de governos e de entidades associativas de empresários, que estabelecem a
agenda econômica mundial. Se disse que o livro é em parte uma história dessas instituições
porque ele também se dedica a interpretar, segundo um modelo gramsciano, a formação
dessas “superestruturas culturais” com base nos conceitos de “bloco histórico”, de “crises
orgânicas” e de emergência de uma “nova ordem social”, esta fazendo a mediação entre a
“sociedade civil” – no caso os industrialistas e outros grupos representativos da ordem
econômica – e o sistema político. A liderança intelectual – ou seja, o “intelectual orgânico” de
Gramsci – seria dada pelos “liberais internacionalistas” que construíram verdadeiramente as
organizações mundiais que dominam, hoje em dia, o essencial das relações econômicas
internacionais. Com efeito, as relações entre os principais países do mundo desenvolvido há
muito deixou de pautar-se pelos antigos tratados bilaterais de “amizade, comércio e
navegação” para cingir-se aos postulados e princípios estabelecidos multilateralmente em
convenções negociadas entre atores diversos do cenário internacional (muitos deles não
governamentais).
Entre o cosmopolitismo esclarecido dos pioneiros do século passado, ao organizar as
primeiras reuniões fundacionais das “uniões” e “escritórios de cooperação”, e as grandes
conferências globais onusianas deste final de século, o mundo certamente evoluiu para
melhor, no sentido em que se logrou diminuir enormemente o potencial de conflito embutido
nas divergências de interesses por motivos econômicos. Muito embora as organizações
originais de cooperação industrial não tenham conseguido evitar dois desastrosos conflitos
mundiais neste mesmo século, o surgimento da ONU, em 1945, e a multiplicação de suas
agências especializadas desde então, fez com que o cenário político internacional certamente
se aproximasse um pouco mais dos projetos de “paz perpétua” advogados pelo primeiro
internacionalista liberal consequente: Kant. O consenso tornou-se um princípio quase que
imutável de negociação de interesses econômicos divergentes e a global governance buscada
desde os tempos do filósofo de Königsberg vem sendo pacientemente construída, ainda que

415
de forma parcelada, pelas instituições estudadas por Murphy. Seu livro constitui assim uma
anatomia prática da emergência do liberal internacionalismo.
Numa outra vertente, mas talvez com igual proveito, Daniel Verdier oferece, em
Democracy and International Trade, um estudo comparado sobre como três potências
industriais, a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos, administraram, entre 1860 e 1990,
a conciliação dos interesses internos com uma visão propriamente internacionalista da ordem
econômica global. Com base numa “teoria política do comércio internacional”, que focaliza o
papel do eleitorado, das coalizões de interesses e dos lobbies nacionais na formulação das
políticas públicas, o sociólogo de Chicago analisa a elaboração das políticas comercial e
industrial nos três países, enfatizando as reações das correntes políticas predominantes em
cada um deles aos processos e eventos que marcaram a construção da ordem econômica
mundial nos últimos 130 anos de capitalismo triunfante.
Seu estudo é único no gênero, uma vez que a unidade privilegiada não é tanto o
Estado, mas a chamada sociedade civil, o eleitor e sua representação organizada nos
parlamentos nacionais: os fatores domésticos das tomadas de posição desses países nos foros
internacionais são assim plenamente realçados, com os interesse de curto prazo (emprego,
proteção industrial, desvalorizações competitivas) predominando em algumas circunstâncias
sobre os objetivos de longo prazo (livre-comércio, estabilidade monetária, desarmamento ou
crescimento sustentado). As políticas do primeiro tipo trazem resultados imediatos e são
portanto suscetíveis de carrear maior apoio momentâneo, mas escondem seus custos invisíveis
ou os transferem para os estados mais fracos ou as futuras gerações. Como determinar os
interesses permanentes de uma nação nessas condições: isso depende do processo político em
cada país e da sabedoria das elites dirigentes.
Com efeito, como diz Verdier, a política externa é determinada em toda a sua extensão
por fatores internacionais apenas em casos de crises envolvendo a segurança nacionais; na
maior parte dos casos, a elaboração da política exterior depende, tanto quanto a política
interna, de opções e escolhas difíceis, feitas com base em interesses gerais e particulares.
Quem decide sobre que tipo de interesse nacional relevante? As respostas neste livro são
buscadas em torno da formulação das políticas comerciais de três atores relevantes da ordem
econômica internacional no último século e meio e grande parte do sistema econômico
mundial que emergiu nesse período dependeu dos processos políticos em curso em cada um
deles. Assim, estudar a atuação dos lobbies nacionais na Grã-Bretanha, na França e nos
Estados Unidos – ou seja, as relações entre agricultores e industrialistas, entre comerciantes e

416
banqueiros, entre todos eles e os partidos políticos, entre estes e o Executivo – esclarece
melhor a própria emergência da estrutura atual das relações econômicas internacionais.

Brasília, 25 de novembro de 1996.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(vol. 39, n° 2, julho-dezembro 1996, p. 136-151).

417
Globalização para todos os gostos

Jagdish Bhagwati:
Em Defesa da Globalização: como a globalização está ajudando ricos e pobres
(Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2004, 348 p.; ISBN: 85-352-1440-2).

O economista indiano da Columbia University se pergunta, no frontispício dessa obra,


se o mundo precisa de mais um livro sobre a globalização. A pergunta é pertinente pois que,
desde a popularização desse conceito no início dos anos 90, rios, talvez oceanos de tinta já
foram vertidos em escritos pró- ou antiglobalização. O movimento antiglobalizador – que se
vê como altermundialista, sem jamais ter explicado de que seria feito esse “outro mundo” –
deve seu sucesso ao fenômeno que vitupera em encontros movidos mais a transpiração do que
inspiração.
O propósito de Bhagwati é outro: nem atacar, nem elogiar, mas explicar como
funciona esse processo (nos seus mecanismos comerciais, financeiros, tecnológicos e
culturais) e ver o que fazer para aperfeiçoá-lo. Os maiores beneficiários são, obviamente, as
multinacionais, mas os pobres dos países emergentes também veem sua prosperidade
aumentar, como o provam milhões de chineses e indianos retirados da miséria absoluta. Os
antiglobalizadores agitam temores, mas não dão provas concretas de que ele produza, como
proclamam, miséria, concentração de renda ou destruição das culturas nacionais.
A primeira parte do livro é justamente dedicada à compreensão do movimento
contrário à globalização, constatando no entanto Bhagwati que ela é benéfica não só
economicamente, mas também socialmente. Na segunda parte, ele considera suas implicações
sociais, examinando a distribuição da riqueza via comércio, via trabalho (com redução da
exploração de crianças), a promoção das mulheres, da cultura e da democracia. Os benefícios
dos investimentos diretos são muito superiores aos problemas, o que o leva a concluir que são
infundados os temores dos antiglobalizadores.
A terceira parte aborda os aspectos “incômodos” da globalização: movimentos de
capitais de curto prazo e fluxos de pessoas. Bhagwati não apoia a liberalização financeira e
critica o “complexo Wall Street-Tesouro” (que engloba outras instituições, como o FMI e o
Banco Mundial); ele comprova, com satisfação, que a ultraliberal The Economist acabou
rendendo-se às suas teses. A quarta parte, finalmente, quer fazer a globalização funcionar
melhor e aqui também Bhagwati se distancia dos antiglobalizadores, pois ele preconiza o seu
gerenciamento adequado pelos mesmos organismos multilaterais que eles querem enterrar.
418
Ele discorda, portanto, de que a globalização necessite de uma face humana: isso ela já tem,
mas pode-se sempre melhorá-la. Em conclusão, ele recomenda um pouco menos de paixão e
um pouco mais de razão aos críticos da globalização.

Brasília, 12 de junho de 2004.


Inédita em sua versão integral;
publicada em formato resumido na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, ano 1, n. 1, agosto de 2004, p. 76).

419
O mito do Consenso de Washington

John Williamson (org.):


Latin American Adjustment: How Much Has Happened?
(Washington: Institute for International Economics, 1990)

Um dos mitos econômicos mais abusados das últimas décadas na região é aquele que
pretende que a América Latina se dobrou a um conjunto de injunções vindas de Washington e
que seus governos “neoliberais” aplicou um pacote de recomendações traçadas na capital do
Império com uma inconsciência ingênua que teria beirado a irresponsabilidade. Esse “pacote”
de prescrições relativas à condução macroeconômica nos países latino-americanos recebeu o
nome – inclusive porque ele foi auto atribuído – de “Consenso de Washington” (doravante:
CW). Os problemas reais e supostos do CW – e o mito daí decorrente – começam justamente
por esse “acidente geográfico”, não puramente circunstancial, já que revelador de uma
coincidência infeliz: o selo de origem o condenou a ser visto, desde o início, com
desconfiança, quando não o situou no limite da rejeição e do repúdio ideológico por parte de
toda uma categoria de “produtores acadêmicos”.
Caberia registrar, com efeito, que as famosas regras de política econômica – na
verdade, tão desconhecidas quanto vilipendiadas – jamais teriam assumido a importância que
podem ter assumido no debate político-midiático do continente se o fato de elas terem sido
elaboradas (não necessariamente aplicadas concretamente) e divulgadas a partir da “capital do
Império” não trouxesse esse estigma de nascimento, quase um pecado original, que
praticamente converteu o CW numa entidade virtual, numa figura metafísica, geralmente
vazia de conteúdo, mas inacreditavelmente repleta de ataques condenatórios e de slogans
acusatórios que beiram o ridículo, pela superficialidade das diatribes e a inconsistência das
acusações. O acidente geográfico, na verdade, não teria tanta importância quanto ao seu
conteúdo, supostamente neoliberal; se as famosas regras se chamassem “Consenso de
Tegucigalpa”, talvez não merecessem tanto repúdio, mas os elementos componentes do
“pacote” continuariam a ser rejeitados por uma identificação maldosa com “políticas de
neoliberais”, sem qualquer reflexão identificadas a algo danoso ou prejudicial.
Leio, por exemplo, num livro do marxista paquistanês, mas exilado em Londres desde
sempre, Tariq Ali, recentemente editado no Brasil, Piratas do Caribe (Rio de Janeiro: Record,
2008), o seguinte trecho: “A América Latina é um continente em que uma alternativa
essencialmente socialdemocrata ao capitalismo neoliberal está crescendo a partir das bases e

420
contaminando a política por todos os lados” (p. 9). Como alternativa, Tariq Ali se refere aos
atuais “piratas” do Caribe: Hugo Chávez, da Venezuela, Daniel Ortega, da Nicarágua, Rafael
Correa, do Equador, e Evo Morales, da Bolívia. Os dois últimos, aliás, seriam dificilmente
enquadráveis na categoria “piratas do Caribe”, mas podemos deixar esse outro acidente
geográfico de lado e ir ao essencial, uma vez que esse livro representa uma condenação
explícita do CW e um libelo contra as políticas e medidas econômicas identificadas com tal
“receituário neoliberal”.
O mais surpreendente no livro de Tariq Ali – provavelmente decepcionante para o
governo brasileiro – é a condenação formal da administração em curso no Brasil, como
estando justamente identificada com o CW. O que afirma Ali, que deve descontentar
absolutamente os governantes atuais do Brasil?
Há uma ironia no fato de que tanto seus aliados em Washington e na Europa quanto seus
opositores em casa concordam em ver Lula como um Tony Blair tropical. Como seu
equivalente inglês [Ali escreveu quando Blair ainda era o primeiro-ministro britânico], está
pronto a agradar praticamente em qualquer nível, cercado de assessores e camaradas totalmente
leais ao CW e corruptos até a alma”. (p. 53) [Lula] “De fato se tornou um Tony Blair tropical,
sucedendo a Tatcher protagonizada por Fernando Henrique Cardoso. (p. 54)

Muitos no Brasil, e em outros países da América Latina, tenderiam a concordar com o


que escreveu Tariq Ali, uma vez que a política econômica do governo Lula foi objeto de
muitas críticas nos centros acadêmicos, por supostamente continuar a obedecer aos alegados
ditames do CW, o que representa, em primeiro lugar, uma ignorância parcial ou total do que
sejam, efetivamente, as medidas de política econômica preconizadas no tão famoso quanto
desconhecido consenso.
Em vista dessa realidade, pretendo, no presente ensaio, apresentar o CW em sua
integralidade original e discutir, em seguida, alguns exemplos práticos de sua aplicação (ou
falta de) em países selecionados, tratando inclusive de alguns casos considerados
paradigmáticos. Estes estão muito próximos de nós, sendo representados, respectivamente,
pelo Chile – como suposto exemplo de adesão ao CW – e pela Argentina, que seria um
eloquente exemplo de seu fracasso. O mesmo Tariq Ali, por acaso, afirma o seguinte sobre a
Argentina: “A Argentina é um caso interessante a ser estudado. O seu colapso foi uma
mensagem para o mundo como um todo, não apenas para a América Latina. Se você seguir os
ditames de Washington, isso é o que pode acontecer também com você.” (p. 57). Tariq Ali
está, obviamente, equivocado sobre o que ocorreu exatamente na Argentina, mas o seu
“indiciamento” constitui, aliás, um típico exemplo da superficialidade, dos equívocos e da
ignorância sobre o CW, de resto fartamente exibidos por outros críticos em nossas academias.

421
Tendo já abordado, parcialmente com base nas regras do CW, da suposta adesão do
Brasil ao que seria o “neoliberalismo” desenhado em Washington – ver meu artigo “A
indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: uma avaliação econômica e política da era
neoliberal”1 – pretendo dispensar aqui um novo tratamento do caso brasileiro, pelo menos em
detalhe. Vamos ao que interessa, portanto, em relação a essas famosas regras.

As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida


Trata-se de dez regras de ajuste econômico, formalizadas por ocasião de um seminário
realizado em Washington, no final dos anos 1980, ao cabo de dez anos de reformas
econômicas conduzidas em diversos países da América Latina. O encontro tentava,
justamente, fazer o balanço do que, exatamente, tinha sido aprendido na região (e fora dela)
como experiência prática da penosa fase de crises recorrentes dos anos (e décadas) anteriores,
ademais dos problemas estruturais e características sistêmicas desde sempre: inflação
renitente, emissões irresponsáveis, choques do petróleo, crise da dívida, moratória,
desequilíbrios cambiais e de balanço de pagamentos, pobreza generalizada, desigualdades
extremas etc.
O que ocorreu, portanto, não foi uma decisão dos órgãos oficiais de Washington,
vinculados de alguma forma à elaboração de “prescrições” de política econômica – que
seriam as duas organizações de Bretton Woods”, FMI e BIRD, e o Departamento do Tesouro
dos EUA –, mas sim um “resumo-síntese” de um consenso puramente acadêmico, que não
pretendia ser apresentado como “receituário” obrigatório de implementação de políticas
econômicas “neoliberais. Tratava-se apenas como um trabalho de reflexão e uma colaboração
intelectual ao esforço de ajuste e de reformas.
O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que
seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja: uma contribuição ao
esclarecimento de políticas que “deram certo”, não um “pacote” imposto desde o alto. Este é
o quadro situacional e o contexto intelectual pelos quais devem ser avaliados o CW – e seus
desenvolvimentos posteriores – e como tais considerados em qualquer trabalho de avaliação
que se pretenda fazer em torno dele, como o que agora se empreende. Vamos, agora, à sua
substância.
Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das
despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial,

1
Texto incluído como capítulo de meu livro A Grande Mudança, e publicado na revista Espaço
Acadêmico (n. 10, março de 2002, link: http://www.espacoacademico.com.br/010/10almeida.htm).
422
abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e
direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram
estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política
econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica,
formalizadas a posteriori – como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada
mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bem-
sucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o
que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980
tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas
erráticas e experiências substitutivas.
O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado
“O que Washington entende por reforma da política [econômica]”,2 fazia o balanço de quase
dez anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países
mais avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que
muitos pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da
região que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de
política econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas
de ajuste”. Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas,
nomeadamente as seguintes:
1) disciplina fiscal;
2) prioridades nas despesas públicas;
3) reforma tributária;
4) taxa de juros de mercado;
5) taxa de câmbio competitiva;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais;
7) abertura ao investimento direto estrangeiro;
8) privatização de estatais ineficientes;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados;
10) direitos de propriedade.

Em sua versão original, as regras enunciadas por Williamson pouco se ocupavam de


equilíbrio no balanço de pagamentos, da liberalização financeira, de desregulação bancária,
não implicavam a diminuição do papel do Estado (como acusam, sem razão, muitos críticos

2
Cf. Williamson, John, “What Washington Means by Policy Reform”, in Williamson (org.), Latin
American Adjustment: How Much Has Happened? (Washington: Institute for International
Economics, 1990, chapter 2, p. 7-20); disponível no link:
http://www.petersoninstitute.org/publications/papers/paper.cfm?ResearchID=486; acesso em
novembro de 2013.
423
apressados) e não necessariamente condicionavam o sucesso dessas políticas à manutenção de
uma baixa taxa de inflação. John Williamson afirmava expressamente que suas regras eram
mais “instrumentos de política”, do que um conjunto de objetivos ou resultados que devessem
ser elevados à categoria de dogma. Elas estavam longe, portanto, de representar um remédio
para economias doentes, pois que tinham sido concebidas como um conjunto de princípios
para, justamente, manter as economias latino-americanas em estado “saudável”, sem a
necessidade de correções de rumo brutais, com intervenção do FMI e pacotes de ajuda
“impostos de fora”.
Em relação à acusação de que essas regras condenavam as economias latino-
americanas à recessão, cabe registrar que o CW nunca pretendeu, nem poderia, ser um
“receituário de desenvolvimento”; ele estava unicamente destinado a fornecer “instrumentos
de política econômica” para facilitar o processo de reformas e de ajuste num momento de
crise, como era o caso da dívida externa. Esses instrumentos deveriam, assim, fornecer as
condições mínimas da estabilidade, após a qual políticas especificamente desenhadas para
estimular ou facilitar o desenvolvimento econômico deveriam ser concebidas e
implementadas pelos governos da região.

As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe


Vejamos agora cada um dos pontos de maneira mais argumentativa.

1. Disciplina fiscal
Todos aqueles que conhecem a história econômica da América Latina têm presente o
quadro de descalabro financeiro cercando as finanças públicas da maior parte dos países. Na
verdade, nem precisaria conhecer essa história trágica para saber que desequilíbrios
orçamentários levam à acumulação de dívida pública, sustentada em emissões contínuas de
títulos governamentais, daí à elevação dos juros e a um ciclo infernal de novas emissões
apenas para cobrir o serviço (juros) da dívida. Basta considerar apenas o orçamento
doméstico, ou suas próprias receitas e despesas, para saber que déficits contínuos na conta
corrente produzem uma conta salgada que corre o risco de se tornar impossível de ser
administrada. Como, a rigor, governos não vão à falência, e sempre possuem a capacidade de
avançar sobre as rendas dos cidadãos e das empresas, o processo pode levar a consequências
extremas, deixando uma “herança maldita” para o governo seguinte ou para futuras gerações.
Não se trata, propriamente, de um problema confrontando escolas econômicas ou
orientações políticas distintas, ainda que o próprio Williamson se permita criticar alguns
424
crentes do “estímulo fiscal”. Diz ele que “os crentes de esquerda no estímulo keynesiano, por
meio de grandes déficits orçamentários, são quase uma espécie em extinção”. Trata-se,
basicamente, da sustentabilidade das contas públicas, e aqui o ideal seria não permitir que o
déficit orçamentário não excedesse uma dada relação entre a dívida pública e o PIB. Pelos
critérios de Maastricht, como se sabe, o déficit orçamentário permitido é de, no máximo, 3%
do PIB, sendo que a dívida pública não deveria exceder 60% do PIB. Talvez sejam relações
razoáveis, mas tudo depende de como está sendo construído esse déficit – se for para
investimento é obviamente melhor do que para novas despesas correntes contínuas – e de qual
é o perfil da dívida em função do nível dos juros e do calendário de amortização.
Uma trajetória que contemple, por exemplo, aumentos generosos de salários para o
funcionalismo público – em total desproporção do que se paga no setor privado – e a criação
de novos cargos públicos em função de critérios totalmente políticos, sem correspondência
quanto ao nível e qualidade dos serviços públicos, pode constituir uma receita segura para
uma bomba-relógio de natureza fiscal, da mesma forma como a concessão de aposentadorias
e pensões em clara dissociação com os recolhimentos havidos na fase ativa dos beneficiários.
O Brasil, justamente, parece enfrentar alguns desses problemas na presente fase, o que
certamente vai ter repercussões graves em anos mais à frente. Tampouco adianta, como
também se pratica no Brasil, cobrir essas novas despesas buscando novas fontes de
arrecadação ou aprofundando a “extração” fiscal sobre os contribuintes e as empresas: o único
resultado desse tipo de medida é reduzir o espaço da poupança privada – que deveria ser
usada para o investimento empresarial – o que obviamente terá efeitos negativos sobre a taxa
de criação de empregos, de crescimento da renda e outros impactos que os economistas
chamam de convite à irresponsabilidade política: inflação e fuga de capitais.

2. Prioridades nas despesas públicas


Deixando de lado despesas militares – que são consideradas um domínio da segurança
nacional, fora, portanto, do alcance de simples tecnocratas – todas as outras despesas são
passíveis de racionalização e, eventualmente, de redução, pela via dos ganhos de eficiência.
Existem três fontes de gastos públicos que parecem inevitáveis em toda e qualquer
circunstância: gastos previdenciários (supondo-se um regime de repartição, e não de
capitalização); investimentos públicos, sobretudo em infraestrutura; e gastos com saúde e
educação, considerados corretores de desequilíbrios existentes no mercado (devendo,
portanto, beneficiar os mais pobres).

425
É óbvio, mesmo para o mais “direitista” dos economistas, que prioridade nas despesas
públicas não quer dizer redução de gastos sociais, e sim eliminação ou pelo menos diminuição
de outras despesas evitáveis, como os subsídios públicos. Existem muitos subsídios, diretos e
indiretos, que poderiam ser cortados ou reduzidos, e nem todo mundo têm consciência de que
eles existem (ou a quem eles beneficiam, não necessariamente os mais pobres). Quando o
governo escolhe, por exemplo, não aumentar o preço da gasolina em compasso com a cotação
do petróleo nos mercados internacionais, ele pode estar subsidiando o transporte da classe
média, em detrimento do número muito maior de pessoas que usa transporte público. Quando
ele concede empréstimos governamentais a indústrias “estratégicas”, aplicando uma taxa de
juros que é a metade daquela que ele mesmo usa para remunerar seus títulos da dívida
pública, ele está subsidiando uma categoria privilegiada da população, contribuindo, portanto,
para a concentração da renda.
Mas mesmo os gastos com saúde e educação podem estar profundamente distorcidos
por um perfil exageradamente concentrado destes últimos na educação superior, por exemplo,
que no Brasil contempla, como sabemos, muito mais recursos do que os alocados aos dois
primeiros níveis. Da mesma forma, quando o governo permite que operações de mudança de
sexo sejam cobertas pelo sistema geral de saúde pública, ele pode estar, ipso facto, retirando
recursos que poderiam ir para cuidados preventivos ou saneamento básico para populações de
baixa renda. Como regra geral, governos, quaisquer que sejam eles, de qualquer orientação
política ou coloração ideológica, são capturados por lobbies, ou seja, grupos de interesses que
distorcem orçamentos e gastos governamentais em geral para seu benefício particular.

3. Reforma tributária
Não existe, a rigor, nada de liberal no sistema tributário, um expediente a que
recorrem todos os governos desde a noite dos tempos. Trata-se de uma extração forçada, para
fins supostamente públicos, mas cuja incidência repercute de modo diferenciado segundo a
base escolhida (estoque de riqueza, por exemplo, ou os fluxos de renda que são criados na
atividade produtiva) e a forma de “captura” da renda pessoal (patrimônio, salários, lucros).
Existem, basicamente, duas grandes formas de coleta de recursos pelo Estado: de
maneira direta sobre a renda dos cidadãos individualizados (com uma aplicação progressiva
das alíquotas definidas), e de maneira indireta sobre o consumo de todos os cidadãos (o que
recomendaria taxar menos produtos básicos, que serão os mais amplamente, e talvez
exclusivamente, adquiridos pelos mais pobres, e tributar de forma mais “agressiva” produtos
supérfluos ou de consumo conspícuo). Outras taxas são cobradas sobre serviços específicos,
426
dependendo de quem os use (estradas, aeroportos, etc.), ou contribuições com atribuições de
gastos ou direcionamento exclusivo já expressos na letra da lei.
Com relação ao imposto de renda, o consenso parece ser de que a base deveria ser
ampla e as alíquotas marginais reduzidas (para evitar elisão e evasão fiscal, fuga de capitais,
etc.). Por outro lado, impostos indiretos excessivos acabam penalizando os mais pobres de
maneira desproporcional, que acabam pagando mais impostos (proporcionalmente, isto é, em
relação à renda pessoal) do que os ricos. Esse fenômeno é muito conhecido em vários países
latino-americanos, mas poucos governos têm a coragem de enfrentá-lo, uma vez que os
impostos sobre o consumo são mais fáceis de cobrar e passam quase despercebidos (quando
sua incidência não está claramente expressa no preço dos produtos). Não é preciso dizer nada
sobre o imposto de transações financeiras, que é cumulativo ao longo da cadeia produtiva e,
portanto, altamente irracional do ponto de vista social e da capacidade competitiva de um
país. Resumindo, o que pode haver de neoliberal na recomendação de que os tributos gravem
minimamente os mais pobres e tenham um perfil o mais neutro possível do ponto de vista da
atividade produtiva?

4. Taxa de juros de mercado


Isto significa, simplesmente, que taxas de juros de mercado devem ser de mercado, ou
seja, expressando a realidade do mercado de capitais; em outros termos, ela não dever ser
manipulada pelos governos e sim determinada pelo equilíbrio da oferta e da procura por
dinheiro na economia. Se o governo precisa fixar alguma taxa, como é o caso da taxa de
referência da política monetária, que ela seja positiva (ou seja, superior à inflação, caso
contrário provocaria fuga de capitais). Ela também deve ser moderada, de forma a estimular o
investimento e, se possível, neutra, entre os desejos dos poupadores por uma taxa estimulante
e os dos investidores por uma taxa adequada ao seu retorno. Uma taxa muito “positiva” pode
ter um efeito devastador sobre a dívida pública e sobre a valorização da moeda.
Um mercado de créditos extremamente concentrado ou cartelizado tende a produzir
altas taxas de juros, razão pela qual um setor financeiro aberto à competição representa um
bom estímulo à manutenção de taxas de mercado moderadas. Se o governo, por outro lado,
pretende determinar de forma muito intrusiva o que os banqueiros podem ou devem fazer com
seus depósitos – ou seja, estabelece muitas regras para o crédito direcionado a setores,
ademais de um alto volume para os depósitos compulsórios – ele pode estar contribuindo,
mesmo sem o desejar, para manter taxas de juros anormalmente elevadas. O que haveria de
neoliberal nesse tipo de recomendação, que é de puro bom senso?
427
5. Taxa de câmbio competitiva
Da mesma forma como as taxas de juros, a paridade do câmbio também deveria ser
basicamente determinada pelo mercado, o que parece coincidir com a escolha da vasta
maioria dos países que adota o regime de flutuação para suas moedas. John Williamson diz
preferir uma “taxa de câmbio em equilíbrio fundamental”, o que, no caso de um país em
desenvolvimento, significa que ela deve ser “suficientemente competitiva para promover uma
taxa de crescimento das exportações que faça a economia crescer à taxa máxima permitida
pelo seu potencial de oferta, ao mesmo tempo em que mantém o déficit de transações
correntes em uma proporção tal que possa ser financiado em bases sustentáveis”. Ele
acrescenta que a taxa de câmbio não deveria ser mais competitiva do que essa relação; do
contrário, ela poderia produzir pressões inflacionárias desnecessárias, assim como limitar os
recursos disponíveis para o investimento doméstico.
Essa taxa de câmbio competitiva é o elemento essencial de uma política econômica
orientada para fora, na qual as restrições de balanço de pagamentos são superadas
essencialmente pelo crescimento das exportações, não por um programa de substituição de
importações. Uma orientação para fora e exportações crescentes – sobretudo em setores não
tradicionais – constitui uma fórmula de sucesso para uma economia dinâmica.

6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais


A visão mercantilista da maior parte dos políticos – em especial na América Latina –
faz com que eles vejam com bons olhos as exportações, mas condenem como se fosse um
pecado as importações. Na verdade, abertura às importações é relevante para ajustar o setor
produtivo a um setor exportador que possa ser competitivo internacionalmente, do contrário o
excesso de proteção penalizará a oferta doméstica e tornará o país mais pobre. Licenciamento
de importações constitui, aliás, uma fonte inevitável de corrupção, cabendo tão somente um
sistema tarifário transparente. Infelizmente, países da América Latina têm recorrido muito
frequentemente a expedientes protecionistas, alegadamente para proteger empregos no país; o
que eles acabam fazendo, na verdade, é proteger uma reserva de mercado para industriais
pouco competitivos, o que, ao fim e ao cabo, os torna cada vez mais pouco competitivos.

7. Abertura ao investimento direto estrangeiro


Como já indicado, a liberalização dos fluxos financeiros não é considerada uma
prioridade. Em contrapartida, o fechamento ao investimento estrangeiro direto pode ser visto
428
como propriamente contraproducente. O IED traz não apenas capital, mas conhecimento e é
um grande indutor de ganhos de produtividade. Ele pode ser conseguido, também, por
conversão da dívida; mas tende a ser desestimulado em virtude de reações nacionalistas que
podem ser economicamente prejudiciais. Em geral, empresas estrangeiras contribuem muito
mais para o desempenho exportador e, portanto, o IED é também um gerador de divisas. Não
se compreende, assim, países que recusam o investimento, e depois são obrigados a recorrer
ao endividamento externo, ou seja, ao capital puramente financeiro, quando têm necessidade
de divisas para cobrir algum déficit ou mesmo para aumentar a importação de máquinas.

8. Privatização de estatais ineficientes


Como regra geral, empresas privadas são geridas de forma mais eficiente do que suas
equivalente estatais, inclusive por uma questão de estímulos ligados ao lucro e pela falta de
uma fonte fácil de recursos baratos. A privatização também traz ganhos fiscais diretos e
indiretos, uma vez que o Estado se desobriga de fazer investimentos para os quais o seu
Tesouro pode estar depauperado; ele também se livra de muitos empregados especialmente
interessados mais em aumentos de salários do que em inovações produtivas. Com exceção de
poucos setores públicos (como o fornecimento de água, por exemplo), serviços “coletivos”
podem ser fornecidos de maneira eficiente por empresas privadas, sob um regime de
concessão monitorado por um sistema regulatório preferencialmente aberto a regras de
competição em mercados relativamente competitivos.
Não é necessário, tampouco, lembrar o assalto a empresas públicas conduzido por
políticos ávidos por práticas clientelísticas, o que por sua vez redunda em desvios financeiros,
quando não em corrupção aberta. Empresas públicas tendem a distorcer as condições de
concorrência e as regras do jogo nos setores em que atuam, em função do acesso que elas
podem conseguir aos mecanismos decisórios do Executivo (para começar, elas nunca acabam,
ou seja, nunca vão à falência, como as privadas, pois sempre podem fazer apelo a sucessivos
aportes de capital estatal). Por fim, nas condições atuais de capacitação técnica e educacional
dos recursos humanos e de amplo acesso a capitais e tecnologia, a rationale que presidiu ao
estabelecimento de tantas estatais na América Latina e alhures – que era a falta de capacidade
técnica e, sobretudo, de capitais no setor privado – não mais se justifica em bases racionais.

9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados


A América Latina é uma das regiões mais reguladas e burocratizadas no plano
internacional, com tantos controles estatais que o “capitalismo de compadrio” e os estímulos à
429
corrupção aparecem quase como inevitáveis. Monopólios e cartéis, ou seja, falta de
competição, são uma das fontes mais comuns de preços altos, má qualidade nos produtos e
nos serviços, corrupção e comportamentos rentistas inaceitáveis numa economia moderna. A
regulação não se exerce apenas no fornecimento de bens ou serviços, mas também no cipoal
de regras que determinam a entrada e saída de capitais, a remessa de lucros, os fluxos de
tecnologia sob licenciamento, o ingresso de investimentos diretos, a existência de barreiras à
entrada em novas atividades, bem como taxas e contribuições de todo tipo.
Para exercer o devido controle – que ele mesmo se impôs – sobre todos esses setores,
o Estado precisa contar com um exército de funcionários, nem sempre pagos adequadamente
e, portanto, abertos, em princípio, a possibilidades de corrupção ou a condutas pouco
transparentes. A desregulação não significa descontrole ou ausência de regras; ao contrário:
ela costuma andar junto com agências reguladoras, criadas em função de uma visão de longo
prazo das necessidades do país, não na perspectiva de um governo temporário, e mantidas de
forma independente à equipe que ocupa por um tempo limitado os mecanismos do Estado.

10. Direitos de propriedade


O CW não pretende tanto se referir aqui à propriedade intelectual – embora esta
também seja insuficientemente protegida na América Latina – quanto chamar a atenção para o
respeito aos contratos e para a estabilidade de regras. A instabilidade jurídica aumenta os
custos de transação e é responsável por uma perda concomitante do PIB da região. Juízes que
pretendem fazer justiça social terminam por “criar” ou distorcer as leis, em lugar de apenas
interpretar e aplicar a legislação em vigor.

O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington?


A “interpretação” deformada feita por certos setores acadêmicos na América Latina a
propósito de processos de ajuste e reforma empreendidos por alguns países pretende que o
CW tenha sido responsável por todos os problemas acumulados na região ou pelos desafios na
agenda dos atuais governantes. Eles atribuem a “onda neoliberal” que percorreu alguns países
desde o início dos anos 1980 a uma espécie de diretiva emitida em Washington e que teria
sido implementada de forma canônica por governos submissos ou suficientemente
enfraquecidos economicamente, incapazes de resistir às pressões combinadas dos EUA e das
entidades do capitalismo global. Essa visão é profundamente equivocada, mentirosa mesmo.
Como vimos anteriormente, o CW foi, na verdade, estabelecido a posteriori, depois
que alguns países decidiram se lançar na penosa via dos ajustes e da reforma, a começar pelo
430
México – a primeira vítima da crise da dívida de 1982 – e depois pelo Chile – o que não tem
nada a ver com a ditadura de Pinochet, que também era orientada por uma visão anacrônica,
tão dirigista e estatizante quanto certos modelos “desenvolvimentistas”, estimulados antes e
depois desses experimentos inovadores. Como todo modelo, o CW é em grande medida
artificial, consistindo numa tentativa de síntese das medidas que supostamente teriam
resultado em desempenho econômico satisfatório nas fases seguintes. Trata-se, obviamente,
de uma simplificação, a partir de uma realidade bem mais complexa e de um conjunto de
outras variáveis bastante sensíveis a um “mix” determinado de políticas; na verdade, as
“regras” do CW jamais podem ser implementadas da mesma forma em dois países diferentes.
Interpretações de processos complexos são naturalmente sujeitas a caução, na medida
em que não se pode isolar experimentos reais para fins de simulação ou de teste controlado.
Espíritos ingênuos tendem a confundir o CW com essa coisa diáfana chamada neoliberalismo
e este, a rigor, não tem quase nada a ver com o CW, pois eles pertencem a dois universos
diferentes. Em todo caso, em qualquer discussão sobre o “neoliberalismo” latino-americano
sempre são trazidos em evidência o caso da Argentina, como exemplo de “fracasso”, e o do
Chile, como modelo supostamente bem sucedido – embora nem sempre com medidas em
sintonia com a “ortodoxia” presumida do CW – e, eventualmente, o do México, o país que,
alegadamente, teria iniciado o ciclo de conversões “neoliberais” desde o início dos anos 1980.
O que parece evidente, numa análise prima facie, é que há uma concentração quase
obsessiva sobre o caso argentino para “demonstrar” o fracasso das receitas “neoliberais” em
promover o crescimento e a igualdade na América Latina. Não se pode analisar em
profundidade o desenvolvimento do ciclo completo dos ajustes e reformas nessa vasta região;
mas se pode, ao menos, examinar o caso argentino, para verificar se ele se conforma, ou não,
ao suposto modelo prêt-à-porter, que seria disseminado pelos “profetas” de Washington,
como via milagrosa para o crescimento sustentado.
Vejamos, portanto, como se pode avaliar a experiência argentina, em função dos
mesmos critérios que orientaram a primeira versão do CW (existem, pelo menos, duas outras,
mais centradas sobre as políticas sociais ou sobre o papel das instituições na implementação
das políticas recomendadas). Como julgar a Argentina, por meio do benchmark das regras
estabelecidas no CW?

O “neoliberalismo” argentino:
1) disciplina fiscal: a Argentina esteve longe de cumprir este requisito básico do CW,
de que são prova os contínuos déficits provinciais – problema associado ao federalismo,
431
também presente em outros países –, bem como o crescimento irresponsável da dívida
pública, até o ponto inevitável da ruptura e do calote; nem o neoliberalismo, nem o CW
estimulam endividamento excessivo ou indisciplina fiscal;
2) prioridades nas despesas públicas: o governo do presidente Menem passou toda a
primeira metade dos anos 1990 empenhado em modificar a Constituição para sustentar seu
projeto de reeleição, embora não tenha obtido um mandato com a mesma extensão que
pretendia; mas conseguiu a reeleição, e com ela veio o descontrole nas despesas públicas, em
especial, a criação de equivalentes a moedas pelos governos provinciais;
3) reforma tributária: ela foi feita de forma parcial, tanto que a capacidade “extratora”
do Estado argentino sempre foi muito baixa, comparativamente com a carga fiscal do Brasil,
cuja burocracia da Receita sempre foi muito eficiente para fechar vários “buracos” na teia
tributária;
4) taxa de juros de mercado: de fato, os juros foram liberalizados, mas os
desequilíbrios crescentes acumulados do lado fiscal e a falta de competitividade dos produtos
argentinos, por força de uma inflação ainda importante, levaram o Estado a aumentar
progressivamente o nível dos juros, em descompasso com as necessidades de investimento no
país;
5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloquente negação de
uma regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro
Domingo Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve
início em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime
de conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu,
provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do CW;
6) política comercial de integração aos fluxos mundiais: de fato, ocorreu uma
significativa liberalização comercial ao início do processo de estabilização; mas os
desequilíbrios cambiais e inflacionários acumulados ao longo do tempo levaram a forte perda
de competitividade externa, o que determinou nova onda de protecionismo tarifário, de
expedientes para-tarifários (como uma “taxa de estatística”, por exemplo), além de outros
mecanismos defensivos (antidumping e salvaguardas extensivas);
7) abertura ao investimento direto estrangeiro: de fato ocorreu, numa primeira fase,
mas inviabilizada depois pela alta valorização do peso e a perda de competitividade adquirida
em função da amarra cambial; a regulação desse tipo de investimento também foi errática, o
que pode ter cerceado o ingresso de um maior volume de capitais estrangeiros produtivos.

432
8) privatização de estatais ineficientes: o processo ocorreu, nem sempre de forma
transparente, ou aberta à concorrência pública, e os recursos auferidos não serviram de
abatimento da dívida pública, que continuou numa trajetória de crescimento;
9) desregulação de setores controlados ou cartelizados: ela foi conduzida sem
preparação ou planejamento adequados, processo que resultou em novos monopólios
privados, não controlados por alguma agência reguladora;
10) direitos de propriedade: o “capitalismo de compadrio”, a transformação dos
sindicatos em negócios rendosos para as máfias nele encasteladas e diversas outras práticas
arbitrárias dos agentes públicos continuaram a alimentar um ambiente de negócios pouco
propício a um crescimento sustentável no país platino.

Muito antes desses processos pouco condizentes com a estrita racionalidade


econômica ocorrerem na Argentina, o Chile já tinha enveredado pelo caminho dos ajustes e
da reforma, itinerário por certo facilitado pela ausência de “perturbações” democráticas, mas
nem por isso isento de percalços próprios da ideologia militar, tão centralizadora, estatizante e
dirigista quanto a ideologia econômica de outros regimes militares na região. Na verdade, o
processo de “disciplinamento” econômico dos militares chilenos se deu apenas após uma
grave crise bancária, a persistência de focos inflacionários importantes, alto desemprego e
desequilíbrios no abastecimento alimentar, o que determinou o apelo a economistas
identificados com a “escola de Chicago” e os princípios liberais da escola “austríaca” de Von
Mises e Hayek.
O importante a registrar é que muito tempo antes de qualquer “consenso” se formar
em Washington, ou de técnicos do FMI ou do Tesouro americano virem a Santiago – o que,
aliás, nunca ocorreu, fora das visitas de trabalho do FMI para fins de artigo IV – formular
recomendações ou prescrições de política econômica, o Chile já tinha decido empreender
vasta reforma de seu sistema econômico, num sentido amplamente liberalizante. Em outros
termos, foi o Chile quem deu a “receita” para a construção de um “modelo” de ajuste e
reformas, não o contrário. Foram essenciais em seu processo de ajuste e reformas, a
manutenção da disciplina fiscal, a liberalização comercial e financeira – o que não significou,
em absoluto, liberdade completa para os capitais, mas, sim, mecanismos de esterilização dos
fluxos puramente financeiros, como a famosa “quarentena” –, políticas de atração de
investimentos diretos e uma cuidadosa gestão monetária que trouxe a inflação chilena a níveis
“europeus”. Em suma, o Chile fez o seu “dever de casa”, mas isso não significou converter-se
de forma acrítica ao “neoliberalismo”, seja lá o que isso queira dizer. O Chile de fato
433
desregulou, privatizou, liberalizou, mas tudo isso de forma planejada, consciente e
administrada pelo Estado.
A julgar pelo desempenho respectivo de cada um dos países, não é preciso lembrar
quem acumulou crescimento ao longo de mais de dez anos3 – a ponto de ter sido chamado de
“tigre” ou “puma” latino-americano – e quem soçobrou na crise e na moratória, derrubando
presidentes como quem brinca com um castelo de cartas. Longe de representar uma “derrota”
do neoliberalismo, como pretendem alguns, de forma totalmente equivocada, o caso argentino
é um exemplo cabal de reformas incompletas, mal conduzidas, ou de erros primários de
gestão macroeconômica, a começar pelo câmbio fixo e pela indisciplina fiscal, elementos em
total desacordo com as prescrições – se houvesse – do CW. De outra parte, longe de
representar qualquer tipo de “vitória” para o mesmo CW, o caso do Chile é um modelo de
pragmatismo e de cautela da implementação de medidas – elas sim – ortodoxas de política
econômica, que asseguraram seu crescimento durante praticamente toda a década de 1990 e a
estabilidade do poder de compra de sua moeda.

Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia


Como examinado ao longo deste breve ensaio analítico sobre o famoso CW e a sua
não-aplicação, de fato, na maior parte dos países latino-americanos, o panorama regional é
suficientemente diversificado para descartar qualquer explicação simplista, do tipo pretendido
por certos “analistas acadêmicos”, para o sucesso de alguns e o fracasso de outros. A
Argentina não fracassou devido ao CW, assim como o Chile não foi bem sucedido devido a
uma aplicação submissa de suas recomendações, ainda que muitas das “receitas” empregadas
neste país andino guardem uma grande interface filosófica e prática com aquelas regras (mais
de puro bom senso, ou de julgamento sereno das experiências econômicas bem sucedidas, do
que de aplicação cega de alguma “pomada maravilha” macroeconômica).
Muito da “agitação intelectual” em torno do suposto neoliberalismo desses países não
encontra, assim, suporte na realidade. Dessa forma, o mito do CW pode ser considerado uma
criação da esquerda latino-americana, que precisava dispor de um novo inimigo ideológico,
na figura do neoliberalismo, depois que outros velhos mitos – como, por exemplo, aquele
preferido pelo mais “perfeito idiota latino-americano”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano:
o do subdesenvolvimento induzido pela dominação imperialista – entraram em desuso, por

3
A economia chilena foi a economia que mais cresceu comparada com as grandes economias latino-
americanas: no período entre 1983-2007, ou seja, em 25 anos, o Chile cresceu 230%. E foi, também, o
país que mais absorveu, em termos relativos, investimentos estrangeiros.
434
uso e abuso na fase anterior. O que sobrou, finalmente, de toda essa agitação em torno de um
conceito que não merecia essa publicidade mal concebida e mal dirigida? Praticamente nada,
a não ser: slogans de um lado, e silêncio do outro.
Isso não impediu, obviamente, o manancial de bobagens que continua a ser
disseminado em torno de um suposto neoliberalismo dominador, que teria ocupado todos os
desvãos das políticas econômicas dos países latino-americanos ao longo de duas décadas.
Quando se vai examinar a realidade, a única constatação possível de ser extraída é que os
supostos inimigos ideológicos do neoliberalismo e do CW não sabem do que estão falando,
nem conseguem apresentar dados fiáveis sobre esse fantasmagórico “neoliberalismo”, ou
sobre o alegado para confrontá-los à realidade. Nessas condições, qualquer diálogo racional é
impossível. Mas diálogo é provavelmente a última coisa que desejam os agitadores de
slogans...

Brasília, 3 de setembro de 2008.


Publicado na série “Falácias Acadêmicas”, na revista Espaço Acadêmico
(ano VIII, n. 88, setembro de 2008, disponível no link:
http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm).

435
A neoliberalização e os seus descontentes:
tente desta vez o Consenso de Washington

Pedro-Pablo Kuczynski e John Williamson (orgs.):


After the Washington Consensus: Restar Ting Growth and Reform. in Latin America
(Washington: Institute for International Economics, 2003, 400 p; ISBN: 978-0-88132-347-4)

Edição brasileira:
Depois do Consenso de Washington: crescimento e reforma na América Latina
(São Paulo: Editora Saraiva, 2003, 320 p.; ISBN: 85-04514-8; Prefácio de Armínio Fraga)

Ei, psiu, você que é um partidário da “ruptura de modelos”: como anda o seu
manômetro neoliberal? Chegando ao limite do overheating político-econômico? Está
descontente com anos e anos de “privatizações selvagens” e de “políticas para agradar
banqueiros”? Preocupado com a desnacionalização crescente do setor privado, com a
crescente vulnerabilidade externa, com a dependência financeira e a perda de soberania sobre
ramos inteiros da economia? Já se cansou de denunciar o aumento do desemprego e o
“sucateamento” da indústria brasileira, como resultado das “concessões comerciais sem
barganha”? Acha que a ruptura com o modelo do ancien régime está exasperantemente lenta,
quase não está mais acreditando que ela possa vir um dia?
Não se preocupe, a solução está disponível: ela se chama Depois do Consenso de
Washington e vem na forma de um livro que, se não promete ser um manual infalível de
políticas macroeconômicas, segundo as velhas regras do receituário neoliberal, pode pelo
menos lhe trazer um grande alívio psicológico, ao oferecer, por preço modesto, um antídoto
infalível contra recaídas nos velhos pileques do passado. Não precisa mais ser gradualista:
pode consumir de uma só vez e sua satisfação estará garantida, com fortes doses de
racionalidade e bom senso, sem contraindicações ou efeitos colaterais.
O quê? Ainda não está acreditando?
Bem, como antigo militante das boas causas, você tem todo o direito de ficar
desconfiado e de exigir uma certificação de qualidade, a bula descritiva do conteúdo e um
exame de impacto ambiental. Pode até mesmo recusar o “produto” e tentar aquelas receitas
caseiras a que estamos acostumados e que alguns acadêmicos da área econômica ainda
garantem que funcionam: tente o controle de capitais, a desvalorização cambial e a
substituição competitiva de importações, as restrições comerciais e o protecionismo, uma boa
lei do similar nacional, algumas reservas de mercado (para o que será desta vez?), ou então o
não-patenteamento de medicamentos e biotecnologia, dois ou três impedimentos
436
constitucionais ao investimento estrangeiro em “setores estratégicos”, enfim, sinta-se livre
para tentar um mix de todas essas políticas setoriais e veja se, desta vez, o Brasil consegue
decolar em direção do espetáculo de crescimento, da justiça social e de uma boa repartição
dos benefícios da acumulação ampliada de capital. Não sei se dará certo, assim como não deu
no passado, mas pode-se sempre tentar mais uma vez. Não desista em face do fracasso...
Mas, se você não mais acredita que esses remédios possam aumentar a felicidade bruta
da nação e a competitividade de sua economia – como de fato não o fizeram anteriormente – e
que eles tampouco conseguem entregar o que era prometido – “desenvolvimento econômico
com autonomia nacional e preservação da soberania” – então seja ousado e inovador: saia de
vez do círculo vicioso do “liberal-intervencionismo” do passado e entre decididamente na boa
gestão da coisa pública. Este livro pode lhe mostrar como. Bem, não exageremos: assim como
as regras do consenso de Washington, tão famosas quanto desconhecidas, não conseguiram
melhorar de modo dramático a qualidade das políticas públicas na América Latina, corrigir as
distorções econômicas existentes no regime anterior e apontar para um método infalível de
crescimento com estabilidade e justiça social, não vai ser um simples livro que vai lhe mostrar
o caminho da verdade e da luz. Não há elixir maravilhoso que consiga corrigir décadas – que
digo?, séculos – de subdesenvolvimento, que, como dizia Nelson Rodrigues, não se
improvisa.
Depois do Consenso de Washington, um livro raro para nossos padrões editoriais, não
constitui exatamente uma espécie de benchmark para a avaliação do neoliberalismo no Brasil
ou na América Latina. Mas ele constitui, justamente, uma avaliação precisa do processo de
reformas liberalizantes iniciadas na América Latina no final dos anos 1980 e que deram certo
em alguns lugares mas não em outros. Examinar as razões dessa heterogeneidade de
resultados constitui um de seus méritos, ainda que os autores não se dediquem a distribuir
pontos à esquerda e à direita, nem se aventuram em julgamentos apressados sobre a
performance relativa dos países da região. Mas se você tivesse de, numa hipótese, fazer um
“provão” sobre o desempenho de alguns deles, quem acha que se sairia melhor, ao cabo de
mais de duas décadas de reformas?: o Chile dos friedmanianos ou a Venezuela de Chávez?; o
Equador dos presidentes-cantores ou o México dos tecnocratas?; a Argentina do currency-
board ou o Brasil do realismo cambial?
A obra coletiva retoma todos os elementos da agenda macroeconômica e até o menu
completo da boa governança: reforma do Estado (Pedro-Pablo Kuczynski), pobreza,
equidade, e políticas sociais (Nancy Birdsall e Miguel Székely), política fiscal (Daniel Artana,
Ricardo López Murphy e Fernando Navajas), o sistema financeiro (Kuczynski, novamente),
437
as políticas monetária e cambial (Liliana Rojas-Suarez), liberalização do comércio (Roberto
Bouzas e Saúl Keifman), educação e treinamento (Laurence Wolff e Claudio de Moura
Castro), mercado de trabalho (Jaime Saavedra) e, finalmente, as reformas políticas de segunda
geração, pelo próprio Williamson, que iniciou esse volume com um capítulo sobre a agenda
das reformas.1
Continua descontente com este belo menu de análises desprovidas de paixão política
mas dotadas de um alto sentido de governabilidade, pelo menos aquele exequível nas
condições reais da América Latina? Ou você prefere aquelas frases grandiloquentes que se
encontram em certos manifestos de economistas, que falam de conceitos diáfanos como
“ruptura paradigmática”, “totalitarismo de mercado”, “agenda interditada” ou da firme
intenção de “expor a caixa preta da política econômica ao debate aberto”? Se você pensa
assim, então este livro é para você também, pois não conheço outro que analise e discuta, de
maneira tão completa e totalmente embasada em dados relevantes, a agenda inteira, aberta e
límpida, dos problemas que todo governo enfrenta para cuidar bem “do seu, do meu, do nosso
dinheiro”.
Lembra-se do autor desta expressão? Ele mesmo: Armínio Fraga, aquele que na
sabatina do Senado que aprovou sua designação para o Banco Central foi acusado de ser a
raposa que cuidaria do galinheiro e que na sua saída foi incensado até pela oposição
convertida em situação e que reconheceu seus méritos de administrador imparcial das metas
de inflação e da estabilidade monetária. Pois bem: mesmo trabalhando como motorista de táxi
do “Casseta e Planeta”, Armínio assina um belo prefácio, no qual ele nos informa ter sido
aluno do “pai do consenso de Washington”, quando John Williamson deu um curso de
economia internacional para alunos de graduação do departamento de economia de PUC do
Rio de Janeiro, em 1978.
Transcrevo as palavras de Armínio, que resumem o sentido do livro: “É para mim
curioso que, anos depois de sua criação, o Consenso de Washington seja visto como um
manifesto neoliberal, até mesmo com um quê de radicalismo de direita. John não é nada disso.
No contexto histórico em que o Consenso foi proposto, tratava-se de uma resposta correta a
problemas concretos diagnosticados por Williamson com a sua habitual competência. Hoje,
passados 13 anos de sua publicação, Williamson e seus coautores nos brindam mais uma vez
com uma nova proposta que, se seguida pela nossa sofrida região, certamente nos colocará

1
A edição original do livro, After the Washington Consensus, encontra-se livremente disponível no
site do Institute for International Economics, neste link: http://bookstore.piie.com/book-
store/350.html.
438
mais próximos do caminho que buscamos. Torço para que desta vez façamos melhor uso de
suas ideias.”
Mais tranquilo em relação aos propósitos do livro mas ainda assim descontente com o
tal de neoliberalismo? Não seja por isso: deixe o neoliberalismo de lado e tente desta vez o
consenso de Washington. E não precisa ficar preocupado com nenhuma infração a direitos de
propriedade intelectual: pode usar e abusar da expressão que o John não vai lhe cobrar
copyright por isso.

Washington, 21 de agosto de 2003.


Publicado no Valor Econômico
(Caderno Eu&, ano IV, n. 156, seção Economia, 29-31 de agosto de 2003, p. 16-17).

O Consenso de Washington e o Brasil

O liberalismo econômico é, do ponto de vista teórico, uma doutrina (com algumas


tinturas de ideologia), fundamentando uma certa atitude dos atores sociais em relação ao
mercado e ao papel do Estado na vida econômica, e, do ponto de vista prático, um conjunto de
prescrições de política econômica cujos objetivos seriam, precisamente, retirar a mão pesada
do Estado do jogo econômico e deixar que os mercados e a divisão internacional do trabalho
encaminhem, ao melhor, soluções “racionais” aos complexos problemas colocados pela vida
econômica das nações. Se ele o fez, em algum país, as evidências são pelo menos
inconclusivas.
A despeito do que muitos acreditam e afirmam, inclusive através do epíteto
alegadamente depreciativo de “neoliberalismo”, a teoria e as práticas efetivamente liberais
nunca foram muito frequentes ou utilizadas na América Latina, em todas as épocas. A rigor,
no século XIX, ainda podiam ser encontrados verdadeiros liberais, doutrinários e práticos, e,
procurando bem, podem ser encontrados alguns outros, identificados a sonhadores, nas
faculdades de economia e no mundo empresarial de alguns países da região ao longo do
século XX. Mas, terá sido certamente raro, na medida em que poucos desejavam ou
pretendiam ser identificados com a ação desenfreada das forças do mercado ou o livre
exercício das vantagens comparativas. Ao que se assistiu, ao longo de décadas, senão de
séculos, de ação econômica dirigista, foi a tentativas mais ou menos bem-intencionadas de
tirar os países latino-americanos do “atoleiro liberal” e de colocá-los no caminho do
“desenvolvimento”, com várias doses de intervencionismo estatal e muitas doses, senão
439
toneladas, de frustrações sociais e desastres econômicos. Instabilidade, espiral inflacionária,
emissões irresponsáveis, atraso tecnológico, desigualdade social: nada disso é novo e
certamente não foi provocado pelo liberalismo econômico ou por nefastas medidas de
desregulação desenfreada.
Os problemas do subdesenvolvimento material latino-americano – de certa forma
mental, também – continuam impassíveis, a despeito de alguns progressos econômicos e de
alguma modernização tecnológica. Como diria Mário de Andrade, falando do Brasil dos anos
1920, “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Por
isso, soa pelo menos curioso que pessoas aparentemente incautas decidam atribuir ao
neoliberalismo, ou a seus desvios teóricos e práticos, as razões dos desastres econômicos
vividos pela América Latina nos últimos 10 ou 20 anos. Costuma-se atribuir o fracasso
argentino, ou a crise em outros países da região, à aplicação irrefletida das regras do famoso
Consenso de Washington, que serviriam de camisa-de-força para manter esses países sob a
“hegemonia imperial” e a serviço do capital financeiro internacional. Quanta bobagem nesse
tipo de acusação.
Pois agora chegou ao Brasil uma obra que permitirá aos brasileiros refletir melhor
sobre o que são, efetivamente, essas famosas regras do Consenso de Washington e como sua
eventual aplicação ao caso brasileiro poderá, ou não, ajudar na solução de nossos angustiantes
problemas de crescimento, de distribuição, de modernização social e tecnológica, de inserção
da nossa economia no mundo contemporâneo da concorrência e da globalização.
A obra, Depois do Consenso de Washington: crescimento e reforma na América
Latina (São Paulo: Editora Saraiva, 2003), organizada por Pedro-Pablo Kuczynski e John
Williamson (sim, o próprio “dono” da expressão), com prefácio de Armínio Fraga, apresenta
a todos os curiosos, assim como aos estudiosos de verdade, todos os ingredientes do
receituário e discute as razões do baixo desempenho efetivamente observado desde que ele foi
colocado no mercado. Não sei quantos royalties John Williamson terá arrecado pelo uso
(devido e indevido) do famoso binômio, mas ele certamente deve estar arrependido de não tê-
la registrado no momento devido no U.S. Patent Office, com pedidos similares para todos os
países da região.
De fato, não deve ter havido na literatura econômica (e sobretudo jornalística, para
não falar das assembleias políticas) qualquer outra expressão tão usada e abusada ao longo
dos últimos anos, geralmente com intenções bastante críticas, quando não deliberadamente
simplificadoras. Pois bem, não há mais motivo para ignorância, má-fé ou simples indiferença:
tudo o que você sempre desejou saber sobre o Consenso de Washington e nunca teve a quem
440
perguntar, tem agora. E vai satisfazer suas necessidades intelectuais e talvez até políticas. Mas
nada disso tem a ver com o neoliberalismo ou imposições de fora: tudo foi pensado como um
conjunto de regras muito simples – e não de prescrições salvadoras – que pudessem ajudar os
economistas e decisores políticos na região a empreenderem um conjunto de reformas que são
absolutamente necessárias para o bom desempenho das sociedades nacionais da região, não
para satisfação dos especuladores de Nova York ou dos tecnocratas do FMI.
O livro, coordenado por dois eminentes economistas associados ao prestigioso
Institute for International Economics, de Washington, retoma o debate sobre o processo de
reformas liberalizantes iniciadas na América Latina no final dos anos 1980 e que já tinha sido
objeto de um volume precedente publicado pelo mesmo instituto. Ele reúne, novamente,
trabalhos de conhecidos especialistas econômicos, cujas colaborações tocam nos mais
importantes problemas da agenda de política econômica dos países da região, depois de uma
década marcada por crises financeiras, um crescimento econômico desapontador de tão lento
e praticamente nenhum progresso na esfera social e da repartição de renda.
Os estudos aqui incluídos fazem o diagnóstico da primeira geração de reformas
(liberalização e estabilização macroeconômica), apresentam a segunda geração (institucional)
de reformas, que são indispensáveis para criar a infraestrutura de uma economia de mercado
com progresso social, assim como discutem as iniciativas necessárias para que as frágeis
economias da região encerrem a série de crises registradas nas últimas décadas. O livro
também se situa no centro do debate atualmente em curso no Brasil sobre a natureza e o
itinerário do processo de reformas econômicas e sociais iniciadas pelo governo anterior e em
grande medida continuadas pela atual administração.

Washington, 20 de agosto de 2003.


Publicado no Jornal do Brasil (4 de setembro de 2003).

441
O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países
pobres

Ha-Joon Chang:
Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective
(London: Anthem Press, 2002)
Edição brasileira:
Chutando a Escada: estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica
(São Paulo: UNESP, 2004)

Bad Samarithans: The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism
(Londres: Bloomsbury, 2007)
Edição brasileira:
Maus Samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo
(Rio de Janeiro: Elsevier, 2009)

A busca de culpados (sempre deve existir algum...)


Dentre todos os mitos já explorados nesta avaliação serial dos equívocos mais
renitentes no meio acadêmico,1 nenhum parece tão poderoso quanto o que pretende que os
países ricos, que teriam outrora alcançado o seu desenvolvimento graças a uma série de
políticas por eles hoje recusadas aos países emergentes, estariam agora ativamente
empenhados em impedir que esses países, eufemisticamente ditos em desenvolvimento,
possam galgar, igualmente, a escada da prosperidade econômica e os degraus da capacitação
industrial e tecnológica, tornando-se, como eles, desenvolvidos.
Continuemos, pois, o exame de alguns desses equívocos pela análise crítica de um dos
exemplos mais notórios da “teoria conspiratória da história”, a tese do complô dos ricos
contra os pobres, a presumida ação mancomunada dos desenvolvidos contra o crescimento e o
progresso material dos países pobres ou menos desenvolvidos. O conjunto de “teses”
defendidas pelos partidários do que classifico desde já como mais uma falácia, não deixa de
apoiar-se em exemplos históricos que estariam aparentemente em linha com os argumentos
dos defensores dessa teoria conspiratória, em especial no que se refere às políticas setoriais
(industrial e comercial, em especial) e à suposta ação clarividente do Estado “empreendedor”.

Friedrich List: versão século 21

1
Este trabalho de análise dos livros de Ha-Joon Chang integra uma série de ensaios preparados em
torno das “falácias acadêmicas” mais renitentes, publicados anteriormente na revista digital Espaço
Acadêmico e que podem ser encontradas em meu site pessoal, neste link:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html.
442
O mais conhecido defensor contemporâneo dessa teoria é o economista coreano,
atualmente na Cambridge University, Ha-Joon Chang, que se utiliza da famosa imagem
forjada pelo seu predecessor alemão de 150 anos atrás, Friedrich List, para afirmar que os
países ricos estão querendo “chutar a escada” que os levou a ser o que hoje são. Este é, aliás,
o título de um de seus livros mais famosos: Kicking Away the Ladder, já publicado no Brasil
sob o título homônimo de Chutando a Escada.
Sua obra sucessiva, Bad Samarithans, também publicada no Brasil sob o mesmo
título, Maus Samaritanos, segue na mesma linha. Promovida pela Ordem dos Economistas do
Brasil, a obra constituiu o centro de atração de um seminário realizado em São Paulo, em
janeiro de 2009, sob a responsabilidade da Ordem e da Fundação Getúlio Vargas, em torno de
um programa de estudos focado na revisão do pensamento econômico sobre o
desenvolvimento.
Seguindo as ideias de Chang, o coordenador da Escola de Economia da FGV-SP,
Paulo Gala, acredita que “as experiências de maior sucesso observadas nos anos recentes,
Coréia do Sul e Taiwan, nos anos 70 e 80, e China e Índia nos 90, basearam-se justamente em
políticas contrárias às recomendações de Washington”.2 Como já tratamos do problema do
Consenso de Washington em ensaio desta série,3 não iremos nos debruçar novamente sobre
mais esse mito do pensamento acadêmico. Mas caberia registrar os “seis mitos neoliberais”
que este professor brasileiro considera que vêm sendo propostos pelas instituições símbolo da
globalização capitalista e que, em sua opinião, se revelaram incapazes de produzir os
resultados prometidos.
Os “seis mitos neoliberais”, vários deles fictícios, seriam os seguintes: “1) os países
ricos atualmente alcançaram seu sucesso através de políticas comprometidas com o livre
mercado; 2) o neoliberalismo funciona; 3) uma globalização neoliberal não pode e não deve
ser interrompida; 4) o modelo americano de capitalismo neoliberal representa o ideal, o qual
todos os países em desenvolvimento devem replicar; 5) o modelo do Leste Asiático é
idiossincrático, o modelo americano é universal; 6) países em desenvolvimento precisam de
disciplina fornecida pelas instituições internacionais e por instituições politicamente
independentes (Banco Central, por exemplo)”.4 Não vou agora rebater argumentos que são
mistificadores, em sua maior parte, inclusive porque o autor em nenhum momento traz

2
Cf. Paulo Gala, Apresentação a Maus Samaritanos, op. cit., p. ix.
3
Ver, deste autor, “Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington”, in Espaço
Acadêmico, n. 88, setembro de 2008; disponível no link:
http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm.
4
Cf. Gala, idem, p. x.
443
qualquer comprovação de que esse tipo de proposição simplista venha sendo defendido pelas
organizações “neoliberais” (eu apenas recomendaria que ele lesse mais história do mundo,
estudasse um pouco mais de economia e observasse a realidade, simplesmente). Para
preservar o foco, vamos tratar aqui apenas dos argumentos centrados sobre a “teoria do
complô”, que constitui todo um capítulo na história das falácias acadêmicas.

Uma história secreta do capitalismo?


O subtítulo do mais recente livro de Ha-Joon Chang já constitui, por si só, uma prova
eloquente em favor de uma tese, aliás, uma verdadeira teoria, muito disseminada em certos
meios acadêmicos. Essa tese diz mais ou menos o seguinte: os países ricos – durante os
momentos iniciais de sua decolagem econômica, e na fase de consolidação do
desenvolvimento social – puderam exercer toda a latitude de políticas econômicas: desde as
mais liberais – quando podiam, ou precisavam – até as mais protecionistas e subvencionistas
– estas últimas, de maneira mais intensa ou frequente, e sem que alguma entidade “ortodoxa”,
do tipo do FMI ou o Banco Mundial, viesse lhes dizer o que deveriam ou poderiam adotar
como políticas macroeconômicas e setoriais – até que puderam garantir para si um processo
de crescimento sustentado, marcado pela autonomia tecnológica e a plena soberania sobre
suas principais políticas públicas.
Uma vez alcançado o estágio em que se encontram, ou seja, de países líderes nas
classificações de prosperidade econômica e do avanço tecnológico, eles se empenham todos –
como se tivessem combinado tudo em algum local secreto de planejamento de maldades
capitalistas – em impedir que países retardatários e os subdesenvolvidos, de maneira geral, os
imitem, copiem o que fizerem, enfim, que os alcancem, do alto de seu progresso econômico e
capacitação tecnológica. Numa reedição prolongada da falácia original de List e, de maneira
tão perversa quanto calculada, os países ricos “chutam a escada” que permitiria aos atrasados
chegar onde eles chegaram; constroem, assim, um fosso intransponível entre eles, um grupo
pequeno de egoístas desenvolvidos, e todo o resto do mundo, um imenso conjunto de eternos
condenados ao atraso e à pobreza (e, no mesmo movimento, levados a transferir renda para os
de “cima”, como agravante).
Trata-se de uma caricatura, claro, mas apenas em parte. Vejamos a síntese que faz seu
principal defensor, e prefaciador, no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, desse tipo de teoria
propagada com maior competência por Chang: “Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz
uma critica devastadora da teoria econômica ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas

444
propostas de política econômica são para uso externo, não sendo utilizadas pelos países ricos
que as propagam” (p. xiii).
Não contente em aderir à teoria conspiratória da história, Bresser Pereira agrava o seu
caso, insistindo na tese do complô dos ricos contra os pobres seguidores infelizes do terceiro
mundo. Vejamos o que ele diz, numa reconstituição histórica do processo de desenvolvimento
econômico em escala mundial: “Desde a Revolução Industrial a teoria econômica tem sido
um instrumento para justificar internamente o capitalismo e para evitar que os demais países
que ficaram atrasados no seu processo de industrialização também cresçam e lhes façam
concorrência” (p. xiii). Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grave acusação a todos os
teóricos da economia ortodoxa ou neoclássica, que poderiam invocar, se fosse o caso, o
sentido moral de sua atividade, já que transformados em simples feitores de uma espécie de
“colonização mental” conduzida a partir de seus centros de estudo. Seria risível, se não fosse
eticamente questionável.
O professor da FGV-SP parece apreciar piadas históricas, pois que Bresser Pereira tem
prazer em reincidir na teoria: “A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970 tem
como uma de suas motivações essa neutralização [dos concorrentes dos países em
desenvolvimento], como objetivo nunca confessado, e jamais plenamente consciente” (p. xiv).
Todos os elementos da teoria conspiratória estão presentes, já que, segundo Bresser, Chang
não hesita em “criticar os ‘maus samaritanos’ – os agentes dos países ricos e do
neoliberalismo que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem
ajudando-os quando, de fato, estão criando obstáculos ao seu desenvolvimento” (p. xv). Esses
agentes seriam uma combinação de professores adeptos da teoria neoclássica, os funcionários
e consultores das organizações internacionais mais importantes na área econômica (FMI,
BIRD, OMC) e os representantes dos países ricos que conduzem programas de ajuda e de
cooperação técnica para os países pobres.
Mas não vale a pena continuar a falar da tese principal por meio de intérpretes de
segunda mão; melhor ir direto ao original, ou seja, aos livros de Chang. Dois equívocos
parecem estar em causa na construção desse tipo de mito que recebeu a poderosa contribuição
desse economista, que se lança de maneira ousada (embora leviana) nos caminhos da história:
(a) a falácia de que os países ricos se tornaram o que eles são atualmente em virtude de um
conjunto racional de políticas direcionadas a tal objetivo, aplicadas de forma
sistemática e consciente, a despeito de contrariarem o pensamento econômico liberal
de sua época;
e outra falácia, já pertencente à “teoria conspiratória da história”,

445
(b) a de que esses países têm-se empenhado, desde então, em impedir que os pobres os
alcancem, armando ardilosamente um complô para obstar a que os atrasados cheguem
ao topo da escada.

Esses dois argumentos se baseiam numa leitura seletiva, incompleta e deformada da


história, e são incapazes de se sustentar pela lógica de funcionamento do sistema capitalista
(na verdade, da economia de mercado), ou pelo seguimento da experiência concreta de
diferentes países engajados desde então no caminho do desenvolvimento, alguns bem
sucedidos, outros, infelizmente, não.

Políticas estatais como fator de desenvolvimento?


Chang, tanto no seu livro anterior, Chutando a Escada, como neste Maus
Samaritanos, conta a mesma história, embora com argumentos ligeiramente diferentes, mas
por meio do mesmo uso seletivo dos dados históricos. Na verdade, não é tanto da história que
ele pretende falar – inclusive porque não se trata de um historiador econômico, nem de um
economista historiador, aliás – mas da “história” presente, ou o que ele pretende por tal. Essa
“história” seria dominada pelas políticas neoliberais e pela imposição das “regras do
Consenso de Washington” aos países em desenvolvimento, o que resultaria, assim segue a
teoria do complô, em que estes não possam fazer o que antes fizeram os países ricos.
Todos sabem quais são essas políticas e não seria preciso estender-se em demasia em
sua descrição: políticas macroeconômicas estáveis e responsáveis, redução do peso do Estado,
liberalização comercial e do regime de investimentos estrangeiros, defesa dos contratos e dos
direitos de propriedade intelectual, banco central independente, etc. Existe em vários setores
críticos – mas que provavelmente nunca leram os textos originais – uma grande confusão
entre, de um lado, o que pode ser eventualmente recomendado pelos conselheiros das
instituições de Bretton Woods e, de outro lado, as regras originais do economista John
Williamson, que detém o copyright – ou pelo menos os moral rights – sobre o chamado
Consenso de Washington. Este “consenso”, em sua versão original, não compreendia nem a
taxa de câmbio fixa (ele recomendava flexível), nem a liberalização do setor financeiro (ou
dos movimentos de capitais, para ficar em algo mais tangível).
Não é o caso de dirimir essa confusão neste momento, tanto porque isto não parece
preocupar aqueles que criticam de maneira leviana as “regras” de Washington, em primeiro
lugar o próprio Chang. Sua principal missão é a de desmantelar essas regras, posto que elas
seriam prejudiciais aos interesses atuais dos países em desenvolvimento. Usando mais suas
impressões do que a pesquisa histórica, Chang recomenda o contrário: sua sugestão é a de que
446
os países pobres façam aquilo que ele imagina que os países hoje ricos teriam feito nas etapas
iniciais de crescimento e consolidação de seus processos de autonomia tecnológica.
E quais seriam essas políticas? Elas são muito diversas, obviamente, sendo que em
alguns casos sequer houver políticas claramente definidas ou implementadas de maneira
contínua segundo um plano pré-determinado. Mas Chang, em sua leitura seletiva dos dados
históricos, identifica basicamente dois conjuntos de políticas que teriam sido usadas pelos
países ricos em sua caminhada racional para o desenvolvimento: políticas comerciais e
industriais, do tipo “indústria infante”, tal como recomendado por List e, antes dele, pelo
Secretário americano do Tesouro, Alexander Hamilton. As principais medidas seriam o apoio
direto às indústrias nacionais na fase inicial de instalação, por meio de subsídios, incentivos
fiscais, proteção tarifária e outros tipos de defesa comercial e dirigismo setorial. Ele é bastante
detalhista na coleta de medidas governamentais, ao longo do século 19 (e mesmo antes), que
teriam sido mobilizadas para sustentar a industrialização desses países. O resultado
entusiasma os dirigistas de várias épocas e de vários países, sobretudo aqueles que também
pretendem criticar o suposto complô dos ricos e dos “washingtonianos”.
O fato é que os argumentos de Chang são distorcidos, seus “fatos” são incompletos e
falham, lamentavelmente, em estabelecer as relações causais efetivas entre as medidas
industrializantes apontadas por ele e o desenvolvimento dos países considerados, processo
necessariamente mais complexo do que sua visão simplista da história. Ele não considera uma
série imensa de outros fatores institucionais – tal como destacada por historiadores
econômicos como Douglass North, por exemplo – e passa completamente por cima dos
fatores culturais e educacionais que sustentaram – não apenas a industrialização, mas – a
transformação tecnológica abrangente que teve lugar em vários desses países (alguns deles
não necessariamente industriais, mas “essencialmente agrícolas”, como Dinamarca e Nova
Zelândia).
É, por outro lado, igualmente simplificadora sua visão de que foram aquelas medidas
estatais que provocaram a industrialização e o crescimento econômico; como se os países
ricos tivessem “planejado” racionalmente seu processo de desenvolvimento, por uma série de
medidas encadeadas no tempo, e estruturalmente integradas umas às outras, todas elas com o
objetivo expresso – e talvez pré-determinado – de provocar essa modernização. Ele
certamente não considera a contraditória e muitas vezes improvisada colcha de retalhos que
constitui a trama da história real, na qual, indivíduos, grupos de pressão, ideologias e, não
menos importante, reações defensivas ou “imitativas”, interagem de modo desordenado, ao

447
sabor das relações de forças que se estabelecem na sociedade, para produzir um resultado que
está longe de ser aquele desejado por categorias específicas de atores sociais.
A história não é certamente um livro branco, no qual governos supostamente
esclarecidos podem ditar ordens e regras para sua implementação racional: ela é, bem mais,
um pesado carro de bois que avança lentamente por uma estrada esburacada, com
interrupções e deslizes que pouco têm de intencional ou planejado. Mesmo admitindo-se a
existência de políticas claras para favorecer este ou aquele resultado antevisto – como
costumam ser as medidas de subsídio industrial, de proteção tarifária ou de apoio logístico – é
muito difícil ao honesto historiador econômico separar fatores estruturais e contingentes no
complexo processo de desenvolvimento dos países atualmente ricos; a começar que eles não
estavam desenhando políticas de desenvolvimento e sim respondendo a impulsos que lhes
vinham de dentro e de fora, e nem sempre, aliás, pela mão dos governos.
Haveria muito mais a dizer sobre a peculiar leitura da história do professor Chang.
Mas a discussão poderia nos levar muito longe, no espaço limitado deste ensaio. Bastaria,
talvez, dizer isto: se o protecionismo comercial e as políticas dirigidas em apoio ao setor
industrial fossem o sucesso que ele alega, nesse caso, os países da América Latina, que,
durante várias décadas, praticaram ambos, intensamente, e em doses altamente concentradas,
deveriam ser hoje em dia não apenas nações altamente industrializadas, como
tecnologicamente desenvolvidas, o que obviamente não é o caso. Por outro lado, em sua
própria Coreia natal, Chang deixa de ver todos os fatores institucionais e educacionais que
favoreceram o seu desenvolvimento, e se concentra unicamente nas políticas industrializantes
e de cunho comercial, que teriam, supostamente, impulsionado o crescimento e a
transformação tecnológica. Em conclusão, como economista, Chang pode até ter seu valor de
mercado, mas como historiador ele falha miseravelmente em comprovar as suas teses.

A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa


O que dizer, então, da outra parte deste mito inconsistente, que consiste em afirmar
que os países na vanguarda do progresso industrial e social atuam deliberadamente para
impedir todos os demais de os seguirem na “escada” do desenvolvimento? Essa tese é tão
ridícula – como compete a uma “boa” teoria conspiratória da história – que nem valeria o
esforço de desmenti-la, se não fosse a existência de tantos crédulos nos países retardatários,
sempre em busca de um bode expiatório para culpá-lo pela sua industrialização deficiente ou
o seu desenvolvimento insatisfatório. Mais uma vez Chang falha em trazer as “provas
históricas” desse tipo de argumento, e apenas avança as recomendações dos atuais
448
“conselheiros washingtonianos” como a evidência de que os países ricos desejam manter
todos os demais no fundo do poço do não-desenvolvimento: para isso, eles “chutam a
escada”, num sentido metafórico, claro, pois a única coisa que fazem seria recomendar
políticas que inviabilizariam a “subida da escada”, mantendo os retardatários na eterna
dependência dos que estão no topo.
Curioso que esses mesmos “alpinistas industriais” investem nos retardatários, e não
apenas para contornar barreiras comerciais e outras restrições ao capital estrangeiro, como
sabemos por todos os exemplos dos movimentos de capitais de risco na história econômica
mundial. Mais curioso ainda é que todo esse ardor obstrucionista não impediu os Estados
Unidos e a Alemanha, no século 19, e os demais países avançados, na passagem da segunda
revolução industrial – grosso modo a partir dos anos 1870 – de galgarem eles também a
escada da industrialização e do desenvolvimento econômico. Seria por que a história só
começa, de verdade, quando as ex-colônias pretendem se industrializar? Mas tanto o Japão
“feudal”, como a Coreia “colonial” desmentem a visão conspiratória do bloqueio dos ricos
exercido contra os pobres periféricos, como isso também é cabalmente desmentido por outros
exemplos atuais em outras regiões.
Certo, Chang e seus seguidores poderiam argumentar que os “asiáticos” – que são os
exemplos que ele seguidamente invoca para comprovar a sua “teoria” – justamente não
seguiram as recomendações do Consenso de Washington e por isso puderam se desenvolver
com base em políticas ativas; aquelas mesmas supostamente utilizadas outrora pelos países
ricos e que agora eles não mais recomendam aos retardatários (ao contrário, buscam impedir
por todos os meios). A história é, contudo, mais complexa. Assim como Chang não conseguiu
estabelecer relações de causalidade entre as suas “políticas ativas” e o progresso industrial e
tecnológico nos países hoje ricos, ele tampouco consegue provar de maneira cabal que são
essas políticas que estão na origem do desenvolvimento relativo dos países asiáticos.
O fato é que os países de desenvolvimento rápido na Ásia – e também em algumas
outras regiões, como no Brasil, tempos atrás – conseguiram “construir” condições
institucionais que puderam atender, eventualmente, a alguns dos “requerimentos” – talvez
necessários, mas certamente não suficientes – que os colocaram no caminho da autonomia
tecnológica e industrial; entre eles fatores de natureza fiscal, tributária, logística e, acima de
tudo, de cunho cultural e educacional compatíveis com as “regras” do desenvolvimento. O
processo é certamente complexo e reduzi-lo a medidas de política industrial ou comercial,
quaisquer que sejam os méritos respectivos dessas últimas, pode tornar impossível o ato de
manter-se fiel ao registro histórico e à realidade de determinadas experiências concretas.
449
De resto, até um período ainda recente da história econômica mundial, existem tantos
exemplos de sucesso quanto de fracasso na história da industrialização contemporânea –
como a Europa do Sul ou a América Latina – e estes últimos, curiosamente, não são
enfatizados por Chang em sua “reconstituição” do desenvolvimento de uns e outros. O
trabalho do historiador – a fortiori do “planejador” de desenvolvimento, também – envolve
presumivelmente a consideração de todos os casos relevantes, e não apenas os de sucesso. É
verdade que aprendemos tanto, ou mais, com os casos de fracasso – e mesmo com desastres
espetaculares – pois são eles que podem nos indicar a combinação errada da “receita” do
desenvolvimento – se é que ela existe –, quando os fatores de sucesso podem ser múltiplos e
difíceis de determinar.
Como indica, aliás, a história da própria humanidade – na qual a maior parte dos
povos ainda vegeta em baixos níveis de prosperidade e de bem-estar – o mundo é feito bem
mais de “fracassos” que de “sucessos”, ainda que esses conceitos sejam altamente dúbios,
para não dizer completamente equivocados. Dos 35 a 40 bilhões de seres humanos que já
viveram na superfície do planeta, provavelmente um número muito reduzido, equivalente,
digamos, a 5% desse total, desfrutou, até hoje, de uma esperança razoável de vida, com o
gozo simultâneo de bons padrões de alimentação e de bem estar. A afluência material – isto é,
a “libertação” da penúria, da fome e da doença – ainda é algo relativamente “recente” na
história da humanidade, correspondendo, talvez, aos últimos dois ou três séculos de avanços
na agricultura e de progressos industriais.
Ao se questionarem “por que o mundo todo não é desenvolvido?”,5 os historiadores
economistas acabam chegando aos verdadeiros fatores de progresso material e de avanços
tecnológicos que, longe de terem sido provocados por “políticas industriais e comerciais”, têm
a ver, basicamente, com os ganhos de produtividade do trabalho humano ao longo do tempo e
em diferentes sociedades, aspecto eminentemente vinculado ao desenvolvimento cultural, de
modo geral, e à educação básica e técnica, de modo particular. Estes são fatores que um
economista historiador – mas Chang não é um – deveria considerar na avaliação das

5
Ver, a este propósito, o trabalho, já antigo, de Richard A. Easterlin, “Why Isn't the Whole World
Developed?”, The Journal of Economic History (vol. 41, n. 1, The Tasks of Economic History, March
1981, p. 1-19; disponível: http://links.jstor.org/sici?sici=0022-
0507%28198103%2941%3A1%3C1%3AWITWWD%3E2.0.CO%3B2-Y). Cabe reconhecer que esse
autor foi excessivamente otimista em suas suposições mais importantes – sobre a disseminação cada
vez mais rápida dos elementos culturais e educacionais que “produziram” desenvolvimento em vários
países –, mas talvez ele tenha razão no longo prazo. Infelizmente, esse prazo tem-se revelado
desnecessariamente mais longo do que o desejável para muitos povos, mas fatores políticos, não
técnicos ou econômicos, podem explicar esse atraso inexplicável para os padrões da racionalidade
ocidental.
450
diferentes experiências nacionais de desenvolvimento, não um aspecto, apenas, da ação
governamental, sob a forma de uma ou outra política setorial, em favor deste ou daquele ramo
industrial.
Quanto ao complô dos países ricos para “chutar a escada” dos retardatários, bem,
ficou, é verdade, faltando tratar desse “aspecto” da história com maior grau de detalhe. Mas a
crença é tão ridícula que me constrange ter de levantar argumentos para derrubar hipótese tão
fantasiosa. Para começar, ela contraria a “lógica” – se alguma existe – da economia de
mercado (e do próprio capitalismo, diriam alguns marxianos mais razoáveis) que consiste em
ampliar continuamente a “esfera da acumulação” – para retomar esse linguajar barroco – e
conectar os mercados de forma contínua. Como já tinha explicado Marx em 1848, o capital
busca sempre derrubar barreiras feudais e muralhas de modos de produção ancestrais, para
instalar suas máquinas infernais, que seriam teoricamente suscetíveis de submeter à sua
dominação implacável os povos de todo o mundo, ainda que convertidos em um “exército
industrial de reserva” (logicamente, para deprimir os salários dos trabalhadores na pátria de
origem do capital; para o que mais seria?). Por que, nessas condições, desejaria o capital
restringir as possibilidades de desenvolvimento capitalista na periferia? Deixo a resposta – se
é que existe alguma, racional, quero dizer – aos adeptos da teoria do bloqueio capitalista.
A rigor, essa tese já era inoperante, inaplicável e “fantástica” na época do próprio
mentor de Chang, o economista alemão Friedrich List – que publicou seu livro de economia
política em meados do século XIX – e parece-me que ela continua a ser tudo isso, mais de
150 anos depois. De fato, a teoria conspiratória não se sustenta, e só consegue desmoralizar
seus partidários, a menos, claro, que eles sejam imbuídos dessa crença numa “história secreta
do capitalismo”, que só consegue causar frisson naqueles imbuídos do “secreto desejo” de
enterrar o (mal)dito sistema. A verdade é que, numa economia de mercado, que combina
diversos tipos de capitalismos, o processo de desenvolvimento adota caminhos diversos,
nenhum deles controlável por alguma força social específica, e muito menos por governos ou
atores sociais estrangeiros. Nessas condições, imaginar que capitalistas e burocratas do FMI e
do Banco Mundial se reúnam na calada da noite – ou talvez nas reuniões anuais do Fórum
Econômico Mundial – para encontrar maneiras de impedir países pobres de ascender na
escala do desenvolvimento, cozinhando para eles receitas de não-desenvolvimento, acreditar
nisso representa bem mais do que defender alguma teoria conspiratória da história e
redundaria, simplesmente, em ofender a mais comezinha inteligência econômica (além de
fazer pouco caso, obviamente, da própria inteligência dos burocratas e dirigentes de países
pobres, ou pelo menos daqueles que não foram “comprados” pelos primeiros).
451
Quem adota esse tipo de postura – histórica ou econômica – também costuma
enveredar por outras teorias fantasiosas para explicar o sucesso de alguns e a “derrota” de
outros, já que as teorias conspiratórias se retroalimentam e produzem, de contínuo, novas
razões para velhos fracassos, como, por exemplo, a persistente pobreza e a imensa
desigualdade na maior parte dos países latino-americanos. Muitos – espera-se, ao menos, que
este número seja decrescente – acreditam que isso se deve à exploração imperialista e à
existência de estruturas capitalistas produtoras de miséria e de desigualdade; mas eu não
preciso antecipar o que penso a respeito, não é mesmo? Os que assim “pensam” – se o verbo
se aplica – não estão apenas ofendendo a simples verdade dos fatos e distorcendo a natureza
do processo histórico; eles também estão diminuindo suas próprias chances de ascenderem a
uma explicação mais consistente sobre as verdadeiras causas do atraso de alguns povos e do
progresso de outros. De certa forma, eles estão “chutando a escada” que os levaria a um
patamar superior de conhecimento.
Mas este parece ser o destino de muitas falácias acadêmicas: baseadas num contato
superficial com a realidade, elas acabam desenvolvendo uma explicação de “senso comum”
que não é apenas redutora e simplista, mas que se alimenta de suas próprias crenças
equivocadas.

Brasília, 20 de janeiro de 2009


Publicado em Espaço Acadêmico
(ano 8, n. 93, fevereiro de 2009; disponível no link:
http://www.espacoacademico.com.br/093/93pra.htm; arquivo em pdf:
http://www.espacoacademico.com.br/093/93pra.pdf).

452
A Teoria do Comércio Internacional Revisitada

Paul R. Krugman:
Rethinking International Trade
(Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1990)

Jacob Viner, ao introduzir suas seis conferências sobre comércio internacional e


desenvolvimento econômico em princípios dos anos 50, na Fundação Getúlio Vargas do Rio
de Janeiro, não deixava de reconhecer que a teoria clássica do comércio internacional tinha,
num certo número de aspectos, “limitações enquanto guia para a política [econômica]
nacional ou mundial nas circunstâncias atuais”. Mas, ele acrescentava logo em seguida: “Eu
vim aqui, no entanto, mais para elogiar do que para denegrir a teoria clássica. Nesta e nas
leituras subsequentes, vou argumentar que ela ainda tem muito a nos ensinar e que as
tentativas de substituição tanto por novas doutrinas como por velhas doutrinas revividas, a ela
opostas, estão longe de ser, no conjunto, um marco de progresso intelectual”.1
Com efeito, desde os tempos em que Ricardo argumentava em favor de se manter
Portugal como eterno fornecedor de vinhos, em troca dos tecidos ingleses, que a teoria do
comércio internacional, pelo menos em sua vertente “pura” das vantagens comparativas, não
recebia contribuições substanciais suscetíveis de alterar seus fundamentos teóricos e
pressupostos empíricos. Ela permaneceu relativamente intocada até muito recentemente, a
despeito mesmo das críticas formuladas no século XIX por Friedrich List, dos
“aperfeiçoamentos” introduzidos nos anos trinta por Ohlin, a partir da importância
quantitativa de diferentes fatores ou recursos nacionais, bem como, mais recentemente, por
autores modernos, como Bela Balassa, ao sublinhar o papel das economias de escala no
incremento do comércio exterior. Faltava, porém, uma contestação teórica capaz de ajustar-se
às exigências e requisitos da moderna economia política, que trabalha cada vez mais com
modelos teóricos e formulações matemáticas, ao estilo das elegantes equações inauguradas
pela Escola de Lausanne há quase um século.
Essa lacuna teórica talvez tenha sido completada, na obra do “revisionista” Paul
Krugman, Professor de Economia do MIT e um dos modernos expoentes da “política
comercial estratégica”, que aliás é o título de um livro por ele editado anteriormente.2 O

1
Vide Jacob Viner, International Trade and Economic Development: Lectures delivered at the
National University of Brazil (Oxford: Clarendon Press, 1953), p. 1.
2
Paul R. Krugman (ed.), Strategic Trade Policy and the New International Economics (Cambridge:
MIT Press, 1986).
453
volume ora em resenha é uma coletânea dos trabalhos escritos por Krugman (dois em
colaboração) nos últimos dez anos, textos agora agrupados sob o label “new trade theory”
que, segundo ele, representaria um “desafio fundamental” à velha teoria pura do comércio
internacional.
Como ele mesmo explica, “a nova teoria do comércio é uma abordagem do comércio
internacional que enfatiza precisamente as características da economia internacional que a
teoria tradicional do comércio internacional deixa de fora: economias de escala [increasing
returns] e competição imperfeita” (p. vii). Apesar de que a apresentação de orelha deste livro
saliente que a “nova teoria do comércio” de Krugman “oferece, entre outras possibilidades,
novos argumentos contra o livre comércio”, o autor é muito menos enfático nas suas
prescrições de política comercial. Estas, aliás, são muito poucas e se destinam muito mais a
testar os modelos apresentados do que a fornecer munição aos protecionistas enragés do
Congresso norte-americano.
Krugman certamente adota uma abordagem revisionista sobre as pretensas virtudes de
uma política liberal de comércio, mas ele está longe de sugerir a adoção irrestrita do comércio
administrado ou do protecionismo retaliatório. O que ele faz é demonstrar que o comércio
muitas vezes deriva mais das oportunidades abertas pelo aproveitamento das economias de
escala por meio de exportações do que de supostas vantagens comparativas. Os padrões de
especialização comercial não são necessariamente derivados das vantagens comparativas
naturais (ou pelo menos da “dotação global de recursos” de um determinado país), mas de
fatores arbitrários, tais como: eventos históricos, efeito eventual de processos cumulativos,
mudanças tecnológicas e, por que não?, choques econômicos temporários.
Da mesma forma, Krugman contesta a visão puramente “ideológica” sobre o
protecionismo, mostrando que, sob certas condições, ele pode ser um remédio “razoável” para
determinada indústria. O que não quer dizer que todos os países devem, ao mesmo tempo,
proteger um determinado ramo industrial considerado, por uma ou outra razão, “estratégico”.
Com a ajuda de modelos matemáticos tão elegantes quanto incompreensíveis para o leitor
leigo, Krugman “demonstra”, no entanto, que, se um determinado país decide proteger uma
determinada indústria – a aeronáutica civil, digamos – ele pode conseguir economias de
escala suficientes para criar um ganho líquido, ou até mesmo preços menores para os
consumidores nacionais.
Por outro lado, a “nova teoria do comércio” não é exatamente um substitutivo à
tradicional defesa do livre comércio no campo da política comercial, mas ela pode, sim
representar uma espécie de “second-best case”, no qual, pela utilização de certos mecanismos
454
– subsídios à exportação, tarifas temporárias e outros –, um país pode alterar a especialização
internacional em seu favor.
A contribuição teórica mais importante de Krugman não deve ser considerada, porém,
do ponto de vista da “política comercial prática”; ela se dá mais do lado da modelização
formal dos fluxos de comércio baseado nas economias de escala, realização acadêmica
relativamente recente. A dificuldade principal para a mudança de paradigma residia no
problema da estrutura do mercado, ou seja nas suposições (sempre imperfeitas) que os
economistas fazem sobre uma economia em situação de competição perfeita, algo que todos
sabemos irrealizável. Mas, à medida em que a teoria econômica passou a incorporar, desde os
anos 70 sobretudo, modelos sobre organização industrial, estava aberto o caminho para a
reformulação da teoria pura do comércio internacional. A longa dominação de Ricardo –
vantagem comparativa – sobre Adam Smith – economias de escala – encontra, assim, em
Krugman, um limite teórico. Como diz o autor, “uma vez que se percebeu que artigos sobre o
comércio baseado em vantagens não-comparativas podiam ser tão precisos e perfeitos quanto
artigos escritos no molde tradicional, o caminho estava aberto para uma transformação rápida
[da teoria do comércio internacional]” (p. 4).
Mais, interessante ainda é constatar que, chez Krugman, um papel importante é
atribuído à História: ele leva em consideração fatores contingentes nos processos cumulativos
que conduzem à especialização ulterior. Sobre a doutrina do desenvolvimento desigual e a
perene questão da divisão entre países ricos e pobres, Krugman demonstra – sempre
matematicamente – que a história pesa: uma pequena disparidade inicial na industrialização
pode levar a uma crescente desigualdade no decorrer do tempo. Ele chega mesmo a
reconhecer méritos nas teorias de Lênin e de Hobson sobre o imperialismo (vide Capítulo 6:
“Trade Accumulation, and Uneven Development”, p. 93-105). Resta saber como os teóricos
do desenvolvimento desigual (Amin, Frank, Emmanuel, Löwy) e os adeptos da teoria da
dependência (Theotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso), hoje em franca regressão
na academia, receberão essa adesão tão inesperada quanto tardia por parte de um professor do
MIT.
As observações mais relevantes dizem respeito ao papel da mudança tecnológica como
o fator chave a guiar a especialização internacional. O Capítulo 9 (“A Model of Innovation,
Technology Transfer, and the World Distribution of Income”) desenvolve um modelo
sensivelmente diferente dos modelos convencionais ricardianos ou de Heckscher-Ohlin, no
qual o padrão de comércio é determinado por um processo contínuo de inovação e de
transferência de tecnologia. As lições são, neste caso, tão triviais quanto decisivas: o processo
455
de inovação é importante não necessariamente para fazer um país avançar, mas tão
simplesmente para mantê-lo no mesmo lugar. Em outros termos, num mundo dinâmico, o país
que não inovar pode estar seguro de regredir, tanto absoluta quanto relativamente. Para os
países em desenvolvimento, ademais do efeito indireto da transferência de tecnologia, o
modelo também acrescenta o benefício indireto da melhoria nos termos do intercâmbio. Mas,
como tudo tem a sua contrapartida, essa situação, ao prejudicar os trabalhadores dos países
desenvolvidos, traria o recrudescimento do protecionismo.
Finalmente, no que diz respeito à utilidade prática da “nova teoria” para as políticas
públicas, muitos protecionistas enrustidos ou declarados gostariam, é claro, de encontrar nela
argumentos contra o livre comércio, ou, pelo menos, uma rationale acadêmica para a
aplicação de sanções comerciais contra (adivinhe quem?) o Japão. Nada disso, segundo
Krugman. Em primeiro lugar, ele está preocupado, antes de tudo, com a elegância
matemática de seus modelos: “in the long run contributing to understanding may be more
important than offering an immediate guide for action” (p. 7). Em segundo lugar, ainda que
um certo grau de proteção doméstica possa representar um excelente mecanismo de promoção
de exportações e de transferência de renda, a estratégia não pode pretender um funcionamento
adequado se generalizada para o conjunto da indústria.
O livro de Krugman é, sem dúvida alguma, importante para acadêmicos e planejadores
governamentais, mas não se pode esperar retirar dele argumentos edificantes ou justificativas
matemáticas para cometer pecados veniais no campo da política comercial. Ele fornece, isso
sim, uma rationale elegante para a prática de políticas ativas nos terrenos industrial e de
pesquisa e desenvolvimento, mesmo se isto não significa, em absoluto, congelar mercados
para tentar salvar alguns dinossauros improdutivos. Por outro lado, a discussão sobre o papel
das novas tecnologias – que implica uma política de sustentação de suas chances no mercado
– é suficientemente clara para merecer uma leitura atenta por parte dos “neoliberais” da
abertura comercial unilateral.
Mas, sem o argumento da modelização matemática, essa justificativa já vinha sendo
praticada empiricamente pelas lideranças brasileiras há muito tempo, desde os anos 30
provavelmente, ainda que de forma inconsciente. Para tanto, muito contribuiu a obra de um
economista romeno muito lido, desde essa época, pelas elites industriais paulistas, Roberto
Simonsen, por exemplo.3 Trata-se de Mihail Manoilescu, autor de uma muita comentada

3
Para uma análise da importância do livro de Manoilescu na discussão entre agraristas e industrialistas
no desenvolvimento brasileiro, ver o artigo de Joseph L. Love, “Theorizing underdevelopment: Latin
456
(quanto mal interpretada) Théorie du Protectionnisme et de l’échange international (Paris,
Marcel Giard, 1929). Krugman, a despeito de seus passeios pela história, em nenhum
momento se refere a esse epígono do protecionismo industrial que foi Manoilescu (et pour
cause, sua bibliografia é exclusivamente em inglês).
Cabe esclarecer aqui, antes de concluir, que Manoilescu não advogava simplesmente
um protecionismo defensivo ou retaliatório, nem pretendia fechar a economia às vantagens do
comércio internacional: ele pretendia, mais bem, demonstrar que valia a pena praticar um
pouco de protecionismo sempre e quando o país se capacitava para mudar sua pauta de
exportação para produtos de maior valor agregado, isto é, necessariamente industriais.
Em resumo, esse Krugman avant la lettre que foi Manoilescu apresentava, em outra
linguagem que não a de equações matemáticas bem calibradas, uma rationale intelectual para
a prática de uma ativa política industrial e comercial em benefício do desenvolvimento
nacional, o que, em última instância foi o que sempre praticaram, de forma empírica, as
lideranças brasileiras mais conscientes. E é o que, de forma teórica, defende agora Krugman,
implicitamente, para seu próprio país. Mais uma vez, a teoria do comércio internacional é
mobilizada para consolidar uma política historicamente definida de aumento do poder
nacional. Como se diz no final de teoremas: era o que era preciso demonstrar.

Brasília: 30 de março de 1992.


Publicado na Revista Brasileira de Comércio Exterior
(Rio de Janeiro: FUNCEX, n. 32, Julho-Agosto-Setembro de 1992, p. 45-47).

america and Romania, 1860-1950”, Estudos Avançados (São Paulo, IEA-USP, vol. 4, nº 8, Janeiro-
Abril de 1990, p. 62-95).
457
Em busca de um paradigma diplomático

Celso Lafer:
Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática
(São Paulo: Paz e Terra, 1999)

Desde o final dos anos 60, quando publicou um artigo pioneiro nesta mesma revista
(“Uma interpretação do sistema das relações internacionais do Brasil”, RBPI, Rio de Janeiro:
ano 10, n. 39/40, 1967, pp. 81-100), o professor e empresário Celso Lafer tem sido uma das
presenças mais constantes, se não a mais frequente, na bibliografia brasileira de relações
internacionais. Gerações de estudantes das universidades e da academia diplomática (o
Instituto Rio Branco do MRE) debruçaram-se sobre seus artigos e livros, dali retirando
reflexões inovadoras sobre o papel do realismo e do idealismo na política internacional, lições
enriquecedoras sobre as desigualdades intrínsecas entre as nações na ordem política e na
economia internacional, sobre a situação do Brasil no comércio internacional, bem como
contribuições de alto sentido filosófico e moral sobre a defesa dos direitos humanos e das
causas humanitárias num mundo em mudança. Mas Celso Lafer não apenas desempenhou-se
como intelectual de grande brilho nas lides acadêmicas; ele também exerceu seu talento na
gestão prática das relações internacionais e na política exterior do Brasil, retomando com isso
uma herança familiar, pois que é sobrinho do falecido político Horácio Lafer, que foi ministro
da Fazenda do segundo governo Vargas e Chanceler de Juscelino Kubitschek.
O livro aqui resenhado combina um pouco de todas essas aquisições intelectuais ao
longo de uma vida dedicada ao estudo e ao trabalho em suas diferentes vertentes práticas de
defesa dos interesses nacionais do Brasil no plano externo, pois que reunindo o que o autor
chamou de “reflexões sobre uma experiência diplomática”. Ele já tinha tido a oportunidade de
demonstrar suas qualidades à frente da chancelaria brasileira, num curto porém profícuo
período do início dos anos 90. Os textos coletados neste livro remetem à sua estada em
Genebra, como representante brasileiro junto à OMC (que recuperou e desenvolveu o legado
institucional do antigo GATT) e os demais organismos internacionais ali sediados, com
destaque para a Conferência do Desarmamento e a Comissão dos Direitos Humanos
(conformando as três seções em que se divide o livro).
Em Genebra, Celso Lafer não foi, porém, um simples representante “burocrático” dos
interesses brasileiros nesses órgãos cruciais para nosso desenvolvimento econômico e nossa
imagem externa, mas atuou propriamente no sentido de elevar o status do País no diálogo que

458
ali se trava sobre temas comerciais, estratégicos e humanitários. Seus “relatórios” de gestão
sobre os mecanismos de revisão de políticas comerciais ou sobre o órgão de solução de
controvérsias, por exemplo, ou suas considerações sobre o “prosaico” regime de origem são
invariavelmente recheados de argumentos de ordem geral, retirando ensinamentos sobre as
formas de melhor inserir o Brasil no plano econômico mundial. Um dos melhores textos do
volume é, precisamente, o que apresenta suas reflexões sobre os 50 anos do sistema
internacional de comércio, do qual o Brasil é um dos founding fathers, tendo estado presente
na criação do GATT em 1947-48. Essa primeira parte do livro de certo modo retoma e
completa sua contribuição anterior oferecida em A OMC e a regulamentação do comércio
internacional: uma visão brasileira (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998).
No plano estratégico, igualmente, as conhecidas lições do intelectual dos anos 70 e 80
– sobre a conhecida disjunção entre ordem e poder no plano mundial – são retomadas em seus
argumentos sobre o novo quadro estratégico surgido com o final da Guerra Fria e a
perspectiva concreta de um processo realista de desarmamento nuclear. Suas reflexões sobre
as nova dimensões do desarmamento incorporam aliás a primeira “racionalização” de amplo
escopo sobre a política externa brasileira depois da decisão corajosamente assumida pelo
Presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997 de fazer o Brasil aderir ao Tratado de Não-
Proliferação Nuclear – durante anos denunciado pela diplomacia brasileira como
discriminatório e ineficaz – e de inserir o País nos mais importantes esquemas de controle de
armas de destruição em massa e seus vetores (Nuclear Suppliers Group, Regime de Controle
de Tecnologias de Mísseis, CTBT, etc.). Esse mesmo texto, preparado originalmente para
seminário organizado pela Fundação Alexandre de Gusmão e pelo IEA-USP, encontra-se
aliás reproduzido em outro volume recentemente publicado, digno de registro: O Brasil e as
novas dimensões da segurança internacional, organizado por Gilberto Dupas e Tullo
Vigevani (São Paulo: Alfa-Ômega, 1999). Num outro artigo dessa mesma seção, sobre os
chamados “dividendos da paz”, Celso Lafer lembra que já em 1960 o Chanceler Horácio
Lafer propunha que se criasse um fundo internacional para o desenvolvimento, com recursos
da corrida armamentista, que tinha de ser detida.
No plano da defesa dos direitos humanos, finalmente, não é preciso relembrar o papel
de intelectual engajado e de promotor ativo desses direitos que Lafer exerceu durante toda a
sua vida, aspecto já refletido, aliás, em muitos de seus trabalhos anteriores. Junto com
Antônio Augusto Cançado Trindade, Lafer forma no batalhão de frente da proteção dos
direitos humanos no plano interno brasileiro, tendo patrocinado a incorporação vários
instrumentos que se encontravam numa espécie de “limbo” diplomático ou legal. A
459
comemoração dos 50 anos da Carta da ONU e, logo em seguida, os da Declaração Universal
de 1948 oferecem-lhe oportunidade para ressaltar o papel da organização na defesa desses
direitos, no qual se destacam as atividades da CDH, criada já em 1946.
No conjunto, os textos coletados oferecem mais do que simples “reflexões sobre uma
experiência diplomática”, de fato várias, pois que eles consolidam também os ensinamentos
de sua gestão anterior como Chanceler à época da Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (1992). Eles conseguem realizar, na verdade, a virtude rara de
combinar o insight diplomático com a sistematização teórica de quem, tendo começado sua
carreira numa perspectiva quase que “kantiana” de observações e comentários gerais sobre a
natureza do poder, teve em seguida a oportunidade de exercer seus talentos na vida prática de
negociador internacional engajado na defesa dos interesses do País.

Washington, 2 de novembro de 1999.


Publicada na Revista Brasileira de Política Internacional
(Ano 41, n. 2, julho-dezembro de 1999, p. 178-180).

460
O desenvolvimento na era da globalização

Mônica Teresa Costa Sousa Cherem e Roberto Di Sena Júnior (eds.):


Comércio Internacional e Desenvolvimento: uma perspectiva brasileira
(São Paulo: Editora Saraiva, 2004, 216 p.; ISBN: 85-02-04771-X).

O Embaixador Rubens Ricupero, recém retornado ao Brasil após nove anos à frente da
UNCTAD, em Genebra, assina um interessante prefácio a este livro, chamado “Teoria geral
do desemprego, da usura e da especulação”, no qual ele tece considerações de espírito
keynesiano em torno do eterno problema da desigualdade nas relações econômicas
internacionais. Este livro, injustamente pouco noticiado pela mídia, foi lançado, justamente,
quando se realizava em São Paulo, em junho de 2004, a XI UNCTAD (a primeira e única vez
no Brasil, graças ao empenho de Ricupero). Na conferência foram discutidos os principais
problemas dos países em desenvolvimento no contexto global, mas a obra adota uma
perspectiva propriamente brasileira, como diz o subtítulo, para enfocar os mesmos problemas,
com ênfase na questão do comércio internacional.
Os autores são especialistas acadêmicos e pesquisadores do ramo, todos com trabalhos
anteriores em suas respectivas áreas. Estas cobrem a evolução histórica do conceito de
desenvolvimento, os desafios da globalização e todo o itinerário teórico e prático do comércio
internacional, inclusive no que se refere sua estrutura institucional (isto é, a passagem do
GATT para atual OMC), com um exame mais detido da experiência do Brasil nas diversas
rodadas negociadoras. Os ensaios traduzem muito bem o aperfeiçoamento do pensamento
brasileiro em matéria de desenvolvimento econômico no contexto do sistema multilateral de
comércio, vale dizer, da globalização produtiva e da liberalização dos regimes de
investimentos diretos estrangeiros. A obra cumpre seu papel de oferecer uma discussão
informada, tecnicamente rigorosa e metodologicamente bem fundamentada, sobre os diversos
aspectos envolvidos nos desafios do processo de desenvolvimento na era da globalização.

Brasília, 24 janeiro 2005.


Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA, n. 7, fevereiro de 2005, p. 78).

461
A OMC e os países em desenvolvimento

Rabih Ali Nasser:


A OMC e os países em desenvolvimento
(São Paulo: Aduaneiras, 2003)

O desenvolvimento é um animal relativamente novo nas relações internacionais. Tal


afirmação pode parecer esdrúxula se considerarmos a quantidade de vezes que esse conceito
aparece nos discursos de líderes políticos, nos documentos das organizações
intergovernamentais ou nas declarações de lançamento das negociações comerciais
multilaterais. Com efeito, existe uma verdadeira inflação de referências ligadas ao
desenvolvimento, geralmente como exortação, como objetivo ou mesmo como justificativa de
qualquer iniciativa ou ação que se pretende tomar nesses foros. Se examinarmos mais de
perto, porém, veremos que essa inundação terminológica apareceu no último meio século, se
tanto, sendo suas ocorrências bem mais raras na primeira metade do século XX e
praticamente inexistentes no decorrer do século XIX, pelo menos no sentido propriamente
econômico, com cuja dimensão o conceito está modernamente identificado.
De fato, a criatura praticamente não comparece nos livros clássicos da economia
política da era do laissez-faire: John Stuart Mill fala, no máximo, em aumento do capital e, se
o conceito aparece em Alfred Marshall, é mais como equivalente de evolução em direção da
liberdade de empreendimento do que como sinônimo de processo consciente de expansão
induzida do nível de atividade e o resultante progresso social. Keynes estava sobretudo
preocupado com o fenômeno do crescimento, já que a Inglaterra ainda era uma das economias
mais “desenvolvidas” em sua época. O fato é que apenas com o nascimento do sistema
onusiano, no pós-Segunda Guerra, essa noção acaba adquirindo direito de presença na
terminologia política e logo depois econômica (nessa ordem), para transformar-se,
atualmente, num verdadeiro deus ex machina das relações internacionais contemporâneas, a
ponto de poder ser comparado a uma espécie de “Santo Graal” dos tempos modernos.
Tampouco pode-se dizer que o conceito de “países em desenvolvimento” tenha
alcançado à “terceira idade”, pois até os anos 1960, praticamente, o mais comum era a
antecessora – hoje politicamente incorreta – noção de países “subdesenvolvidos”. É dessa
época o surgimento, como grande “vitória” desses países, da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, na sua sigla em inglês –, coroando um
processo de vinte anos de “lutas” desde as conferências de Bretton Woods e de Havana, sobre
462
temas financeiros e monetários e de comércio, respectivamente. Em Bretton Woods, a questão
praticamente não se colocou, pois se tratava basicamente de restabelecer um sistema
multilateral de pagamentos – moedas e finanças – confiável para o restabelecimento dos
intercâmbios globais, resultando na criação de um padrão ouro-dólar que foi resolvido quase
que exclusivamente entre os Estados Unidos e o Reino Unido. Depois de um certo esforço, e
sob forte demanda dos países latino-americanos ali presentes, se logrou acoplar o epíteto de
“desenvolvimento” ao Banco de Reconstrução que deveria servir para restaurar a
infraestrutura física dos países destruídos pela guerra.
Não se tratava, porém, de uma exclusão “perversa”, isto que se pensava o sistema
internacional como uma arena igualitária – level playing field – para parceiros unidos por um
mesmo conjunto de direitos e obrigações, em condições plenas de reciprocidade (aliás, um
dos pilares do Acordo Geral de Comércio e de Tarifas Aduaneiras, negociado em 1947 em
Genebra). Em Havana, quase três anos depois de Bretton Woods, a Carta que criou a primeira
Organização Internacional de Comércio dedicou, é verdade, vários de seus dispositivos às
necessidades dos “países subdesenvolvidos” mas, ao não ter sido ela ratificada, o sistema
multilateral de comércio precisou se desempenhar a partir dos princípios “igualitários” do
GATT, que permaneceu “provisoriamente” em vigor durante meio século aproximadamente.
Daí os esforços dos países em desenvolvimento para compensar essa igualdade
ilusória com procedimentos “diferenciais” em seu favor, introduzindo noções como “não-
reciprocidade” ou o “tratamento especial e mais favorável”, ademais do objetivo de um
“sistema geral de preferências” através do qual eles não precisariam “pagar” os benefícios
comerciais por eles obtidos das partes contratantes mais avançadas mediante concessões
equivalentes. Essas metas foram consagradas na reforma do GATT em 1964, através da
introdução de uma Parte IV – Comércio e Desenvolvimento – bem como implementadas nas
primeiras reuniões da UNCTAD, ainda que o SGP tenha permanecido basicamente unilateral
e arbitrário. As duas décadas seguintes foram os “anos de ouro” da ideologia
desenvolvimentista – como relatei em meu livro O Brasil e o Multilateralismo Econômico
(1999) – até a (re)emergência, nos anos 1980, e a crescente afirmação dos princípios liberais,
defendidos nas doutrinas econômicas do austríaco Friedrich Hayek e do americano Milton
Friedman e identificados com os governos de Margareth Tatcher, na Grã-Bretanha, e de
Ronald Reagan, nos EUA.
Este quadro histórico permite colocar em perspectiva o livro aqui resenhado de Rabih
Ali Nasser, A OMC e os países em desenvolvimento, que constitui uma excelente contribuição
ao enriquecimento da literatura especializada. Com efeito, se não são poucos os economistas
463
ou historiadores, desde Caio Prado Júnior e Celso Furtado, que trataram do desenvolvimento
econômico do Brasil, muito poucos são os especialistas, sobretudo juristas, que souberam
analisar a dimensão especificamente comercial desse processo. Em Celso Furtado ou em Caio
Prado Júnior, para citar os autores clássicos, existe uma discussão dos nossos problemas de
(não-)desenvolvimento econômico que chega até mesmo a colocar a chamada “deterioração
das relações de intercâmbio” ou a mono-especialização exportadora como fonte de
assimetrias e insuficiências tecnológicas.
Não são muitos, portanto, os que analisaram o sistema multilateral de comércio e o seu
papel, se algum, no desenvolvimento econômico do Brasil. Recordemos os trabalhos de Celso
Lafer – A OMC e a regulamentação do comércio internacional (1998) –, de Vera Thorstensen
– OMC: as regras do comércio internacional e a Rodada do Milênio (1999) – e o de Welber
Barral – (org.) O Brasil e a OMC (2002) – para constatar como esse campo ainda se ressente
da inexistência de bons manuais e de sólidas monografias que possam atender as necessidades
dos cursos de direito, de economia e dos agora múltiplos cursos de relações internacionais que
surgem por todo o Brasil, pari passu aos avanços dos processos de globalização e de
regionalização.
O livro de Nasser – sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da USP – tem
assim a virtude de integrar uma seleta bibliografia de títulos especializados sobre uma das
vertentes mais estratégicas da interface internacional do Brasil, sua inserção no sistema
multilateral de comércio na categoria de “país em desenvolvimento”, como não cansamos de
apregoar mesmo já bastante avançado nosso processo industrializador. Ele parte da ideia de
que esse sistema tem como princípios organizadores a ideologia da abertura econômica e a
regra da liberalização comercial, quando se poderia também argumentar que o GATT surge –
como de certa forma o BIRD e o FMI – quando justamente os mercados não funcionam
adequadamente quando deixados inteiramente livres, o que cria, portanto, uma demanda por
regulação e por induções estatais. Não obstante, o livro consegue desvendar o modo de
funcionamento do chamado SMC e sua aplicação ao caso dos países em desenvolvimento,
com as disfunções e desigualdades acumuladas ao longo dos anos, inclusive a partir do
surgimento da OMC.
Dividido em três partes complementares – voltadas, respectivamente, para a ideologia
do livre-comércio, para a análise dos acordos de subsídios e de investimentos e para a
inserção dos países em desenvolvimento no SMC –, o livro de Nasser consegue traduzir para
o leitor leigo um complexo emaranhado de normas e regulamentos que enquadram o
comércio internacional e que incidem diretamente sobre a capacidade de esses países
464
formularem e executarem políticas de desenvolvimento. A orientação analítica deve fornecer
poderosos argumentos aos que mantêm uma visão essencialmente crítica da OMC e dos
efeitos da liberalização ampliada para países como o Brasil. O autor afirma que as atuais
normas de comércio atuam em detrimento dos interesses desses países, mas ele próprio se
empenha em fazer propostas para que eles possam defender esses interesses com novas regras
ou a aplicação cautelosa das existentes, demonstrando ainda como os países desenvolvidos
realizam uma leitura protecionista dessa regras.
Essas recomendações se encaixam no sentido geral da ação que vem sendo seguida
pelo governo Lula na definição de suas diretrizes para a participação do Brasil nos foros
abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia econômica: rodada de Doha, Alca e acordo
Mercosul-UE. Nasser de certa forma antecipou o posicionamento do novo governo brasileiro
em favor da modificação dos acordos de subsídios e de TRIMs, como condição indispensável
para a retomada da capacidade de formulação e implementação de políticas de
desenvolvimento. Pode-se até discordar de alguns pontos defendidos por Nasser em seu livro,
mas não se pode ignorar a solidez e o caráter sistemático de sua análise num campo até aqui
pouco frequentado pelos juristas brasileiros.

Washington, 17 de abril de 2003.


Publicada na revista Política Externa
(vol. 12, n. 1, junho-julho-agosto de 2003; ISSN: 1518-6660; p. 146-148).

465
As relações internacionais do Brasil, versão academia

Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa (organizadores):


Relações internacionais do Brasil: temas e agendas
(São Paulo: Saraiva, 2006, 2 vols.; vol. 1: 368 p., ISBN: 85-02-06042-2; vol. 2: 508 p., ISBN:
85-02-06040-6)

Terreno antes ocupado quase que exclusivamente pela produção estrangeira, o campo
editorial brasileiro das relações internacionais vem ganhando, nos últimos anos, adições
importantes por parte dos próprios pesquisadores e professores brasileiros dessa área.
Ademais da nova edição livro coordenado pelo professor do Irel-UnB, José Flávio Sombra
Saraiva, História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade global do século
XIX à era da globalização (publicado pela primeira vez em 1997, uma segunda vez pelo
IBRI, em 2001, e pela Saraiva, em 2007, em edição revista), estes dois volumes sobre os
temas e agendas das relações internacionais do Brasil, organizado pelos professores Henrique
Altemani e Antonio Carlos Lessa, coordenadores de cursos na PUC-SP e na UnB, constituem
o mais recente exemplo de como a produção nacional tem avançado na última década e meia,
aproximadamente. Eles constituem, sem dúvida alguma, um complemento importante à
bibliografia disponível e parecem destinados a figurar, provavelmente de modo compulsório,
nas leituras exigidas nos cursos de relações internacionais e nos concursos de ingresso à
carreira diplomática (e talvez tenham sido concebidos expressamente com essa intenção).
O press-release da editora confirma, aliás, esse objetivo: “Os dois volumes (…) foram
pensados para o leitor interessado em política externa brasileira – sejam estudantes de
graduação e de pós-graduação, candidatos a concursos públicos, e profissionais que se
dedicam à formulação e à implementação de políticas públicas e privadas com repercussão
internacional – mas também para o cidadão comum, que se inquieta diante das transformações
pungentes da política internacional contemporânea e que quer se informar sobre as respostas
que o Brasil tem dado a essas mudanças.” O mesmo press-release afirma, à maneira de alerta
não desprovido de fundamentação, que a obra “foi organizada para suprir uma grave lacuna
verificada na literatura especializada publicada no Brasil, que é a análise acurada e
circunstanciada da política externa brasileira, desde o início dos anos noventa.” De fato, desde
a organização pioneira por José Augusto Guilhon de Albuquerque e Ricardo Seitenfus dos
quatro volumes da obra Sessenta Anos de Política Externa Brasileira, 1930-1990 (primeira
edição entre 1996 e 2000, atualmente em curso de republicação), cuja preparação tinha sido
feita, justamente, no início da última década do século XX, não se tinha tido outra iniciativa,
466
acadêmica ou diplomática, no sentido de reunir numa única obra um número tão importante e
tão diversificado tematicamente de contribuições originais ao estudo das relações
internacionais do Brasil.
O primeiro volume está dividido em três partes: “Linhas e Forças”, de cunho
generalista e conceitual; “Antigas e Novas Parcerias”, voltada para as relações bilaterais ou
regionais: Estados Unidos, Europa, Ásia, África e mundo árabe; e “O Brasil e o seu Entorno”,
sobre Mercosul, América do Sul e Alca. O segundo volume também comporta três partes,
respectivamente sobre o multilateralismo político e econômico, os grandes temas da agenda
internacional contemporânea, do ponto de vista do Brasil, e o debate porventura existente na
sociedade sobre as opções de política internacional do Brasil (congresso, empresariado, e
academia, ademais do problema federativo).
A atualidade cronológica e a abrangência dos dois novos volumes organizados pelos
professores da PUC-SP e da UnB são, portanto, meritórias, mas a primeira observação que
pode ser feita à publicação em pauta é, precisamente, a que se refere ao espectro de
especialistas recrutados numa e noutra coleção: se os Sessenta Anos de Política Externa
Brasileira tinham sido preparados e contaram com a colaboração ativa de diversos
representantes da própria diplomacia brasileira – alguns aposentados, mas a maior parte da
ativa e com forte presença na formulação e na implementação da política externa –, esta nova
edição conta exclusivamente com representantes da academia. Uma iniciativa anterior, do
próprio Itamaraty – Gelson Fonseca Jr. e Sérgio Henrique Nabuco de Castro (orgs.), Temas de
Política Externa Brasileira, 2 vols., em duas edições nos anos 1990 –, talvez não possa ser
considerada como totalmente objetiva, uma vez que contou exclusivamente com a
participação de diplomatas da ativa. Os organizadores desta obra admitem que “a falta da
visão do Estado, especialmente a dos diplomatas”, foi um risco, mas sua intenção era a de
“demonstrar a existência de um pensamento social dinâmico, especialmente configurado na
academia brasileira especializada”, que seria assim capaz de construir, “criticamente e sem
vieses”, um painel atualizado das relações internacionais do Brasil. A aposta pode ter sido
razoável, mas o risco calculado apresenta algum custo em matéria de perfeita compreensão
dos problemas enfocados.
O prefaciador, Flávio Saraiva, diz que a obra foi “escrita primordialmente por
acadêmicos”, quando na verdade o termo correto seria “exclusivamente”, ainda que um ou
outro dos que assinam os 26 capítulos ostente dupla militância ou uma experiência ocasional
em funções governamentais ou no setor privado. O prefaciador prossegue dizendo, que a obra
“tem rigor acadêmico, mas não circunscreve seu discurso ao teoricismo estéril nem às visões
467
desprovidas de senso prático ou aplicado”, o que talvez seja uma admissão inconsciente de
que iniciativas exclusivamente universitárias ou feitas por acadêmicos em tempo integral
podem eventualmente exibir algum teoricismo ingênuo ou até falta de senso prático. Ele
também acha que a “generosa contribuição” dos autores reforça a “necessidade de rever
aspectos da política exterior do Brasil”, talvez porque eles fizeram “uma reflexão menos
animada sobre as noções românticas do internacionalismo liberal que perdurou no
pensamento de relações internacionais no Brasil e na América Latina na década passada”.
Ficamos sabendo, assim, que o País, antes de 2003, mantinha “ilusionismos gerados pela onda
de adaptação pouco crítica aos paradigmas do imediato pós-guerra fria”, mas que agora
“retomou certa racionalidade no cálculo estratégico externo” (p. viii-ix).
Essa mesma visão, sobre um “antes” e um “depois” na política externa brasileira do
período recente, isto é, antes e depois do governo Lula, comparece no primeiro texto da
coletânea, da autoria do professor Amado Luiz Cervo, que escreve sobre “A ação
internacional do Brasil em um mundo em transformação: conceitos, objetivos e resultados
(1990-2005)”. Ele afirma, por exemplo, que: “o neoliberalismo impregnou a inteligência dos
dirigentes brasileiros nos anos 1990” (p. 14); que a diplomacia brasileira desses anos aceitou
que “o desenvolvimento passasse à dependência dos países ricos, por meio de instruções ou
decisões da OMC” (sic); que essa nova doutrina “aceitou limites para a soberania, fez
concessões” e “encaminhou o País para o desenvolvimento associado promotor de
dependências estruturais” (p. 19). Ele também considera que os “desenvolvimentistas”, que
eram “vistos com repugnância pelos dirigentes, que os qualificavam de retrógrados e
saudosistas”, conseguiram antever os “resultados do neoliberalismo que desejavam evitar” (p.
14). Frente a tantas certezas dicotômicas, em face desse tipo de visão que distingue entre um
mundo “associado” (e necessariamente “neoliberal”) e um outro “autônomo” (obviamente
desenvolvimentista e heterodoxo em matérias econômicas), fica difícil reconhecer rupturas e
continuidades na vertente diplomática, um universo pleno de matizes e de interesses
contraditórios, mas que não costuma separar o mundo entre “gregos” e “troianos”.
O governo Itamar Franco, a despeito de inserido na mesma onda liberalizante e de ter
continuado as privatizações e o programa de redução tarifária iniciado por Collor, é visto
como “fundamental”, uma vez que ele “tomou precauções diante da onda de redução tarifária,
acelerando a integração no Mercosul, propondo a Alcsa [Área de livre comércio sul-
americana] e negociando com firmeza nos foros multilaterais globais” (p. 21). Depois do
“neoliberalismo subserviente e destrutivo em relação ao patrimônio da nação, a promoção do
desenvolvimento associado às forças do capitalismo e a competição internacional perante a
468
égide do livre mercado” – tudo isso supostamente conduzido de forma consciente pelo
governo Cardoso –, ocorreu a “correção de modelo em 2003”. Os novos rumos da política
externa são dominados por quatro orientações: “tirar o País da ilusão kantiana do
ordenamento harmonioso e jogar o jogo duro das relações internacionais que as grandes
potência mantêm”; “atenuar a vulnerabilidade externa herdada da fase anterior”, o que
implicou, supostamente “pela primeira vez”, “a internacionalização da economia brasileira
como movimento de expansão de empresas no exterior, com apoio logístico do Estado”;
intensificar a atuação na América do Sul; reforçar o “poder nacional” e a “conquista de
reciprocidade real” (p. 26-28).
Amado Cervo acredita que o ambiente político na América do Sul “tornou-se
favorável ao curso dessa ideia [a construção de uma unidade política, econômica e de
segurança na região] na virada do milênio, com o triunfo de partidos de esquerda em países
importantes como a Venezuela, o Chile, a Argentina e o Uruguai” (p. 27-28; ele certamente
agregaria a Bolívia e o Equador, se seu texto chegasse ao período recente). Ele incorre em
equívoco ao afirmar que “foi possível negociar a fusão dos dois blocos regionais, o Mercosul
e Comunidade Andina” (p. 28), quando isso jamais ocorreu. Ele também acha que a
ratificação de Tlatelolco e do TNP “foram feitos na ilusão de que o País receberia tecnologias
em área sensíveis, o que não ocorreu” (p. 29), confundindo requerimentos habilitantes e
direitos garantidos de acesso às tecnologias sensíveis.
Respondendo às queixas de empresários que reclamavam acordos de comércio com
países avançados, Amado Cervo alinha-se à diplomacia de Lula: “ao sul movia-se o Brasil
com mais efeito, usando parcerias bilaterais, coalizões de países ou os processos de integração
na América do Sul, tendo em vista, precisamente, dobrar (sic) os países ricos pela negociação
multilateral e levá-los à eliminação de subsídios agrícolas e entraves agrícolas e industriais à
entrada de produtos do sul”. Ele vê uma frente de países emergentes como uma “versão
atualizada e realista, em nada ideológica, do velho terceiro mundismo”, e acredita que a
unidade da América do Sul avançou em 2005, “quando os governos da Argentina, do Brasil e
da Venezuela negociaram uma aliança estratégica que ia além do simples comércio e se
voltava aos setores produtivo e de infraestrutura física” (p. 32).
O problema principal desse tipo de visão, para além de pequenos equívocos de
interpretação na análise de processos concretos de negociação, é que ela parte de uma
caracterização dicotômica da realidade entre, de um lado, um governo arbitrariamente
classificado como “neoliberal” – que seria o equivalente moderno do “entreguista” dos velhos
tempos – e, de outro lado, um governo pretensamente não ortodoxo em matérias econômicas
469
(mas que pratica o “neoliberalismo” em sua política econômica) – que seria necessariamente
“nacional” e “autônomo” no plano externo –, para construir toda uma linha de raciocínio que
vê, em cada ação, postura ou atitude do governo FHC, na frente diplomática e internacional,
uma demonstração cabal de docilidade ou mesmo de submissão a supostas exigências de
reformas (liberais, obviamente) por parte do centro dominante. Esse tipo de visão diminui o
sentido da atuação consciente de diplomatas que trabalharam de modo profissional em ambos
os governos e distorce as condições sob as quais são tomadas decisões e implementadas linhas
de ação na área da política externa, como se, num governo, só existissem concessões e
adaptação e, no outro, apenas firmeza e liderança. Argumentos desse tipo podem servir para
convencer os já convencidos, mas pode-se também dizer que a história da nossa diplomacia já
foi escrita com menor grau de maniqueísmo do que o exibido por certos autores atualmente.
O segundo capítulo, por José Augusto Guilhon de Albuquerque, trata dos desafios de
uma ordem internacional em transição e discute as características do novo sistema pós-guerra
fria e suas implicações para o Brasil. O autor acredita que as “constrições” e ameaças
desencadeadas pelos processos de despolarização e de transnacionalização “são de tal maneira
sobrepostas que é impossível estabelecer parcerias, alianças e alinhamentos integralmente
coerentes entre si” (p. 54), o que abre novos espaços para a formulação da política externa.
Esta pode, a rigor, suportar o “improviso, a idealização, o doutrinarismo”, mas o custo pode
ser alto.
No último capítulo da primeira parte, José Flávio Sombra Saraiva trata da teoria e da
prática das relações internacionais no início do século XXI, quando a ordem internacional é
mais difusa do que sob a guerra fria. Ele vê, não necessariamente uma única sociedade
internacional integrada, mas diversas sociedades internacionais, um verdadeiro arquipélago de
Estados e sociedades muito diversas, com objetivos por vezes conflitantes.
A segunda parte, dedicada às antigas e às novas parcerias, é mais uniforme em sua
metodologia, uma vez que voltada para o exame das relações bilaterais do Brasil com grandes
atores. Mônica Hirst, no capítulo 4, classifica em cinco “As” as fases sucessivas das relações
Brasil-Estados Unidos: aliança (de fato, até os anos 1940), alinhamento (de 1942 a 1977),
autonomia (mantida até os anos 1900), ajustamento (no governo FHC) e afirmação (a partir
de Lula). A despeito do caráter em geral amigável dessas relações, sem confrontos maiores,
frustrações se acumularam ao longo dos anos, seja por que os EUA não corresponderam ao
desejo do Brasil de ter facilitado sua incorporação ao círculo de poder mundial, seja porque o
nacionalismo econômico brasileiro decepcionou os interesses privados americanos. O ensaio
termina pelo retrato dos contrastes e confrontos entre os dois grandes do hemisfério, inclusive
470
em relação a terceiros países, na medida em que o Brasil pretende avançar no sentido da
construção da liderança sul-americana, mas não chega, obviamente, aos novos entendimentos
em torno das energias renováveis, realizados entre Lula e Bush na fase recente.
Miriam Gomes Saraiva trata, no capítulo 5, das relações entre o Brasil e a Europa de
1990 a 2004, “entre o inter-regionalismo e o bilateralismo”, segundo o seu subtítulo. Esses
anos são marcados pela busca europeia de uma nova presença mundial, ao mesmo tempo em
que o Brasil também busca contrabalançar a presença americana na região e afirmar-se de
modo autônomo no cenário internacional. O Mercosul é um elemento decisivo nesse jogo de
barganhas e equilíbrios, da mesma forma como as políticas agrícolas dos dois grandes do
comércio mundial condicionam em boa medida as demandas e concessões dos três lados.
Henrique Altemani aborda as relações com a Ásia do Leste, à exclusão da Ásia Central e do
Sul. O interesse brasileiro, ainda marcado por grande desconhecimento daquela região, é
predominantemente econômico (comércio e investimentos) e deixou de estar focado no Japão
para incorporar outros países, com destaque para a China, obviamente. Fernando Mourão,
Fernando Cardoso e Henrique Altemani tratam, no capítulo 7, das relações Brasil-África entre
1990 e 2005: de uma perspectiva “culturalista”, essas relações evoluíram mais recentemente
para uma dimensão presidencial, mas os impulsos dominaram sobre a continuidade. A CPLP
e o IBAS são os dois foros mais importantes da atualidade, mas o envolvimento comercial do
Mercosul e a formatação de um processo de reuniões de cúpula também foram introduzidos
na equação, sempre na perspectiva de uma diplomacia ao sul e anti-hegemônica. Nizar
Messari encerra a parte dois tratando das relações do Brasil com o mundo árabe, que ele
reconhece ser uma das áreas “de baixa prioridade para a política externa brasileira” (talvez
não mais, atualmente). Ocorreu breve fortalecimento no governo Geisel, por razões óbvias de
dependência petrolífera, mas foi a exceção, não a regra. De resto, grande parte do
relacionamento pode ser explicada pela presença de comunidades judaica e árabe no Brasil, o
que introduz também o vetor dos conflitos regionais e a presença dos EUA no Oriente Médio
como elementos definidores da atual política externa de busca de relações mais afirmadas. A
criação da reunião de cúpula América do Sul-Países Árabes, por iniciativa brasileira, e a
aproximação das posições da Liga Árabe tem introduzido alguns ruídos na relação com Israel,
mas o autor acredita que ainda assim o Brasil possa ser um mediador nos conflitos no Oriente
Médio.
A terceira parte é toda ela dedicada ao entorno geográfico brasileiro, com três
capítulos bem delimitados. Luiz Alberto Moniz Bandeira se ocupa da América do Sul, num
longo capítulo histórico que parte de Hegel para antecipar um conflito entre as partes norte e
471
sul do hemisfério americano. Ele remonta o conceito de América do Sul ainda ao período
imperial, quando havia relativa indiferença em relação ao México e os demais países da
região, considerados como pertencentes à esfera de influência dos EUA. Em 1965, essa
tradição foi rompida, com o apoio à intervenção americana na República Dominicana. Moniz
Bandeira acredita que a questão Mercosul versus Alca constitui “o principal ponto das
divergências entre o Brasil e os Estados Unidos” (p. 277), ratificando inteiramente as posições
do atual Secretário-Geral do Itamaraty sobre o caráter nefasto da Alca para o Brasil e o
Mercosul. Ele também acredita que os países da região aceitam “consensualmente” a
liderança brasileira na região, uma vez que ela seria “sem pretensões de hegemonia,
respeitando as particularidades de cada povo” (p. 281). A iniciativa brasileira de formar a
Comunidade Sul-Americana de Nações é vista como um “objetivo estratégico”, com vistas a
tornar a região “uma potência mundial, não só econômica, mas também política” (p. 295).
Janina Onuki trata, no capítulo 10, do Brasil e a construção do Mercosul, que ela vê,
corretamente, como “uma marca da política externa dos anos 1990” e uma das “prioridades da
agenda externa do governo Lula” (p. 299), embora não seja uma prioridade na agenda dos
demais países, e o “bloco convive mais com problemas do que com resultados positivos, o
que dificulta traçar cenários otimistas” (p. 300). A crise brasileira de 1999 e a desvalorização
do real podem ter precipitado a desconfiança dos sócios, estando na origem do atual
pessimismo. Outros autores falam de várias crises simultâneas, inclusive de expectativas e de
compromissos, ao lado da falta de efetividade, de eficácia e de transparência. Ela vê objetivos
divergentes nas agendas de política externa dos governos Kirchner e Lula, sendo que este
último parece disposto a assumir os custos de manter vivo o processo de integração, embora o
ativismo possa ser visto pelos demais membros, justamente, como o elemento indesejável de
uma busca de liderança não consentida. Sua avaliação é a de que a “crise do Mercosul”, em
grande medida dependente dos altos e baixos do relacionamento Brasil-Argentina, “não é
estritamente conjuntural, nem apenas delimitada por aspectos comerciais”, derivando de
“divergências estruturais, sobretudo no que diz respeito aos modelos de política econômica
doméstica e política externa” (p. 317). Hoje, “a limitação de resultados levou o Mercosul a
decidir pelo meio rápido: expandir sem discutir o aprofundamento do acordo, a internalização
das normas e a garantia do cumprimento das decisões” (p. 318).
Finalmente, Marcelo Passini Mariano e Tullo Vigevani abordam, no último capítulo
do primeiro volume, a questão da Alca, vista como uma “integração assimétrica”, uma vez
que os EUA enfatizam seus interesses comerciais, ao passo que o Brasil luta pela manutenção
de políticas setoriais domésticas. As incertezas ligadas ao projeto americano alimentam duas
472
tendências da política externa brasileira, que seriam a “busca da autonomia pelo
distanciamento e a da autonomia pela participação”, atitudes não restritas à questão da Alca,
mas presentes desde sempre na diplomacia brasileira (p. 335). A proposta brasileira de uma
“Alca light”, feita em 2003, não prosperou, mas o processo foi de toda forma interrompido em
2005, quando os EUA já faziam o cerco ao Brasil, negociando acordos comerciais com todos
os demais parceiros, à exceção do Mercosul. Segundo os autores, “o objetivo do jogo
[brasileiro] se concentra mais em evitar perdas do que em obter ganhos reais” (p. 353).

O segundo volume, voltado para o multilateralismo e para a agenda diplomática


internacional do Brasil, constituiria, segundo o prefaciador José Flávio Saraiva, “um exemplo
marcante da renovação epistemológica e metodológica que está em curso na investigação das
relações internacionais do Brasil” (p. ix), afirmação que pode parecer algo exagerada, tendo
em vista que os textos integrantes abordam questões tradicionais da agenda internacional e da
agenda externa do Brasil, esforçando-se seus autores por apresentar as questões e problemas
da melhor forma possível, sem que se vislumbre, porém, alguma “ruptura epistemológica” ou
metodológica com os padrões conhecidos na academia brasileira. Em todo caso, vale
examiná-los um a um, ainda que maneira muito resumida.
Os próprios organizadores, em sua introdução, acreditam que “uma mudança
extraordinária” (sic), “entre tantas mudanças radicais, processou-se no sistema de relações
internacionais do Brasil desde o final da guerra fria”. Qual seria essa mudança excepcional?:
“a desconfiança, ou melhor dizendo, a descrença com que o País via as organizações
internacionais se converteu em um entusiasmado engajamento, manifestado como uma fé
inabalável nas virtudes do multilateralismo político e econômico” (p. 1). Esse “entusiasmo”
pode aparecer como novidade apenas para os outsiders, uma vez que a diplomacia brasileira
sempre atribuiu importância primordial às instituições multilaterais, geralmente consideradas,
junto com a defesa do direito internacional, como o recurso obrigatório daqueles que não
possuem poder real no mundo da política internacional. Em todo caso, a novidade nesta obra
é constituída pelos quatro capítulos finais, que abordam a participação de atores não
tradicionais na política externa (Congresso e empresariado), o problema do federalismo e o
debate acadêmico e social sobre as relações internacionais do Brasil.
O segundo volume compõe-se de quinze capítulos, divididos em três partes. A
primeira, sobre o multilateralismo, começa por examinar a questão da ONU, sob a pluma do
professor da UnB Virgílio Arraes. A cobertura está circunscrita ao período posterior a 1990,
década de grandes conferências internacionais já examinadas de modo competente pelo
473
diplomata José Augusto Lindgren Alves, em seu livro Relações internacionais e temas
sociais: a década das conferências (Brasília: IPRI-Funag, 2000). O autor registra a evolução
da participação brasileira nessas instâncias internacionais, de uma adesão aos novos cânones
da “democracia neoliberal” à frustração com a face menos risonha da “globalização
assimétrica”, a partir das crises financeiras do final da década, até a busca pela sua
incorporação no CSNU, mas conclui que o Brasil não tinha conseguido acumular “cabedal
suficiente” para transpor o “fosso de poder” (p. 41) da ordem pós-guerra fria.
Alcides Costa Vaz trata, em seguida, do sistema interamericano, tanto do ponto de
vista da integração e do comércio, como no plano da segurança regional. O hemisfério passou
da era da guerra fria – quando a preocupação de Washington era prioritariamente securitária e
focava quase exclusivamente a luta contra o comunismo e a influência soviética – para uma
redefinição de agendas nos anos 1990, com a ascensão dos temas econômicos de modo
amplo, em especial a dimensão comercial, manifestada no projeto americano de uma Área de
Livre Comércio das Américas. Acadêmicos, seguidos por diplomatas, consideraram a Alca
um “suicídio histórico”, posição de ampla receptividade nos mais diferentes meios políticos
do Brasil, resultando inclusive na sua rejeição a termo. A dimensão da segurança e da
cooperação militar foi tratada em conferências organizadas pela OEA e em encontros de
ministros da defesa, com posições não consensuais quanto à natureza das novas ameaças –
narcoguerrilha, terrorismo – e o emprego das forças armadas. O autor conclui que a agenda
interamericana do Brasil padece de certa ambiguidade e da falta de instrumentos capazes de
lhe conferir maior funcionalidade no quadro das relações externas (p. 72).
Antonio Jorge Ramalho da Rocha aborda a questão dos regimes internacionais, vistos
pela diplomacia brasileira de uma ótica westfaliana, assentada em valores tradicionais:
jurisdicismo, pacifismo (ou não-confrontacionismo), realismo e desenvolvimentismo. O autor
destaca a “natureza contraditória” da adesão do Brasil ao TNP, uma vez que nada teria
mudado, substancialmente, nas razões e condições que tinham determinado a recusa, durante
três décadas, daquele tratado “discriminatório”; tal decisão do governo FHC teria
representado “custos muito elevados e benefícios irrelevantes, senão inexistentes” (p. 118-
119). Eiiti Sato, no capítulo 4, se ocupa do GATT-OMC e das questões de comércio
internacional, ressaltando a posição atuante do Brasil em praticamente todas as rodadas de
negociação e seu crescente papel nos processos de barganha.
Paulo Vizentini considera que as iniciativas de “geometria variável” do Itamaraty,
como o G-3 (ou IBAS, com Índia e África do Sul) e o G-20 (para as negociações agrícolas da
Rodada Doha), “resultam de uma leitura realista das mudanças em curso no sistema
474
internacional” e a “contínua adaptação de uma estratégia voltada ao apoio, ao
desenvolvimento e, mais discretamente, de ampliação do poder nacional” (p. 159). A
estratégia faria parte de um projeto que pretende “rever o modelo de desenvolvimento de
inspiração neoliberal”, que teria produzido uma “estagnação generalizada” (p. 166). Para ele,
os governos de Collor a FHC “privilegiavam apenas as relações com os países ricos e, em
menor medida, com o Mercosul” (p. 181), já que o ex-presidente FHC “não possuía os
requisitos para uma mudança que ultrapassasse um tímido discurso crítico” e Lula “passou a
desenvolver uma intensa agenda internacional (...) como porta-voz de um projeto que
transcende objetivos de simples projeção pessoal e adesão subordinada à globalização”. Na
linha de Amado Cervo, ele acha que “essa é a grande diferença: o desalinhamento da política
externa em relação ao ‘consenso’ liberal norte-atlântico como forma de recuperar a
capacidade de negociação” (p. 189). Otimista, ele acha que o G-3 pode “vir a se tornar um G-
5, com uma virtual adesão da China e da Rússia” (p. 191).
Renato Baumann focaliza as relações do Brasil com o FMI, o BIRD e o BID nos anos
1990 e nota que nenhum outro país conseguiu, junto ao FMI, recursos equivalentes a 900% da
sua cota, como ocorreu em 2002, com a utilização de 63% do valor global de 30 bilhões de
dólares, inédito para operações exclusivas do FMI. Em contrapartida, o Brasil aceitou
condicionalidades que se traduziram em reformas como as da previdência social e a adoção da
Lei de Responsabilidade Fiscal (p. 215). Outro traço dos anos 1990 é uma opção das três
instituições por “tornar os investimentos cada vez mais dependentes das decisões do setor
privado e cada vez menos uma iniciativa do Estado”, mas segundo Baumann “essa lógica
tende a penalizar (ou adiar) os investimentos em atividades socialmente desejáveis, mas de
baixo retorno privado” (p. 216).
A segunda parte, o Brasil e os temas da agenda internacional contemporânea, é aberta
por um texto de Antonio Augusto Cançado Trindade sobre os direitos humanos, de 1985 a
2005. Ele já tinha assinado a magnífica obra A proteção internacional dos direitos humanos e
o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas (Brasília: Editora da UnB, 2000), período
marcado pela adesão do Brasil aos dois pactos da ONU e à Convenção Americana sobre
direitos humanos, decisão da qual foi responsável direto, como consultor jurídico do
Itamaraty no período pós-redemocratização. Ainda mais significativa e decisiva foi sua
contribuição, depois de 13 anos de luta, para a aceitação obrigatória pelo Brasil da
competência contenciosa da Corte Interamericana, efetuada em 1998. Ele está, porém,
plenamente consciente de que o futuro da proteção dos direitos humanos no Brasil, em

475
especial no que se tange à tortura, depende basicamente de “medidas nacionais de
implementação” (p. 247).
A política externa ambiental está coberta em coerente capítulo assinado por Ana
Flávia Barros Platiau, que ressalta certas ambiguidades da política ambiental brasileira, em
função de sua inevitável conexão com as áreas comercial e industrial. As premissas de
atuação do Brasil nos foros internacionais mantêm-se os mesmos desde 1992, mas a novidade
no atual governo é a “maior participação de atores não estatais na construção da política
externa ambiental”, ainda que eles não tenham sido capazes de moldar o conteúdo dessa
política (p. 253). Durante todo o período, o Brasil manteve-se coerente com seu princípio de
“responsabilidades comuns, porém diferenciadas” na gestão dos recursos naturais, mas
demonstra – segundo ela, uma “infundada” – resistência ao conceito de “patrimônio comum
da humanidade”, em virtude de conhecido temor em relação à Amazônia. O Brasil exerceria,
nesses foros, uma “liderança sem hegemonia”, com parceiros diferenciados em função de
temas específicos (os “megadiversos” seriam um exemplo). Em síntese, o Brasil não mais
considera, como em 1972, as questões ambientais como uma “ameaça internacional à sua
soberania”, mas como uma “oportunidade para se garantir o desenvolvimento nacional” (p.
276).
Thomaz Guedes da Costa, conhecido especialista em questões de segurança, trata
dessa temática em um capítulo intitulado, simbolicamente, “Em busca da relevância”. Ele
considera que o processo decisório brasileiro é em geral introspectivo e pouco propenso a
integrar os temas de segurança internacional na sua agenda, mas fica mais alerta quando o
foco se aproxima da Amazônia. Afirma, também, que a pretensão brasileira de ser um rule-
maker no sistema internacional produziu um “projeto anacrônico, particularmente na ambição
de tomar lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas” (p. 285). Para ele,
a proposta brasileira é “incompleta”, uma vez que o Brasil “não é reconhecido como um ator
fundamental na segurança internacional, merecedor de um assento, nem pelas potências
atuais, nem pelos vizinhos das esquinas americanas ou africanas” (p. 297). Eugenio Diniz
continua no mesmo terreno, ao tratar das operações de paz da ONU e a participação do Brasil.
Ele deixa, porém, de mencionar a importante contribuição do diplomata Paulo Roberto
Campos Tarrisse da Fontoura para o estudo dessa questão no livro O Brasil e as operações de
manutenção da paz das Nações Unidas (Brasília: Funag, 1999). Diniz considera que a
participação ativa do Brasil e a sua liderança da missão de paz no Haiti “podem abrir um
importante e significativo precedente para a diplomacia brasileira”, em vista da reconhecida
resistência brasileira em participara de missões de “imposição de paz”, em contraste com as
476
missões de “manutenção da paz”. Para ele, pode ser que “se esteja diante de uma inflexão
adicional da política externa brasileira” (p. 334).
Pio Penna Filho aborda, no capítulo 11, as “estratégias de desenvolvimento social e
combate à pobreza”, do ponto de vista da agenda internacional do Brasil. Ele também acha
que ocorreu uma “imposição do modelo econômico neoliberal”, doutrina que seria
hegemônica e que “prevê a redução drástica da intervenção do Estado na economia, até
mesmo do Estado de Bem-Estar Social” (p. 340). Ele trata dos esforços do governo Lula para
incorporar a dimensão do combate à pobreza e à fome na agenda internacional, mas dedica
igual atenção à agenda interna nessa vertente.
A terceira parte, finalmente, está voltada para o debate social sobre as escolhas
internacionais do Brasil, começando por um estudo de João Augusto de Castro Neves sobre o
papel do Congresso na política externa. Desprovido de bibliografia, a despeito de mencionar
autores no texto, o capítulo cobre a estrutura constitucional e política das relações exteriores
no Brasil e trata de forma detalhada das atitudes dos congressistas em relação à integração
regional e seu interesse nas negociações hemisféricas da Alca, certamente os temas que mais
chamaram a atenção no período recente.
Amâncio de Oliveira e Alberto Pfeifer, ao abordar o papel dos empresários na política
externa, reconhecem que esta se tornou, desde os anos 1990, mais transparente e permeável à
sociedade brasileira. Sua participação foi, no entanto, bem mais intensa na promoção
comercial do que nas negociações de política comercial, muito embora o Mercosul tenha
representado um novo marco inclusivo. O governo Lula é caracterizado como um “ativismo
nacionalista”: os autores lembram que os dirigentes do PT viam a Alca mais como um projeto
de “anexação” do que de integração, que as opções “Sul-Sul” já estavam pré-determinadas e
que o agronegócio foi beneficiado mais pela sua capacidade de gerar dólares de exportação do
que por simpatia congênita. Eles dizem que, em função da opção ideológica do governo, “a
burocracia diplomática teria abandonado posturas mais pragmáticas nas arenas do comércio
internacional” (p. 401). Um interessante quadro analítico sumaria as relações entre o
empresariado e o Estado no campo da política externa desde os governos Collor e Itamar até
Lula. A fase recente é caracterizada pela internacionalização de grandes empresas brasileiras.
Eles concluem pelo estudo da Coalizão Empresarial Brasileira e seu envolvimento nas
negociações da Alca, algo inédito para os padrões “retraídos” do empresariado brasileiro.
José Flávio Sombra Saraiva trata do federalismo nas relações exteriores, também
chamado de “paradiplomacia”. A participação de estados e municípios na política externa
pode se dar de forma “atabalhoada”, daí os esforços do Itamaraty em enquadrar as iniciativas
477
das assessorias de relações internacionais das unidades federadas. Por fim, no último capítulo,
Antonio Carlos Lessa conclui, a partir do crescimento da produção acadêmica e da expansão
da formação de quadros especializados, que estaria havendo um “adensamento do pensamento
brasileiro em relações internacionais”, sendo que o primeiro exemplo seria a própria UnB,
onde milita boa parte dos autores citados. Não obstante aderir o autor aos paradigmas
esquemáticos e simplificadores propostos por Amado Cervo para enquadrar as relações
internacionais do Brasil a partir do século XIX – liberal-conservador, até 1930;
desenvolvimentista, até 1989; normal e logístico, desde então –, trata-se de excelente
conclusão, em forma de balanço, para uma obra muito bem-vinda, que passa a representar
uma referência doravante indispensável para os estudos da e na área. Um índice remissivo e
uma bibliografia consolidada dos títulos mais importantes para cada seção temática seriam
muito úteis numa segunda edição da obra, que provavelmente não tardará demasiado.

Brasília, 22 maio 2007, 1753.


Publicada em versão integral no boletim Meridiano 47
(Brasília: IBRI, n. 85, agosto 2007, p. 14-22; ISSN 1518-1219)
e na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados; ano 5, n. 5, outubro 2008, p. 326-338; ISSN: 1981-0865);
em versão reduzida, na Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA: n. 35, setembro de 2007, p. 62; ISSN: 1806-9363)

478
A Nova História Diplomática

Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno:


História da Política Exterior do Brasil
(São Paulo: Editora Ática, 1992, 432 p.; Série Fundamentos n. 81)

A história diplomática é um produto muito pouco cultivado nos campi acadêmicos


brasileiros, sendo quase tão rara nas escrivaninhas de nossos historiadores quanto, por
exemplo, os choux-de-Bruxelles nas mesas das donas-de-casa. Como gênero historiográfico,
ela decididamente “não faz o gênero” da maior parte dos profissionais do ramo, constituindo,
por assim dizer, um hobby daqueles poucos diletantes que insistem em marcar encontros com
Clio nos arquivos muito bem guardados das chancelarias.
Pouco praticada, ela ainda corre o risco de ser mal interpretada, já que os especialistas
que a ela se dedicaram são frequentemente acusados de conivência com a “versão oficial” e
com uma interpretação “Estado-cêntrica” das relações externas do país. Os trabalhos mais
conhecidos no gênero – os manuais essencialmente didáticos e hoje algo antiquados de
Delgado de Carvalho e de Hélio Vianna1 – concentraram-se, talvez em demasia, nos episódios
propriamente políticos ou militares da ação diplomática governamental (isto é, negociações
entre Estados, conflitos militares, conclusão de tratados, atuação das chancelarias, etc.), em
detrimento dos processos de natureza mais estrutural e de longo prazo que podem explicar ou
dar sentido a determinadas escolhas fundamentais da Nação na frente externa. As gerações
subsequentes de pesquisadores pouco fizeram nesse campo: ou criticaram, do ponto de vista
político e metodológico, a abordagem événementielle desses dois pioneiros ou eximiram-se,
tão simplesmente, do trabalho de produzir manuais alternativos.
Mas não é só no Brasil que a crítica é muitas vezes impiedosa com esse gênero sui-
generis da historiografia. Recente simpósio sobre a história das relações exteriores dos
Estados Unidos serviu para um verdadeiro desfilar de acusações de substância e de método:

1
Ver Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil (São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1959) e Hélio Vianna, História da República - História Diplomática do Brasil (2ª edição,
São Paulo: Edições Melhoramentos, s.d. [1ª edição: 1958]). Na primeira metade do século, João
Pandiá Calógeras tinha feito obra profunda e grandiosa, embora limitada cronologicamente ao período
anterior a 1852; ver A Política Exterior do Império, I: As Origens (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1927); II: O Primeiro Reinado (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928); III: Da Regência à Queda
de Rosas (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933). Os três volumes foram relançados, em
edição fac-similar e com introdução de João Hermes Pereira de Araújo, sob a responsabilidade
conjunta de três instituições: A Política Exterior do Império (Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional, 1989, I, 560 p., Coleção “Brasiliana”
volume 386; II, 568 p., “Brasiliana” 387; III, 619 p., “Brasiliana” volume XV, série V).
479
ela seria etnocêntrica, paroquial, limitada, enganosa, além de dominada pelo paradigma
umbilical do “the United States and...”, ou seja, uma abordagem da história diplomática do
país que resultava, na prática, num enfoque dos problemas internacionais enviesado pela
postura do “the world according to Washington”. Consequentemente, alguns historiadores
“revisionistas” chegaram a sugerir que a “Society for Historians of American Foreign
Relations” passasse a chamar-se “Society of United States Historians of International
Relations” e que sua revista, Diplomatic History, fosse rebatizada para Review of
International History.2 Os historiadores que partiram ao assalto da história diplomática
praticada nos Estados Unidos identificaram seus principais problemas como sendo a falta de
rigor teórico e a ausência de inovações metodológicas; não menos grave foi a constatação de
que muitos historiadores conduziam pesquisas excessivamente limitadas em seu objeto e
estavam pouco afeitos às línguas e arquivos estrangeiros.3
A despeito – ou provavelmente em razão – dessas críticas, a história diplomática
parece destinada a se manter, tanto aqui como lá, como um gênero especializado
relativamente “nobre”, isto é, envolvendo apenas os poucos cultores da matéria. E se ela ainda
não dá sinais de um florescimento extraordinário, mesmo com o final da “luta ideológica” que
condenou muitos arquivos nacionais ao fechamento por longos anos sob o alegado da
“segurança nacional”, ela deve, pelo menos, permanecer aberta a novas técnicas e novas
interpretações até ocupar o lugar que lhe cabe legitimamente nos laboratórios acadêmicos.
Mas, sobreviver às mutações “técnicas” que se operam no terreno da historiografia
pode não significar muito para a história diplomática de um determinado país, em termos de
sua “relevância” e “centralidade” temática para o conjunto dos estudos humanísticos. Afinal
de contas, como afirmou um dos maiores especialistas do setor, John Lewis Gaddis, a história
diplomática pode se converter no equivalente acadêmico de um “self-replicating automaton”,
isto é, dedicar-se a repetir o óbvio. Fazendo uma crítica devastadora desse gênero
historiográfico numa sessão da “American Historical Association” dedicada ao exame do
“state of the art”, Gaddis comentou que os historiadores diplomáticos poderiam estar
ocupando, no mundo acadêmico, “algo como a posição preenchida na natureza pelo

2
Ver a coletânea de artigos enfeixados na seção “Writing the History of U.S. Foreign Relations: A
Symposium”, Diplomatic History (vol. 14, n. 14, Fall 1990, p. 553-605), em especial a contribuição de
Robert J. McMahon, “The Study of American Foreign Relations: National History or International
History?”, p. 554-564.
3
Cf. Charles S. Maier, “Marking Time: the historiography of international relations” in Michael
Kammen (ed.), The Past Before Us: Contemporary Historical Writing in the United States (Ithaca:
1980), p. 355-56.
480
crocodilo, pelo tatu e pela barata: existimos há tanto tempo que não há perigo imediato de
extinção; mas, somos ainda muito primitivos e, por esta razão, não muito interessantes”.4
Pareceria, assim, que ao gênero “história diplomática” lhe falta a condição do atrativo
público e o requisito do appeal acadêmico, normalmente encontrados nas biografias de
grandes personagens, nos relatos de grandes eventos do passado ou nas abordagens
eventualmente em moda entre as tribos de jovens pesquisadores (como parece ser o caso,
hoje, da “história das mentalidades”). Como se situaria, nesse contexto, a história diplomática
do Brasil? Pode ela tornar-se, digamos assim, mais “popular”, eventualmente adotando as
abordagens mais “consumidas” entre o público interessado ou “problematizando” – aliás, uma
palavra em moda – determinadas conjunturas do passado?
Descartando a primeira categoria, a das biografias, por insuficiência de concorrentes,
– onde reina imperialmente só o velho Barão, de resto já contemplado com excelentes obras
de “história tradicional”5 –, assim como a terceira, a das mentalidades, por manifesta
inadequação ao objeto, restaria a opção pela história narrativa de um novo tipo, ou seja, uma
história diplomática suscetível de combinar objetividade acadêmica e identificação de
problemas reais das relações exteriores do País. Outras opções analíticas dificilmente se
encaixariam no universo conceitual e metodológico da história diplomática.
O interesse que possa despertar, tanto no grande público como entre os profissionais,
o gênero “história diplomática” pareceria assim depender, em grande medida, de sua
capacidade em abordar aquilo que se poderia designar como os “grandes problemas da
nacionalidade”, o que significaria lograr uma interpretação adequada e coerente da inserção
internacional do país numa determinada fase de seu desenvolvimento histórico. As questões
de princípio que se colocam, nesse contexto, são, um pouco, a agenda externa de qualquer
país minimamente atuante no cenário mundial: a manutenção da paz e da segurança externa, a
correta identificação dos principais desafios externos, sua capacidade em responder às
ameaças percebidas ou potenciais colocadas pelo cenário internacional em certas conjunturas
históricas, o aproveitamento das “janelas de oportunidade” oferecidas ocasionalmente por um
sistema mundial profundamente desigual e hierarquizado, uma boa performance na
competição entre Estados nacionais, em suma, as exigências de ordem externa que devem ser

4
Citado por McMahon, “The Study of American Foreign Relations”, op. cit., p. 555-6.
5
Os dois trabalhos mais conhecidos são, respectivamente, Alvaro LINS, Rio Branco (Rio de Janeiro:
José Olympio, 1955, 2 vols.) e Luís Viana Filho, A vida do Barão do Rio Branco (Rio de Janeiro: José
Olympio, 1959). Para outro exemplo no gênero, sem o mito, ver Afonso Arinos de Melo Franco, Um
Estadista da República (Afrânio de Melo Franco e seu Tempo), vol. III: Fase Internacional (Rio de
Janeiro: José Olympio, 1955).
481
encaradas por suas lideranças políticas. Tarefa ingente, dirão com alguma razão os
historiadores profissionais, mas não de todo irrealizável, a julgar pelo crescente
desenvolvimento da produção voltada para as relações internacionais do Brasil nos últimos
anos, como também da própria proliferação de cursos e instituições dedicadas a essa área.6
Sem pretender repassar o conjunto das realizações nesse terreno, caberia ainda assim
examinar alguns exemplos recentes que honram o gênero e prometem colocar sobre novas
bases, senão o estudo das relações internacionais do Brasil, pelo menos esse gênero raro na
historiografia nacional que é a história diplomática. A síntese e a culminação desse processo
de realizações acadêmicas encontra-se, obviamente, no excelente trabalho de Amado Luiz
Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil, cuja análise constitui a
razão de ser desta resenha-artigo.
Seria possível encontrar-se alguma linha condutora na (parca) produção acumulada
nos últimos 30 anos? Um tema constante nos trabalhos acadêmicos dessa nova safra de
pesquisadores é a tentativa de se identificar as grandes linhas da política externa brasileira que
tenham influenciado ou permitido (ou não) a busca e/ou o atingimento da assim chamada
“autonomia nacional”. Antes de qualquer outra consideração sobre a produção nesse campo,
temos de convir que trata-se, obviamente, de objetivo historiográfico não de todo despojado
de um certo parentesco intelectual com o idealismo hegeliano. Ao introduzir, por exemplo,
uma coleção de ensaios relacionados, de perto ou de longe, com essa temática, o Embaixador
Rubens Ricupero, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília e de
história das relações diplomáticas do Brasil no Instituto Rio Branco, afirmava claramente que
“a ideia que impulsionou o curso foi a da História Diplomática como o cenário da realização
progressiva e nunca inteiramente concluída da independência”, vinculando ainda essa “visão

6
Uma pioneira abordagem dessa problemática pode ser encontrada em Alexandre BARROS, “El
estudio de las relaciones internacionales en Brasil” in Rubén M. Perina (org.), El estudio de las
relaciones internacionales en America Latina y el Caribe (Buenos Aires: Grupo Editor
Latinoamericano, 1985), pp. 49-69. Para um primeiro levantamento sistemático dos trabalhos de
história diplomática e de política externa brasileira, vide Zairo Borges Cheibub, Bibliografia
Brasileira de Relações Internacionais e Política Externa (Rio de Janeiro: IUPERJ, 1981, mimeo). A
produção acumulada até o final dos anos 70 pode ser conferida em Maria Regina Soares de Lima e
Zairo Borges Cheibub, Relações Internacionais e política externa brasileira: debate intelectual e
produção acadêmica (Rio de Janeiro: Iuperj, 1983, mimeo). Para uma discussão dos problemas
metodológicos relativos ao estudo das relações internacionais, cf. Paulo Roberto de Almeida,
“Relações Internacionais do Brasil: introdução metodológica a um estudo global”, Contexto
Internacional (Rio de Janeiro, vol. 13, n. 2, 1991).
482
da História Diplomática como a edificação e a afirmação gradual da autonomia” ao
pensamento de Vico.7
Também Gerson Moura, um dos autores mais prolíficos no gênero história
diplomática brasileira, não consegue desvincular a organização da matéria-prima bruta de
seus trabalhos de pesquisa – de resto excelentemente bem conduzida – de algumas grandes
noções que, por terem uma clara conotação “esquerdista”, não são menos inspiradas, evidente
ou implicitamente, na tradição hegeliana da história: sistema de poder, mercado capitalista,
imperialismo. Este último conceito, por exemplo, já visualizado como categoria histórica
concreta e no contexto das relações Brasil-EUA entre 1935 e 1942, seria resultante de uma
certa “‘astúcia da razão’, que consciente e inconscientemente respondia às necessidades
criadas pela lógica da reprodução ampliada do capital”.8 Já nos trabalhos mais recentes de sua
lavra, o substrato hegeliano presente nos conceitos acima referidos é bem menos afirmado no
desenvolvimento do discurso, mas permanece a categoria imanente “sistema de poder” (do
centro hegemônico, é claro) como referencial básico para a avaliação da autonomia relativa
do Brasil e de sua política externa.9
A questão da autonomia, ou da independência nacional, também está no centro, como
se sabe, de muitos trabalhos do historiador José Honório Rodrigues, muito embora ele não
tenha tido tempo de formalizar suas ideias sobre a questão num trabalho de história
diplomática propriamente dita. Sem embargo, ele deixou à posteridade notas detalhadas das
aulas feitas em meados dos anos 1950 no Instituto Rio Branco que, devidamente coligidas

7
Cf. Rubens Ricupero, “Introdução” in Sérgio Danese (org.), Ensaios de História Diplomática do
Brasil, 1930-1986 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1989, Cadernos do IPRI n. 2), p. 12. A
permanente afirmação e consolidação da independência e a busca do desenvolvimento econômico são,
segundo esse profissional e especialista das relações internacionais do Brasil, os dois grandes
objetivos da política externa brasileira; este segundo tema é objeto de outro trabalho do autor: “A
Diplomacia do Desenvolvimento”, in João Hermes Pereira de Araújo, Marcos Azambuja e Rubens
Ricupero, Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira (Brasília: Ministério das Relações Exteriores,
1989), p.193-209.
8
Cf. Gerson Moura, Autonomia na Dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942 (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980), p. 183.
9
Ver Gerson Moura, O Alinhamento sem Recompensa: a política externa do Governo Dutra (Rio de
Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1990, mimeo),
trabalho incorporado, junto com versão revista de sua tese de doutoramento, Brazilian Foreign
Relations, 1939-1950: The changing nature of Brazil-United States relations during and after the
Second World War (Londres: University College, 1982, mimeo), no livro Sucessos e Ilusões: relações
internacionais do Brasil durante e após a segunda guerra mundial (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1991). Esta última obra foi resenhada nesta mesma revista pelo Professor e Ministro das
Relações Exteriores Celso Lafer: “A Política Externa de Vargas e Dutra”, Política Externa (vol. 1, n.
1, junho de 1992, p. 126-127).
483
pela família e organizadas pelo Prof. Ricardo Seitenfus, deverão vir oportunamente à luz.10
Muitos outros estudiosos enfocaram igualmente a questão da autonomia relativa da política
externa do Brasil em trabalhos de alcance parcial publicados desde então, muito embora o
resultado deva ser mais exatamente vinculado ao campo “história das relações internacionais”
do Brasil – ou mais simplesmente à disciplina ciência política – do que propriamente ao
gênero “história diplomática”.11
Nessa categoria, mas sem o fio condutor da “autonomia nacional” aqui privilegiada,
alguns bons trabalhos têm sido elaborados pelos próprios profissionais do ramo, muitos deles
no quadro do Curso de Altos Estudos do Itamaraty, outros editados de maneira independente
pelo MRE, todos com o objetivo de divulgar a produção relevante de diplomatas dedicados a
estudos históricos.12 Na academia, multiplicam-se dissertações e teses de história diplomática,
cobrindo aspectos e períodos diversos das relações exteriores do Brasil.13
Em que pese, portanto, a crescente produção nesse terreno, o fato é que fazia falta
uma história diplomática digna do nome: afinal de contas tanto a História Diplomática de
Delgado de Carvalho como a obra homônima de Hélio Vianna datavam de finais dos anos 50.

10
Em nota ao subcapítulo pertinente do Teoria da História, dizia José Honório Rodrigues que “temos
preparada uma ‘Introdução à história diplomática’ (...) e uma ‘História Diplomática do Brasil’ (esta
escrita desde 1956), resultados de nosso curso no Instituto Rio Branco”; cf. Teoria da História do
Brasil (Introdução Metodológica) (4ª edição; São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, 1978), p.
169. Segundo informação oral prestada pelo Prof. Ricardo Seitenfus, do IEA-USP, as anotações de
aula de José Honório Rodrigues, cerca de 300 laudas datilografadas, cobrem as “questões
internacionais do Brasil” entre 1530 e 1912. O Prof. Seitenfus encontra-se preparando outras tantas
laudas de texto tratando do período 1912-1990, com vistas à ulterior publicação de volume em
coautoria cujo título provisório poderia ser “A História Internacional do Brasil”.
11
A produção acadêmica nesse setor não deixa de refletir as grandes tendências da política externa
brasileira, como demonstra Gelson Fonseca Jr.: “Estudos sobre Política Externa no Brasil: os Tempos
Recentes (1950-1980)” in Gelson Fonseca Jr. e Valdemar Carneiro Leão (orgs.), Temas de Política
Externa Brasileira (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão; São Paulo: Atica, 1989), p. 275-283.
12
Ver, por exemplo, Valdemar Carneiro Leão, A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930-1934)
Contornos Diplomáticos (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais-IPRI, 1990, Coleção Relações Internacionais n. 10), brilhante análise do
comportamento do Itamaraty em face do debate na Constituinte de 1934 sobre a imigração japonesa,
que ganhou contornos políticos ao precipitar uma crise diplomática nas relações do Brasil com o
Império do Japão; ver também Synesio Sampaio Goes, Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas
(Brasília: IPRI, 1991, n. 11). No segundo grupo de publicações, ressaltem-se os capítulos elaborados
por João Hermes Pereira de Araujo, da “herança colonial” ao “Barão do Rio Branco”, na obra coletiva
já citada na nota 7, supra, Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira, pp. 3-154.
13
Mencione-se, a título de exemplo, a excepcional dissertação de mestrado (praticamente uma tese de
doutorado) apresentada por Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, A Política do Império Brasileiro
para as Repúblicas do Pacífico (Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia) 1822/1889 (Brasília:
Universidade de Brasília, Departamento de História, 1990), que cobre o conjunto dos temas de
negociação diplomática – e não apenas limites e navegação fluvial – entre o Brasil e os citados países
durante o Império.
484
Assim, até o surgimento do manual de Cervo e Bueno, foi uma longa travessia do deserto para
todos, estudiosos ou simples diletantes da política externa brasileira.14
Para aqueles que, durante o espaço de mais de uma geração, foram embalados pelo
estilo “bem-comportado” de Hélio Vianna ou de Delgado de Carvalho, a publicação de um
novo manual de referência nesse terreno pouco explorado da história diplomática aparece
como um oásis refrescante num imenso deserto historiográfico frequentado tão somente por
alguns poucos donos de caravanas (os historiadores tradicionais) e muitos nômades das mais
diversas cores ideológicas (os jovens pesquisadores acadêmicos).
A história diplomática “tradicional” – que sempre havia primado pelo “oficialismo”
de seus ilustres autores – cumpriu um papel útil enquanto o Brasil não dispunha de outra
história senão a governamental, isto é, aquela que se comprazia em descrever as ações dos
mandatários como encarnação legítima da vontade popular e como correspondendo fielmente
aos interesse da Nação. José Honório Rodrigues foi o primeiro pourfendeur dessa tradição
“elitista”, ao denunciar, com todas as letras, as diversas variantes da história “oficial” do País,
em contraposição ao que ele considerava como a verdadeira história “social” e “política” da
Nação, isto é, o itinerário de lutas e conflitos populares em torno dos grandes objetivos
nacionais, sempre desconsiderados ou traídos pelas classes dominantes.
Nossos dois autores se situam na continuidade histórica de José Honório, ao recusar a
simples linearidade descritiva da historiografia oficial, enfatizando ao contrário as grandes
linhas de ação da política externa brasileira enquanto instrumento do desenvolvimento (ou do
atraso) nacional, o que equivale a dizer, da autonomia da Nação. Com efeito, para o grande
historiador a história diplomática “investiga e relata a defesa dos direitos nacionais e as
relações econômicas, sociais e políticas que se codificaram em tratados e convenções”,
afirmando ainda que “se as relações diplomáticas não se esgotam no manejo das coisas
políticas, e envolvem, sobretudo hoje, os negócios econômicos, então, capítulo dos mais
importantes da história diplomática seria o que narrasse as missões comerciais e o intercurso
mercantil”.15

14
O Embaixador Ricupero chegou a escrever, em 1989, uma nova introdução à obra de Delgado de
Carvalho, que deveria ser reeditada pelo Instituto de Relações Internacionais, do MRE, mas que por
motivos diversos não foi publicada. O ex-Professor de História das Relações Diplomáticas do Brasil
do IRBR escrevia então: “Trinta anos após seu aparecimento, a ‘História Diplomática do Brasil’, de
Carlos Delgado de Carvalho, continua a não ter substitutos ou alternativas”, o que, considerando-se
seu caráter essencialmente didático e a compilação de textos ali feita, não deixa de ser verdade ainda
hoje, em que pese o aparecimento da obra de Cervo e Bueno. Cf. Rubens Ricupero, “Uma reedição
tardia mas oportuna” (Genebra, texto do autor, s.d.), p. 1.
15
Cf. Rodrigues, Teoria da História do Brasil, op. cit., pp. 169 e 174. A bibliografia oferecida por
José Honório nesse subcapítulo foi atualizada apenas até a 2ª edição desse livro, de 1957.
485
Os dois pesquisadores estão mais do que credenciados para prosseguir essa tradição
econômica e social da historiografia brasileira e dar assim início ao que poderíamos chamar,
desde já, de “nova história diplomática”. Amado Luiz Cervo, pesquisador do CNPq e
Professor Titular de História das Relações Internacionais da Universidade de Brasília, é um
dos representantes mais típicos das novas correntes da pesquisa universitária, combinando
rigor na consulta às fontes primárias e um tratamento propriamente “social” (no seu sentido
amplo, isto é, compreendendo também os aspectos políticos e econômicos) da história
diplomática, considerada como parte integrante da história “global” do País. É dele o primeiro
trabalho exaustivamente documentado sobre o importante papel do Parlamento na condução
das relações exteriores do Brasil, ao desvendar, em O Parlamento Brasileiro e as Relações
Exteriores, 1826-1889 (Brasília, Editora da UnB, 1981), o envolvimento do Legislativo na
formulação, implementação e controle da política externa durante o período monárquico. É
dele também o mais recente Relações Históricas entre o Brasil e a Itália: o papel da
diplomacia (Brasília-São Paulo, Editora da UnB-Istituto Italiano di Cultura, 1992), um
excelente “racconto storico” sobre os altos e baixos do relacionamento bilateral, sobretudo do
ponto de vista dos homens que o fizeram. É dele igualmente um estudo original sobre a
conquista e colonização espanholas das Américas, ostentando o título de Contato entre
civilizações (São Paulo, McGraw-Hill, 1975).16
Clodoaldo Bueno, por sua vez, já tinha assinado com Amado Cervo um utilíssimo
(ainda que breve) livro de haute vulgarisation sobre A Política Externa Brasileira, 1822-1985
(São Paulo: Ática, 1986), uma espécie de ensaio geral a esta obra mais completa. Professor
titular do Departamento de História da UNESP (Campus de Marília), ele também acumula
uma respeitável bibliografia nos campos da história econômica, da história diplomática e das
relações internacionais do Brasil. Seu trabalho de mestrado, a dissertação doutoral e a tese de
livre-docência tratam da política exterior republicana entre 1889 e 1907, enquanto muitos de
seus artigos de pesquisa enfocam a questão das relações Brasil-Argentina ou as preocupações
da diplomacia brasileira com a região platina nesse período.17

16
Mais recentemente, o Prof. Amado Cervo produziu uma síntese sobre as relações exteriores do
Brasil independente, publicada, sob o título “Due secoli di politica estera brasiliana” (acompanhada de
tradução para o inglês), na revista italiana Relazione Internazionali (ano LVI, março 1992), p. 84-93.
Um resumo de seu itinerário acadêmico-bibliográfico foi apresentado em “Memorial” elaborado para
a obtenção do título de Professor titular de História das Relações Internacionais do Departamento de
História da UnB, em junho de 1992, onde também pode ser encontrada uma crítica fundamentada das
concepções tradicionais da “história diplomática” (texto processado, p. 11-13).
17
Entre outros artigos publicados por Clodoaldo Bueno, ver “Preocupações da Diplomacia Brasileira
no Início da República com respeito a Hegemonias no Cone Sul (1892-1901)”, Política e Estratégia
(São Paulo, vol. IV, n. 1, janeiro-março de 1986), p. 104-119.
486
Na elaboração de uma nova metodologia para o estudo da política exterior do Brasil,
os Autores operaram, antes de mais nada, uma reorientação da ênfase conceitual em que se
basearam até aqui os estudos nessa área, deslocando o eixo analítico da tradicional “história
diplomática” – e, portanto, privilegiando excessivamente as “relações entre Estados” – para o
terreno mais amplo das “relações internacionais” da Nação, em seu conjunto, englobando,
assim, os processos econômicos e as forças sociais em ação no caso brasileiro.
Os autores dão maior atenção aos processos de natureza estrutural que sustentam a
trama das relações internacionais do Brasil, buscando seus fundamentos nas chamadas “forças
profundas” da história, para retomar o clássico conceito introduzido pelo historiador Pierre
Renouvin. Eles explicitam seus objetivos da seguinte forma: “consolidar o conhecimento
elaborado sobre as relações internacionais do Brasil e revestir a síntese resultante desse
esforço com uma nova interpretação histórica” (p. 10). Vejamos rapidamente, numa
apresentação sumária, como foram cumpridas essas duas metas.
A “consolidação do conhecimento” é realmente impressionante: são mais de 400
páginas de exposição rigorosa sobre as grandes tendências de nossa política externa, de 1822
ao final dos anos 80, com um tratamento sistemático dos grandes problemas estruturais e uma
apresentação criteriosa dos fatos que dão sentido a cada conjuntura histórica particular. À
base desse trabalho monumental, mais de 340 títulos de obras diretamente relacionados com o
objeto da pesquisa, cuidadosamente referenciadas em cada capítulo. A organização do
trabalho entre os dois autores evidencia uma divisão do trabalho segundo o princípio das
“vantagens comparativas”: Amado Cervo, um especialista do período imperial,
responsabilizou-se pela primeira parte, sobre a “conquista e o exercício da soberania”, que vai
de 1822 a 1889. Clodoaldo Bueno trata do longo período republicano até o golpe de 1964,
resumindo-o sob os conceitos de “alinhamento” e de “nacional-desenvolvimentismo”. Amado
Cervo, finalmente, retoma a pluma para a descrição do período recente, pós-64, caracterizado
em política externa como o de um “nacionalismo pragmático”.
As conclusões dos Autores, por sua vez, são um testemunho da “nova interpretação
histórica” que eles procuraram oferecer: a política externa, num país como o Brasil, tem um
caráter supletivo, dados os condicionamentos objetivos e a vontade política (ou sua ausência)
que atuaram no processo de desenvolvimento nacional nestes últimos 200 anos. Em outros
termos, os avanços ou atrasos desse processo estão mais bem correlacionados com as fases de
expansão ou mudança no sistema capitalista do que com um projeto nacional de
desenvolvimento dotado de uma política internacional coerentemente aplicada pelas elites ao
longo do tempo. Estamos longe, como se vê, da visão triunfalista dos autores tradicionais.
487
Um único problema suscita essa síntese, tão densa quanto honesta intelectualmente, da
política exterior do Brasil nos últimos 170 anos. Ele se refere a uma questão de ordem
propriamente metodológica, a saber, o monitoramento da política exterior segundo a visão
hegeliana, acima referida, acompanhando o desenrolar da História segundo uma ideia guia,
não necessariamente preconcebida, mas indisfarçavelmente concebida a posteriori, no caso, a
busca incessante do desenvolvimento econômico e o papel do Estado nesse processo.18
Nesse particular, a primeira questão a ser colocada pelo observador isento é se,
efetivamente, a política exterior brasileira pode ser tida, uniformemente ao longo da história
independente do País, como um instrumento diplomático do desenvolvimento nacional. O que
está em jogo aqui é a legitimidade de uma abordagem que coloca a ação externa do Estado em
relação direta com resultados eventualmente alcançados na esfera do desenvolvimento
material da nacionalidade, ou seja, fazer da política exterior um elemento funcional do
progresso econômico e social do País.
O problema está bem colocado no já citado texto do “Memorial” defendido por
Armado Cervo em seu concurso de titularidade: “buscou-se desvendar o caráter funcional da
política exterior, tendo em vista responder à seguinte pergunta: de que forma e em que
intensidade [a política exterior do Brasil] serviu de elemento propulsor ou de elemento
obstrutor do moderno processo de desenvolvimento nacional”. Esta foi certamente a pergunta
que guiou a elaboração do livro, mas a resposta, aparentemente, já estava implícita na
pesquisa dos dois autores: “A política exterior do Brasil foi antes de tudo a expressão de uma
economia política”.19
Sem pretender afirmar que esse tipo de “história diplomática” representa a
continuação do materialismo histórico por outros meios, cabe contudo especular sobre a
validade metodológica desse tipo de abordagem: as decisões, atitudes e posturas assumidas
pela política externa oficial, ao longo dos últimos 150 anos, são subsumidas no processo
histórico de desenvolvimento econômico e social da Nação, ainda que se lhes conceda um
grau de autonomia conjuntural ou episódica, segundo o modelo bem conhecido proposto por
Renouvin e Duroselle na famosa “introdução” ao estudo das relações internacionais.20 20
Mesmo reconhecendo, expressamente, o “caráter supletivo” da política externa para
os objetivos mais amplos do desenvolvimento nacional, como afirmado aliás pelos autores,

18
No que se refere à segunda ideia guia “hegeliana”, a busca da autonomia nacional, ela realmente
parece ter sido um axioma da política externa nacional, desde os tempos imperiais.
19
Ver Amado Cervo, “Memorial” (Brasília, texto processado, 1992), p. 20.
20
Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’Histoire des Relations Internationales
(Paris: Librairie Armand Colin, 1964), cf. “Introduction”, p. 1-4.
488
deve-se indagar se a tese da diplomacia “funcional”, ou seja, instrumental para o
desenvolvimento nacional, encontra confirmação na história concreta do País. A conceituação
é provavelmente verdadeira para este século, a partir dos anos 30 e sobretudo dos 50, mas
encontraria sérias dificuldades qualquer tentativa de estendê-la para o século XIX. Daí a
dificuldade em se aceitar uma precoce vocação “desenvolvimentista” ou, melhor dito,
“industrializante”, nas supostas tarifas “protecionistas” propostas por Alves Branco em
meados do século passado. O “projeto 1844”, como o designa Amado Cervo, “significava a
autonomia do Estado, tanto em relação aos interesses internos da classe fundiária quanto aos
interesses externos do capitalismo industrial” e se vinculava à ideia “de se construir uma
potência econômica” (p. 66-67). Mas, apesar do Estado contar com “força suficiente para
sustentar o projeto revolucionário de 1844, preferiu acomodar-se a uma situação que lhe
pareceu confortável sob todos os aspectos” (p. 70).
O problema conceitual estaria em saber se, o modelo de desenvolvimento econômico
observado nos últimos 60 anos de industrialização brasileira, inclusive no que se refere ao
papel protagônico do Estado, pode efetivamente ser transposto para o século XIX. Sem querer
discutir essa problemática, nos contentaríamos em lembrar que a formulação explícita da
teoria protecionista acabava de receber um apoio teórico na obra de Friedrich List – cujo
Sistema Nacional de Economia Política data de 1841 – e que a maioria dos países, desatenta
para as necessidades da “indústria infante”, manipulava os níveis tarifários mais para fins
fiscais do que protecionistas.
A argumentação de Amado Cervo é, sem embargo, poderosa e convincente, apoiada,
como se sabe, num conhecimento perfeito das fontes parlamentares do regime imperial.
Restaria, assim, admitir a validade de um parti pris de princípio, do pesquisador, em favor do
protecionismo contra o liberalismo mimético de nossas elites e concluir que, efetivamente, a
renúncia ao “projeto revolucionário” de 1844 condenou-nos ao atraso e ao
subdesenvolvimento. Uma dúvida, porém, permanece: teria o sido o sistema tarifário, na
ausência de outras condições sociais e institucionais favoráveis – entre as quais o regime de
trabalho e a educação de massa – capaz de sozinho sustentar um processo industrializador?
A diplomacia “instrumental” encontra porém plena legitimidade conceitual em nosso
próprio século. Uma simples citação de Clodoaldo Bueno ilustra esse ponto: “O nacional-
desenvolvimentismo, nítido a partir da gestão de JK, passou a informar e a ser, portanto, a
chave para a compreensão das relações internacionais do Brasil. Com as ressalvas de detalhes
e de ênfase, de avanços e recuos, assim tem sido a política exterior do Brasil desde a segunda
metade da década de 50 até os nossos dias” (p. 256).
489
Mais interessante, na obra de Cervo e Bueno, é a recusa da chamada “teoria da
dependência”, que contaminou bom número de trabalhos acadêmicos nas últimas duas
décadas. Realmente, a alegada conivência das elites com um projeto de dominação externa
não encontra fundamentos empíricos, a não ser ao nível do anedótico. Cabe, aliás, reconhecer,
de um modo geral, a honestidade intelectual dos autores na apreciação das diferentes fases das
relações exteriores do Brasil, mesmo quando se justifica a crítica da “americanização” ou do
“alinhamento” da política externa oficial, ou mesmo a ausência, entre 1912 e 1930, de um
projeto de política exterior claramente formulado e com estratégias de implementação. Em
suma, trata-se de obra sólida, apoiada em extensa pesquisa primária (embora referida muito
sumariamente na Introdução) e consolidando o essencial da produção bibliográfica acumulada
na comunidade acadêmica nas últimas duas ou três décadas.
Tanto o público leigo como os profissionais do ramo, assim como os graduandos em
História e os que se preparam para pesquisas mais aprofundadas nesse campo, certamente
retirarão enorme proveito de uma leitura cuidadosa da obra de Amado Cervo e Clodoaldo
Bueno, muito embora o primeiro, na parte relativa ao período imperial, tenha uma tendência a
supor um conhecimento prévio dos fatos históricos mais gerais relativos à política
internacional do Brasil que não parece ser o caso entre as gerações mais jovens. Quanto aos
próprios diplomatas, ou pelo menos aqueles mais diretamente ligados aos decision-making
circles das últimas Administrações, eles provavelmente receberão com algumas reservas
alguns desenvolvimentos relativos ao período recente, o que certamente tem a ver tanto com a
existência de diversos dossiês ainda abertos (relações com a potência hegemônica,
negociações econômicas multilaterais, integração regional, etc.), como com a dificuldade de
acesso, ao pesquisador externo, a material primário politicamente relevante ou sensível.
Para concluir, não há como evitar, em relação a essa obra, os conhecidos chavões das
resenhas declaradamente encomiásticas: essencial, indispensável, fundamental mesmo, com a
diferença de que, nesse caso, os adjetivos são plenamente justificados. Se talvez não se possa
dizer, peremptoriamente, que encontra-se finalmente disponível a história diplomática
definitiva da historiografia brasileira, passamos a contar, ao menos, com uma história da
política exterior que faz plenamente jus a esse título. Na ausência de novas tentativas no
futuro próximo, trata-se do manual de referência para este final de século.

Brasília: 3 agosto 1992.


Publicado na revista Política Externa
(São Paulo: vol. I, n. 2, setembro-outubro-novembro de 1992, p. 198-206).

490
A Prática do Direito Internacional no Brasil:
uma visão histórico-sistemática das bases jurídicas da política externa brasileira no
período republicano

Antonio Augusto Cançado Trindade:


Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, 1889-1981
(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 6 volumes, 1984 a 1988)
Sequência dos volumes (ano de publicação):
1. Índice Geral Analítico (1987);
2. Período 1889-1898 (1988)
3. Período 1899-1918 (1986)
4. Período 1919-1940 (1984)
5. Período 1941-1960 (1984)
6. Período 1961-1981 (1984)

A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em matéria de Direito


Internacional Público. Mesmo os não especialistas saberiam reconhecer a importância da
contribuição continental nesse terreno bastando, por exemplo, fazer referência ao princípio do
uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (ambas, aliás, suscitadas por um problema
cruelmente atual, o da dívida externa dos países latino-americanos), ao instituto do asilo
diplomático ou ao conceito de mar patrimonial. O Brasil, por sua vez, possui longa prática
diplomática, alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua
política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais
membros do sistema interestatal contemporâneo.
A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim,
representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional
Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a
existência de alguns bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto
latino-americano – dentre os quais destacaríamos o do brasileiro Hildebrando Accioly e o do
chileno Fernando Gamboa Serazzi – e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do
chamado jus gentium, os especialistas e observadores da já referida tradição ressentiam-se da
falta de codificação similar para a prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e
do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, vem
sendo preenchida pelo extraordinário trabalho solitário do eminente internacionalista Antonio
Augusto Cançado Trindade, professor de Direito Internacional Público da Universidade de
Brasília e do Instituto Rio Branco e Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores.
491
A obra que ora se apresenta sob os auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão, do
Itamaraty, integra uma série de volumes dedicados ao tema da prática diplomática brasileira,
cobrindo diversos períodos, desde o início da República até os dias atuais. Autor de vasta
produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de
numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, dois outros
volumes editados pela Universidade de Brasília – Princípios do Direito Internacional
Contemporâneo (1981 ) e O Esgotamento de Recursos Internos no Direito Internacional
(1984, cuja versão original foi agraciada com o Premio Yorke, da Universidade de
Cambridge) – o Professor Cançado Trindade realizou, com os vários livros editados até aqui,
um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do Direito
Internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina e do Terceiro Mundo.
Com efeito, apesar da existência de Relatórios de Chancelarias, bem como de
Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos Governos do continente, não havia,
até o presente momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática
diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos
países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos
mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional
Público e de relações diplomáticas.
A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as
demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da
prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses
econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas
posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional
(de que a Convenção sobre o Direito do Mar é um marcante exemp1o) .
Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasileira do Direito
Internacional Público, este “ciclópico trabalho” – segundo a feliz caracterização empregada
pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo –, que cobre o conjunto das relações
internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é
basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de
nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas:

l) Fundamentos do Direito Internacional, destacando-se, nos princípios que regem as


relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos
naturais”, de introdução mais recente;

492
2) Atos Internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e
organizações;
3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades,
responsabilidade internacional e sucessão de Estados;
4) Regulamentação dos Espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial;
5) Organizações Internacionais;
6) Condição dos Indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo;
7) Solução Pacífica de Controvérsias e Desarmamento, inclusive, para o período
recente, um capítulo para a questão do terrorismo;
8) Conflitos Armados e Neutralidade;
9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da Nação-Mais-Favorecida e, em
acordo com os novos tempos, Multinacionais e Segurança Econômica Coletiva.

Em cada um desses grandes blocos de problemas do Direito Internacional Público


abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a
prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história de nossa
política externa que está sendo contada nessas páginas retiradas de memoranda, telegramas de
instruções, discursos em conferências e trechos de relatórios do Itamaraty.
A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente esses
92 anos de prática brasileira do Direito Internacional Público, se parece atender mais a
critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou
historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e
constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de
rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) de
nosso itinerário republicano.
Fica aliás a sugestão, para um ulterior volume de interpretação e de comentários sobre
a prática diplomática agora repertoriada, de proceder-se a uma análise diacrônica comparativa
sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos
de nossa história. Esses materiais também fornecem abundante matéria-prima não só aos
historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como
também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios
sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.
Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou
Cançado Trindade na monumental compilação que agora esta chegando a seu termo. O
simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do
esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é
proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais
encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty,
493
correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias,
declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados
etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de
delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações
internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações
internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste
vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do
Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em
suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do
Chanceler brasileiro.
Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse
o critério de escolha e seleção da documentação disponível – tarefa por si só angustiante para
o honnête homme e quase um tormento para o scholar consciencioso, que trabalha sobre uma
verdadeira mina de preciosidades documentais – deve-se levar em conta a verdadeira
multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos
documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob
forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita,
entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”.
Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu
condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos
arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote
neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por
esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual
frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão
do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e
1911 não foi publicado o Relatório do MRE.
No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos
escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os
grandes temas do Direito Internacional Público, permitindo igualmente ao historiador uma
visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais de nosso
relacionamento internacional.
A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como
o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência
Internacional Americana” (período 1889-1898), quando na verdade essa reunião inaugural do
494
sistema pan-americano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma
monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do
Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do
representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da
Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas
a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em
1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados
Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas
relações bilaterais.
Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda nos brinda, em
cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises
descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o
papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que
dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamento
bibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty.
Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação
independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: “Os
repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados”
(1961-1981), “A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960), “A emergência
da prática do Direito Internacional” (1919-1940), “Necessidade, sentido e método do estudo
da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e “A sistematização
da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). Todos esses textos
introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de
contextualização, justificariam uma outra resenha crítica, que não caberia contudo nos limites
deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético
da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo
uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros
nacionais de Direito Internacional Público.
Os quatro volumes substantivos cobrindo o longo período de 1899 a 1981 são
precedidos de um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador
sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo,
das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo
parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire
francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e
495
do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em
inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações
exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899).
Mas, tendo sido publicado em 1986, o Índice deixou no entanto de fora o período coberto pelo
primeiro volume da série, referente aos anos 1889-1898, uma vez que este veio a luz
ulteriormente, em 1988. Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os
critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando
subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a
pesquisa.
Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão ao Ministério das Relações Exteriores
para que inscreva no programa de trabalho da Fundação Alexandre de Gusmão a atualização
periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Nestes tempos de Internet,
parece evidente, também, que esse importante conjunto de documentos passe a figurar no site
do Ministério, como o faz, por exemplo, o State Departement em relação ao “US Foreign
Relations Series” ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica.
A prática diplomática brasileira, inclusive a que foi escrita pelo próprio Cançado
Trindade na Consultoria Jurídica do Itamaraty, merece, sem dúvida alguma, ser melhor
conhecida no âmbito internacional.

Brasília, 4 abril 1996.


Versão reduzida publicada na seção “Crítica” da revista Humanidades
(Brasília, Ano IV, n. 12, fevereiro-abril 1987, p. 119-120);
e, sob forma de nota sintética, no suplemento literário Cultura,
do jornal O Estado de São Paulo
(São Paulo, ano VII, n° 376, 11.07.1987, p. 11)]

Addendum:
A série organizada e editada por A.A. Cançado Trindade foi objeto de reedição pela Funag:
Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público; vol. I: período 1889-1898;
vol. II: período 1899-1918; vol. III: período 1919-1940; vol. IV: período 1941-1960; vol. V:
período 1961-1981; vol. VI: Índice Geral Analítico (2a. ed.: Brasília: Funag, 2012).

496
A Recuperação da História Diplomática

José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus:


Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945)
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, 512 p.; organização e explicação de Lêda
Boechat Rodrigues).

Este livro, cuja publicação tinha sido anunciada várias vezes pelo seu autor principal e
que era aguardado com impaciência há muitos anos, recupera, postumamente, as aulas dadas
pelo historiador José Honório Rodrigues no Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações
Exteriores, entre 1946 e 1956, e integra ainda dois últimos capítulos cobrindo o período entre-
guerras (mas perfazendo praticamente sua segunda metade), preparados especialmente para
esta edição pelo revisor dos originais, o Prof. Ricardo Seitenfus, da Universidade Federal de
Santa Maria. Ele tinha sido convidado em 1991, pela viúva Lêda Boechat Rodrigues, para
organizar as notas datilografadas do curso de “História Diplomática do Brasil” ministrado
durante toda aquela década pelo grande nome da historiografia nacional, falecido em 1987.
Como indica o historiador gaúcho Seitenfus, em sua Nota Introdutória, o texto deixado
por José Honório é minucioso até a gestão do Barão do Rio Branco, tornando-se a partir da
Primeira Guerra Mundial “genérico e resumido” (p. 20). Ele dedicou-se então a redigir um
complemento da história diplomática brasileira desde a Conferência de Versalhes até o
rompimento da neutralidade brasileira, na Segunda Guerra, especialista que é, sob a
orientação inicial do próprio José Honório, da política externa durante a era Vargas. Ele já
tinha publicado sua tese de doutoramento na Universidade de Genebra, a pesquisa
extremamente bem documentada sobre O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos:
1930-1942 (Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 1985).
Dotado de inegáveis méritos didáticos, substantivamente enriquecedor de nossa
literatura especializada no campo das relações internacionais, o volume apresenta porém
alguns reparos menores de forma, dentre os quais uma revisão insuficiente das referências
bibliográficas preparadas à época por José Honório ou de algumas passagens obscuras de seus
próprios originais. A extensão cronológica do título (1945) é, de certa forma, enganadora,
uma vez que o tratamento de nossa história diplomática chega, efetivamente, apenas até o
limiar da conferência interamericana do Rio de Janeiro, em princípios de 1942. A organização
da obra pode também ser considerada como desbalanceada, no sentido em que, às 200
páginas, 12 capítulos e quatro séculos (de Tordesilhas a Rio Branco) sob a pluma de José

497
Honório, seguem-se mais 200 páginas, em dois capítulos, para os vinte anos de crises do
entre-guerras.
Trata-se, em todo caso, no que se refere ao panorama global traçado por José Honório,
de uma bem-vinda complementação bibliográfica aos trabalhos mais conhecidos nesse
campo, as já defasadas, mas ainda úteis, História(s) Diplomática(s) do Brasil por Hélio
Vianna e Delgado de Carvalho (1958) e o mais recente, e indispensável, História da Política
Exterior do Brasil de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (São Paulo: Ática, 1992). Uma das
curiosidades deste texto de história diplomática “recuperada”, já que composto há quase 50
anos, é precisamente o fato de nele encontrarmos um José Honório diferente daquele a que
estávamos acostumados, se julgarmos com base em seus textos “iconoclastas” de princípios
dos anos 60, quando ele se comprazia em atacar a versão “incruenta” da “história oficial”, os
compromissos conservadores das elites e a ausência do “povo” da historiografia dominante.
Aqui José Honório segue um estilo bem mais tradicional, praticamente despojado do tom
nacionalista, apaixonado e “contestador” do publicista da “política externa independente”.
As notas preparadas por José Honório seguem uma narrativa linear das relações
exteriores do Brasil colônia e independente, tratando segundo uma clássica abordagem
política (com algumas breves pinceladas econômicas) dos principais episódios de nossa
diplomacia. Não há propriamente uma sistematização das relações econômicas externas, mas
tão simplesmente uma cobertura seletiva de alguns dos conhecidos problemas diplomáticos
nessa área: basicamente o Tratado de 1810 com a Inglaterra, a abolição do tráfico negreiro, a
expansão do café e o incremento do comércio (e das relações políticas) com os Estados
Unidos. A despeito disso, ele tinha consciência de que a história diplomática não podia ser
isolada dos demais elementos e fatos do processo global: geográficos, econômicos, sociais,
religiosos, etc. Repetindo a pergunta de Lucien Febvre, ele questiona, no capítulo inicial sobre
“o conceito de história diplomática”, como seriam possíveis relações internacionais sem
geografia e sem economia?
José Honório busca realmente dar uma fundamentação social e econômica a estes
“capítulos da história da política internacional do Brasil”, segundo o nome concebido por ele
mesmo para uma possível edição de suas notas de curso. Mas, manifestamente influenciado
pelas doutrinas e conceitos então em vigor no imediato pós-guerra (em especial o primado da
afirmação do Poder Nacional, como ensinado nos cursos do National War College, retomados
praticamente ipsis litteris pela Escola Superior de Guerra), José Honório formula, em dois
capítulos metodológicos iniciais, sua concepção das relações internacionais: “O que se
pretende não é estudar o homus diplomaticus, com sua polidez protocolar, sua fórmula de
498
saudação sabiamente graduada, mas o Poder Nacional que se exprime nas relações
internacionais. Ora, desde que o mundo moderno se acha organizado com base no sistema de
Estado-Nação, o que comumente se descreve como relações internacionais nada mais é que a
soma de contratos [sic] entre as políticas nacionais destes Estados soberanos independentes.
E, como as políticas nacionais são sistemas de estratégia empregados pelos Estados para
garantir principalmente sua segurança territorial, e para proporcionar o bem-estar econômico
e a prosperidade a seus cidadãos, não se pode fazer uma distinção entre política externa e
interna. O que um Estado faz em seu território ou o que faz no exterior será invariavelmente
ditado pelo interesse supremo de seus objetivos internos” (p. 27).
Para ele, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial,
sempre foram a acumulação de poder ou a manutenção do status quo, segundo as fases de
introversão ou de extroversão que teriam marcado de maneira alternada (e de forma algo
mimética ao modelo analítico norte-americano privilegiado por José Honório) a história
internacional do Brasil. Essa concepção, surpreendente para quem conhece seus trabalhos
ulteriores de “história diplomática”, guia sua reconstituição de nossas relações internacionais:
“É, portanto, o jogo da política do poder que queremos recriar, mais que a simples história
diplomática. É a supremacia do interesse nacional, em luta com os poderes nacionais adversos
ou amigos, que se pretende reconstituir como uma experiência que nos sirva para dar à nossa
política exterior verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Desse modo, não são só as
habilidades diplomáticas, nem o poder militar que se expandem internacionalmente, mas
também o poder econômico, pela exportação de capitais e pelo controle de mercados. Por ele
veremos que a melhoria constante da posição relativa do Poder Nacional se torna um dos
objetivos da política externa do Brasil. Não é, assim, só história diplomática o que se
pretende, mas a história das relações do Poder Nacional com os demais poderes nacionais” (p.
29). Ou então: “Toda política externa é uma expressão do poder nacional em confronto,
antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais” (p. 53).
É essa história do “Poder Nacional” que José Honório reconstitui em seus 13 capítulos
substantivos, tendo antes fixado de maneira algo “ortodoxa” os três grandes princípios de
nossa política exterior desde 1822: a) preservação de nossas fronteiras contra as pretensões de
nossos vizinhos e política do status quo territorial; b) defesa da estabilidade política contra o
espírito revolucionário, interna (revoltas e secessões) e externamente (caudilhos do Prata); c)
defesa contra a formação de um possível grupo hostil hispano-americano e política de
aproximação com os Estados Unidos (p. 60). Em outros termos, uma concepção da atuação

499
diplomática e da afirmação de nossos interesses externos que seria tranquilamente subscrita
por um historiador conservador (e mesmo reacionário) como Hélio Vianna.
O texto sob responsabilidade de Ricardo Seitenfus evidencia um historiador
plenamente capacitado no manejo dos arquivos diplomáticos, inclusive os das principais
chancelarias envolvidas na “política pendular” seguida por Vargas durante todo o período de
disputas hegemônicas pelo apoio (ou neutralidade) de uma das principais potências da
América do Sul. No exame da “escalada para a guerra” a análise atribui forte ênfase às
relações com a Alemanha e a Itália totalitárias, em detrimento talvez dos demais vetores de
nosso delicado equilíbrio diplomático nesses anos. A menção é pertinente especialmente em
relação à Argentina, já que os Estados Unidos merecem subseção específica, bem
documentada. Digna de elogios é a reconstituição, praticamente passo a passo, da atuação do
Brasil na Liga das Nações, culminando com a lamentável derrota na “batalha” por uma
cadeira permanente no Conselho. O leitor contemporâneo não deixará de formular
interessantes comparações entre esse episódio e a atual candidatura brasileira a uma cadeira
no Conselho de Segurança da ONU, em particular no que se refere às relações, então e agora,
com a Alemanha, hoje aliada na disputa pela reforma da Carta, mas concorrente em 1926.
As conclusões nos remetem de volta ao professor dos anos 1950. Como outros
historiadores tradicionais, José Honório também via na “riqueza demográfica e territorial do
Brasil, [uma] inquestionável possibilidade de tornar-se uma grande potência” (p. 463),
estando o País, por sua posição nas Américas, “condenado a uma posição de equilíbrio, que
não é isenta de perigos e que lhe vale, frequentemente a censura de pender para um lado ou
para outro” (p. 462). Escrevendo numa fase histórica caracterizada pela competição, quando
não pelo antagonismo, com a Argentina, mesmo assim José Honório conclui pela importância
do incremento de nossas relações econômicas e culturais com os países do Cone Sul; mas,
para ele, manifestamente, o processo de integração não estava ainda na ordem do dia. Hoje,
ele pode ser legitimamente considerado como um dos princípios basilares de nossa política
externa, ao mesmo título que o pan-americanismo e o relacionamento especial com os Estados
Unidos ao tempo deste curso de José Honório. Sua história diplomática “recuperada” merece,
de toda forma, uma leitura atenta por parte de todo estudioso de nossa política externa.

Porto Alegre, 14 agosto 1995.


Publicado em: Deisy de Freitas Lima Ventura (org.):
América Latina: cidadania, desenvolvimento e Estado
(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996; série Integração latino-americana, p. 271-275).

500
Pandiá Calógeras, ou o Clausewitz da política externa
Contribuições à História Diplomática do Brasil

João Pandiá Calógeras:


A Política Exterior do Império
Volume I: As Origens (xl + 490 pp.)
Volume II: O Primeiro Reinado (568 pp.)
Volume III: Da Regência à Queda de Rosas (620 pp.)
(Brasília, edição fac-similar: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados,
Companhia Editora Nacional, coleção Brasiliana, 1989).

“Na extrema ocidental da Europa, cerca de 1300 anos antes de Cristo, moravam povos quase
desconhecidos. Chamaram-nos iberos os historiadores e geógrafos de eras subsequentes. Que vinham
eles a ser? Nenhuma luz há sobre o ponto. (...) Talvez se justifique a opinião de que, sob tal nome
coletivo, se designassem gentes moradoras ao longo do vale do Ebro, o Iberus dos autores latinos,
fossem quais fossem suas origens”.

A Obra e suas circunstâncias


Assim tem início o primeiro capítulo do primeiro volume de A Política Exterior do
Império de João Pandiá Calógeras, remontando no tempo remoto as origens da nacionalidade
portuguesa, marco inaugural de uma pesquisa extremamente vasta e bastante minuciosa sobre
os fundamentos e desenvolvimento da política exterior portuguesa, como fio condutor e meio
de preparação do terreno para a ampla história diplomática do Brasil que ele tinha se decidido
a escrever. Tal amplitude de visão denota com muita propriedade o estilo e o próprio método
de trabalho de Calógeras, pesquisador formado no rigor quantitativo dos estudos de
engenharia e no espírito detalhista da mineralogia descritiva.
Ele, que se tinha insurgido contra a acusação de que não haveria uma “história
diplomática brasileira”, pretendia, sem ironia, ter feito um “resumo, condensado mesmo, dos
acontecimentos, de suas causas e de seus efeitos” (Prefácio ao vol. I, p. xxxviii). Ao lançar-se
a seu vasto empreendimento, Calógeras reconhecia que, “ao invés do que acontecia no regime
imperial, em que grupo de especialistas mantinha no Conselho de Estado a tradição una da
Chancelaria, desde os mais remotos tempos da conquista lusa até os nossos dias, (...) vai-se
perdendo o contato com esse passado tão fecundo em lições...” (p. xxxvi). Para justificar seu
empreendimento, ele falou do acúmulo de “provas de que era preciso e urgente divulgar aos
brasileiros (...) o que havia sido, o que ainda era a tradição nacional no convívio com os
demais povos” (idem).
O terreno, ele reconhecia, não era desprovido de construções anteriores: “Não que
faltem estudos sobre trechos e episódios de nossas relações com outros países. Existem e
501
excelentes. Todos, entretanto, referem-se a casos isolados. Raríssimo elevam-se acima do
aspecto puramente nacional, e situam os fenômenos no horizonte verdadeiramente
internacional”. E Calógeras completava sua crítica: “Esse ponto de vista, o da perspectiva
histórica, o de restituir cada fato ao nível e ao ponto que lhe cabe na evolução diplomática
geral do mundo, tal exigência primordial e de conjunto nunca fora observada” (pp. xxxvi-
xxxvii).
Ele pretendia, portanto, ocupar a lacuna detectada, mesmo convencido, sem falsa
modéstia, da “insuficiência da realização”, julgando que seu trabalho padecia “de todos os
defeitos e falhas de uma primeira tentativa” (p. xxxviii). E no entanto, tão vasta obra tinha
começado com pretensões mais modestas, originando-se de convite que Calógeras havia
recebido do Instituto Histórico e Geográfico, em 1924, para colaborar na homenagem que se
pretendia prestar a D. Pedro II, no centenário de seu nascimento: “A parte que devíamos
estudar abrangia, no período de 1850-1864, a repressão do tráfico, a política exterior, o
equilíbrio no Prata, a consolidação da política interna” (p. xxxvii).
Calógeras indagava-se “como expor tais fatos, como perquiri-los, sem a prévia
definição deles, evidenciando suas origens, sua evolução, o ponto a que haviam chegado, os
rumos previsíveis, as soluções preferidas?”. Daí seu projeto de estudar a política exterior do
Brasil segundo um plano de vasto escopo: “primeiramente, em seus elementos formativos, em
suas origens, quer humanas, quer mesológicas. Mas fazê-lo em conjunto com os fatores
correlatos da História europeia, de que era manifestação ultramarina”.
Numa segunda etapa, “Fixar os problemas e os legados, que, em 1822, o primeiro
Império teria de solver, bem como as Regências que se lhe seguiram. Finalmente, ver o
tratamento a eles dispensado pelo segundo Império, até inventariar o acervo transmitido à
República. Era mais do que a tarefa pedida, mas só por tal forma se manteria a feição
essencialmente una dos roteiros trilhados, de 1500 até hoje” (p. xxxviii).

Lacunas e omissões?
Eis, pois, tais como descritas pelo próprio Autor, a origem, motivações e
características de obra tão monumental, ainda hoje inigualável pela amplitude cronológica e
riqueza documental com que retraçou o itinerário histórico da formação da nacionalidade
brasileira em suas dimensões internacionais. A obra, pelo que se depreende da expressão “de
1500 até hoje”, permaneceu no entanto inacabada, pois que, aos três volumes publicados

502
ainda em vida,1 Calógeras pretendia acrescentar dois tomos relativos aos “fatos do segundo
Império (...); abrange a intervenção no Uruguai, a guerra do Paraguai, os dissídios com a
Inglaterra, a questão Christie, a intimidade com os Estados Unidos, o prestígio crescente do
Império na América do Sul e na Europa, a solução do problema multissecular da escravidão
africana...” (Prefácio ao vol. III, p. 5-6).
Esse esforço admirável não deixou de ser reconhecido por um critico tão severo como
José Honório Rodrigues. Em sua vasta historiografia da história do Brasil, não deixa ele de
prestar o merecido crédito a Calógeras: “Graças ao nobre esforço de um grande historiador,
possuímos um quadro geral da evolução de nossas relações internacionais, desde as origens
coloniais até a queda de Rosas. Enquanto o Visconde de Santarém planejou e executou em
grande parte uma das mais exaustivas pesquisas jamais realizadas no campo da política
internacional, Pandiá Calógeras analisava os principais documentos indispensáveis e
aprofundava a leitura dos clássicos de história política brasileira, portuguesa e europeia, para
oferecer-nos um admirável ensaio das vicissitudes e grandezas dos negócios do Brasil em
suas relações com o estrangeiro”.2
Mas, com uma ambiguidade desarmante e sem maiores explicações, como não deixou
de notar o diplomata e historiador João Hermes Pereira de Araujo, José Honório Rodrigues
afirma que “seria uma temeridade dizer que A Política Exterior do Império é uma obra
completa e definitiva”.3 Depois de alinhar outros elementos de bibliografia sobre o tema, José
Honório avaliava que, “com novas e exaustivas pesquisas das fontes brasileiras e estrangeiras,
poder-se-á tentar tanto monografias especiais, episódicas e periódicas, como obras gerais de
história diplomática que venham corrigir as lacunas, falhas ou omissões de Pandiá
Calógeras”.4
Como não deixa de indicar, acertadamente, João Hermes, “Lamentavelmente, não
encontramos, na obra até agora publicada de Jose Honório Rodrigues, esclarecimentos a

1
O primeiro volume da edição original d’A Política Exterior do Império foi publicado como tomo
especial da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1927; o segundo, na mesma
forma, sai em 1928 e o terceiro, já integrando a coleção “Brasiliana” da Companhia Editora Nacional,
em 1933, poucos meses antes da morte de Pandiá Calógeras.
2
Cf. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil: Introdução Metodológica (5ª ed., São
Paulo-Brasília: Companhia Editora Nacional-INL, 1978), pp. 171-2. A pesquisa referida do Visconde
de Santarém (Manuel Francisco de Barros) é o Quadro elementar das relações políticas e
diplomáticas de Portugal (Paris: 1842-1860, 19 vols.), seguida do Corpo diplomático português
(Lisboa, 1862-1902, 12 vols.), que José Honório considera “muito mais fontes que obras de história
diplomática”; cf. p. 170.
3
Idem, p. 172. Ver a “Introdução” de João Hermes Pereira de Araújo à edição fac-similar da obra de
Pandiá Calógeras, p. xxii.
4
Cf. Rodrigues, idem, p. 173.
503
respeito dessas reticências à Política Exterior do Império”.5 Possivelmente emergirá uma
explicação quando se publique a História diplomática do Brasil que José Honório preparou
em 1956, como resultado de seu curso no Instituto Rio Branco, obra também referida, por
João Hermes, como Capítulos das Relações Internacionais do Brasil, em futura edição a ser
lançada, espera-se, pelo Instituto Nacional do Livro.

Prolixidade histórica
O fato é que, contrariamente à assertiva de José Honório, a obra de Calógeras pode
certamente pecar por algumas falhas metodológicas, como se verá adiante, mas jamais por
lacunas e omissões. Com efeito, ademais do minucioso acompanhamento de todos os fatos
relativos às relações internacionais da potência colonial portuguesa e, em especial, à política
exterior do jovem Império sul-americano, Calógeras se detém em demasia em eventos e
processos pertencendo tipicamente à história interna do País, quando não ao domínio da
biografia ou do anedótico. Este aspecto é particularmente ressaltado por João Hermes: “Da
leitura atenta de A Política Exterior do Império, o comentário que à primeira vista se impõe
diz justamente respeito à prolixidade, à tendência de ‘alastrar’ os assuntos tratados”.6 Se a
estrutura formal dos capítulos, em cada um dos volumes, é relativamente “internacional”, seu
conteúdo frequentemente resvala para a crônica da política doméstica e a descrição geral do
“estado de cousas”, mais do que o requereria uma avaliação ponderada dos rumos da política
externa oficial. Mesmo na reconstituição dos principais fatos e eventos diplomáticos, o texto
de Calógeras é excessivamente carregado pela incorporação de acontecimentos laterais, pela
descrição minuciosa dos passos – às vezes literalmente – dos agentes diplomáticos ou pela
transcrição completa de notas e documentos de chancelaria, o que, se muito auxilia o
pesquisador impossibilitado de ir às fontes primárias, torna por vezes enfadonha a leitura dos
três alentados volumes.
A prolixidade não é contudo um defeito, se considerarmos a obra de Calógeras
precisamente como a de um “desbravador”, um garimpeiro da documentação de base,
segundo as melhores regras da crítica histórica que lhe tinham sido repassadas pelo mestre
Capistrano de Abreu. É bem verdade que Calógeras se excedia no aproveitamento das fontes
documentais, mas ainda aqui devemos ser-lhe gratos pela riqueza das referências. Não é
incomum encontrarmos, em seu texto, notas de rodapé deste tipo: “As fontes a consultar e

5
Cf. Pereira de Araújo, op. cit., loc. cit.
6
Idem, p. xxiv.

504
confrontar são a Summa do bullario portuguez e Alguns documentos da Torre do Tombo”, ou
ainda “A documentação encontra-se no Códice n. 215, lata 10, do Instituto Histórico e
Geográfico”. Estamos certamente muito longe das lacunas e omissões supostamente
encontradas por José Honório Rodrigues.

As marcas da história política


Quanto às falhas, evidentemente, que as há, mas não propriamente de interpretação
geral da evolução política do Brasil no que se refere ao capítulo das relações internacionais.
Existe um certo consenso historiográfico quanto ao sentido global da formação da
nacionalidade brasileira, feita de uma mistura de elementos diversos, mas todos concorrentes
na constituição de um país sui generis na América do Sul: sólidos princípios territoriais
portugueses; uma indefectível mistura étnica benéfica, em última instância, à unidade
nacional (o que, mesmo os historiadores mais conservadores, como Oliveira Lima, por
exemplo, não deixam de reconhecer); uma defesa acirrada da unidade nacional e da
integridade territorial da nação independente por parte de uma elite oligárquica imbuída de
um arremedo de “manifesto destino”; uma estrutura social extremamente perversa em termos
de construção da cidadania, pois que marcada pela preservação à outrance do escravismo,
pela marginalidade estrutural do campesinato (na verdade, simples trabalhadores agrícolas) e
por outros fatores que repercutem na desigualdade congênita da sociedade; ausência de
grandes rupturas sociais, pelo menos num sentido cataclísmico, a grande instabilidade política
compensando a falta de verdadeiras revoluções; um certo contentamento, enfim, com o
sentido geralmente pacífico do nosso relacionamento externo regional.
Pandiá Calógeras situa-se no droit fil desse consenso historiográfico, o que evitou,
aliás, o surgimento entre nós de grandes querelas profissionais que agitam de forma recorrente
a comunidade dos historiadores em outros países (por exemplo, as interprétations
divergentes, de direita ou de esquerda, sobre a grande Révolution, na França, ou os vários
Historikerstreiten na Alemanha, de base essencialmente cultural). A esse título, não se pode
dizer que as interpretações mais recentes da história diplomática brasileira – a não ser as
declaradamente “revisionistas”, mas estas geralmente imbuídas de uma visão “marxista”
primária, e mesmo simplista, da política exterior do Império e da Primeira República –
tenham vindo contestar fundamentalmente a interpretação que lhe deu Calógeras.
A Política Exterior do Império traz, no entanto, as marcas de sua época, o que é
inevitável mesmo no caso de um historiador “instintivo” como Pandiá Calógeras, que não
reivindicava qualquer appartenance a uma escola histórica particular. O período de sua
505
formação intelectual era claramente dominado pela história política tradicional, pela
“ditadura” do événementiel, ao estilo do wie es eigentlich gewesen de Ranke, do positivismo
da Revue Historique de Gabriel Monod, da “escola metódica” de Lavisse, Langlois e
Seignobos, e ainda imune aos aportes sociológicos de L’Année Sociologique de Émile
Durkheim e da Revue de Synthèse Historique de Henri Berr e de François Simiand.
O discurso histórico, nessa época, é claramente ou essencialmente político, em
oposição aos primeiros ensaios de “história marxista”, ou seja econômica, que são feitos
desde finais do século XIX, seja por discípulos de Marx e Engels (Kautsky e seu trabalho
sobre a revolução francesa, Edward Bernstein e seu texto sobre a revolução inglesa), seja por
intelectuais independentes europeus (Werner Sombart e seu estudo sobre o “burguês”, Max
Weber e seus trabalhos de história comparada das civilizações e muitos outros
Kathedernsozialisten alemães). Mesmo num país tão pouco afeito à tradição marxista, como
os Estados Unidos, um historiador sem maiores attaches com o movimento socialista como
Charles Beard ensaiou uma inovadora e pioneira interpretação materialista da história política
daquela nação, em seu tão aclamado quanto repudiado An Economic Interpretation of the
Constitution (1913). Não há em Calógeras qualquer esboço de interpretação econômica de
fatos políticos, qualquer tentativa de fazer uma Sozialgeschichte.

Uma história “política” da economia


Seja dito claramente: Calógeras não ignorava os aportes do “materialismo dialético” à
pesquisa histórica. Nesta sua obra, a par dos muitos capítulos de história política tradicional,
sempre há uma ou duas seções reservadas aos problemas econômicos ou comerciais. No
primeiro volume, por exemplo, todo o capítulo X é dedicado à “economia colonial” e ao
tratado de comércio de 1810 com a Inglaterra. Desde seu segundo parágrafo afirma o Autor:
“Nossa própria configuração política é, em parte, sua criação [da atividade econômica
brasileira], por menos que se queira aceitar do materialismo histórico: o ouro, no século XVII,
lindou Mato Grosso das possessões espanholas; a borracha, em nossos dias, traçou a divisa
com o Peru e a Bolívia” (vol. I, p. 333). A subordinação de Portugal em relação aos interesses
econômicos ingleses é perfeitamente ilustrada na análise do Tratado desigual de 1810:
“Ficava, portanto, o futuro reino do Brasil à mercê de Londres” (p. 341).
No segundo volume, igualmente, um dos capítulos finais é dedicado à “economia
nacional e os tratados”, com nada menos de 43 páginas voltadas para uma acurada descrição
das condições em que se deu a renegociação daquele primeiro tratado leonino e a conclusão
de novos tratados comerciais com outras nações europeias e os Estados Unidos. Os problemas
506
do tráfico escravo, da balança comercial e da situação financeira e cambial também recebem
tratamento relativamente minucioso na análise de Calógeras: a discussão no Parlamento sobre
os tratados, aos quais estava ligado o problema do tráfico, encerra, nas palavras de Calógeras,
“um dos mais notáveis debates construtores da nacionalidade em formação” (vol. II, p. 497).
No terceiro volume, por sua vez, deixa a desejar o capítulo sobre a “oposição aos tratados de
comércio” durante os gabinetes da Regência, uma vez que a exposição é limitada aos debates
parlamentares, sem maior aprofundamento analítico sobre seus efeitos na economia do País.
Mas, o capítulo anterior estende-se por 50 páginas nos problemas do tráfico, da colonização
interior e das finanças, não deixando Calógeras de notar o efeito pernicioso sobre as finanças
públicas e a dívida externa da “política externa belicosa” seguida anteriormente (III, p. 368).
Em que pese essa preocupação, a componente econômica não volta a impregnar a
história essencialmente política conduzida nos demais capítulos, como se houvesse uma
separação estrita de fronteiras temáticas. Na verdade, a “economia política” praticada por
Calógeras coloca a descrição da economia a serviço da narração política, numa espécie de
materialismo histórico invertido. No mais, Calógeras se encontra muito mais à vontade no
tratamento do événementiel e do biográfico: Feijó, por exemplo, é saudado por seu “espírito
másculo”, dotado de “alta e curiosa fisionomia moral” (vol. III, p. 41). Quanto a D. Pedro II, o
tom é de franca admiração: “Triste criança, orfanada com menos de um ano (...), sempre lhe
faltaram os beijos maternos. (...) Não teve infância nem mocidade. Era, sempre, o chefe de
Estado” (p. 386).
Em suma, as relações internacionais do Brasil, na versão Calógeras, situam-se
claramente na perspectiva ottocentesca da história política, essencialmente factual, como seria
de se esperar de um autor educado em leituras de Varnhagen – a História geral do Brasil, de
1854-57, é a que reúne, no dizer de José Honório Rodrigues, “o maior número de fatos” (op.
cit., p. 132) – além de outros historiadores preocupados com a cronologia e o encadeamento
dos eventos, o poder do Estado, a processualística do atos internacionais, enfim, uma ótica
quase que jurídica da história.
Mas, ele havia aprendido também, com Capistrano de Abreu, a importância dos
fenômenos socioeconômicos, o peso do meio ambiente – a época é de certo “determinismo
geográfico” – e o da formação étnica na vida de uma nação (aqui é preciso mencionar que
Calógeras nunca sucumbiu ao “cientismo” racial de muitos de seus contemporâneos). É bem
verdade, como ressalta José Honório, que sua Formação Histórica do Brasil (1930) “costuma
separar a parte econômica e social da parte político-administrativa” (p. 140), mas não se deve
esquecer que ele foi um dos primeiros a ingressar no terreno da “história econômica” com A
507
Política Monetária do Brasil.7 Em que pese, no entanto, todos os méritos do La Politique
Monétaire du Brésil, elaborado às pressas para atender a recomendação da Terceira
Conferência Internacional Americana, essa reconstituição extremamente bem cuidada das
várias etapas da história econômica do País, sobretudo em suas dimensões financeira e
monetária, apresenta um caráter essencialmente político, quando não administrativo, com uma
extensa compilação de tabelas de taxas cambiais, empréstimos de reconversão, decretos de
emissão, etc.

O “Clausewitz” da política externa


Em todo caso, estamos ainda no terreno da história tradicional, bem diferente daquela
que seria inaugurada, na década de 30, por intelectuais de formação tão diversa como Caio
Prado Júnior (Evolução Política do Brasil, 1933), Gilberto Freyre (Casa-Grande e Senzala,
1934) ou Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936). Em todos eles há uma
preocupação com o que poderíamos chamar de “história total”, sem categorias estanques ou
distinções claras entre cultura, sociedade, economia e política. Com Calógeras, predomina
ainda a vertente clássica, aquela da história “liberal”, ao estilo de um Macaulay ou de um
Gardiner.
Seja como for, Calógeras é o primeiro “sistematizador” da história das relações
internacionais do Brasil, o primeiro a pensar de forma unificada (ainda que não integrada) o
itinerário da nacionalidade brasileira em sua dimensão internacional. Como ressaltou João
Hermes, “Anteriormente a Calógeras, (...) nenhum autor brasileiro tratou, com espírito
científico e dentro de uma visão geral, de nossa história diplomática”.8
Ele o faz com pleno conhecimento de causa, produzindo uma obra de referência – mas
não certamente um compêndio didático – que permite embasar novas tentativas de
interpretação por gerações ulteriores de historiadores. Sua marca registrada é a
interpenetração da política interna com a externa, sem que se possa distinguir muito bem se
todos os fatores propriamente nacionais alinhados por ele apresentam efetivamente uma
influência sobre eventos ou processos na vertente externa. Segundo uma imagem traçada por
Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), assim como Clausewitz considerava a guerra a
continuação da política por outros meios, Calógeras parece considerar, “com razão, a política

7
Original francês: La Politique Monétaire du Brésil (Rio de Janeiro, Imprimerie Nationale, 1910;
edição em português, tradução de Thomaz Newlands Neto, São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1960; coleção “Brasiliana”, 18).
8
Cf. Pereira de Araújo, Introdução, op. cit., p. xiv.
508
externa como sendo um prolongamento da política interna”.9
Calógeras, ao fazer obra grandiosa, foi também excessivamente modesto, ao falar da
“insuficiência da realização” e dos “defeitos e falhas” de sua “primeira tentativa”. Ainda
assim, considerou que seu trabalho poderia servir de “tela para futuras correções”. Mais do
que isso, ao refazer todo o percurso da formação da nacionalidade brasileira nos mais de
quatro séculos de história que cobre seu trabalho, ele é a base indispensável sobre a qual deve
assentar qualquer estudo sério sobre as relações internacionais do Brasil contemporâneo.
Um sumário resumido dos capítulos da trilogia confirma essa afirmação. O primeiro
volume trata, sucessivamente, da formação da península ibérica e da oposição de
mentalidades entre portugueses e espanhóis, dos descobrimentos, da formação territorial do
Brasil, do domínio espanhol, das guerras entre a Espanha e a Holanda, da expansão territorial
portuguesa, do uti possidetis e dos tratados de 1750 e de 1761, da consolidação das fronteiras,
do povoamento, da economia colonial, da campanha de Wilberforce contra o tráfico e pela
abolição da escravidão, da Europa pós-napoleônica, da emergência do movimento
emancipacionista na América, da diplomacia de D. João VI e da independência.
O segundo volume, enfocando o primeiro Reinado, é na verdade quase todo dedicado
ao problema do reconhecimento da independência, tema que já tinha sido extensivamente
tratado em obra comemorativa de 1922 organizada pelo Itamaraty: Arquivo Diplomático da
Independência (1922, 6 vols.). Ainda assim, completam esse volume capítulos dedicados ao
problema da Cisplatina e à economia nacional e os tratados de comércio, concluindo-se pela
abdicação do Imperador Pedro I.
O terceiro volume, finalmente, é o mais complexo pelos temas tratados, com uma
estrutura muito diferenciada em seus diversos capítulos, com temas de política interna
alternando-se com aqueles voltados para a política externa: luta contra o absolutismo, Feijó,
maioridade, questão religiosa, os problemas do Prata (caudilhos, Uruguai, bloqueio francês,
Rosas), fronteiras com as Guianas francesa e inglesa e com a Bolívia, as questões do tráfico,
da colonização e das finanças (num só capítulo), a oposição aos tratados de comércio no
Parlamento e no Conselho, o Imperador, a pacificação do País por Caxias e, por fim, o
problema do Prata mais uma vez, até a queda de Rosas. Em suma, toda a história do Brasil
passada a limpo por esse “engenheiro-historiador”, que também foi parlamentar e político
(três vezes ministro: da Agricultura, Indústria e Comércio, da Fazenda e da Guerra, o único
civil a ocupar esse cargo na República), mas que nunca conseguiu ser o que realmente

9
Tristão de Athayde, in Pandiá Calógeras na opinião de seus contemporâneos (São Paulo, Tip.
Siqueira, 1934), p. 127, citado por Pereira de Araújo, p. xxvi.
509
pretendia: Ministro das Relações Exteriores.
Segundo a imagem consagrada, todos nós, diletantes, amadores ou especialistas na
história das relações exteriores do Brasil, podemos ser considerados como “anões nos ombros
de um gigante”. Depois de Pandiá Calógeras, podemos certamente continuar a estudar a
política externa por “outros meios”, inclusive aqueles que não estavam a seu alcance,
pertencente que foi a um universo historiográfico que antecede a Revolução metodológica e
mental dos Annales. Mas, no panteão dos nossos historiadores, ele continuará sempre sendo,
com todo o seu factualismo, o “Clausewitz” das relações internacionais do Brasil.

Brasília, 22 de maio de 1993.


Publicado na revista Estudos Ibero-Americanos
(Porto Alegre, PUC-RS, v. XVIII, n. 2, dezembro 1992, p. 93-103).

510
Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira:
Em busca da simplicidade e da clareza perdidas:

Carlos Delgado de Carvalho:


História Diplomática do Brasil
(1ª ed.: São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; edição fac-similar: Brasília: Senado
Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, org. Paulo Roberto de Almeida, lxx+420 p.)

A reedição fac-similar do livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática


do Brasil, vem responder a uma necessidade bibliográfica tanto quanto atender a uma antiga
aspiração de profissionais da diplomacia brasileira. Com efeito, no final dos anos 1980, o
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Itamaraty, projetava relançá-lo em edição
igualmente fac-similar, empreendimento certamente bem-vindo já naquela época, mas que
não logrou então concretizar-se em virtude das prosaicas dificuldades de financiamento que
soem atormentar, de forma recorrente, as instituições que vivem de recursos públicos.
A empresa foi viabilizada graças à feliz iniciativa dos organizadores da coleção
“Memória Brasileira” do Senado Federal, em especial nas pessoas de seu coordenador
institucional, Senador Lúcio Alcântara, e de seu então principal animador, Professor Estevão
C. de Rezende Martins, que atendeu prontamente minha sugestão de incluí-lo nesta já
prestigiosa coletânea de obras importantes sobre temas brasileiros. Ela vem preencher não
apenas uma lacuna propriamente inexplicável em termos editoriais, como também um vácuo
didático há muito tempo sentido entre os estudiosos da política externa e das relações
internacionais do Brasil em geral e entre os jovens diplomatas em particular.
Obra de reconhecidos méritos metodológicos e substantivos, como já amplamente
sublinhado no texto precedente do embaixador Rubens Ricupero, sua edição num circuito não
comercial também se beneficia intelectualmente da publicação, tão oportuna quanto tardia,
parafraseando seu próprio título, da Apresentação que esse notável diplomata e professor da
Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco havia preparado, em 1989, quando da
tentativa anterior de republicação pelo IPRI.
Eis-nos, portanto, finalmente recompensados com nova divulgação de uma obra quase
tão mítica quanto rara, pois que desaparecida das livrarias logo nos primeiros anos de sua
primeira edição comercial, em 1959 e intensamente buscada nos sebos desde então. Para os
muitos candidatos à sua leitura indispensável, ela subsistia apenas nos poucos volumes já
“maltratados” emprestados pelas bibliotecas especializadas ou então, necessité oblige, tinham
de ser cedidos “religiosamente”, com todas as advertências do gênero, por seus felizes e raros
511
possuidores aos muitos ávidos interessados (como este que aqui escreve). Como afirma
Ricupero na abertura de sua apresentação, este livro, por mais de uma razão, tinha se tornado
insubstituível, ou quase.
Com efeito, durante mais de três décadas a partir dos anos 60, e mais exatamente até a
publicação do trabalho de síntese dos pesquisadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno1 e,
mais recentemente, da obra póstuma do historiador José Honório Rodrigues2, esta obra
despretensiosa de Delgado constituiu, junto com o título homônimo e contemporâneo de
Hélio Vianna3, leitura obrigatória e objeto de consulta incontornável de todo e qualquer
estudioso da política externa e das relações internacionais do Brasil, em especial de turmas
inteiras e sucessivas de vestibulandos e alunos do Curso de Preparação à Carreira Diplomática
mantido desde 1946 pelo Instituto Rio Branco. O CPCD foi convertido, em 1995, na primeira
fase de um “programa de formação e aperfeiçoamento”, seu currículo acadêmico e
profissional passou por diversas modificações, mas o livro de Delgado de Carvalho continua a
figurar, em primeiro plano, na lista de leituras da disciplina de história diplomática.
Tendo se originado, precisamente, de aulas ministradas por Delgado de Carvalho no
Instituto Rio Branco, em 1955, o livro teve a desventura editorial de ter conhecido uma única
e singela edição, tornando-se propriamente introuvable com o passar dos anos. Seu vigor
intelectual, entretanto, contrasta flagrantemente com seu presumido envelhecimento físico. O
único exemplar disponível na Biblioteca do Itamaraty, por exemplo, está desfazendo-se
virtualmente, carregando as marcas literais de uma intensa e repetida utilização visual e
“manual” por gerações sucessivas de leitores atentos — páginas desprendidas ou rasgadas,
lombada e costura desfeitas, incontáveis sublinhados, felizmente a maior parte a lápis —, o
que apenas vem confirmar, precisamente, a preservação de suas qualidades intrínsecas.
Desde a tentativa meritória, mas malograda, do IPRI de relançá-lo em segunda edição,
a exemplo do que tinha sido feito com a obra em três volumes de Pandiá Calógeras4, o livro

1
Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil (São Paulo: Editora
Ática, 1992); reeditada pela Universidade de Brasília em forma revista e ampliada diversas vezes.
2
José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945)
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995; organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues).
3
Hélio Vianna: História Diplomática do Brasil. 1ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958; 2ª ed.,
acoplada à História da República (São Paulo: Melhoramentos, s.d. [1961?], p. 89-285).
4
J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império. vol. I: As Origens; vol. II: O Primeiro Reinado;
vol. III: Da Regência à Queda de Rosas (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos
Deputados, Companhia Editora Nacional; Brasiliana, volume 386, 1989; edição fac-similar; xl + 490
p., 568 p. e 620 p. respectivamente), com Introdução de João Hermes Pereira de Araújo: “O IPRI e a
‘Política Exterior do Império’”, p. v-xxx. O primeiro volume da edição original dessa trilogia foi
publicado como tomo especial da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1927; o
512
parecia condenado a continuar sua trajetória solitária para a lista das raridades bibliográficas,
quando não para a relação ainda mais triste dos fisicamente desaparecidos. É verdade que o
lançamento da obra conjunta de Cervo e de Bueno tinha tirado muito da urgência didática de
se reeditar este manual indispensável a todo estudioso de nossa história diplomática, mas
também é um fato que, por suas virtudes próprias – texto claro e direto, organização
sistemática racional e até mesmo atualidade factual – o livro de Delgado nunca deixou de
merecer uma segunda edição comercial, de preferência com as atualizações devidas.
O falecimento de Delgado, em 1980, na provecta idade de 96 anos, obstou,
evidentemente, que essa atualização fosse feita pelo próprio autor, mas não deveria
hipoteticamente ter impedido uma iniciativa nesse sentido por parte dos principais
interessados na preservação de seu conteúdo didático, a começar pelo setor acadêmico da
Chancelaria brasileira, isto é, o Instituto Rio Branco ou, mais uma vez, o IPRI. A bem da
verdade, devo confessar que acalentei por um momento, em meados dos anos 80, a pretensão
de “continuar” a obra de Delgado, corrigindo-a naqueles pontos que considerava
temporalmente defasados ou mudando certas ênfases temáticas na fase contemporânea. O
inevitável nomadismo da carreira e as muitas outras obrigações profissionais e acadêmicas,
obrigatória ou voluntariamente assumidas desde então, obstaculizaram contudo tal empenho
intelectual. Posteriormente, o anúncio continuado de sua “iminente” republicação fac-similar
pelo IPRI, ou mesmo “ameaças” posteriores de nova edição comercial, dissuadiram-me na
prática de lançar-me em tal empresa de aggiornamento de uma obra ainda largamente atual e
singularmente moderna, a despeito mesmo de sua concepção finalmente “tradicional”. Com
efeito, o caráter objetivo e o espírito vivo desta obra fizeram com que ela se mantivesse como
o protótipo historiográfico do que deveria ser uma história factual sobre nossa política
exterior, independentemente e ao lado da emergência de uma nova historiografia que busca
“interpretar” ou “contextualizar” essas mesmas relações exteriores.
Na ausência de um projeto do gênero, de caráter institucional ou por simples iniciativa
individual, o terreno continua aberto a que obra similar de caráter histórico retome ou
complete este livro didático, sempre válido, de Delgado de Carvalho. A presente edição
poderia representar, justamente, uma espécie de estímulo editorial a que um empreendimento
desse tipo seja concebido e levado adiante por diplomatas ou por pesquisadores acadêmicos.
A base intelectual colocada aqui por Delgado constitui terreno sólido sobre o qual poderia
erguer-se tal trabalho de atualização historiográfica, acrescida da sempre bem-vinda

segundo, na mesma forma, sai em 1928 e o terceiro, já integrando a coleção “Brasiliana” da


Companhia Editora Nacional, em 1933, poucos meses antes da morte de Calógeras.
513
complementação documental, que não era de menor importância segundo sua concepção
original. Aguardando que tal iniciativa possa encontrar candidatos, vejamos, nesta introdução
metodológica, como se situa este livro de Delgado no contexto dos demais exemplos de
análise ou de relato histórico das relações exteriores do Brasil, quem foi seu autor e quais
foram suas principais obras, como se sustenta este trabalho em face das exigências heurísticas
de uma “história diplomática” nacional e como evoluíram, desde sua publicação, os estudos
de política externa do Brasil.
O presente texto, cujas partes centrais foram concebidas de maneira independente e
escritas cronologicamente à distância da Apresentação preparada originalmente em 1989 pelo
Emb. Ricupero, não tem a pretensão de complementar a excelente análise intelectual desta
obra já efetuada pelo então representante do Brasil junto ao GATT e atual Secretário-Geral da
UNCTAD. A breve síntese sobre a vida e a obra de Delgado aqui inserida foi elaborada
inicialmente como parte de um esforço mais vasto de levantamento bibliográfico e de resenha
crítica da historiografia brasileira de relações internacionais, tendo sido publicada
parcialmente em revista acadêmica vários anos atrás5. As demais seções desta introdução
geral a esta obra de Delgado pretendem, justamente, ressaltar seu valor específico no contexto
da literatura especializada disponível ao público interessado em história diplomática do Brasil
e demonstrar a pertinência de uma nova edição aggiornata.

AC-DC: Calógeras como marco historiográfico


Pandiá Calógeras, o “Clausewitz” da política externa do Brasil, foi quem iniciou,
verdadeiramente, o estudo científico das relações internacionais do País. Para isso, ele tinha
recuado praticamente até o nascimento da nação portuguesa, seguido os passos de suas
aventuras coloniais e déboires europeus e acompanhado atentamente as primeiras etapas da
diplomacia brasileira, desde o reconhecimento da independência até a luta contra Rosas, em
1851-52. Fazer história diplomática, depois de Calógeras já não seria mais obra de simples
diletantes ou de cronistas do regime em vigor e, de fato, tornar-se-ia difícil seguir os passos de
quem exerceu diuturnamente o ofício de escritor-historiador praticamente desde o nascimento
até o final da República Velha.

5
Ver Paulo Roberto de Almeida, “Estudos de Relações Internacionais do Brasil: etapas da produção
historiográfica brasileira, 1927-1992”, Revista Brasileira de Política Internacional , Brasília: nova
série, ano 36, n. 1, 1993, p. 11-36, em especial p. 20-23: “O factual de qualidade: Delgado de
Carvalho”; texto ampliado e incorporado ao livro do autor: Relações internacionais e política externa
do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª ed.; Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2004, cap. 2: “Historiografia brasileira de relações internacionais”).
514
Ele foi, aliás, pioneiro em várias vertentes da historiografia brasileira: história política,
monetária (seu La Politique Monétaire du Brésil é primoroso), história administrativa, dos
tributos, dos transportes, mineralógica e energética etc. No setor que nos interessa, Calógeras
representou, para todos os efeitos, um marco historiográfico na reconstituição das relações
exteriores do Brasil, a ponto de se poder, a exemplo do título desta seção, operar uma espécie
de “ruptura epistemológica” em torno de sua obra.
Depois de Calógeras e seus livros monumentais sobre as relações exteriores do Brasil,
de fato desde o período colonial português, os diplomatas e historiadores que se dedicaram ao
estudo da política externa do Brasil passaram a abordar períodos históricos mais limitados,
espaços geográficos mais restritos ou temas políticos mais específicos, versando geralmente
sobre problemas de fronteiras ou sobre questões diversas da diplomacia imperial. Nesse
quadro, merecem registro algumas obras de história diplomática, em primeiro lugar a síntese
geral da política externa brasileira realizada por Renato de Mendonça, que, publicada no
exterior, na verdade cobre quase que exclusivamente o período colonial, chegando tão
somente ao reconhecimento da Independência6. José Antônio Soares de Souza, por sua vez,
produziu diversos estudos monográficos sobre o período monárquico e a questão do Prata em
particular7. O diplomata Teixeira Soares também se ocupou da mesma problemática, bem
como da formação das fronteiras8. Em todos eles há uma espécie de racionalização intrínseca
a respeito dos “acertos” da política imperial e sobre a inexistência, por exemplo, de
alternativas diplomáticas ao quadro de conflitos na região platina.
Essas obras eruditas destinavam-se contudo a um público restrito, geralmente formado
pelos demais historiadores ou pelos próprios profissionais da carreira diplomática. O Instituto
Rio Branco (IRBr), que começou a funcionar em 1946, passou a organizar cursos de formação
ou de aperfeiçoamento de diplomatas, para os quais foram convidados alguns desses
eminentes historiadores, muitos deles dedicados igualmente à instrução de oficiais militares
nos Estados-Maiores das Forças Armadas. Os historiadores José Honório Rodrigues e Hélio
Vianna e o geógrafo Carlos Delgado de Carvalho foram alguns desses muitos intelectuais de
renome que abrilhantaram os cursos do IRBr entre finais da década de 40 e princípios dos
anos 60.

6
Renato de Mendonça, História da Política Exterior do Brasil, 1500-1825 (México: Instituto Pan-
Americano de Geografia e História, 1945; reeditada pela Funag em 2013).
7
José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império: Barão da Ponte Ribeiro (São Paulo: Cia.
Ed. Nacional, 1952).
8
Teixeira Soares, Diplomacia do Império no Rio da Prata, até 1865 (Rio de Janeiro: Brand Editora,
1955).
515
O esforço de sistematização permitiu, em cada um desses casos, a elaboração de
“notas de curso” que puderam ser ulteriormente transformadas em trabalhos independentes,
dos quais apenas os de Vianna e Delgado lograram alcançar publicação comercial ainda nos
anos 50, ambos intitulados História Diplomática do Brasil. Esses dois volumes, precisamente,
constituíram a matéria-prima educacional para que gerações sucessivas de estudantes
brasileiros se habilitassem no vestibular de ingresso e, ulteriormente, acompanhassem o
próprio curso do IRBr de preparação à carreira diplomática, permanecendo como referências
obrigatórias nesse terreno até o surgimento da obra mais moderna dos Professores Amado
Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno e a tão delongada publicação das notas de curso de José
Honório Rodrigues.

Hélio Vianna e a visão oficial da política externa


O primeiro volume a vir a lume foi o História Diplomática do Brasil de Hélio Vianna,
trabalho baseado em curso ministrado em 1947 sobre a história das fronteiras do Brasil
(publicado originalmente pela Biblioteca Militar em 1949) e completado por texto sobre
história diplomática resultante de curso de aperfeiçoamento no IRBr em 1950. A primeira
edição, há muito esgotada, foi publicada pelas Edições Melhoramentos em 1958, sendo
ulteriormente acoplada, em sua 2ª edição, a outro trabalho do autor, História da República,
esta por sua vez destacada da História do Brasil.
A História Diplomática de Hélio Vianna é, antes de mais nada, uma obra híbrida, pois
que retoma trechos inteiros do História das Fronteiras, logrando contudo uma certa unidade
temática e de tratamento linear sobre os principais eventos das relações internacionais do
Brasil desde os descobrimentos até, na segunda e última edição, o problema dos mísseis
soviéticos em Cuba, em 1961, com ênfase, evidentemente, nos diversos processos de fixação
de limites com os vizinhos países sul-americanos. A posição conservadora do autor reflete-se
claramente nesta obra, que opera, nas mais diferentes passagens, uma justificação integral das
escolhas oficiais a cada momento de nossa história política.
Como na obra homônima de Delgado, o trabalho de Hélio Vianna também se socorre
de diversas citações de especialistas ou de documentos oficiais, mas as transcrições, em
menor número, estão incorporadas ao próprio texto. Seu livro, igualmente didático, está
organizado em torno da atuação dos governos e das chancelarias, como todo manual de
história política tradicional. No que se refere às relações exteriores do Brasil, o livro se
conclui, como seria o caso também com a História Diplomática de Delgado de Carvalho, com
menção à Operação Pan-Americana, iniciativa multilateral regional tomada pelo Governo do
516
Presidente Juscelino Kubitschek, com escassos resultados práticos, mas permitindo o
surgimento ulterior da “Aliança para o Progresso” do Presidente Kennedy.
Trata-se, a exemplo da obra correspondente de Delgado de Carvalho, de um trabalho
pertencente claramente à categoria das “obras gerais”, isto é os manuais de síntese, de escopo
essencialmente factual e, no caso de Vianna, praticamente “oficial”, em termos de postura
interpretativa. Mas, à diferença do livro do primeiro, o trabalho de Hélio Vianna dá muito
maior ênfase aos episódios da história colonial e monárquica independente do que ao período
republicano contemporâneo, que constitui o essencial da contribuição inovadora do primeiro,
cujo manual é um exemplo daquilo que os franceses chamariam de histoire immédiate. Pode-
se dizer, portanto, que os dois livros homônimos se complementam reciprocamente, tanto em
informação como em seleção de episódios significativos.
Hélio Vianna não pretendia se situar no plano analítico de A Política Exterior do
Império de Pandiá Calógeras, por exemplo, que operava uma reconstituição histórica
profissional de todo o itinerário histórico das relações internacionais de Portugal e do Brasil
desde as origens ibéricas até a queda do ditador Rosas da Argentina (1852). Ele permaneceu
numa outra vertente, a da compilação das interpretações consagradas sobre os episódios mais
importantes da política exterior oficial, e não chega a superar os limites estritos da “história
diplomática”. De todo modo, seu minucioso trabalho factual é complementar ao livro de
Delgado de Carvalho, já que se estende nos períodos e temas em que este último não
pretendeu cobrir em detalhes, como é o caso da história colonial e da expansão portuguesa
para além dos limites traçados originalmente em Tordesilhas. Como o de Delgado, o manual
de Vianna quiçá mereceria também uma segunda edição, de preferência atualizada.

O homem Delgado de Carvalho: um gentleman cartesiano


Carlos Delgado de Carvalho foi um dos últimos representantes, no Brasil, de uma
geração dividida entre duas épocas: uma cultura estilo belle époque, que sobreviveu ao Brasil
monárquico do século XIX e que ainda projetou influências no comportamento semi-
aristocrático das elites da Primeira República, e uma outra, dita “cultura de massas”, típica de
uma estrutura social em intenso processo de transformação a partir da Revolução de 1930.
Sua longevidade permitiu-lhe atravessar os mais diferentes regimes políticos do País e seus
diversos sistemas educacionais, mas Delgado também era uma personalidade distraída, a
ponto de ignorar quais fossem os mandatários do momento. Tendo nascido em Paris em 1884,
filho de um Secretário da Legação brasileira – monarquista como todos os demais integrantes
do serviço diplomático –, ele só veio a conhecer o Brasil, contra a vontade do Pai, aos 22 anos
517
de idade, em 1906, tendo de se naturalizar brasileiro novamente em virtude de ter prestado
serviço militar no Exército francês pouco tempo antes.
Sua educação seguiu o modelo adotado pelas boas famílias da belle époque, com
preceptores estrangeiros, colégios internos e um perfeito multilinguismo: aprendeu inglês com
sua avó materna, em Londres, francês e várias outras línguas em colégios da França e da
Suíça. Tendo se diplomado como “Bachelier de l’Enseignement Sécondaire Classique”, em
Paris, em 1905, ele completa, em 1908, como aluno da École Libre des Sciences Politiques,
uma tese intitulada “Un Centre Économique au Brésil: l’État de Minas” e escreve, nesse
mesmo ano, um minucioso trabalho de geografia, Le Brésil Méridional. Esse livro, uma
cuidadosa análise da estrutura física, econômica e humana dos estados sulinos (que à época
incluíam São Paulo) foi certamente inovador na geografia brasileira e talvez mesmo até na
francesa, pois que centrado na apresentação e discussão minuciosa de três culturas
socioeconômicas distintas e contrastantes: “le pays du café”, “le pays du maté” e “le pays de
l’élevage”. Sua orientação para a geografia se reforça nessa época, tendo escrito em 1913 um
livro prefaciado por Oliveira Lima, Geografia do Brasil, livro que foi objeto de numerosas
reedições atualizadas nas décadas seguintes. Um estágio feito no Museu de Londres durante a
Primeira Guerra Mundial lhe daria oportunidade de escrever mais um trabalho, Météorologie
du Brésil, capacitando-o ulteriormente a trabalhar para o Serviço Pluviométrico do Brasil,
elaborando, na década seguinte, mais de meia centena de mapas do Nordeste.
Sua produção acadêmica intensifica-se então, paralelamente à prática educacional. Em
1916 é convidado para o cargo de professor extraordinário da Escola de Altos Estudos do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Pouco depois presta concurso para a cadeira de
inglês do Colégio Pedro II, apresentando o trabalho “Esboço Histórico das Origens e
Formação da Língua Inglesa”. Em 1920 torna-se professor de sociologia no mesmo Colégio,
ao qual ficaria ligado toda a sua vida. Delgado chegou mesmo a exercer, por curto período, o
cargo de diretor do Colégio Pedro II, no imediato seguimento da Revolução de 1930, tendo
sido designado, em 1931, vice-diretor da instituição, função que manteria até seu falecimento.
Em 1921, o Ministro do Exército Pandiá Calógeras convida-o para ser conferencista
das Escolas de Intendência. Escreve, nos anos 20, os livros Corografia do Distrito Federal,
Geografia Econômica da América do Sul, Fisiografia do Brasil e uma notável introdução aos
estudos de geografia moderna, Metodologia do Ensino Geográfico (1925). Desde 1923, e até
sua aposentadoria compulsória aos 70 anos, dedica-se igualmente ao ensino de sociologia na
Escola Normal (depois Instituto de Educação). Em 1936, com a fundação da Universidade do
Distrito Federal, torna-se catedrático de História Contemporânea e, a partir de 1939, de
518
História Moderna e Contemporânea da antiga Universidade do Brasil (depois UFRJ),
desempenhando-se nessa cadeira até sua aposentadoria compulsória. Esteve associado desde o
início ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (fundado em 1935) e muitos de seus
trabalhos — Exercícios e Práticas de Geografia (1941), Geografia dos Continentes (1943) —
trazem tanto a marca da atividade didática quanto a colaboração constante com essa
instituição.
Em 1954, já com 70 anos de idade, quando muitos encerram suas atividades, Delgado
de Carvalho começou nova fase de intensa produtividade em sua vida acadêmica e de
professor, a começar pela cadeira de História Diplomática no Instituto Rio Branco, da qual
resultaria este livro. Também a partir de 1954, e até 1960, foi professor no curso de
jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia. Data dessa época uma ainda legível História
Geral em quatro volumes (1956), de formato e finalidade essencialmente didáticos, mas
podendo preencher, graças a sua qualidade e profundidade, as estantes de qualquer historiador
profissional ou leitor erudito.
Intensifica-se também nessa mesma época o trabalho que já vinha desenvolvendo no
IBGE, juntamente com Therezinha de Castro, que se torna sua assistente e colaboradora em
inúmeros trabalhos. Como resultado dessa colaboração emerge, em 1960, sob cobertura
editorial do Conselho Nacional de Geografia, o Atlas de Relações Internacionais, republicado
posteriormente, em forma de fascículos na Revista Brasileira de Geografia (1967). Em 1963
são publicados dois livros: Organização social e política brasileira (pelo Centro de Pesquisas
Educacionais) e África: geografia social, econômica e política (com biografias sumárias
preparadas por Therezinha de Castro. Nos anos 70 ainda permanecia ativo, tendo
sucessivamente publicado, geralmente pela Editora Record do Rio de Janeiro Civilização
Contemporânea (em 1970, com 557 páginas!) Relações Internacionais (1971, 327 p., pela
São Paulo Editora), História das Américas (1976) e História Documental, Moderna e
Contemporânea (1976), este último uma coletânea de textos de personalidades e de
historiadores relevantes.

A obra “diplomática” de Delgado: modesta, original e completa


História Diplomática do Brasil é, antes de mais nada, um manual didático
extremamente útil ao estudioso que deseje adquirir uma visão ampla das relações exteriores
do Brasil em quatro séculos de história, com forte ênfase no período contemporâneo. Como
text-book acadêmico ele cumpre de maneira amplamente satisfatória esse papel de informação
factual sobre os eventos e processos que marcaram historicamente a inserção internacional do
519
Brasil, inclusive com uma utilíssima transcrição de trechos selecionados dos autores mais
significativos que escreveram sobre suas relações exteriores. Essa compilação de “fontes”,
apresentada sob a forma de “Excerpta”, compensa, em parte, mas não substitui, a falta de uma
verdadeira bibliografia e obras de referência, que talvez existisse na versão original dos
manuscritos, infelizmente perdidos pelo editor.
Em seu preâmbulo, Delgado menciona outros autores que trataram da história
diplomática do Brasil, como Hélio Vianna, Teixeira Soares, Renato de Mendonça, Macedo
Soares e Pedro Calmon, mas curiosamente não se refere a Pandiá Calógeras, apesar de que
um excerto da Política Exterior do Império seja transcrito no livro. No próprio corpo da obra,
Delgado tampouco deixa de transcrever alguns dos autores selecionados para a “Excerpta”,
mas sempre de maneira pertinente e comedida. Em todo caso, a seleção operada por Delgado
para essa seção, extremamente útil como referência a fontes primárias ou à bibliografia
secundária, é bastante eclética, indo de historiadores portugueses aos memorialistas
brasileiros, orgulhosos do passado imperial, e até a um historiador marxista como Caio Prado
Júnior. Ressalte-se, entretanto, que, do total de 409 páginas de seu livro, 317 correspondem
efetivamente à produção de Delgado e apenas 92 à transcrição de outros autores ou fontes
documentais. Mesmo essa compilação apenas complementa o entendimento de cada época,
mas não diminui o valor da produção intelectual do próprio Delgado, que se sustenta
inteiramente sem os excertos.
O que mais chama a atenção nessa obra é, contudo, sua atualidade, já que todo o
passado colonial português, normalmente valorizado nas obras históricas dos autores
tradicionais, recebe apenas um tratamento introdutório, com a modesta extensão de 19
páginas. Todo o resto é Brasil independente e mais da metade, de fato, é dedicado ao Brasil
República. Como já ressaltado pelo Emb. Ricupero na Apresentação, o próprio Delgado
justifica em seu Preâmbulo essa preferência: “A meu ver, é uma falha inexplicável dos nossos
atuais programas secundários de atribuir à história dos portugueses no Brasil, dito ‘período
colonial’, uma importância e desenvolvimento equivalente aos nossos 67 anos de Império e
70 anos de República” (p. xviii).
Delgado, de seu lado, faz uma opção preferencial e manifesta pela
contemporaneidade, às vezes até pela atualidade mais imediata, como é o caso já citado da
Operação Pan-americana, iniciativa conduzida pela diplomacia tenaz de Juscelino Kubitschek
e que estava ainda se desenvolvendo no momento mesmo do fechamento do livro. Este,
publicado em 1959, traz ainda a seguinte informação no capítulo relativo ao pan-
americanismo: “A 17 de novembro [de 1958], reunia-se em Washington, o Comitê dos 21 [no
520
âmbito da OEA, para tratar da OPA], no qual Augusto Frederico Schmidt chefiava a
delegação brasileira” (p. 343). Mais atualidade, impossível: trata-se do mais puro exercício
daquilo que os franceses chamariam de histoire immédiate.

Características analíticas e metodológicas


Com todo a sua modernidade e pertinência, o livro de Delgado ainda assim se ressente
de uma dispersão metodológica no tratamento dos diversos temas selecionados. O texto é
conciso no desenvolvimento da história colonial (que comporta tão somente um curto capítulo
inaugural, embora seguido de várias compilações de autores), bastante equilibrado no
tratamento do Império (nove capítulos ao todo, inclusive um “econômico” sobre os tratados
de comércio) e, no que se refere à República, relativamente insatisfatório do ponto de vista de
uma abordagem integrada e compreensiva desse período, a despeito mesmo da riqueza e da
diversidade da informação compilada.
Esse período é tratado mais em função dos problemas da política externa de governos
sucessivos, numa vertente propriamente diplomática (reconhecimento da República,
intervenção estrangeira na revolta de 1893, fronteiras), do que no seguimento de uma análise
integrada da história das relações exteriores ou das relações internacionais do Brasil. Assim,
depois de um capítulo inicial sobre o reconhecimento da República e de um outro sobre a
intervenção estrangeira na revolta de 1893, seguem-se quatro grandes capítulos sobre os
problemas de fronteiras, tema evidentemente obrigatório — e bastante “atual”, até uma data
ainda recente — nos programas curriculares de diplomatas e militares.
As políticas externas dos governos republicanos são examinadas num único capítulo:
“Rio Branco, Chanceler da Paz e seus Sucessores”, o que se revela inadequado em razão da
complexidade dos problemas em cada época, sobretudo no período varguista. Basta dizer que
as relações internacionais do Brasil entre 1913 e 1959 estão em grande parte comprimidas nas
últimas 20 páginas desse capítulo, mas aqui seguindo uma abordagem essencialmente
biográfica dos fatos mais relevantes desse longo período, como se a política externa dos
“sucessores” de Rio Branco tivesse sido realmente determinada, ou essencialmente definida,
pelas orientações pessoais de cada um dos respectivos chanceleres.
Em todo caso, a abordagem pelas questões relevantes ou temáticas continua pelo resto
do livro: a doutrina Monroe e as intervenções, o pan-americanismo acadêmico (na verdade
um importante capítulo, cobrindo o desenvolvimento jurídico do pan-americanismo e, depois,
uma série de grandes temas de nossa política exterior regional), os Estados Unidos e as
Repúblicas latinas (de fato as relações Brasil-Estados Unidos) e o isolacionismo e as guerras
521
mundiais (tratando inclusive do problema da Liga das Nações). O enfoque é quase sempre
político, segundo a visão da história tradicional, com uma descrição objetiva da atuação das
diversas chefias da Chancelaria brasileira e algumas (raras) pinceladas sobre os problemas
econômicos envolvidos. Mas, não há, propriamente, um tratamento abrangente e
“contextualizado” (para usar um termo da moda) da política externa governamental no quadro
de um país agroexportador, em processo de industrialização e ocupando uma posição
marginal na macroestrutura política mundial.

Limites e virtudes da história factual


Ressalve-se, porém, que esse tipo de história “interpretativa” não fazia parte da
concepção didática e instrumental que Delgado emprestou a suas notas de curso finalmente
convertidas em livro. Como advertiu Ricupero, não se pode julgar uma obra desse porte
armado com os instrumentos analíticos e as orientações historiográficas de nossa própria
época. Seria totalmente anacrônico, portanto, condenar o factualismo de Delgado com base
numa pretensa superioridade do “processo estrutural” de longo curso sobre o imediatismo da
“matéria-prima” da História, como se Braudel e os annalites não praticassem igualmente a
histoire événementielle.
Ao contrário, e sem mencionar a preocupação pedagógica, a obra de Delgado de
Carvalho é realmente preciosa pelo que tem de acúmulo de fatos históricos, mesmo se muitos
outros estão completamente descurados, como por exemplo as grandes conferências
econômicas do pós-guerra, de Bretton Woods às rodadas do GATT, passando pelo
conferência de Havana e as reuniões econômicas e comerciais pan-americanas, mencionadas
apenas en passant. Os fatos ou processos de tipo propriamente econômico, como as grandes
correntes de comércio, o esforço industrializador e outros, perdem-se no emaranhado de
acontecimentos políticos que recheiam — ou ocupam plenamente — o livro.
Esses fatos estão, grosso modo, ordenados logicamente e quase sempre são pertinentes
ao capítulo em causa, mas por vezes há um deslize para o anedótico ou o acessório. Ao tratar
dos Tratados de Utrecht de 1713 e de 1715, por exemplo, Delgado não deixa de mencionar
que os plenipotenciários de D. João V foram o Conde de Tarouca e D. Luís da Cunha,
informação mais bem pertinente numa história diplomática de Portugal. Mas, ele insere nessa
seção uma curta referência ao importante tratado de Methuen (p. 9-10), base econômica
ulterior, com outros instrumentos de aliança política e militar, da histórica dependência de
Portugal em relação à Inglaterra. Em outra passagem, ainda no terreno do episódico, ao
referir-se à gestão Otávio Mangabeira, ele termina por uma citação de Gustavo Barroso sobre
522
a inauguração solene por Washington Luís das novas dependências do Itamaraty: “Celebrou-
se então à noite grande baile de gala, festa brilhantíssima que deu aos salões do velho palácio
e aos jardins profusamente iluminados o esplendor decorativo do tão falado sarau com que,
em 1870, a Guarda Nacional da Corte, homenageando o Marechal Conde d’Eu, ali
comemorou o fim da campanha do Paraguai” (p. 264). É bem verdade que o velho Palácio do
Itamaraty, guardião de setenta anos de atividades diplomáticas, deixou saudades em mais de
uma geração de dedicados funcionários da Casa do Barão.
Mas, a despeito do estilo belle époque’, acima ilustrado, de Delgado de Carvalho, seu
livro é uma mina de informações de boa qualidade para todo aprendiz de diplomata, bem
como para o estudioso principiante da política exterior do Brasil. O pesquisador profissional
poderia fazer, é verdade, sérias objeções ao método de Delgado: ele encontrará ali apenas um
ordenamento dos fatos, mais do que dos processos, de nossa história diplomática e de toda
forma não terá, como se disse, qualquer inserção desses fatos numa trama mais ampla das
relações internacionais do Brasil, sobretudo em sua vertente econômica externa. Tais não
eram, relembre-se, os objetivos de Delgado.
As eventuais limitações do livro, se assim podemos classificar uma de suas qualidades
essenciais, se devem exatamente ao caráter eminentemente didático, derivado de notas de
aulas proferidas na Academia diplomática. Suas qualidades confirmadas são as de uma
primeira (junto com Vianna, é verdade) sistematização da história diplomática do Brasil e
uma apresentação honesta e abrangente das relações políticas externas, em função das grandes
questões que ocuparam a atenção dos mandatários portugueses e das lideranças da Nação
independente. Em suma, trata-se de uma história “política” da política externa, com todas as
qualidades e defeitos que tal gênero possa comportar.
Os problemas econômicos não são ignorados, mas mesmo sua abordagem recebe um
tratamento essencialmente político. O capítulo sobre “comércio e navegação”, por exemplo,
comporta basicamente uma descrição das doutrinas econômicas então em voga e uma história
da sucessão de negociações políticas entre, por um lado, a Inglaterra e, por outro, Portugal e
depois o Brasil em torno das condições do comércio recíproco. A “análise” econômica, nesse
caso, é dada pela pertinente transcrição de um trecho da História Econômica do Brasil de
Caio Prado Júnior, onde se discute, precisamente, a dependência portuguesa em relação à
Inglaterra.

Um modelo ainda válido

523
Como se situa o História Diplomática de Delgado de Carvalho no conjunto dos
(poucos) trabalhos que se dedicaram a analisar a política externa brasileira? Certamente em
primeiro plano, mas com características próprias de conteúdo e de método. O trabalho
pertence claramente à categoria das “obras gerais”, isto é os grandes esforços de síntese, mas
seu escopo é mais modesto, ao pretender tão somente traçar um resumo expositivo das
grandes linhas evolutivas de nossa política externa, e não avançar no terreno da pesquisa ou
da elucidação de problemas complexos das relações exteriores do Brasil.
Junto com a obra também essencialmente factual, e praticamente “oficial”, publicada
no ano anterior por Hélio Vianna, o livro de Delgado foi pioneiro no gênero, ocupando um
espaço quase que exclusivo durante toda uma geração. É claro que não se pode, por exemplo,
comparar seu manual à portentosa obra de Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império:
Pandiá pertence a uma outra espécie ou talvez mesmo a uma outra “família” — a minuciosa
reconstituição histórica profissional — do mesmo gênero acadêmico, ainda que sua pretensão
tenha sido a de superar os limites estritos da “história diplomática”.
Mas, o livro de Delgado possui objetivos mais modestos, ainda que mais abrangentes,
e não se destinava inicialmente senão à divulgação de material de estudo entre os alunos do
Instituto Rio Branco. Sua publicação foi decidida graças a uma conjunção de esforços de
diplomatas e historiadores, depois que os originais do primeiro manuscrito foram perdidos
pelo editor, em 1956. Ela tem o mesmo estilo inconfundível que Delgado costumava imprimir
à suas demais obras: precisão, concisão, objetividade, num espírito propriamente cartesiano.
Como ele mesmo diz em seu Preâmbulo, “Não sendo obra de erudição, tentei apenas dar com
clareza e sobriedade, evitando críticas e elogios, uma ideia de nossa situação internacional,
salientando a continuidade política que caracteriza a nossa diplomacia” (p. xviii-xix). Com
efeito, onde Hélio Vianna distribui fartos elogios à inteligência e competência das lideranças
políticas do Império e da República, justificando totalmente e concordando implicitamente
com qualquer ação de nossa diplomacia, Delgado limita-se a expor os fatos, nada mais do que
os fatos, inserindo aqui e ali alguns poucos comentários valorativos que em nada interferem
no desenvolvimento da narrativa. Trata-se, como já mencionado, de um livro sóbrio e, como
tal, merecedor de uma nova edição integral e possivelmente atualizada.

A reorientação dos estudos de relações internacionais


A história diplomática tal como praticada por esses ilustres predecessores nos anos 40
e 50 ficou de certa forma congelada no tempo, na espera que da academia pudesse emergir
uma nova geração de estudos historiográficos sustentados em novas interpretações e técnicas
524
de pesquisa, incorporando por exemplo os dados brutos ou comparados das relações
econômicas internacionais do Brasil e uma visão específica do modo de sua inserção no
sistema político mundial em cada época. Novos trabalhos dotados dessas preocupações
começaram a emergir nos anos 70 e 80, mesmo se a vinculação “genética” a determinados
esquemas conceituais – teorias da dependência ou do imperialismo, por exemplo – terminou
por “contaminar” algumas dessas contribuições.
Como ocorreu com os debates entre escolas históricas opostas em outros países, na
Alemanha ou nos Estados Unidos, por exemplo, a corrente “revisionista” brasileira descartou
em grande medida os aportes feitos anteriormente pela historiografia diplomática
“tradicional”. Seus representantes mais ilustres passaram a ser acusados, geralmente por
historiadores de esquerda, de conivência com a “versão oficial” e com uma interpretação
“Estado-cêntrica” das relações externas do país. Segundo os críticos, esses trabalhos tinham
se concentrado, talvez em demasia, nos episódios propriamente políticos ou militares da ação
diplomática governamental (isto é, negociações entre Estados, conflitos militares, conclusão
de tratados, atuação das chancelarias etc.), em detrimento dos processos de natureza mais
estrutural e de longo prazo que poderiam explicar ou dar sentido a determinadas escolhas
fundamentais da Nação na frente externa. As gerações subsequentes de pesquisadores
universitários, a despeito da crescente produção voltada para as relações internacionais do
Brasil nos últimos anos, como também da própria proliferação de cursos e instituições
dedicadas a essa área, pouco fizeram nesse campo da sistematização de amplo espectro: ou
criticaram, do ponto de vista político e metodológico, a abordagem événementielle desses
pioneiros ou eximiram-se, tão simplesmente, do trabalho de produzir manuais alternativos.
Sem pretender repassar o conjunto das realizações nesse terreno, caberia ainda assim
examinar alguns exemplos que honram o gênero e estão colocando sobre novas bases, senão o
estudo das relações internacionais do Brasil, pelo menos esse gênero raro na historiografia
nacional que é a história diplomática. A esse propósito, destacam-se, nesse processo de
realizações acadêmicas, o trabalho conjunto de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno,
História da Política Exterior do Brasil (1992; nova edição: 2002), e a obra que reúne as aulas
dadas pelo historiador José Honório Rodrigues no Instituto Rio Branco, entre 1946 e 1956, e
que compreende dois capítulos cobrindo o período entre-guerras preparados pelo revisor dos
originais, o Prof. Ricardo Seitenfus, Uma História Diplomática do Brasil (1995), cuja
publicação tinha sido anunciada várias vezes pelo seu autor principal e que era aguardado
com impaciência há muitos anos.

525
Antes de dar início, contudo, ao exame dessas obras em colaboração, seria interessante
observar o itinerário analítico conduzido na academia entre a publicação dos pioneiros e a
recente produção universitária. Seria possível encontrar-se alguma linha condutora na
produção acumulada nos últimos 40 anos? Um tema constante nos trabalhos acadêmicos
dessa nova safra de pesquisadores é a tentativa de identificar as grandes linhas da política
externa brasileira que influenciaram ou permitiram (ou não) a busca ou o atingimento da
“autonomia nacional”. Antes de qualquer outra consideração sobre a produção historiográfica
nesse campo, temos de convir que, a exemplo das racionalizações sobre a ideologia do
desenvolvimento operadas nos anos 50 e 60 por Álvaro Vieira Pinto e Cândido Mendes, trata-
se, obviamente, de objetivo acadêmico não de todo despojado de um certo parentesco
intelectual com o idealismo hegeliano.
Ao introduzir, por exemplo, uma coleção de ensaios relacionados, de perto ou de
longe, com essa temática, o Embaixador Rubens Ricupero, professor de relações
internacionais da Universidade de Brasília e de história das relações diplomáticas do Brasil no
Instituto Rio Branco, afirmava claramente que “a ideia que impulsionou o curso foi a da
História Diplomática como o cenário da realização progressiva e nunca inteiramente
concluída da independência”, vinculando ao pensamento de Vico essa “visão da História
Diplomática como a edificação e a afirmação gradual da autonomia” nacional. 9 A
permanente afirmação e consolidação da independência nacional, de um lado, e a busca do
desenvolvimento econômico, de outro, constituem, segundo esse profissional e especialista
das relações internacionais do Brasil, os dois grandes objetivos permanentes da política
externa brasileira; o segundo tema é, precisamente, objeto de outro trabalho do autor, sobre a
diplomacia do desenvolvimento10.
Também Gerson Moura, um dos autores mais prolíficos no gênero história
diplomática brasileira, não consegue desvincular a organização da matéria-prima bruta de
seus trabalhos de pesquisa – de resto excelentemente bem conduzida – de algumas grandes
noções que, por terem uma clara conotação “esquerdista”, não são menos inspiradas, evidente
ou implicitamente, na tradição hegeliana da história: sistema de poder, mercado capitalista,
imperialismo. Este último conceito, por exemplo, já visualizado como categoria histórica
concreta e no contexto das relações Brasil-EUA entre 1935 e 1942, seria resultante de uma

9
Rubens Ricupero, “Introdução”, Ensaios de História Diplomática do Brasil, 1930-1986 (Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, Cadernos do IPRI n. 2, 1989), p. 9-13, cf. p. 12.
10
Cf. Rubens Ricupero, “A Diplomacia do Desenvolvimento”, in João Hermes Pereira de Araújo,
Marcos Azambuja e Rubens Ricupero, Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira (Brasília: Ministério
das Relações Exteriores, 1989), p.193-209.
526
certa “‘astúcia da razão’, que consciente e inconscientemente respondia às necessidades
criadas pela lógica da reprodução ampliada do capital”11. Já em seus últimos trabalhos, o
substrato hegeliano presente nos conceitos acima referidos é bem menos afirmado no
desenvolvimento do discurso, mas permanece a categoria imanente “sistema de poder” (do
centro hegemônico, é claro) como referencial básico para a avaliação da autonomia relativa
do Brasil e de sua política externa, bem como das possibilidades e limitações da atuação
brasileira no chamado sistema internacional de nações12.
A questão da autonomia, ou da independência nacional, também está no centro, como
se sabe, de muitos trabalhos do historiador José Honório Rodrigues13, muito embora ele não
tivesse tido tempo, ainda em vida, de preparar a prometida História Diplomática de largo
escopo que sempre prometeu, ou sequer de publicar as aulas dadas no Instituto Rio Branco.
Sem embargo, ele anunciou tal intenção em diversas ocasiões14, tendo o material coligido pela
família sido reorganizado pelo historiador Ricardo Seitenfus e publicado em livro.
Muitos outros estudiosos enfocaram igualmente a questão da autonomia relativa da
política externa do Brasil em trabalhos de alcance parcial publicados desde então, muito
embora o resultado deva ser mais exatamente vinculado ao campo “história das relações
internacionais” do Brasil – ou mais simplesmente à disciplina ciência política – do que
propriamente ao gênero “história diplomática”. A produção acadêmica nesse setor não deixa
tampouco de refletir com uma certa contemporaneidade as grandes tendências da política
externa brasileira, como não deixou de observar um diplomata voltado para as lides
acadêmicas15.

11
Gerson Moura, Autonomia na Dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942 (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980).
12
Moura, O Alinhamento sem Recompensa: a política externa do Governo Dutra (Rio de Janeiro:
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1990, mimeo); Sucessos e
Ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1991); ver também, na vertente propriamente historiográfica,
“Historiografia e relações internacionais”, Contexto Internacional (Rio de Janeiro, ano 5, n° 10, julho-
dezembro 1989, p. 67-86), e História de uma História: rumos da historiografia norte-americana no
século XX (São Paulo: Edusp, 1995).
13
José Honório Rodrigues, Aspirações Nacionais: Interpretação Histórico-Política (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1963; 4ª ed. revista, São Paulo: Editora Fulgor, 1970); “Uma Política Externa
Própria e Independente”, Política Externa Independente, ano I, n. 1, maio 1965, p. 15-39; Interesse
Nacional e Política Externa (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966).
14
Rodrigues, Teoria da História do Brasil: Introdução Metodológica. 4ª ed.; São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1978, p. 169; Pereira de Araújo, “Introdução” in Calógeras, J. Pandiá. A Política
Exterior do Império, op. cit., p. xxiii.
15
Gelson Fonseca Jr, “Estudos sobre Política Externa no Brasil: os Tempos Recentes (1950-1980)” in
Gelson Fonseca Jr. e Valdemar Carneiro Leão (orgs.), Temas de Política Externa Brasileira (Brasília-
São Paulo: Fundação Alexandre de Gusmão-Editora Ática, 1989), p. 275-283.
527
Em que pese, portanto, a crescente produção no campo das relações internacionais do
Brasil, o fato é que fazia falta, desde as História(s) Diplomática(s) de Hélio Vianna e de
Delgado de Carvalho, uma história diplomática digna desse nome. Os historiadores da nova
geração universitária não lograram produzir, até recentemente, obras equivalentes destinadas
a um público amplo. O Embaixador Ricupero considerou em 1989 que a História
Diplomática do Brasil, de Delgado, continuava a não ter substitutos ou alternativas, o que,
considerando seu caráter essencialmente didático e a compilação de textos ali feita, não deixa
de ser verdade ainda hoje, em que pese o aparecimento da obra de Amado Cervo e de
Clodoaldo Bueno e o livro póstumo de José Honório. Assim, até o surgimento do manual dos
dois historiadores, os estudiosos profissionais (acadêmicos e diplomatas) ou mesmo os
diletantes da política externa brasileira foram obrigados a uma longa travessia do deserto.

Cervo e Bueno: o ideal desenvolvimentista


Como se situa a História da Política Exterior do Brasil no conjunto da historiografia
brasileira? Nossos dois autores se colocam na continuidade metodológica de José Honório ao
recusar a simples linearidade descritiva da historiografia oficial, enfatizando ao contrário as
grandes linhas de ação da política externa brasileira enquanto instrumento do
desenvolvimento (ou do atraso) nacional, o que equivale a dizer, da autonomia da Nação.
Na elaboração de uma nova metodologia para o estudo da política exterior do Brasil,
os dois autores operaram, antes de mais nada, uma reorientação da ênfase conceitual em que
se basearam até aqui os estudos nessa área, deslocando o eixo analítico da tradicional
“história diplomática” — e, portanto, privilegiando excessivamente as “relações entre
Estados” — para o terreno mais amplo das “relações internacionais” da Nação, em seu
conjunto, englobando, assim, os processos econômicos e as forças sociais em ação.
Cervo e Bueno dão maior atenção aos processos de natureza estrutural que sustentam
a trama das relações internacionais do Brasil, buscando seus fundamentos nas chamadas
“forças profundas” da história, para retomar o clássico conceito introduzido pelo historiador
Pierre Renouvin. Eles explicitam seus objetivos da seguinte forma: “consolidar o
conhecimento elaborado sobre as relações internacionais do Brasil e revestir a síntese
resultante desse esforço com uma nova interpretação histórica” (p. 10). Vejamos rapidamente,
numa apresentação sumária, como foram cumpridas essas duas metas.
A “consolidação do conhecimento” é realmente impressionante: são mais de 400
páginas de exposição rigorosa sobre as grandes tendências de nossa política externa, de 1822
à atualidade, com um tratamento sistemático dos grandes problemas estruturais e uma
528
apresentação criteriosa dos fatos que dão sentido a cada conjuntura histórica particular. À
base desse trabalho monumental, mais de centenas de títulos de obras diretamente
relacionados com o objeto da pesquisa, cuidadosamente referenciadas em cada capítulo. A
organização do trabalho entre os dois autores evidencia uma divisão do trabalho segundo o
princípio das “vantagens comparativas”: Amado Cervo, um especialista do período imperial,
responsabilizou-se pela primeira parte, sobre a “conquista e o exercício da soberania”, que vai
de 1822 a 1889. Clodoaldo Bueno trata do longo período republicano até o golpe de 1964,
resumindo-o sob os conceitos de “alinhamento” e de “nacional-desenvolvimentismo”. Amado
Cervo, finalmente, retoma a pluma para a descrição do período recente, pós-64, caracterizado
em política externa como o de um “nacionalismo pragmático”.
As conclusões dos autores, por sua vez, são um testemunho da “nova interpretação
histórica” que eles procuraram oferecer: a política externa, num país como o Brasil, tem um
caráter supletivo, dados os condicionamentos objetivos e a vontade política (ou sua ausência)
que atuaram no processo de desenvolvimento nacional nestes últimos 200 anos. Em outros
termos, os avanços ou atrasos desse processo estão mais bem correlacionados com as fases de
expansão ou mudança no sistema capitalista do que com um projeto nacional de
desenvolvimento dotado de uma política internacional coerentemente aplicada pelas elites ao
longo do tempo. Estamos longe, como se vê, da visão triunfalista dos autores tradicionais.
Igualmente interessante, na obra de Cervo e Bueno, é a recusa da chamada “teoria da
dependência”, que contaminou bom número de trabalhos acadêmicos nas últimas duas
décadas. Realmente, a alegada conivência das elites com um projeto de dominação externa
não encontra fundamentos empíricos, a não ser ao nível do anedótico. Cabe, aliás, reconhecer,
de um modo geral, a honestidade intelectual dos autores na apreciação das diferentes fases das
relações exteriores do Brasil, mesmo quando se justifica a crítica da “americanização” ou do
“alinhamento” da política externa oficial, ou mesmo a ausência, entre 1912 e 1930, de um
projeto de política exterior claramente formulado e com estratégias de implementação. Em
suma, trata-se de obra sólida, apoiada em extensa pesquisa primária (embora referida muito
sumariamente na Introdução) e consolidando o essencial da produção bibliográfica acumulada
na comunidade acadêmica nas últimas duas ou três décadas.

José Honório Rodrigues: a recuperação da história diplomática


Uma História Diplomática do Brasil, cuja publicação tinha sido anunciada várias
vezes pelo seu autor principal e que era aguardado com impaciência há muitos anos, recupera,
postumamente, como se disse, as aulas dadas por José Honório no Instituto Rio Branco entre
529
1946 e 1956, acrescido de dois capítulos finais pelo historiador gaúcho Ricardo Seitenfus
(convidado em 1991, pela viúva Lêda Boechat Rodrigues, para organizar as notas
datilografadas deixadas pelo grande nome da historiografia nacional, falecido em 1987.
Ressalte-se, desde já, que não se trata da “grande” história diplomática que pretendia compor
José Honório Rodrigues, mas de um sucedâneo didático que possui, ainda assim, méritos.
Como indicou Ricardo Seitenfus, em sua Nota Introdutória, o texto deixado por José
Honório é minucioso até a gestão do Barão do Rio Branco, tornando-se a partir da Primeira
Guerra Mundial “genérico e resumido” (p. 20). Ele dedicou-se então a redigir um
complemento da história diplomática brasileira desde a Conferência de Versalhes até o
rompimento da neutralidade brasileira, na Segunda Guerra, especialista que é, sob a
orientação inicial do próprio José Honório, da política externa durante a era Vargas. Ele já
tinha publicado sua tese de doutoramento na Universidade de Genebra, uma pesquisa
extremamente bem documentada sobre a diplomacia da “neutralidade” varguista durante os
anos mais críticos de seu regime16.
Dotado de uma perspectiva própria, substantivamente enriquecedor de nossa literatura
especializada no campo das relações internacionais, o volume apresenta porém alguns reparos
menores de forma, dentre os quais uma revisão insuficiente das referências bibliográficas
preparadas à época por José Honório ou de algumas passagens obscuras de seus próprios
originais. A extensão cronológica do título (1945) é, de certa forma, enganadora, uma vez que
o tratamento de nossa história diplomática chega, efetivamente, apenas até o limiar da
conferência interamericana do Rio de Janeiro, em princípios de 1942. A organização da obra
pode também ser considerada como desbalanceada, no sentido em que, às 200 páginas, 12
capítulos e quatro séculos (de Tordesilhas a Rio Branco) sob a pluma de José Honório,
seguem-se mais 200 páginas, em dois capítulos, para os vinte anos de crises do entre-guerras.
Trata-se, em todo caso, no que se refere ao panorama global traçado por José Honório,
de uma bem-vinda complementação bibliográfica aos trabalhos mais conhecidos nesse
campo. Uma das curiosidades deste texto de história diplomática “recuperada”, já que
composto há quase 50 anos, é precisamente o fato de nele encontrarmos um José Honório
diferente daquele a que estávamos acostumados, se julgarmos com base em seus textos
“iconoclastas” de princípios dos anos 60, quando ele se comprazia em atacar a versão
“incruenta” da “história oficial”, os compromissos conservadores das elites e a ausência do
16
Cf. Ricardo A. S. Seitenfus, O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 1930-1942 (São
Paulo: Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 1985); terceira edição sob o título O Brasil
vai à guerra: o processo de envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial (Barueri: Manole,
2003).
530
“povo” da historiografia dominante. Aqui José Honório segue um estilo bem mais tradicional,
praticamente despojado do tom nacionalista, apaixonado e “contestador” do publicista da
“política externa independente”.
As notas preparadas por José Honório seguem uma narrativa linear das relações
exteriores do Brasil colônia e independente, tratando segundo uma clássica abordagem
política (com algumas breves pinceladas econômicas) dos principais episódios de nossa
diplomacia. Não há propriamente uma sistematização das relações econômicas externas, mas
tão simplesmente uma cobertura seletiva de alguns dos conhecidos problemas diplomáticos
nessa área: basicamente o Tratado de 1810 com a Inglaterra, a abolição do tráfico negreiro, a
expansão do café e o incremento do comércio (e das relações políticas) com os Estados
Unidos. A despeito disso, ele tinha consciência de que a história diplomática não podia ser
isolada dos demais elementos e fatos do processo global: geográficos, econômicos, sociais,
religiosos, etc.
Com efeito, como afirmaria José Honório Rodrigues em sua obra metodológica, a
história diplomática “investiga e relata a defesa dos direitos nacionais e as relações
econômicas, sociais e políticas que se codificaram em tratados e convenções”, ressaltando
ainda que “se as relações diplomáticas não se esgotam no manejo das coisas políticas, e
envolvem, sobretudo hoje, os negócios econômicos, então, capítulo dos mais importantes da
história diplomática seria o que narrasse as missões comerciais e o intercurso mercantil”17.
Repetindo nas notas compiladas para sua “história diplomática” uma pergunta de Lucien
Febvre, ele questiona, no capítulo inicial sobre “o conceito de história diplomática”, como
seriam possíveis relações internacionais sem geografia e sem economia?
José Honório busca realmente dar uma fundamentação social e econômica a estes
“capítulos da história da política internacional do Brasil”, segundo o nome concebido por ele
mesmo para uma possível edição de suas notas de curso. Mas, manifestamente influenciado
pelas doutrinas e conceitos então em vigor no imediato pós-guerra (em especial o primado da
afirmação do Poder Nacional, como ensinado nos cursos do National War College, retomados
praticamente ipsis litteris pela Escola Superior de Guerra), José Honório formula, em dois
capítulos metodológicos iniciais, sua concepção das relações internacionais: “O que se
pretende não é estudar o homus diplomaticus, com sua polidez protocolar, sua fórmula de
saudação sabiamente graduada, mas o Poder Nacional que se exprime nas relações
internacionais. Ora, desde que o mundo moderno se acha organizado com base no sistema de

17
Cf. Rodrigues, Teoria da História do Brasil, op. cit., pp. 169 e 174.
531
Estado-Nação, o que comumente se descreve como relações internacionais nada mais é que a
soma de contratos [sic] entre as políticas nacionais destes Estados soberanos independentes.
E, como as políticas nacionais são sistemas de estratégia empregados pelos Estados para
garantir principalmente sua segurança territorial, e para proporcionar o bem-estar econômico
e a prosperidade a seus cidadãos, não se pode fazer uma distinção entre política externa e
interna. O que um Estado faz em seu território ou o que faz no exterior será invariavelmente
ditado pelo interesse supremo de seus objetivos internos” (p. 27).
Para José Honório, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época
colonial, sempre foram a acumulação de poder ou a manutenção do status quo, segundo as
fases de introversão ou de extroversão que teriam marcado de maneira alternada (e de forma
algo mimética ao modelo analítico norte-americano privilegiado por José Honório) a história
internacional do Brasil. Essa concepção, surpreendente para quem conhece seus trabalhos
ulteriores de “história diplomática”, guia sua reconstituição de nossas relações internacionais:
“É, portanto, o jogo da política do poder que queremos recriar, mais que a simples história
diplomática. É a supremacia do interesse nacional, em luta com os poderes nacionais adversos
ou amigos, que se pretende reconstituir como uma experiência que nos sirva para dar à nossa
política exterior verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Desse modo, não são só as
habilidades diplomáticas, nem o poder militar que se expandem internacionalmente, mas
também o poder econômico, pela exportação de capitais e pelo controle de mercados. Por ele
veremos que a melhoria constante da posição relativa do Poder Nacional se torna um dos
objetivos da política externa do Brasil. Não é, assim, só história diplomática o que se
pretende, mas a história das relações do Poder Nacional com os demais poderes nacionais” (p.
29). Ou então: “Toda política externa é uma expressão do poder nacional em confronto,
antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais” (p. 53).
É essa história do “Poder Nacional” que José Honório reconstitui em seus 13 capítulos
substantivos, tendo antes fixado de maneira algo “ortodoxa” os três grandes princípios de
nossa política exterior desde 1822:
a) preservação de nossas fronteiras contra as pretensões de nossos vizinhos e política
do status quo territorial;
b) defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário, tanto interna
(revoltas e secessões do período regencial) quanto externamente (luta contea os
caudilhos do Prata);
c) defesa contra a formação de um possível grupo hostil hispano-americano e política
de aproximação com os Estados Unidos (p. 60).

532
Em outros termos, uma concepção da atuação diplomática e da afirmação de nossos
interesses externos que seria tranquilamente subscrita por um historiador conservador (ou
mesmo “reacionário”) como Hélio Vianna.
O texto sob responsabilidade de Ricardo Seitenfus evidencia um historiador
plenamente capacitado no manejo dos arquivos diplomáticos, inclusive os das principais
chancelarias envolvidas na “política pendular” seguida por Vargas durante todo o período de
disputas hegemônicas pelo apoio (ou neutralidade) de uma das principais potências da
América do Sul. No exame da “escalada para a guerra” a análise atribui forte ênfase às
relações com a Alemanha e a Itália totalitárias, em detrimento talvez dos demais vetores de
nosso delicado equilíbrio diplomático nesses anos. A menção é pertinente especialmente em
relação à Argentina, já que os Estados Unidos merecem subseção específica, bem
documentada. Digna de elogios é a reconstituição, praticamente passo a passo, da atuação do
Brasil na Liga das Nações, culminando com a lamentável derrota na “batalha” por uma
cadeira permanente no Conselho. O leitor contemporâneo não deixará de formular
interessantes comparações entre esse episódio e a atual candidatura brasileira a uma cadeira
no Conselho de Segurança da ONU, em particular no que se refere às relações, então e agora,
com a Alemanha, hoje aliada na disputa pela reforma da Carta, mas concorrente em 1926.
As conclusões nos remetem de volta ao professor dos anos 50. Como outros
historiadores tradicionais, José Honório também via na “riqueza demográfica e territorial do
Brasil, [uma] inquestionável possibilidade de tornar-se uma grande potência” (p. 463),
estando o País, por sua posição nas Américas, “condenado a uma posição de equilíbrio, que
não é isenta de perigos e que lhe vale, frequentemente a censura de pender para um lado ou
para outro” (p. 462). Escrevendo numa fase histórica caracterizada pela competição, quando
não pelo antagonismo, com a Argentina, mesmo assim José Honório conclui pela importância
do incremento de nossas relações econômicas e culturais com os países do Cone Sul; mas,
para ele, manifestamente, o processo de integração não estava ainda na ordem do dia, como
Hélio Jaguaribe pioneiramente proclamava nos Cadernos do Nosso Tempo.

Rubens Ricupero e a perspectiva diplomática brasileira


Esse processo de integração entre os países da região, em especial entre o Brasil e a
Argentina, não pode ser dissociado das relações de cada um deles com as potências
dominantes no período contemporâneo. Com efeito, seria difícil, ou mesmo impossível,
estudar as relações bilaterais dos dois países platinos nos últimos 60 anos sem passar pelo que
533
o Embaixador Rubens Ricupero chamou de “relação triangular Brasil-América Latina-
Estados Unidos”. A menção a Ricupero nos conduz, por fim, ao elemento inovador a ser
destacado nesta introdução à literatura diplomática: o retorno, se não a chegada maciça, de
diplomatas profissionais aos estudos de história diplomática, acelerando e aprofundando uma
prática que já tinha sido praticada no passado. O que vale destacar, ademais da própria
contribuição historiográfica desses “diplomatas-acadêmicos” ao avanço dos estudos sobre
relações internacionais do Brasil, é o fato de que esses autores são também “executores” da
política externa concreta, podendo assim introduzir uma visão “interna” dos problemas com
que se defronta o País nas diversas vertentes de seu relacionamento externo.
Tendo ministrado, durante longos anos, aulas de história diplomática e de teoria das
relações internacionais no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, Rubens
Ricupero deixou relativamente poucos trabalhos escritos na vertente historiográfica, em
contraposição, por exemplo, ao imenso saber transmitido por via oral às centenas de alunos e
auditores ocasionais que tiveram a chance de ouvi-lo discorrer sobre a inserção do Brasil no
mundo contemporâneo. Alguns textos são sintomáticos de sua preocupação com os grandes
problemas do desenvolvimento brasileiro, que ele sempre buscou colocar em perspectiva
histórica. Pode-se mencionar, em particular, o trabalho publicado na série “Sessenta anos de
política externa brasileira (1930-1990)”, tratando precisamente das relações triangulares entre
o Brasil, a América Latina e os Estados Unidos e no qual ele analisa as mudanças de
paradigmas na política externa do Brasil dirigida a esses dois parceiros desiguais18.
Vários outros trabalhos do Embaixador Ricupero, a maior parte fortemente
impregnada de conteúdo histórico a despeito de terem sido escritos com preocupações mais
contemporâneas, foram publicados na coletânea Visões do Brasil, que percorre um imenso
panorama das relações internacionais do Brasil tendo a “História como método”, como
sublinhou seu apresentador, o também diplomata Gelson Fonseca19. Uma apresentação ainda
mais exaustiva de sua “visão diplomática” do mundo está no texto que serviu de suporte
intelectual ao volume comemorativo dos cento e cinquenta anos do nascimento do Barão do

18
Rubens Ricupero, “O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação
triangular” in José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.), Crescimento, modernização e política
externa (São Paulo: Cultura Editores Associados-Núcleo de Pesquisa em relações internacionais da
USP, 1996), volume I de “Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990)”, p. 37-60.
19
Ver Gelson Fonseca Jr., “Rubens Ricupero e a História como Método” in Rubens Ricupero, Visões
do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil (Rio de Janeiro: Record,
1995), p. 9-24.
534
Rio Branco, o patrono incontestável da diplomacia brasileira20. Nesse longo ensaio, Ricupero
faz mais do que uma “mera” reconstituição biográfica sobre a obra de um antecessor com o
qual ele possui evidentes “afinidades eletivas”. Trata-se de uma profunda reflexão sobre a
influência do pensamento e ação do Barão nas décadas posteriores a sua atuação efetiva (o
“destino do paradigma”), contendo uma seção comportando uma indagação pertinente e
contemporânea (“o que faria o Barão hoje?”), finalizando com uma avaliação global da
grande personagem histórica (“contrastes e confrontos”). Segundo Ricupero, Rio Branco foi o
“último grande representante da escola de estadistas do século XIX brasileiro”.21
Reconhecidamente um dos melhores idealizadores e formuladores da política externa
governamental – com forte ênfase na área americana – e um de seus pensadores mais
abalizados, Ricupero, atualmente Secretário-Geral da UNCTAD, completou, de uma certa
maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por meio de um arcabouço jurídico de notória
complexidade (Tratados da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica, início do processo de
integração Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da cooperação e de
interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até então, no mero
reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não fosse o arriscado e talvez
o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de “George Kennan brasileiro”, no
sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo conceitual, preocupado em não apenas
enquadrar sua atuação profissional num determinado contexto filosófico e moral, mas também
em dar-lhe uma perspectiva histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa duração” cara
a Fernand Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do Instituto de
Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador francês).
Outro diplomata que vem contribuindo de forma consistente para o estudo da inserção
internacional do Brasil contemporâneo é o Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, autor de
muitas análises sobre aspectos diversos das relações exteriores do País no período recente.
Depois de extensa análise sobre a diplomacia da “nova República”22, Seixas Corrêa
organizou, introduziu e comentou cinquenta anos de participação do Brasil nas assembleias

20
Ver o texto de Ricupero in João Hermes Pereira de Araújo (org.) José Maria da Silva Paranhos,
Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica,1845-1995 (Brasília: Funag, 1995); segunda
edição, revista e ampliada pelo autor, em 2002, para as comemorações do centenário de posse do
Barão do Rio Branco como ministro das Relações Exteriores.
21
Para uma apreciação geral desse texto de Ricupero, ver meu artigo-resenha, “O legado do Barão: Rio
Branco e a moderna diplomacia brasileira”, publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(vol. 39, n. 2, julho-dezembro 1996, p. 125-135).
22
Ver “A política externa de José Sarney” in Guilhon de Albuquerque (org.), Crescimento,
modernização e política externa, op. cit., p. 361-385.
535
gerais das Nações Unidas23. Segundo sua própria informação, ele encontra-se escrevendo uma
“nova” história diplomática do Brasil, fruto de suas pesquisas e de seu trabalho como
Professor de história da política externa do Brasil no Instituto Rio Branco. Cabe também
referir a outras “notas de aula”, aquelas que o diplomata Fernando Paulo de Mello Barreto
produziu durante seu curso sobre o período republicano no Instituto Rio Branco e que foram
publicadas em forma de livro, sugestivamente intitulado “Os Sucessores do Barão” (a
exemplo de um capítulo de Delgado de Carvalho)24.
Alguns outros exemplos confirmam o renovado interesse de diplomatas profissionais
pela história diplomática, como parece ser o caso de Gonçalo Mourão, autor de um exaustivo
estudo “investigativo” sobre o impacto internacional da Revolução de 1817 em Pernambuco,
bem como de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, um especialista na política exterior do
Império.25 Muitos outros, é verdade, se dedicam a estudos de história do Brasil, como por
exemplo Evaldo Cabral de Mello, mas nem sempre no domínio estrito das relações exteriores,
como é a vertente privilegiada neste ensaio. Na tarefa de perscrutar ou inquirir o passado das
relações econômicas do País, o profissional da diplomacia dotado de sensibilidade para a
reflexão histórica talvez tenha, sobre o observador puramente acadêmico, a vantagem
comparativa de formular questões que incidem diretamente sobre o trabalho diplomático tal
como conduzido na prática diária ou rotineira de uma chancelaria ou que apresentam uma
certa continuidade conceitual ou negocial em relação aos grandes temas inscritos na agenda
econômica internacional, do passado ou do presente.
Finalmente, uma menção pessoal pode ser instrutiva para revelar os avanços feitos em
relação a um projeto elaborado em princípios dos anos 90 e apresentado em texto
metodológico, de certa forma introdutório a um planejado (e ainda em curso) estudo

23
Ver Ministério das Relações Exteriores: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995
(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1995). Sobre esse volume, escrevi uma resenha-artigo, “O
Brasil no sistema político multilateral: uma perspectiva de 50 anos”, inédita na versão completa e
publicada em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 39, n. 1, janeiro-
julho de 1996, p. 182-183). Sempre sob a coordenação do Embaixador Luiz Felipe Seixas Correa, o
livro teve nova edição, atualizada, em 2005.
24
Fernando P. de Mello Barreto Filho: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-
1964 (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001). Ver também o livro que lhe sucede: Os Sucessores do
Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985 (São Paulo: Paz e Terra, 2006).
25
Ver Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão, A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um
estudo de história diplomática (Belo Horizonte: Itatiaia, 1996); Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos,
O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru, Equador e
Colômbia, 1822-1889 (Curitiba: Editora da UFPR, 2002).
536
abrangente das relações internacionais do Brasil26. Depois de pesquisas sobre as relações
econômicas internacionais do Brasil, e de muitos trabalhos publicados nessa área, este autor
deu início a uma série de três ensaios históricos que devem cobrir o essencial do
relacionamento econômico externo do Brasil, desde a transferência da família real em 1808
até a atualidade: um primeiro volume, tratando das etapas formadoras da diplomacia
econômica no Brasil já se encontra publicado, os demais em pesquisa27. O segundo volume,
provisoriamente intitulado “A Ordem Internacional e o Progresso da Nação: as relações
econômicas internacionais na era republicana” (até 1945), encontra-se em preparação,
devendo preceder ao terceiro e último da série, dedicado às relações econômicas
internacionais do Brasil na fase contemporânea.
Os alunos mais dedicados de Delgado de Carvalho e seus muitos leitores na
diplomacia profissional lançam-se assim à empresa, talvez arriscada mas gratificante, de
completar a obra do mestre, sem talvez a garantia de lograr a clareza e a simplicidade
alcançadas por este livro que permanece, ainda hoje, um marco no estudo da história
diplomática brasileira. Que esta nova edição possa continuar a servir os alunos do Instituto
Rio Branco e aos dos vários cursos de relações internacionais hoje existentes nas
universidades brasileiras por muitos anos, ou quiçá por várias décadas, ainda.

Brasília: 22 maio 1993.


Inédito em sua versão integral; excertos incorporados em outros artigos ou livros do autor.

26
Paulo Roberto de Almeida, “Relações Internacionais do Brasil: introdução metodológica a um
estudo global”, Contexto Internacional (Rio de Janeiro: vol. 13, n. 2, julho-dezembro 1991, p. 161-
185); ensaio incorporado ao livro Relações internacionais e política externa do Brasil, op. cit.
27
Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas
internacionais no Império (2a. ed.; São Paulo-Brasília: Senac-Funag, 2005), primeiramente
apresentado como tese no Curso de Altos Estudos (1997).
537
Hélio Vianna, ou as elites bem comportadas
Contribuições à História Diplomática do Brasil

Hélio Vianna:
História Diplomática do Brasil
(1ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958; 2ª ed., acoplada à História da República, São
Paulo: Melhoramentos, s.d. [1961?], pp. 89-285).

Quem frequentou os bancos das instituições de ensino secundário na “época áurea” da


escola pública brasileira, isto é, entre os anos 40 e 60, certamente teve a oportunidade, senão a
obrigação, de estudar História do Brasil em algum livro de Hélio Vianna, um dos autores mais
consagrados durante gerações inteiras pelas editoras didáticas nos ramos da história oficial e
de vulgarização educacional.

O Brasil que falava latim


O estilo e a orientação de Vianna com certeza correspondiam a essa fase da vida
brasileira, uma sociedade já em fase de profunda transformação industrial, mas conservando
todavia certos traços de sua estrutura tradicional, ainda não predominantemente urbana e
dispondo de uma classe média relativamente rarefeita e bem situada do ponto de vista das
oportunidades de trabalho. O funcionário público, o professor (como aliás a professora
normalista), os profissionais liberais e mesmo os jornalistas e empregados das instituições
bancárias tinham uma “certa posição” e dispunham de reconhecimento social.
A expansão e burocratização do Estado, bem como os fenômenos de democratização
política e social que se seguiram aos processos de industrialização e urbanização viriam
contribuir para massificar a sociedade brasileira, destruindo os redutos exclusivos da classe
média, nivelando por baixo e mediocrizando a maior parte dos serviços públicos, a começar
pela escola oficial. A “escola risonha e franca”, das professorinhas e dos diretores
circunspectos, dotados de grande cultura geral e educados no latim e na filosofia grega, essa
escola pública ainda resistiu algum tempo mais, provavelmente até final da década de 60, para
depois soçobrar na grande expansão do ensino de massa e da desvalorização do mestre
educador. Quando Hélio Vianna faleceu, em 1972, seus livros já não eram mais adotados nos
currículos de história do secundário, suplantados que foram por manuais mais “simples”,
quando não francamente opostos ao estilo e orientação que ele tinha imprimido aos seus
vários História do Brasil ou História da República.

538
O Homem e sua circunstância
Nascido em princípios do século, em Belo Horizonte, Hélio Vianna chega ao Rio de
Janeiro no final dos anos 20 para estudar Direito e é ainda na condição de estudante que
participa das primeiras reuniões integralistas animadas por Plínio Salgado. Com Lourival
Fontes e Francisco San Tiago Dantas, Hélio Vianna torna-se redator da revista Hierarquia
(1931), obviamente de direita. Rapidamente se associa à “ala intelectual” da Ação Integralista
Brasileira, dando cursos, escrevendo nos veículos do movimento e publicando textos de
história política e social do Brasil. Data de 1935 seu livro Formação brasileira, seguido pelos
estudos A Contribuição de Portugal à formação americana e A Educação no Brasil Colonial,
ambos de 1938. Com o golpe de 1937 e a dissolução da AIB, Vianna se afasta da atividade
militante para dedicar-se à prática docente e à pesquisa histórica. Torna-se, em 1939, o
primeiro catedrático de história do Brasil da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade
do Brasil, assumindo ainda a cátedra de história da América na PUC do Rio de Janeiro.
Sua associação à diversas sociedades de pesquisa histórica, aos institutos militares de
formação e à própria academia diplomática brasileira se dão nos anos 40, quando também se
intensifica sua produção intelectual. Vários trabalhos consistentes de pesquisa histórica são
publicados nessa época, desde O Brasil Social: 1500/1640 (1940) até o História do Brasil
(1946), passando pelos trabalhos biográficos Visconde de Sepetiba (1943), Matias de
Albuquerque (1944) e pelos estudos históricos Da Maioridade à Conciliação, 1840/1857,
Contribuição à História da Imprensa brasileira, 1812/1869, História do Brasil Colonial e
História do Brasil: 1822/1937, todos divulgados em 1945. Mais tarde viriam a lume os
Estudos de História Colonial (1948), Estudos de História Imperial (Coleção Brasiliana,
1950), História Administrativa e Econômica do Brasil (1951), História da América (1952) e
vários outros trabalhos. Muitos desses livros, e mais exatamente nada menos do que seis
compêndios de História do Brasil e um de História da América, adaptados didaticamente para
o 2º grau, foram reeditados a partir de 1945, sobretudo pela Melhoramentos. Seu último livro
publicado foi o volume de estudos Vultos do Império (1968), período no qual Hélio Vianna
era um especialista.
Um curso ministrado na Escola de Estado-Maior do Exército em 1947 permitiu a
publicação, no ano seguinte, pela Biblioteca Militar, do História das Fronteiras do Brasil, do
qual resultaria, uma década mais tarde, seu consagrado e minucioso trabalho História
Diplomática do Brasil. Como se encaixa esta obra no conjunto da produção historiográfica
brasileira sobre as relações externas do País?

539
A profissionalização da história diplomática
Depois de Calógeras, os diplomatas e historiadores que se dedicaram ao estudo da
política externa do Brasil abordaram períodos históricos mais limitados, espaços geográficos
mais restritos ou temas políticos mais específicos, versando geralmente sobre problemas de
fronteiras ou sobre questões diversas da diplomacia imperial. Nesse quadro, merecem registro
algumas obras de história política, em primeiro lugar a síntese geral da política externa
brasileira realizada por Renato de Mendonça, que na verdade cobre mais o período colonial e
chega tão somente ao reconhecimento da Independência, História da Política Exterior do
Brasil, 1500-1825 (México: Instituto Pan-Americano de Geografia e História, 1945). José
Antonio Soares de Souza produziu diversos estudos monográficos sobre o período
monárquico e a questão do Prata em particular, como Um diplomata do Império: Barão da
Ponte Ribeiro (São Paulo: Nacional, 1952). O diplomata Teixeira Soares também se ocupou,
entre outros estudos, da mesma problemática e do problema da formação das fronteiras, como
em Diplomacia do Império no Rio da Prata, até 1865 (Rio de Janeiro: Brand Editora, 1955).
Em todos eles há uma racionalização intrínseca a respeito dos “acertos” da política imperial e
sobre a inexistência, por exemplo, de alternativas diplomáticas ao quadro de conflitos na
região platina.
Essas obras eruditas destinavam-se contudo a um público restrito, geralmente formado
pelos demais historiadores ou pelos próprios profissionais da carreira diplomática. O Instituto
Rio Branco, que começou a funcionar em 1946, começou a organizar cursos de formação ou
aperfeiçoamento de diplomatas, para os quais foram convidados alguns desses eminentes
historiadores, muitos deles dedicados igualmente à instrução de oficiais militares nos Estados-
Maiores das Forças Armadas. Os historiadores José Honório Rodrigues e Hélio Vianna e o
geógrafo Carlos Delgado de Carvalho foram alguns desses muitos intelectuais de renome que
abrilhantaram os cursos do IRBr entre finais da década de 40 e princípios dos anos 60. O
esforço de sistematização permitiu, em cada um desses casos, a elaboração de “notas de
curso” que puderam ser ulteriormente transformadas em trabalhos independentes, dos quais
apenas os de Hélio Vianna e de Delgado de Carvalho lograram alcançar publicação comercial,
ambos intitulados História Diplomática do Brasil. São esses dois volumes, precisamente, que
constituíram a matéria-prima para que gerações sucessivas de estudantes brasileiros se
habilitassem no vestibular de ingresso e, ulteriormente, acompanhassem o próprio curso do
IRBr de preparação à carreira diplomática.

O primeiro manual de história diplomática


540
O primeiro a vir a lume foi o História Diplomática do Brasil de Hélio Vianna,
trabalho, como referido, baseado em um curso sobre História das Fronteiras do Brasil,
ministrado em 1947 para militares, e completado por texto sobre história diplomática
resultante de curso de aperfeiçoamento no IRBr em 1950. A primeira edição, há muito
esgotada, foi publicada pelas Edições Melhoramentos em 1958, sendo ulteriormente acoplada,
em sua 2ª edição, a outro trabalho do autor, História da República, esta por sua vez destacada
da História do Brasil.
História Diplomática do Brasil é, antes de mais nada, uma obra híbrida, pois que
retoma trechos inteiros do História das Fronteiras, logrando contudo uma certa unidade
temática e um tratamento linear sobre os principais eventos das relações internacionais do
Brasil desde os descobrimentos até o problema cubano em 1961, com ênfase, evidentemente,
nos diversos processos de fixação de limites com os vizinhos países sul-americanos. A
posição conservadora do Autor, e mesmo francamente de direita, reflete-se claramente nesta
obra, que opera, nos mais diferentes temas, uma adoção plena dos pontos de vista da política
externa oficial a cada momento de nossa história política.
Nesse particular, Hélio Vianna preservou uma tradição que vinha da primeira metade
do século e que já estava francamente em decadência a partir dos anos 50, ou seja, a descrição
geralmente apologética da política externa oficial, com uma justificação integral das ações
dos mandatários de cada momento nos diversos conflitos regionais ou interestatais ou em
defesa das “fronteiras ameaçadas” pelos governos e regimes vizinhos. A história da política
internacional do País em Hélio Vianna segue de perto, quando não incorpora, todas as “razões
de Estado” e os argumentos de chancelaria, num processo de racionalização dissertativa onde
só existem elites nacionais bem comportadas e estrangeiros mal intencionados.
Esse adesismo de princípio, levado ao extremo em suas diversas obras didáticas para o
ensino médio, não impediria, no entanto, que História Diplomática do Brasil lograsse
resultados significativos em termos de informação fatual e de periodização. Os 26 capítulos
dessa obra guardam um saudável equilíbrio entre a leitura política dos principais eventos das
relações exteriores do Brasil e a descrição detalhada de todos os problemas de fronteiras,
desde a competição luso-espanhola no Rio da Prata até o estabelecimento de tratados de
limites com os vizinhos amazônicos. Como na obra homônima de Delgado de Carvalho, o
trabalho de Hélio Vianna também se socorre de diversas citações de especialistas ou de
documentos oficiais, mas as transcrições, em menor número, estão incorporadas ao próprio
texto.

541
O tom geral do livro de Vianna é obviamente parcial, em favor das elites dirigentes e
da própria política externa oficial nos diversos episódios marcaram as intervenções brasileiras
nos problemas da bacia do Prata. Não há propriamente lacunas no tratamento das relações
interestatais com os vizinhos da América do Sul, mas um grande vazio subsiste em relação à
dimensão econômica e social do relacionamento internacional do Brasil. Os tratados de
comércio, com exceção do inglês de 1810, não são sequer mencionados e a questão do tráfico
é tratado tão simplesmente sob o seu ângulo das relações com a Inglaterra, num quadro
estritamente político-diplomático.
Em suma, o relato de Vianna está organizado em torno da atuação das chancelarias,
como todo manual de história política tradicional. O livro se conclui, como seria o caso
também com a História Diplomática do Brasil de Delgado de Carvalho, com menção à
Operação Pan-Americana, iniciativa multilateral regional tomada pelo Governo do Presidente
Juscelino Kubitschek, com escassos resultados práticos em termos de ajuda ao
desenvolvimento, mas permitindo o surgimento ulterior da “Aliança para o Progresso” de
Kennedy. Mas, à diferença do livro de Delgado, o trabalho de Hélio Vianna dá muito maior
ênfase aos episódios da história colonial e monárquica independente do que ao período
republicano contemporâneo, que constitui o essencial da contribuição inovadora do primeiro,
cujo manual é um exemplo daquilo que os franceses chamariam de histoire immédiate. Nesse
sentido, a supervalorização do legado imperial vincula diretamente Hélio Vianna a seus
predecessores mais ilustres, como Varnhagen e Oliveira Lima.

A obra em seu contexto editorial


Em que pese, no entanto, seu estilo démodé, o manual de Vianna permanece como
uma obra de referência básica para a reconstituição linear dos principais episódios das
relações políticas internacionais da nacionalidade brasileira. Trata-se, como o História
Diplomática de Delgado de Carvalho, de um trabalho pertencente claramente à categoria das
“obras gerais”, isto é os manuais de síntese, de escopo essencialmente fatual e praticamente
“oficial”, em termos de postura “crítica”. Hélio Vianna não pretende se situar no plano
analítico de Pandiá Calógeras, por exemplo, cuja obra mais importante, A Política Exterior do
Império, operava uma reconstituição histórica profissional de todo o itinerário histórico das
relações internacionais de Portugal e do Brasil desde as origens ibéricas até a queda do
ditador Rosas da Argentina (1852). Vianna permanece numa outra vertente, a da compilação
das interpretações consagradas sobre os episódios mais importantes da política exterior
oficial, e não chega a superar os limites estritos da “história diplomática”.
542
De todo modo, seu minucioso trabalho fatual é complementar ao livro de Delgado de
Carvalho, já que se estende nos períodos e temas em que este último não pretendeu cobrir em
detalhes, como é o caso da história colonial e da expansão portuguesa para além dos limites
traçados em Tordesilhas. Mais ainda, a complementariedade existe em relação à própria obra
de Hélio Vianna, já que o próprio autor remete o leitor, em diversas ocasiões, a trechos do
História da República, que dispõe, efetivamente, de um bem documentado (e ilustrado)
capítulo sobre a política exterior da primeira metade do século, com ênfase na resolução dos
problemas de fronteiras. Mas, essa primeira obra ocupa apenas pouco mais de 70 páginas no
volume conjunto que ora examinamos, sendo as 195 restantes dedicadas inteiramente à
história diplomática.
A periodização do trabalho é a mais tradicional e linear possível, seguindo, numa
primeira etapa, as questões mais importantes da política internacional portuguesa na América,
passando para a política exterior de D. João VI no Brasil e para os problemas externos dos
dois reinados, com ênfase evidentemente nas questões platinas. A fixação dos limites
fronteiriços com cada um dos vizinhos sul-americanos é tratada, de forma relativamente
completa, em capítulos individuais por país ou dependência colonial, antes e depois de um
curto capítulo sobre a política exterior da República. Dois capítulos sobre a participação do
Brasil em cada um dos conflitos mundiais e um último sobre a questão do pan-americanismo
completam essa obra informativa e quase nada interpretativa. As citações são limitadas,
geralmente de documentos oficiais, e a bibliografia, claramente reduzida ao mínimo,
encontra-se reduzida a algumas poucas notas de rodapé dispersas nos diversos capítulos.
Tanto como o livro de Delgado de Carvalho, este trabalho de Hélio Vianna há muito
desapareceu das estantes das livrarias e provavelmente também dos sebos mais frequentados
no circuito São Paulo-Rio, sendo encontrado apenas nas bibliotecas especializadas. Ele
também mereceria uma nova edição, ainda que se possa e deva reconhecer que seu jargão
conservador, seu método linear e descritivo, seu estilo por demais enviesado em direção da
atuação dos homens de chancelaria o tornam claramente inadaptado aos novos padrões e
requisitos da moderna pesquisa historiográfica em relações internacionais do Brasil. A
inexistência de manuais apropriados de história fatual – em que pese o surgimento da História
da Política Exterior do Brasil, dos professores Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno (São
Paulo : Ática, 1992), que já traz uma interpretação definida em função das novas
preocupações da pesquisa acadêmica de qualidade – recomendariam, aliás, que a própria
Chancelaria brasileira se dedicasse a um programa de reedições desse tipo de obra didática,
eventualmente em forma fac-similar. Como no caso do manual de Delgado, o livro é um text-
543
book indispensável à preparação para os cursos do Instituto Rio Branco, mesmo se ele aporta
hoje muito pouca ajuda ao pesquisador interessado na reconsideração de diferentes episódios
da política externa colonial portuguesa e brasileira independente. Em todo caso, a obra de
Hélio Vianna é um exemplo ilustrativo de como nossas elites dirigentes interpretaram e
apresentaram a si mesmas e aos demais interessados os episódios mais significativos das
relações internacionais do Brasil.

Brasília: 14 de junho de 1993.


Inédito em sua versão integral; excertos incorporados em outros artigos ou livros do autor.

544
1889: a República se apresenta ao mundo

Sandra Maria Lubisco Brancato (coord.):


Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República
(Brasília: Ministério das Relações Exteriores; Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul; I° volume: 1989, 222 p.; II° volume: 1993, 251 p. 133-135)

Em 19 de novembro de 1889, o Ministro das Relações Exteriores Quintino Bocaiuva


expedia a seguinte circular aos governos dos países com os quais o Brasil mantinha relações
diplomáticas:
“Senhor Ministro,
“O exército, a armada e o povo decretaram a deposição da dinastia imperial e a
extinção do sistema monárquico representativo; foi instituído um Governo Provisório
que logo entrou no exercício de suas funções e que as desempenhará enquanto a
Nação soberana não proceder à escolha do definitivo pelos seus órgãos competentes;
este Governo manifestou ao Sr. D. Pedro de Alcântara a esperança de que ele fizesse o
sacrifício de deixar com sua família o território do Brasil e foi atendido; foi
proclamada provisoriamente como forma de governo da nação brasileira a República
Federativa, constituindo as Províncias os Estados Unidos do Brasil.
“O Governo Provisório, como declarou na sua proclamação de 15 do corrente,
reconhece e acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime
anterior, os tratados subsistentes com as Potências estrangeiras, a dívida externa e
interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas.
“No Governo Provisório, de que é chefe o Sr. Marechal Manoel Deodoro da
Fonseca, tenho a meu cargo o Ministério das Relações Exteriores, e é por isso que me
cabe a honra de dirigir-me a Vossa Excelência, assegurando-lhe que o mesmo
Governo deseja manter a relações de amizade que tem existido entre os dois países e
pedindo o reconhecimento da República dos Estados Unidos do Brasil.”

Num bom retrato do que, já então, se podia classificar de caráter ecumênico das
relações internacionais do Brasil, um documento interno da Chancelaria brasileira informava
ao mesmo Ministro Quintino Bocaiuva que os governos visados pela Circular eram, na ordem
ali estabelecida, os seguintes:

“Espanha, Rússia, Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria-Hungria, Itália, Bélgica,


Portugal, Santa Sé, França, Suécia e Noruega, Países-Baixos, Suíça (ao Presidente),
Dinamarca, República de Venezuela, Chile, Peru, Estados Unidos da América,
República Oriental do Uruguai, República Argentina, Paraguai, Bolívia, Guatemala,
Colômbia, República do Salvador, República Dominicana, Nicarágua, Costa Rica,
Haiti, Honduras, Equador, Império de Marrocos, Império da China, Reino da Sérvia,
Reino da Romênia, Império da Turquia e Império do Japão, República de San Marino
e Reino da Pérsia”.

545
Outra circular, com o mesmo texto, acrescentava finais específicos para o México e
para o Congo, neste último caso para o “Sr. Administrador Geral da Repartição dos Negócios
Estrangeiros do Estado Independente do Congo”, Estado que nada mais era do que uma ficção
geopolítica inventada pelo Rei Leopoldo, da Bélgica. Ficaram fora da Circular, por razões não
esclarecidas, a Grécia e o Egito, países com os quais o Brasil mantinha relações consulares,
através do Rio de Janeiro e de Alexandria, respectivamente. De grandes potências a nações
praticamente vassalas das primeiras, o universo das relações interestatais no final do século
XIX comparece nas listas da Chancelaria brasileira, testemunhando sua grande abertura
internacional e precoce vocação para o pragmatismo político.
Em todo caso, esses eram os países envolvidos no relacionamento externo do Império
dirigido por Pedro II e aos quais a nova República americana se dirige para solicitar
reconhecimento diplomático. Com algumas exceções, são também esses os países que
comparecem nos dois volumes do Arquivo do Reconhecimento da República, obra de
referência documental cuja divulgação, iniciada na comemorações do centenário da
República, foi tornada possível graças à capacidade de iniciativa e ao empenho pessoal
demonstrados pela Profa. Sandra Brancato, do Curso de Pós-Graduação em História da
PUC/RS, tanto na coleta do material original de arquivo como em sua organização para
publicação pelo Ministério das Relações Exteriores. As exceções são poucas, em alguns casos
por situações compreensíveis como a ausência de contatos diretos (Haiti, República
Dominicana, Reinos da Sérvia e da Romênia ou a já mencionada ficção congolesa), em outros
provavelmente pelas mesmas razões, mas produzindo lacunas mais lamentáveis, com é o caso
do Japão ou da Turquia.
Não obstante, a coletânea de documentos relativa aos 36 países objeto da seleção
conforma um panorama altamente ilustrativo da densidade das relações diplomáticas do
respeitado Império brasileiro, herança que terá de ser retomada e desenvolvida pelo novo
regime. Não são poucas as dificuldades iniciais, como demonstrado por diversos expedientes
intercambiados com potências monárquicas da velha Europa: finalmente, a jovem República
podia ser considerada como ilegítima, pois que resultante de um golpe de Estado militar
contra uma dinastia que possuía numerosos vínculos familiares no velho continente. Em
contraste, a obtenção do reconhecimento foi bastante mais fácil no hemisfério americano –
objeto do primeiro volume da coletânea – já que o regime monárquico brasileiro é que era a
avis rara num continente republicano.
Assim, é instrutivo seguir as diversas démarches empreendidas pela diplomacia
brasileira junto a algumas monarquias europeias. O Império da Alemanha, por exemplo,
546
manteria apenas relações oficiosas, até que o Congresso Constituinte se tivesse pronunciado
sobre a nova forma de Governo. O da Áustria-Hungria, cujo Imperador Francisco José tinha
laços de parentesco com D. Pedro II, não poderia senão ter sentido o “mais profundo pesar”
pela proclamação da República. Mas, terminados os trabalhos da Assembleia Constituinte, em
fevereiro de 1891, os dois Impérios reconhecem oficialmente o Governo republicano.
Mais atribuladas foram as condições de retomada das relações com a velha Rússia dos
Czares. O representante brasileiro em São Petersburgo era o mais sincero possível: “É preciso
que o Governo da República se compenetre de que as simpatias da Rússia pelo Brasil tinham
por único fundamento as nossas antigas instituições monárquicas que supunha tão sólidas
como as próprias. Uma vez estas desaparecidas, entramos, para o Czar, no rol das nações cuja
amizade tem por base, não a paz mas o armistício, estando nas mútuas relações substituída a
simpatia pelo desdém mais ou menos aparente segundo os interesses em jogo”.
Em outras oportunidades, pequenos contenciosos bilaterais, como em relação à França
e às fronteiras do Brasil com a Guiana, ou até mesmo particulares, como no caso de uma
companhia belga, prejudicaram o andamento das negociações ou retardaram o desfecho
inevitável, na medida em que o novo regime se consolidava no Brasil e a volta da monarquia
se afastava no horizonte.
A República passará bastante bem pelo seu batismo internacional e já em 1892 o
relacionamento diplomático era normal com praticamente todos os países selecionados na
coletânea. Os dois volumes constituem um guia bastante útil para o pesquisador especializado
e reforçam a cooperação acadêmica que o Itamaraty vem ensaiando, desde alguns anos, com a
universidade. Eles estão disponíveis junto à PUC/RS ou ao Centro de Documentação do
Ministério das Relações Exteriores.

Paris, 7 de janeiro de 1994.


Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: vol. 37, n. 2, julho-dezembro 1994, pp. 133-135).

547
A diplomacia brasileira vista da academia

Henrique Altemani de Oliveira:


Politica Externa Brasileira
(São Paulo: Editora Saraiva, 2005, 292 p.; ISBN: 85-02-05192-X)

Os cursos de relações internacionais têm apresentado, no Brasil, um crescimento


exponencial, empurrados pela globalização, o que lhes dá certo charme intelectual, mas
embalados, também, pelo movimento antiglobalizador, o que garante espaço na mídia. Muitos
desses cursos talvez pereçam, por excesso de oferta e inadequação de seu conteúdo às
necessidades reais do mercado nessa área. Mas a febre de abertura de novos cursos provocou
o surgimento de bons livros, entre os quais se destaca o de Demétrio Magnoli (Relações
internacionais: teoria e história; Saraiva, 2004) e, da mesma editora, este do coordenador de
pós-graduação em relações internacionais da PUC-SP, Henrique Altemani. Trata-se de um
pequeno grande livro, pois que, em menos de 300 páginas, consegue a proeza de resumir mais
de um século de política externa republicana e vários outros argumentos sobre a natureza do
processo diplomático no Brasil, com domínio quase completo das fontes de referência
documental e um conhecimento preciso sobre as motivações políticas internas do Itamaraty,
de certa forma surpreendente para um observador externo.
Trata-se de obra essencialmente didática, com inúmeras transcrições de autores
consagrados na literatura, muitas referências de rodapé e uma organização tão sintética quanto
precisa. Depois de um capítulo introdutório sobre o conceito de política externa – no qual são
examinados o processo decisório nessa área e o funcionamento do Itamaraty –, o sete
capítulos sucessivos abordam as diversas etapas históricas de desenvolvimento da política
externa brasileira, a saber:
2: De Rio Branco à Segunda Guerra Mundial (com resumo da política externa no Império e
uma análise da “americanização” da diplomacia pelo Barão);
3: Do Contexto Sub-regional à Constituição do Sistema Interamericano (basicamente a
diplomacia dos governos Dutra e Vargas);
4: A Operação Pan-americana e a Política Externa Independente (primeira iniciativa
multilateral, de âmbito regional, que antecede ao atual esforço de liderança na América
do Sul, e tentativa de escapar das malhas do Império);
5: A Política Externa dos Governos Militares (incluindo o projeto do Brasil “grande
potência”);
6: A Universalização da Política Externa Brasileira (com a “diversificação de
dependências” e a retomada do relacionamento com a América Latina, ainda no regime
militar);

548
7: A Política Externa na Nova República (discussão da mudança ou continuidade da
diplomacia nos governos da redemocratização e abordagem do importante processo de
integração bilateral com a Argentina) e, finalmente,
8: A Política Externa no Pós-Guerra Fria (de Fernando Collor a Lula, passando por Itamar
Franco e Fernando Henrique Cardoso, que gostava de ser o seu próprio chanceler).

O autor exibe pleno domínio dos temas e problemas da diplomacia brasileira em cada
época, mas o excesso de transcrições de outros estudiosos pode deixar a impressão de alguma
hesitação em expor seus próprios argumentos ou em fazer julgamentos sobre os aspectos
positivos ou negativos das grandes escolhas estratégicas feitas em momentos cruciais das
nossas relações exteriores. A discussão sobre os elementos de mudança ou as características
de permanência da política externa brasileira, por exemplo, ocorre duas vezes no decorrer do
livro, no contexto da redemocratização dos anos 1980 – que não alterou substancialmente os
fundamentos da política externa – e na recente fase de liberalização econômica da era Collor-
FH, quando ocorre um certo afastamento do perfil terceiro-mundista da nossa diplomacia e
aumenta a ênfase na integração sub-regional. Ainda assim, Altemani considera que os traços
principais da política externa brasileira foram mantidos, mesmo se com matizes diferenciados
em relação aos primeiros exercícios de “política externa independente” (dos governos
Quadros-Goulart).
Embora alguns autores citados por Altemani indiquem a subserviência do governo
Collor aos ditames dos EUA, ele indica o consenso em vários outros estudiosos de que “o
País necessitava efetivar determinados ajustes no seu processo de inserção, tendo em vista
tanto as mudanças estruturais (em termos de alterações no sistema internacional) quanto às
conjunturais” (p. 242). Na fase mais recente, alguns acadêmicos citados pelo autor preferem
condenar a política externa dos anos FHC como “alinhada” ou constituída mais de retórica do
que de substância, num suposto contraste com a ofensiva regional e terceiro-mundista do
governo que lhe sucedeu, que seria “desenvolvimentista” em lugar de “subserviente”.
Altemani confirma, contudo, que as grandes linhas da diplomacia brasileira têm sido
preservadas em sua substância, com inevitáveis adaptações de estilo, e representam
“expectativas e estratégias em desenvolvimento nos governos anteriores” (p. 264).

Bordeaux-Bilbao, 21 de julho de 2005.


Publicada, com cortes, na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, Ano 2, n. 14, setembro de 2005, p. 71)
e, em versão integral, na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados; ano III, n. 3, setembro 2006, p. 325-326).

549
Cursos e instituições de relações internacionais no Brasil

Clóvis Brigagão (com a assistência de Pedro Spadale e Fernanda Castanheira):


Relações internacionais no Brasil: instituições, programas, cursos e redes
(Rio de Janeiro: Gramma, 2004, 80 p.; ISBN: 85-988555-02)

Quando, em 1998, tentei relacionar, pela primeira vez no Brasil, os cursos existentes
de graduação e de pós-graduação em relações internacionais, os resultados foram de certo
modo surpreendentes, mas ainda assim modestos. Uma tabela que preparei para tal efeito –
inserida em meu livro O Estudo das relações internacionais do Brasil (1ª edição: 1999) –
listava nove cursos de graduação (stricto sensu) e apenas quatro de pós graduação, entre eles
o Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, que apenas recentemente teve
confirmado pela CAPES-MEC seu estatuto de “mestrado”. Havia ainda uma dezena de outros
cursos de pós-graduação credenciados, possuindo orientação para as relações internacionais, e
duas dezenas de cursos de especialização ou de pós-graduação lato sensu, autorizados pela
CAPES, que também se dedicavam a essa área. Este era o campo acadêmico das relações
internacionais no Brasil, sem descurar dos muitos cursos de pós-graduação, nas áreas
tradicionais de ciências humanas e sociais, como economia, administração e direito, que
também formavam mestres ou doutores com teses e dissertações vinculadas de alguma forma
à temática das relações internacionais ou da política externa do Brasil.
Os números não eram, portanto, reveladores de uma comunidade muito extensa. Um
eventual congresso voltado para a temática das relações internacionais, congregando
pesquisadores e professores nessa área, talvez não fosse suficiente para encher uma sala de
aulas “normal”. O campo era mais promissor pelo lado das instituições ou veículos suscetíveis
de comportar informações, análises ou debates sobre questões internacionais: desde o
surgimento da Revista Marítima Brasileira (1851) e do Boletim do Clube Naval (1888), bem
como das escolas de guerra, com A Defesa Nacional (1913), foram sendo multiplicadas
instituições e revistas voltadas para o ensino, a pesquisa e a discussão pública desses temas.
Ainda assim, as revistas dedicadas stricto sensu ao campo das relações internacionais eram
em número restrito – ainda hoje, elas são basicamente três –, sendo bem mais numerosos os
veículos culturais ou de ciências sociais que abrigavam, no sentido lato, materiais
relacionados com essa problemática.
Ao tomar conhecimento, em meados de 2004, deste Diretório de Relações
Internacionais no Brasil, 1950-2004, cuidadosamente preparado pelo Professor Clóvis
550
Brigagão, com a assistência de Pedro Spadale e de Fernanda Castanheira, não pude deixar de
constatar, com satisfação, que o campo tinha definitivamente se consolidado no Brasil, com
promessa de uma decantação progressiva e uma especialização natural nos próximos anos.
Ele registrou, até junho de 2004, a existência de 53 cursos de graduação ativos, com um
número aproximado de 13 mil estudantes. O Sudeste, como seria de se esperar, concentra a
maior parte desses cursos (56%), mas o Centro-Oeste surge com força, disputando com o Sul
o segundo lugar (10 cursos cada um, ou 19% do total). Brasília constitui, obviamente, o
elemento predominante na oferta do Centro-Oeste.
A pós-graduação conheceu uma evolução mais moderada, mas ainda assim
promissora, na medida em que são atualmente 25 os cursos existentes, sendo dez no conceito
stricto sensu e quinze os lato sensu. O Sudeste concentra mais uma vez a maioria (52%), mas
o Centro-Oeste (Brasília) vem consolidando, com 7 cursos (ou 28%), sua presença nesse
campo. A distribuição pela natureza da instituição – pública ou privada – é reveladora das
mesmas características que afetam, de maneira geral, o terceiro ciclo no Brasil: a graduação é
majoritariamente privada (90%), ao passo que a pós-graduação conhece uma maior presença
pública (40%), mas ainda assim é dominada pelas instituições privadas (60%). A evolução
futura certamente confirmará essas tendências, muito embora as instituições públicas estejam
gradualmente buscando aumentar sua oferta em face da grande demanda registrada nos
últimos anos, tanto em termos de graduação como, crescentemente, de cursos de
especialização.
O mercado ainda parece funcionar segundo a “lei de Say”, ou seja, a oferta cria a sua
própria demanda – daí o maior dinamismo do setor privado –, uma vez que não estão ainda
adequadamente consolidados os perfis curriculares dos cursos, os sistemas de avaliação
oficial pela CAPES e, sobretudo, a institucionalização profissional nesse campo. Se e quando
esse campo lograr constituir uma “massa atômica” suficiente, em termos de produção
especializada e de interação entre a formação acadêmica e os requisitos do mercado – o que
poderia dar maior visibilidade ao “internacionalista” (reconhecido oficialmente ou não) –, se
poderia talvez passar a uma etapa de “superação keynesiana” da lei de Say, isto é, a
sustentação da demanda agregada, que por sua vez passa a garantir níveis satisfatórios de
oferta de cursos no setor.
Como é conhecido, e esperado, as flutuações do ciclo tenderão a ser produzidas no
setor privado e a produção de qualidade tenderá a continuar concentrada no setor público, mas
a pós-graduação particular começa a exibir, igualmente, níveis de qualificação acadêmica
relativamente satisfatórios. Estrutura e tendências do setor podem ser facilmente resumidas. O
551
“mercado” é suficientemente concorrencial nas grandes capitais, mas frustrantemente
cartelizado (ou monopolizado) nas demais regiões e nem sempre a informação quanto à
qualidade do ensino – e, portanto, do “produto final” – é fornecida com a transparência que os
eventuais candidatos a uma formação nessa área desejariam dispor. Como as primeiras turmas
estão recém sendo “jogadas” no mercado de trabalho na presente conjuntura, não se pode
ainda efetuar uma avaliação adequada da “fiabilidade do material”, bem como de sua
adequação aos requisitos do mercado. Algum grau de frustração é inevitável, por parte dos
jovens egressos de alguns desses cursos, em relação à sua preparação vis-à-vis o que a
demanda existente (e potencial) requer como qualificação profissional.
Essa demanda está atualmente constituída por três blocos desiguais de possíveis
contratantes da mão-de-obra especializada produzida nesse campo: o setor público, o mundo
acadêmico, ambos relativamente limitados quanto às possibilidades de absorção do número
relativamente elevado de graduandos nas fases finais de formação, e o setor privado, enorme e
diversificado, mas ainda inseguro quanto à adequação desses jovens internacionalistas aos
seus requisitos pragmáticos. No setor público, o grande atrativo é obviamente a diplomacia –
extremamente exigente quanto aos critérios de seleção e bastante limitada quanto às
possibilidades de entrada –, mas existem outras áreas nas quais o recrutamento é possível
(analistas de comércio exterior ou de informações, por exemplo). Na academia, as
possibilidades se situam na própria expansão da oferta no setor, voltando-se para uma
orientação docente, portanto, o que tende a esgotar-se, talvez, no médio prazo.
A “osmose” entre a academia e a diplomacia não é tão intensa, no Brasil, quanto ela
parece ser em outros países de grande tradição nas relações exteriores conduzidas de modo
profissional, mas já parece ter sido rompido o relativo “insulamento” em que vivia o serviço
diplomático durante a era militar e seu imediato seguimento. “Especialistas” e “assessores”
em relações internacionais – inclusive nas mais altas esferas – já não provêm exclusivamente
do campo diplomático, tendo a produção própria, ou “importada”, na área política –
Parlamento, partidos, centros de pesquisa ou think tanks – crescido significativamente no
período recente. O antigo monopólio de idiomas estrangeiros já não mais distingue o
diplomata de seus colegas da burocracia de Estado, na medida em que o inglês básico – o raw
English – tornou-se a língua franca dos negócios, dos colóquios e das comunicações
internacionais.
O campo dotado de maior elasticidade é, inquestionavelmente, o setor privado, terreno
no qual as exigências vão além do simples “canudo universitário” e passam a incidir sobre a
preparação efetiva – sobretudo em línguas – e a experiência prévia acumulada (o que sempre
552
constitui uma barreira à entrada dos mais jovens). Espera-se, em todo caso, que as instituições
de ensino, públicas e privadas, atentem para as exigências específicas da demanda do setor
privado, o único em condições de absorver a oferta crescente nessa área. Elas devem atentar
para os critérios de formação e de gradual especialização, nos últimos anos, desses novos
internacionalistas, que devem, sim, saber os fundamentos da teoria realista em relações
internacionais, mas também o modo de funcionamento efetivo das organizações
internacionais voltadas para o comércio, as finanças e os padrões e normas que regulam as
trocas globais de bens e serviços.
Os fatores impulsionadores do crescimento da oferta em relações internacionais nos
últimos anos não são difíceis de serem detectados: a intensificação dos processos de
regionalização e de globalização a partir da última década do século XX, a série de crises
financeiras dos últimos anos, a expansão dos investimentos diretos estrangeiros nesse mesmo
período, a multiplicação de foros negociadores de acesso a mercados, tanto no âmbito do
sistema multilateral de comércio (OMC), como em escala regional (Alca, UE-Mercosul,
esquemas geograficamente restritos de liberalização comercial) ou ainda bilateral (com uma
preocupante multiplicação desses acordos preferenciais, que frustram os partidários das regras
universais de acesso).
O Brasil participa de todos esses processos, simultânea ou paralelamente, e parece
assim natural que a maior presença desses temas nos meios de comunicação de massa tenha
motivado os empresários do setor educacional (mas também os responsáveis das instituições
públicas) a aumentar a oferta de cursos na área de relações internacionais (muitas vezes com
especializações já dirigidas para o comércio exterior, os negócios internacionais ou para o
estudo dos blocos comerciais). O investimento parece estar sendo correspondido pelo
mercado potencial, já que a “clientela” desses novos cursos mostra-se disposta a testar as
possibilidades de ascensão profissional em áreas até aqui restritas do ponto de vista do
emprego. Existem, por enquanto, poucas barreiras à entrada (e a situação promete continuar
fortemente competitiva no futuro previsível), mas a adequação entre a demanda efetiva de
mercado e a capacidade instalada não foi ainda de fato testada, dadas a não segmentação da
produção e a pouca diferenciação do “produto”. O essencial parece situar-se na flexibilização
do “aparelho produtivo” e na capacidade adaptativa da oferta, o que parece garantido em
função do caráter privado da maior parte do setor, o que de certa forma é uma boa condição
de competitividade nessa área.
Este utilíssimo Diretório reflete toda essa realidade, pois ademais de apresentar um
panorama institucional da área – com todos as coordenadas relativas à “oferta” no setor –, ele
553
ainda informa sobre a orientação de cada um deles: multidisciplinar em mais da metade dos
casos, mas já crescentemente diversificado nas demais instituições: forte presença de política
internacional, mas também comércio e economia internacionais, inclusive agronegócios. A
pós-graduação ou a especialização em relações internacionais ainda tendem a ser genéricas –
deixando portanto a critério dos alunos e professores a orientação e o perfil a serem dados aos
estudos empreendidos nesse nível – mas aqui também se nota o surgimento de cursos voltados
para o comércio e as negociações internacionais, numa saudável demonstração de que as
instituições estão se ajustando aos requisitos e demandas formuladas pelo “mercado” como
um todo.
Com efeito, o “mercado” para o “internacionalista” ainda não está inteiramente
consolidado no Brasil, sendo visível o sentimento de indefinição, quando não de angústia, em
boa parte dos alunos de muitos desses cursos surgidos nos últimos anos em relação às suas
possibilidades de inserção bem sucedida no mercado de trabalho. Não existe, parece claro,
uma fórmula ideal de curso, já que o campo é obviamente vasto, as matérias em que pode
incidir a formação do futuro internacionalista são muitas e extensas – indo da história ao
direito, da economia à ciência política e muito mais – e os requerimentos dos futuros
empregadores podem ser tão complexos e especializados como são, hoje, os negócios
internacionais. Por isso, uma boa recomendação a todos os alunos seria esta: não importa o
curso, seja basicamente um autodidata perfeito e completo.
Mas este Diretório não constitui, tão simplesmente, um útil repositório de dados
básicos e informações práticas sobre os cursos brasileiros da área: ele é também uma
introdução básica sobre o surgimento, o desenvolvimento e a expansão desse setor ainda
pouco conhecido, enquanto campo especializado das ciências sociais no Brasil. Com efeito, a
introdução de Clóvis Brigagão traça os antecedentes, a evolução ulterior e a situação atual da
área, agregando ainda uma informação inédita sobre o surgimento – ainda antes dos anos 90,
mas essencialmente a partir de sua segunda metade – e a lenta consolidação, entre nós, de
uma rede institucional de pesquisadores e profissionais de relações internacionais. Uma seção
final, por exemplo, relaciona os encontros (Eneri) organizados pela Federação Nacional de
Estudantes de Relações Internacionais (Feneri), bem como os três encontros, até aqui
realizados, do Enepri, congregando os profissionais e pesquisadores dessa área (as resoluções,
ou cartas, elaboradas ao final desses encontros são reproduzidas). Trata-se, portanto, de uma
history in the making, da qual o autor é um dos mais distinguidos atores.
As conclusões do autor são também indicativas das principais características do setor:
o crescimento observado até aqui é, em grande medida, “empírico”, podendo ocorrer uma
554
certa retração da oferta e uma requalificação dos cursos, em função da demanda efetiva e da
confirmação da diversidade do setor, considerada acertadamente por Clóvis Brigagão como
rica e positiva, pois que correspondendo à forma pela qual o Brasil se insere no sistema
internacional. O Diretório é certamente preliminar em seu esforço pioneiro e, como tal,
suscetível de aperfeiçoamento e de complementação informativa – se possível em sistemas
online como os da Feneri e do Relnet –, mas ele já constitui um retrato completo, ainda que
inicial, de um processo de consolidação de um campo importante do panorama institucional
das ciências sociais no Brasil. Trata-se de um marco relevante para o conhecimento desse
campo, a partir do qual a própria rede institucional que ele ajuda a fortalecer vai contribuir
para a melhoria das estruturas de formação, para a ampliação dos intercâmbios internos e
externos a essa área e, como esperamos todos nós, para a melhor qualificação possível dos
estudantes e dos docentes dessa área, reforçando ainda mais a pesquisa e a produção
especializada no campo das relações internacionais.
Poucas obras, no panorama editorial “normal”, aspiram ser peremptas ou então
deliberadamente passíveis de “correções” periódicas, o que não é certamente o caso deste
pequeno grande volume. Meu desejo, portanto, é que este Diretório tenha rápidas e contínuas
atualizações, o que constituirá, justamente, a marca de seu sucesso. Finalizo com
cumprimentos sinceros ao seu autor principal e aos colaboradores pelo esforço realizado neste
primeiro mapeamento do campo relações internacionais do Brasil. Minha recomendação é a
de que ele constitua o suporte inicial de um processo de construção de um verdadeiro sistema
de informação – quantitativo e qualitativo – sobre esse campo promissor no Brasil, agregando
dados sobre os recursos humanos e a produção da área, o que o transformará não apenas em
um manual completo de informações, o que de certa forma ele já é, mas em instrumento de
referência indispensável a todo profissional de relações internacionais. Longa vida ao
Diretório de Relações Internacionais.

Brasília, 7 de agosto de 2004.


Prefácio ao livro publicado (p. i-vii).

555
As relações Brasil-Argentina: da rivalidade à integração

Luiz Alberto Moniz Bandeira:


Estado Nacional e Política Internacional na América Latina: O Continente nas relações
Argentina-Brasil (1930/1992)
(São Paulo: Ensaio; Brasília: Editora da Universidade de Brasília: 1993)

Luiz Alberto Moniz Bandeira, que desde o início dos anos 60 milita no jornalismo
político (O 24 de agosto de Jânio Quadros, 1961; O Caminho da Revolução Brasileira, 1962;
Cartéis e Desnacionalização, 1975; O Governo João Goulart, 1977) e na pesquisa histórica
de alto nível (O Ano Vermelho: A Revolução Russa e seus Reflexos no Brasil, 1967) tornou-se
conhecido da comunidade acadêmica sobretudo por seus trabalhos sobre as relações do Brasil
com os Estados Unidos. O primeiro estudo, original em sua perspectiva analítica engajada e
absolutamente admirável em sua densidade de informações, permanece até hoje sem rival.
Com efeito, Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1973) tornou-se um paradigma do gênero e um auxiliar indispensável
da pesquisa histórica de todo e qualquer estudante universitário. O segundo, Brasil-Estados
Unidos: A Rivalidade Emergente, 1950-1988 (1989), atualizou o itinerário dessas difíceis
relações bilaterais e moderou um pouco a severa postura política do primeiro trabalho, que
tinha sido escrito numa época em que o imperialismo norte-americano parecia dar as cartas no
Brasil.
Mas, Moniz Bandeira é igualmente um excelente pesquisador e intérprete das relações
do Brasil com os vizinhos do Prata, mormente o maior deles e tradicional competidor na
histórica disputa pelo poder regional, a Argentina. O primeiro trabalho, O Expansionismo
Brasileiro: o papel do Brasil na Bacia do Prata, da colonização ao Império (Rio de Janeiro:
Philobiblion, 1985), cobria, como seu título indica, o itinerário dessas relações até o final do
Império, mais exatamente até a guerra do Paraguai. O segundo, O Eixo Argentina-Brasil: o
processo de integração da América Latina (Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1987), enfocava sobretudo o processo de desenvolvimento econômico em ambos os países e a
superação da longa rivalidade entre os dois maiores países do continente. O lançamento da
integração econômica nos governos Sarney e Alfonsin e a aliança política que então se
desenhou, produziu, nas palavras de Moniz, uma “radical modificação do equilíbrio
geopolítico na América dos Sul”.
Com a publicação desta outra obra fundamental para se conhecer a história recente das
relações entre o Brasil e a Argentina, Estado Nacional e Política Internacional na América
556
Latina: O Continente nas Relações Argentina-Brasil, 1930-1992, o Professor Moniz Bandeira
só fica nos devendo uma análise igualmente acurada dessas relações durante o período da
República Velha (1889-1930), pois todo o resto está coberto por esse pesquisador, que é
também um escritor de qualidade.
Este trabalho constitui-se numa minuciosa pesquisa histórica que acompanha o
itinerário político, nacional e internacional, de ambos os países, tanto no âmbito bilateral,
como no que se refere às relações de cada um deles com os Estados Unidos e com os demais
países da América do Sul. Com efeito, seria difícil, ou mesmo impossível, estudar as relações
bilaterais dos dois países platinos sem passar pelo que o Embaixador Rubens Ricupero
chamou de “relação triangular Brasil-América Latina-Estados Unidos”. Nesse sentido, o livro
de Moniz Bandeira deve igualmente permanecer sem rivais pelos próximos anos, uma vez que
se trata do mais completo levantamento e interpretação dessa complexa teia de relações, cujo
ponto focal é uma abordagem comparativa das políticas internas e das políticas exteriores da
Argentina e do Brasil, bem como dos demais países da região, em suas relações respectivas
com os Estados Unidos dentro de cada conjuntura internacional a partir de 1930.
Seria difícil sumarizar a enorme massa de informações contidas na pesquisa de Moniz,
bastando com indicar, como ele o faz, que seu objetivo consistiu em “estudar a unidade e a
interação entre política internacional e política nacional, em analisar como e quando a política
internacional condicionou ou influiu sobre a política interna da América Latina, bem como
demonstrar, igualmente, os fatores econômicos, sociais e políticos nacionais que
determinaram as relações e as políticas exteriores de países como a Argentina e o Brasil,
dentro do contexto mundial em que os Estados Unidos impuseram sua hegemonia” (p. 16). O
escopo da obra é, portanto, ambicioso, mas imparcial, uma vez que Moniz não se coloca
dentro de ângulos nacionais, mas procura compreender como um todo, numa perspectiva
propriamente internacional, as políticas interna e externa dos países da América do Sul.
A metodologia também traz a marca dos melhores trabalhos de Bandeira, uma
exaustiva pesquisa em fontes primárias nos mais diferentes arquivos oficiais e privados de
três continentes, sendo de se destacar a utilização, pela primeira vez num trabalho do gênero,
de documentos secretos do Arquivo do Itamaraty de uma fase ainda bem recente de nossa
história política (até 1963). Aliás, o número de expedientes desclassificados compulsados por
Moniz Bandeira em sua pesquisa torna a obra altamente relevante para o necessário trabalho
de revisão histórica das relações “triangulares” dos países sul-americanos nos últimos trinta
anos. Não só Moniz traz revelações inéditas suscetíveis de mudar o ponto de vista assumido
em algumas interpretações tradicionais sobre as relações Brasil-Argentina-Estados Unidos,
557
mas seu livro é também fundamental para uma mudança de percepção dessas relações no
contexto mais amplo da política internacional e da política regional, inclusive em sua vertente
econômica.
Mais do que a massa de informações contida em 300 páginas de uma “história” muito
bem contada, é essa visão inovadora, despojada dos estereótipos do passado, que faz a riqueza
documental, a importância metodológica e a relevância política do livro de Moniz Bandeira.
Ele não aceita percepções tradicionais, como por exemplo a “tradicional amizade” do Brasil
com os Estados Unidos, ou a “secular rivalidade” com a Argentina, mas formula novas
hipóteses, oferece interpretações originais para o acompanhamento da história comparada dos
dois países. Trata-se, sem dúvida alguma, de um manual de referência indispensável para
conhecer os motivos e as circunstâncias que levaram os dois rivais platinos a enterrar décadas
de uma inútil e custosa competição estratégica para abrir uma era marcada pela integração
econômica e política de duas nações irmãs.

Brasília: 2 de agosto de 1993.


Inédito em sua versão integral.
Publicado, com supressão de trechos e sob o título “Bandeira revê rivalidade histórica”, no
Jornal de Brasília (Caderno de Domingo: Livros; Brasília: 10 de outubro de 1993, p. 3).

558
Os conflitos do Prata em perspectiva histórica

Luiz Alberto Moniz Bandeira:


O Expansionismo Brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata: da colonização à
Guerra da Tríplice Aliança
(2a. ed. rev.; São Paulo: Ensaio; Brasília: Editora da UnB, 1995, 250 p.)

O professor Luiz Alberto Moniz Bandeira vem acumulando, desde seus primeiros
trabalhos sobre as relações do Brasil com os Estados Unidos – Presença dos Estados Unidos
no Brasil: dois séculos de história (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973), Brasil-
Estados Unidos: A Rivalidade Emergente, 1950-1988 (1989) –, uma importante massa de
material crítico e um inovador trabalho analítico de reavaliação histórica sobre a política
externa e as relações internacionais do Brasil. Ele também produziu, num extraordinário labor
solitário, uma impressionante pesquisa global sobre o processo político de formação dos
Estados nacionais no Cone Sul e sobre as relações do Brasil com seus vizinhos do Prata, em
especial com o tradicional competidor na histórica disputa pelo poder regional, a Argentina.
Moniz Bandeira já tinha publicado, por exemplo, O Eixo Argentina-Brasil: o processo de
integração da América Latina (Brasília: Editora da UnB, 1987) e Estado Nacional e Política
Internacional na América Latina: o continente nas relações Argentina-Brasil, 1930-1992
(Brasília: Editora da Universidade de Brasília-São Paulo: Editora Ensaio, 1993, 304 pp.),
enfocando o processo de desenvolvimento econômico e político dos países da região, bem
como as relações de cada um deles entre si e com as potências dominantes em cada época
histórica (Grã-Bretanha e Estados Unidos).
O presente livro, que já tinha sido objeto de uma primeira edição, quando de sua
elaboração como tese de doutorado defendida na USP – O Expansionismo Brasileiro: o papel
do Brasil na Bacia do Prata, da colonização ao Império (Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985)
–, enfoca as relações internacionais e o equilíbrio de poderes na América do Sul meridional
desde a ocupação ibérica até quase o final do Império no Brasil, mais exatamente até o
término da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, enquanto Estado Nacional e Política
Internacional na América Latina cumpre os mesmos objetivos para o período a partir de 1930
até a fase recente da história das relações regionais e internacionais da Bacia do Prata. O
material de pesquisa para cobrir o período intermediário, isto é, do final do Império até o final
da República Velha no Brasil (1930), já se encontra preparado, prometendo o Professor
Moniz Bandeira fazer uma análise igualmente acurada das relações internacionais dos países

559
platinos na fase clássica da agro-exportação e da transição da hegemonia britânica para a
influência econômica e política dos Estados Unidos.
Para elaborar seu rico itinerário sobre a formação dos Estados nacionais no Prata e
suas relações recíprocas, desde a colonização até a fase áurea da dominação britânica, Moniz
Bandeira não apenas compulsou toda a documentação histórica disponível sobre o tema,
como também, como cientista político que é, acrescentou uma interpretação convincente
sobre a complexa teia de encadeamentos entre as políticas internas e externas desses países,
com destaque para o relacionamento ciclotímico entre a Argentina e o Brasil, os dois
principais contendores e mais importantes protagonistas das relações internacionais na região
do Prata e na própria América do Sul. A luta pelo controle das duas margens do Prata e das
regiões adjacentes se estende praticamente desde os albores da colonização, sobrevive à união
efêmera entre as coroas de Castela e de Portugal e contínua até a época do Barão do Rio
Branco, quando os limites territoriais são definitivamente fixados e se desenha outro cenário
geopolítico nesse contexto geográfico, com a ascensão dos Estados Unidos à condição de
potência interveniente do novo quadro diplomático regional e internacional.
O Expansionismo Brasileiro referido no título, de moderado, senão escasso, sentido
imperialista, é o resultado desses quatro séculos de avanços pioneiros sobre o hinterland da
América do Sul, obra sucessiva ou conjunta de portugueses e brasileiros que, com os pés,
mulas e pirogas, empurraram para oeste a linha traçada pela primeira vez em Tordesilhas,
ainda antes de o Brasil receber seu certificado de nascimento. Em meados do século XIX,
quando se acirram os conflitos narrados com brio e sabor neste livro, o expansionismo
brasileiro não tinha mais razão de ser, substituído pela busca incessante de um equilíbrio
natural no Prata, sem o predomínio de nenhuma força política em particular, mormente o de
grupos ou personalidades que pudessem ser hostis aos interesses nacionais. Não se deve
esquecer, a propósito, que os afluentes do Paraná constituíam a via obrigatória de acesso às
províncias mais recuadas do Brasil centro-ocidental, devendo as margens do Prata, do Paraná
e do Paraguai permanecer em mãos amigas, quando não aliadas. Daí os intermináveis
conflitos que, desde antes da Independência até o começo da República, nos opõem a um ou
outro dos caudilhos platinos, com destaque para o mais desafiador dentre eles, Solano Lopez
do Paraguai.
Moniz Bandeira nos apresenta, nas palavras do Embaixador Teixeira Soares, o
“desenrolar, por vezes taquicárdico, da nossa política internacional em face dos vizinhos”,
descartando interpretações simplistas que gostariam de ver no papel maquiavélico da Grã-
Bretanha a origem e o fio condutor de todos os conflitos que ensanguentaram os caudais
560
platinos. Alicerçado em sólida pesquisa documental nos principais arquivos nacionais (e
vários particulares) de todos os países direta e indiretamente envolvidos com a política do
Prata, ele também faz justiça, na introdução desta edição revista, da tese que pretenderia ver
na guerra contra o Paraguai um complô reacionário contra uma forma alternativa de
desenvolvimento capitalista no coração da América do Sul.
O triunfo brasileiro contra as pretensões de paraguaios e argentinos assinalaria
contudo o declínio relativo do Império e da política internacional do Brasil na região. Como
Mauá bem profetizara em 1860, a “maldita guerra” terminaria com a “ruína do vencedor e a
destruição do vencido”. Os novos investimentos da Grã-Bretanha no Uruguai ofuscariam a
presença brasileira e, na Argentina, beneficiada com a guerra, ajudariam na consolidação do
Estado nacional e sua projeção internacional ulterior. Dependente do café, o Brasil, nas
palavras de Moniz Bandeira, “decairia para a órbita dos Estados Unidos”. As rivalidades entre
os dois grandes países do Prata, “superadas as causas históricas, mas explorados os
ressentimentos, passaram a refletir suas conexões econômicas internacionais e a competição
interimperialista pela América Latina”.
Efetivamente, a Argentina, convencida de que conseguiria reproduzir uma versão sul-
americana da sociedade inglesa, alçou-se, nos anos da belle époque , à condição de “país
desenvolvido”, ostentando uma renda período capita superior à de alguns países europeus do
período. O Brasil, a despeito de notável crescimento econômico neste século, arrastou-se
durante décadas no subdesenvolvimento social, esperando ilusoriamente sua diplomacia que
algum tipo de “relação especial” com os Estados Unidos viesse a prover-lhe os meios
materiais e financeiros de superar o rival platino. Para completar o imenso painel histórico
que ele já traçou sobre as relações internacionais nessa parte do continente, Moniz Bandeira
fica agora nos devendo a análise da troca de hegemonias operada na primeira metade deste
século, cujos efeitos políticos e econômicos apenas foram superados quando os dois países
decidiram encerrar uma longa história de competição e de inimizades através de um projeto
sui-generis de cooperação e da integração que veio a culminar no Mercosul.
O itinerário internacional dos países da bacia do Prata deixa, diplomática e
politicamente, as pranchetas de campanha dos estrategistas militares para incorporar-se
definitivamente às planilhas de cálculos de custo-benefício dos economistas governamentais e
dirigentes empresariais. A história de como, porque e sob que condições se chegou até o
cenário atual está sendo magistralmente contada e interpretada por Moniz Bandeira, que
credencia-se assim como uma dos mais legítimos representantes do que, desde já, poderíamos
considerar como uma nova vertente dos estudos historiográficos neste canto do planeta: a
561
história regional, isto é, uma visão global e integrada da vida de seus povos, interagindo no
entrevero das batalhas ou das relações comerciais, do desenvolvimento de suas economias
nacionais, cada vez mais complementares, integradas e reciprocamente interdependentes, bem
como da intensificação de suas relações políticas, passo indispensável para uma maior
projeção internacional neste limiar do quinto século de sua história comum.

Brasília, 20 de fevereiro de 1996.


Inédito na versão completa.
Publicado parcialmente no Correio Braziliense
(21 de março 1996, Caderno 2, p. 2)
e, em nova versão resumida, na Revista Brasileira de Política Internacional
(vol. 39, n. 1, janeiro-julho de 1996, p. 171-173).

562
Poder imperial, análise conceitual

José Luis Fiori (org.):


O Poder Americano
(Petrópolis: Editora Vozes, 2004, 456 p.; ISBN: 85-326-3097-9)

Em geral, deve-se desconfiar dos livros puramente acadêmicos – isto é, de autores


universitários em tempo integral – que trazem como objeto o tema central que dá título a este
livro, o “poder americano”, ainda mais quando ele pertence, como é o caso, a uma coleção
que se identifica como “Zero à Esquerda”. Poder-se-ia esperar uma coleção de diatribes
contra o império e a dominação global dos EUA, em nada condizente com uma análise séria
que a atual situação de hegemonia da “hiperpotência” requer em benefício de todos os
interessados nas origens e na dinâmica desta situação absolutamente única na história da
humanidade.
Esta coletânea constitui, porém, uma agradável surpresa, no sentido em que os
trabalhos passam longe da crítica apaixonada ou do simplismo econômico. Aqui e ali permeia
algum ressentimento contra a situação periférica ou dominada da América Latina, resultado
de velhas teorias conspiratórias sobre a “concentração do poder econômico e militar”, mas o
conjunto de ensaios revela que os autores não se contentaram com essa visão acadêmica
tradicional.
Se fôssemos parafrasear Lênin, se poderia dizer que a atual Pax Americana é a Pax
Britannica mais as tecnologias de informação, mas é evidente que o poder global não se
explica apenas pelo domínio tecnológico ou militar. Um dos autores acredita que o poder
tecnológico americano pode ser visto como um empreendimento militar: ele retoma a noção
de “complexo militar-industrial-acadêmico” para explicar as razões do sucesso americano
desde meados do século XX. Uma análise de extração marxista, porém, poderia argumentar
que os EUA criaram um “modo inventivo de produção” absolutamente inédito em termos
históricos e eficiente em seus vários aspectos: econômicos, militares, culturais, sociais,
institucionais e em muitas outras vertentes “civilizacionais”. Isto não data do pós-Segunda
Guerra, mas vem desde antes de Benjamin Franklin.
Os acadêmicos de esquerda têm certa dificuldade em aceitar que o atual poderio
americano, absoluto em várias de suas facetas, não deriva de uma simples concentração de
poder econômico, financeiro ou tecnológico no último meio século, aquilo que os antigos
marxistas chamavam de “capital monopolista internacional”. Ele é o resultado da
563
professorinha de aldeia, do self-rule, da justiça rápida e transparente, dos mercados livres e do
Estado mantido semi-manietado pela liberdade de iniciativa. Em poucas palavras, educação
universal, instituições sólidas e liberdade econômica constituem o segredo do atual poder
americano, mas isso já tem mais de dois séculos.
Os dois textos iniciais do próprio organizador trazem uma visão histórica, de longo
prazo, sobre a formação e a expansão do poder global e do poder especificamente americano.
Os demais ensaios cobrem a fase contemporânea, grosso modo, as duas últimas duas décadas
que coincidiram com a “indústria do declinismo” – cujo principal expoente foi o historiador
Paul Kennedy – e com a brilhante retomada do crescimento da “nova Roma” e suas projeções
planetárias. Maria Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo assinam um texto de corte
tradicional sobre a “mundialização do capital” que poderia facilmente ter sido elaborado por
um marxista repetitivo como Hobsbawm.
Um trabalho de Franklin Serrano sobre a política macroeconômica dos EUA no pós-
guerra também contém algumas dessas percepções tipicamente acadêmicas sobre o referido
“complexo” e a retomada do poder das “classes proprietárias”, mas compõe, ainda assim, uma
recapitulação útil sobre as várias etapas daquela política, desde sua fase tipicamente
keynesiana do imediato pós-guerra até as orientações recentes de corte mais liberal-
hayekiano. José Carlos Souza Braga e Marco Antonio Macedo Cintra tratam em artigo
conjunto da atual “folia financeira”, no qual começam reconhecendo que essa
“financeirização” tem sólidas bases técnico-econômicas, mas terminam por ratificar a visão
dicotômica sobre a tensão entre produtivismo e financeirização, entre o enriquecimento e a
exclusão social, entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento.
Dois outros ensaios abordam o petróleo e as telecomunicações como sustentáculos do
poder global dos EUA, com a reafirmada tendência à centralização estrutural e à junção do
poder político e do capital.
Um último ensaio, de Gabriel Palma, da Universidade de Cambridge, traz uma
interessante análise sobre o papel do Japão e dos EUA nos processos de inserção comercial
internacional dos emergentes asiáticos e dos países da América Latina, respectivamente.
Teríamos aí casos de “gansos voadores” e de “patos mancos”, com desempenhos diversos nos
mercados de produtos dinâmicos, o que explica as trajetórias diferentes de desenvolvimento
econômico e social. A posição relativa da América Latina ficou para trás, em função de um
desempenho notoriamente inferior, o que também é explicado pela baixa inserção no
comércio internacional. Trata-se, certamente, do melhor estudo deste livro, pois que

564
empiricamente embasado e solidamente apoiado nas mais recentes elaborações conceituais da
ciência econômica.
No conjunto, o livro vale o investimento na sua compra, pois o retorno em capital
intelectual é superior às poucas digressões academicistas esparsas em alguns capítulos.

Brasília, 24 de janeiro de 2005.


Publicado, sob o título “O Império Americano”, na revista Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, ano 1, n. 7, fevereiro 2005, p. 77).

565
Hermanos, pero no mucho

Boris Fausto e Fernando J. Devoto:


Brasil e Argentina: Um ensaio de história comparada (1850-2002)
(São Paulo: Editora 34, 2004, 574 p: ISNB: 85-7326-308-3).

Brasil e Argentina padecem de certa insuficiência de desenvolvimento econômico e


social, sendo a maior parte dos problemas derivada de erros de gestão macroeconômica e de
escolhas infelizes de suas elites políticas ao longo dos anos de formação das nações
respectivas e dos momentos de ajuste aos desafios externos, no decorrer do século XX.
Durante muito tempo, prevaleceu no Brasil a noção de que a Argentina era bem mais
desenvolvida, graças a um maior componente “europeu” na sua formação étnica e aos maiores
cuidados com a educação do seu povo. Depois, prevaleceu na Argentina a noção de que o
Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e no fortalecimento da base econômica,
graças ao maior envolvimento de seu Estado na gestão macroeconômica, em lugar do
liberalismo praticado naquelas margens da bacia do Prata. Hoje, se pretende avançar no
desenvolvimento conjunto, mediante o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre
comércio demonstram os limites da integração econômica.
Essas visões, parcialmente corretas, decorrem de uma complexa realidade que é
examinada com lentes cuidadosamente focadas nas particularidades nacionais por um
historiador de cada um desses dois países, que colocam em perspectiva comparada, mas não
necessariamente em paralelo, duas trajetórias comparáveis, na forma e no conteúdo. Eles se
baseiam, neste empreendimento inédito na historiografia regional, em metodologia proposta
há muitos anos pelo historiador francês Marc Bloch, que recomendava o estudo de sociedades
próximas no espaço e no tempo, buscando não apenas as semelhanças, mas também as
diferenças. Este “ensaio de história comparada” começa, justamente, por um excelente
capítulo introdutório que discute as vantagens e modalidades do comparatismo em história.
As influências mútuas entre os dois maiores países da América do Sul foram, na
verdade, limitadas, uma vez que as duas economias sempre foram relativamente excêntricas –
isto é, voltadas para os parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos
mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo distanciamento
competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade, isto é, para a
corrida armamentista e uma possível disputa pela hegemonia regional. Esta se deu desde o
início da formação dos dois estados nacionais, primeiro em torno da Cisplatina – finalmente

566
consagrada como o estado independente do Uruguai, um “algodão entre cristais”, segundo a
definição do diplomata britânico que presidiu ao arranjo de 1828 –, depois a propósito do
Paraguai, que antes de surgir como enclave independente, integrava o Vice-Reinado do Rio
da Prata, do qual fazia parte a Bolívia, também. A diplomacia imperial sempre se preocupou
em assegurar que o mesmo poder não ocuparia as duas margens do Prata, daí os conflitos com
os caudilhos argentinos, que aliás se prolongaram, pelo menos como hipótese bélica, até
avançado o século XX.
Os autores mostram, num jogo de contrastes e comparações, como os dois países
enfrentaram, depois de superadas suas repúblicas “oligárquicas” – mais ou menos na mesma
época, isto é, os anos 1930 –, seus processos respectivos de modernização econômica e
política por meio de experimentos nacionalistas e populistas, politicamente identificados com
as figuras de Vargas e Perón. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inclusão
social, mas o Brasil foi bem menos errático no seu processo de desenvolvimento, conseguindo
consolidar a construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, que
permanece ainda hoje uma economia agroexportadora.
Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas classes médias como
provenientes da sindicalização excessiva do sistema político também conduziram ambos os
países em direção de episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar. Este
assumiu dimensões bem mais dramáticas na Argentina, com um custo elevado em vidas
humanas e outras consequências menos desejáveis no plano das relações bilaterais, como o
fenômeno que os autores chamam de “afinidades repressivas”.
A fase de redemocratização permitiu revigorar o processo de integração, que tinha
começado no final dos anos 1950, desta vez segundo um formato bilateral – tratado para a
formação de um mercado comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão
quadrilateral, ao incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir
outros países associados, como o Chile e a Bolívia (em 1996) e, recentemente, os demais
vizinhos andinos, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira
é perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum, prometido para 1995, um
sonho ainda distante.
Este longo ensaio histórico (512 páginas de texto) não traz notas de rodapé, mas um
capítulo final de recomendações bibliográficas, o que confirma que os dois autores,
dispensando referências diretas de arquivo, trabalharam sobretudo a partir da literatura
secundária, em especial sínteses históricas anteriores, o que não diminuiu em nada o seu
próprio esforço de síntese. Uma cronologia paralela de mais de 40 páginas completa a
567
informação histórica sobre a trajetória contrastante, poucas vezes coincidente, de dois países,
que a visão otimista do presidente Roque Sáenz Peña pretendia resumir nesta frase: “Tudo nos
une, nada nos separa”. Talvez, mas a história ainda precisa provar essa assertiva, com a
provável exceção dos campos de futebol.

Brasília, 8 de fevereiro de 2005.


Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento
(ano I, n. 8, março de 2005, p. 79);
republicada na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados, Ano II, n. 2, novembro 2005, p. 344-346).

568
Brasil e Argentina no contexto regional e mundial

Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis:


Sistema Internacional com Hegemonia das Democracias de Mercado: Desafios de Brasil e
Argentina
(Florianópolis: Editora Insular, 2007, 232 p.; ISBN: 978-85-7474-339-4)

O historiador Fernand Braudel – que confessou ter ficado “inteligente” no Brasil, para
onde veio como jovem professor universitário nos anos 1930 – costumava separar os eventos
rápidos da vida política dos movimentos mais lentos do processo econômico, e ambos das
transformações seculares das estruturas sociais e das configurações civilizacionais, que se
moviam a uma velocidade próxima à “história geológica”. Um outro historiador britânico
adepto da “história lenta”, Lawrence Stone, dizia, por sua vez, que a história avança muito
lentamente, como uma velha carroça desajustada, puxada por uma junta de bois, com os eixos
rangendo e as rodas desalinhadas.
O mesmo parece se aplicar, sob nossos olhos, a certas configurações “ideológicas”,
em especial aquelas derivadas da tradição revolucionária francesa, que criou todo o
vocabulário e a coreografia que ainda agitam a política contemporânea. Alguns dos conceitos
consagrados por essa velha tradição converteram-se, efetivamente, em “tradicionais”: eles
estão desajustados aos requerimentos da vida moderna, mas continuam por aí, num deslocar
errático e irregular, como os eixos rangentes de um velho carro de bois que ainda não foi
aposentado pela modernidade.
Tomemos, por exemplo, os conceitos de esquerda e de direita, ou de progressista e
conservador, geralmente identificados a valores, normas e princípios que seriam, cada um a
seu modo, positivos ou negativos no plano das mudanças sociais. A esquerda estaria
identificada com a justiça e a igualdade, lutando por uma distribuição mais equânime da
riqueza, normalmente pela via do distributivismo estatal e da solidariedade contratual. À
direita restaria o papel de preservar as velhas estruturas, ressaltando o papel do esforço e do
mérito individuais e das estruturas de mercado na promoção da prosperidade geral, aceitando,
portanto, a desigualdade como um fato natural da vida. No plano social e político, a esquerda
estaria sempre do lado dos humildes e oprimidos, lutando pelos direitos dos trabalhadores
contra os patrões “exploradores”. A direita, obviamente, se alinharia com aqueles capitalistas
de cartola e charuto, na missão de estender a dominação do capital aos mais diferentes cantos
do planeta, concentrando ainda mais riqueza e poder, em detrimento dos povos da periferia e

569
dos pobres dos países ricos. Pode haver alguma simplificação nessas imagens e argumentos,
mas assim parece ser as opiniões dominantes a esse respeito.
Qualquer que seja a validade respectiva desses estereótipos para o mundo
contemporâneo, não se pode recusar o fato de que a direita ainda apoia os seus discursos no
liberalismo clássico, de antiga extração britânica, e que parte da esquerda, por sua vez, ainda
pretende aplicar Marx ao contexto atual, repisando velhos argumentos classistas,
anticapitalistas e antimercado, ao mesmo tempo em que clama por reivindicações igualitárias,
sem muito embasamento na economia real. Na América Latina, em especial, o pensamento
dito “progressista” ainda é estatizante, centrado na distribuição dos “lucros do capital” e
voltado para um combate de retaguarda contra a marcha da globalização contemporânea.
O retrato pode parecer caricatural, mas é certo que a esquerda latino-americana, aliada
no chamado movimento antiglobalizador a velhos sindicalistas, a jovens idealistas e a
universitários em tempo integral, pretende extrair das antigas lições marxianas sobre a
“dominação do capital” a necessidade de superar esse estado de coisas, rejeitando tudo isso
que aí está, em nome de “um outro mundo possível”. Ela acaba, pateticamente, se rendendo a
contrafações do modelo original, como se pode constatar em experiências regionais que
demonstram uma filiação “genética” mais próxima do fascismo mussoliniano do que de um
pretendido socialismo gramsciano. Em termos braudelianos, a esquerda congela seus
conceitos e ações políticas no mundo quase estático das lentas mudanças “geológicas”, em
lugar de adaptar-se a uma conjuntura histórica de transformações – para empregar o conceito
de outro historiador francês, Ernest Labrousse –, que se descortina aos olhos de quem quer
enfrentar a realidade sem as viseiras ideológicas do passado e aspira a entender o mundo
como ele é, realmente, não como ela gostaria que ele fosse.
Curiosamente, a América Latina era apontada, até meados do século XX pelo menos,
como o continente que lograria igualar-se aos países desenvolvidos, se perseverasse nos
esforços de industrialização substitutiva, no planejamento estatal, no protecionismo
comercial, nos subsídios à “indústria infante”, na integração introvertida e em políticas
dirigistas que atribuíam ao Estado o papel principal na determinação quanto ao uso de fatores,
na mobilização de capitais – por via inflacionária, uma forma de poupança forçada – e na
alocação autoritária dos recursos assim capturados do conjunto da sociedade. Incidiu nesse
tipo de recomendação o economista sueco Gunnar Myrdal – prêmio Nobel em 1974, junto
com o liberal austríaco Alfred Hayek, por ironia da história – que, no seu tão aclamado quanto
errôneo Asian Drama, vaticinava que a Ásia era sinônimo de miséria insuperável e que se
havia países no Terceiro Mundo que tinham alguma chance de alçar-se aos patamares de bem-
570
estar e riqueza dos desenvolvidos, estes eram os latino-americanos. Myrdal preconiza para
todos o modelo indiano, feito de planejamento centralizado, empresas estatais em todos os
“setores estratégicos” e descolamento dos mercados internacionais, que supostamente
condenava esses países à exportação de commodities sujeitas às flutuações das bolsas de
mercadorias. À época em que ele pesquisou e escreveu – início dos anos 1960 – a maior parte
dos países da América Latina estava mais integrada à economia mundial do que os da Ásia,
ostentava, na média, o dobro da renda per capita asiática e possuía instituições públicas –
Estados consolidados, depois de 130 anos de independência, estruturas de mercado
capitalistas – que seriam, no cômputo global, mais “weberianamente” pró-crescimento e pró-
desenvolvimento do que as arcaicas tradições confucianas da região asiática. O itinerário
seguido desde então pelas duas regiões não precisa ser relembrado: a Ásia decolou
espetacularmente na economia mundial e nos indicadores de crescimento – tanto mais
rapidamente quanto ela se afastou das políticas socialistas e estatizantes recomendadas por
Myrdal – enquanto a América Latina manteve-se, com poucas exceções, no
subdesenvolvimento, na desigualdade e na pobreza. Para isso também contribuíram
experimentos populistas, irresponsabilidade emissionista, desrespeito aos direitos de
propriedade, desconfiança da abertura ao exterior – comércio e investimentos – e uma
insistência no centralismo estatizante que marca ainda hoje boa parte da esquerda neste
continente.
Os autores deste livro conhecem um pouco dessa história, por experiência própria, se
ouso dizer. Outrora pertencentes, como vários jovens dessa geração, ao universo do marxismo
latino-americano, naturalizados brasileiros justamente em virtude da história trágica de
equívocos conceituais e de erros práticos da esquerda argentina do último terço do século XX,
eles estão muito bem preparados para enfrentar a tarefa de analisar a trajetória do Brasil e da
Argentina no contexto das modernas democracias de mercado. A migração forçada de um
país a outro, a descoberta de realidades políticas relativamente similares, ainda que sob
roupagens distintas, e o comparatismo inevitável que esse tipo de situação cria, permitiu-lhes
constatar, provavelmente, como os mesmos diagnósticos equivocados feitos por lideranças
políticas, lá e aqui, redundaram em perda de oportunidades de inserção no mundo globalizado
da atualidade, atrasando o processo de desenvolvimento e postergando a conquista da
almejada prosperidade social.
De fato, a despeito de uma história singular, que corre em trilhas próprias, o Brasil e a
Argentina reproduzem, em boa medida, equívocos similares de políticas públicas – tanto
macroeconômicas quanto setoriais – cometidos por diferentes regimes políticos ao longo do
571
século XX. Se o recurso a Suetônio cabe na sociologia comparada do desenvolvimento, pode-
se dizer que os dois grandes da América do Sul exibem “vidas paralelas”. Tanto o Brasil
quanto a Argentina padecem de insuficiências sociais, mas a maior parte dos problemas de
cada um deriva de erros de gestão macroeconômica e de escolhas infelizes das elites políticas
ao longo da formação das nações e das dificuldades de ajuste aos desafios externos.
Durante muito tempo, grosso modo na primeira metade desse século, prevaleceu no
Brasil a ideia de que a Argentina era bem mais desenvolvida, graças a um maior componente
“europeu” na sua formação étnica e aos maiores cuidados com a educação do seu povo. Em
contrapartida, ao aprofundar-se sua trajetória em direção à decadência econômica, prevaleceu
na Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e no
fortalecimento da base econômica graças ao maior envolvimento de seu Estado na gestão
macroeconômica, em lugar do liberalismo que teria sido praticado nas margens do Prata. Em
ambos os países, líderes populistas e ditadores militares se revezaram nos comandos do
Estado pretendendo construir a grandeza nacional com base no nacionalismo industrializante
e no emissionismo inflacionário. Ambas as economias foram relativamente excêntricas – isto
é, voltadas para os parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos
mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo distanciamento
competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade, isto é, para a
corrida armamentista e uma possível disputa pela hegemonia regional.
Os dois países passaram, depois de superadas suas repúblicas “oligárquicas” – mais ou
menos na mesma época, os anos 1930 –, por processos de modernização econômica e política,
sob a forma de experimentos nacionalistas e populistas, identificados com as figuras de
Vargas e Perón. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o
Brasil foi menos errático no processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar a
construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, que permanece ainda
hoje uma economia agroexportadora. Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas
classes médias como provenientes da sindicalização excessiva do sistema político conduziram
ambos os países em direção de episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar.
O período militar – responsável pela vinda dos autores ao Brasil – assumiu dimensões
mais dramáticas na Argentina, com um custo elevado em vidas humanas e outras
consequências menos desejáveis no plano das relações bilaterais, com o fenômeno que dois
autores consagrados – Boris Fausto e Fernando Devoto, no livro Brasil e Argentina: um
ensaio de história comparada (1850-2002) – chamaram de “afinidades repressivas”. As
esquerdas padeceram muito no tempo das baionetas, mas talvez conservem, desse período, a
572
mesma inclinação fundamental ao culto do Estado, para a autarquia econômica e o
protecionismo instintivo que exibiam os militares. Hoje, se pretende avançar no
desenvolvimento conjunto, mediante o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre
comércio colocam limites à integração econômica.
Com efeito, a fase de redemocratização permitiu revigorar o processo de integração,
que tinha começado no final dos anos 1950, desta vez segundo um formato bilateral – tratado
para a formação de um mercado comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão
quadrilateral, ao incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir
outros países, como o Chile e a Bolívia (associados em 1996) e, mais recentemente, a
Venezuela, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira é
perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum, prometido para 1995, é um
sonho ainda distante.
O itinerário dos dois países, mesmo contrastante nos planos cultural, social e político,
não deixa de apresentar coincidências ou similitudes nos planos do desenvolvimento
econômico e da inserção internacional, o que talvez permita retomar ao presidente argentino
Roque Sáenz Peña uma frase, do início do século XX, que resume a visão otimista da
cooperação bilateral, sempre invocada pelas autoridades engajadas no atual processo de
integração: “Tudo nos une, nada nos separa”. Talvez – com a provável exceção dos campos
de futebol –, mas a história raramente se contenta com projetos meramente retóricos de
desenvolvimento ou de integração internacional. Nesse particular, o Brasil e a Argentina
apresentam trajetórias erráticas, com impulsos positivos em determinadas épocas e atitudes
defensivas em outras. O elemento mais notável, da presente fase, é provavelmente constituído
pela incapacidade respectiva em empreender reformas que os coloquem em condições de se
inserir de modo mais afirmativo na economia globalizada que caracteriza o Atlântico Norte e
a região da Ásia Pacífico.
Os trabalhos compilados neste livro discutem as novas circunstâncias da economia
global e os padrões atuais de organização política, com os problemas daí derivados para
Estados, como o Brasil e a Argentina, que ainda estão construindo sua inclusão no novo
sistema, que os autores chamam de “hegemonia das democracias de mercado”. A leitura
destas páginas, impregnadas de conhecimento histórico e de racionalidade sociológica,
permite constatar como são anacrônicas as demandas e reivindicações de alguns desses
militantes de causas equivocadas, armados de slogans retirados de um já mundo desaparecido
nas dobras da história – como os conceitos de “dependência” ou de “anti-imperialismo” –,
que insistem em defender causas que não são mais de vanguarda ou sequer progressistas. A
573
oposição desses grupos e movimentos políticos a reformas institucionais que permitiriam
inserir mais rapidamente os países da América Latina nas correntes dinâmicas da globalização
– reformas política, previdenciária, trabalhista, tributária, sindical ou educacional – não é
apenas conservadora, mas pode ser tachada de propriamente reacionária, em vista dos
imensos problemas acumulados pelos países da região nesses aspectos que muito têm a ver
com as perspectivas de emprego, renda e oportunidades de ascensão social de imensas massas
ainda hoje excluídas de qualquer possibilidade de inserção produtiva no tecido social.
Os autores não deixam de confessar sua surpresa, logo na introdução, com o fato de
que muitos intelectuais desenvolveram um agudo senso de anti-capitalismo – sentimento que,
no meu ponto de vista, consegue inclusive ser antimercado – , o que os fez cúmplices
objetivos das piores barbaridades cometidas no século XX contra os direitos humanos e a
democracia. Na América Latina, em particular, esse anti-capitalismo visceral dos intelectuais
obstaculizou a modernização econômica e social dos países, a começar pelo aggiornamento
do próprio Estado, no sentido de libertá-lo, ou pelo menos distanciá-lo, da herança centralista
e patrimonialista ibérica, em prol de uma visão do mundo que estivesse mais objetivamente
em consonância com os requisitos de uma moderna “democracia de mercado”, aberta aos
influxos da economia global.
Aparentemente incapazes de renovar conceitos e aceitar as novas realidades da
economia mundial, os intelectuais da América Latina continuarão a mover-se, no futuro
previsível, ao ritmo do “tempo geológico” de Fernand Braudel, arrastando-se, em grande
medida, pelos caminhos da modernidade numa trajetória tão tortuosa e torturada quanto o
permitido pela “velha carroça da história”, de que falava Lawrence Stone. Isto a despeito de
se poder constatar, hoje em dia, que outros povos e países estão fazendo melhor e mais rápido
no caminho da modernidade do que a quase totalidade da América Latina. A região poderia
ser uma espécie de “Prometeu acorrentado”, se apenas grilhões materiais a prendessem a um
passado mercantilista e patrimonialista, se meros impedimentos técnicos a impedissem de
avançar mais aceleradamente no caminho do progresso tecnológico e da capacitação
científica. Mas, os grilhões que a prendem ao atraso material e à irrelevância intelectual são
de outra natureza: são propriamente mentais, invisíveis, se quisermos, ainda que alertas sejam
regularmente lançados contra essa busca ativa pelo declínio econômico e pelo retrocesso
político. Este livro, aliás, é um exemplo de alarme intelectual.
A insistência na velhas soluções estatizantes, na repetição dos mesmos erros do
passado, a tendência a encontrar bodes expiatórios no estrangeiro e a alimentar teorias
conspiratórias sobre as razões do nosso fracasso são tanto mais surpreendentes quanto estão
574
disponíveis boas análises – por analistas individuais ou por organismos multilaterais – sobre
as razões da trajetória errática e da miopia das elites. O mais surpreendente e frustrante é que
continue a prevalecer, tanto na academia quanto na opinião pública, explicações simplistas, e
geralmente equivocadas, sobre as causas de nossos problemas – que são de origem
majoritariamente interna – e sobre as soluções que lhes seriam pertinentes. Não constitui
surpresa, assim, se a cada classificação internacional de desempenho relativo – no
crescimento, na educação, na competitividade, na tecnologia e em vários outros setores ainda
–, a América Latina continua a ser ultrapassada por todas as demais regiões, com a possível
exceção da África, ainda assim melhor colocada esta, nas taxas atuais de crescimento
econômico. A julgar por certas “inovações” populistas recentes na região, a escolha parece ser
por mais Estado, mais nacionalizações, menor atratividade do capital estrangeiro e, de forma
não surpreendente, uma opção preferencial pelas soluções distributivistas e rentistas.
Acadêmicos experientes no debate intelectual em torno da “contrarreforma”
modernista latino-americana, tanto pela sua vivência pregressa na Argentina, como pelo longo
convívio nas universidades do Brasil, observadores atentos das realidades regionais e, à
maneira de Raymond Aron, “espectadores engajados” na construção da ordem mundial pós-
guerra fria e no grande espetáculo da globalização contemporânea, os dois autores, Eduardo
Viola e Héctor Ricardo Leis, estão amplamente capacitados para oferecer uma análise de
qualidade sobre os desafios do Brasil, da Argentina e de toda a região nessa difícil, mas
indispensável, inserção no sistema internacional das democracias de mercado. O retrato que
eles fazem da região, dos dois grandes da América do Sul em particular, não é muito otimista,
mas é sem dúvida alguma necessário e bem-vindo, em face dos desafios remanescentes.
Intelectuais verdadeiros devem ostentar, antes de mais nada, espírito crítico, sem se
deixar aprisionar pelas lutas políticas em curso na sociedade na qual vivem ou se enredar nas
ideologias em competição na ágora universitária. A honestidade intelectual é o seu primeiro e
único dever. Desse ponto de vista, nossos dois autores não se enquadram na antiga crítica
sobre a “traição dos clérigos” de que falava Julien Benda. Ao contrário: eles estão em sintonia
com as necessidades do tempo presente e fazem do seu ofício um instrumento crítico de
esclarecimento da maioria, em prol do progresso social e em benefício da razão, como
apreciaria Kant.

Brasília, 6 de maio de 2007


Prefácio ao livro publicado.

575
Mister Gordon e o Brazil

Lincoln Gordon:
Brazil’s Second Chance: En Route toward the First World
(Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001, xviii+243 p.; ISBN 0-8157-0032-6)

Edição brasileira:
A Segunda Chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo
(São Paulo: Editora Senac, 2002; Apresentação de Paulo Roberto de Almeida)

Em Mister Slang e o Brasil, obra publicada em 1927, Monteiro Lobato utilizou-se de


um recurso conhecido dos escritores desde as Lettres persanes de Montesquieu (publicadas
em Amsterdã em 1721): criar personagens independentes, necessariamente estrangeiras, para
poder discutir com uma certa isenção (e certamente ao abrigo da censura do rei)
idiossincrasias e problemas do seu próprio país. Lobato, de seu lado, inventou um filósofo de
origem inglesa, Mr. John Irving Slang, morador do bairro carioca da Tijuca, para comentar
com um “homem comum” – não exatamente o fazendeiro, o empresário e o homem de livros
que era Lobato, mas um brasileiro médio – possíveis respostas às mazelas que afligiam o
Brasil daqueles tempos (e provavelmente até hoje). A partir da visão do mundo do
circunspecto, mas não menos iracundo, inglês – como correspondia, aliás, a uma época de
hegemonia britânica no Brasil – era possível ao jovem escritor de Taubaté criticar alguns dos
absurdos de nossa organização econômica, política, social e cultural e propor novas soluções
aos velhos problemas que o angustiavam, sem comprometer-se com o eventual sucesso ou
fracasso de suas próprias fórmulas.
Mr. Slang, talvez por filósofo, mais provavelmente por força da idade e um pouco por
ser inglês, tinha uma fina percepção das deficiências do Brasil e suas críticas deviam ser
vistas, na ótica de Lobato, como uma tentativa de superar os grandes problemas da
nacionalidade, não como uma confirmação derrotista de nossos piores defeitos. O curioso era
que os exemplos citados pelo inglês eram retirados da experiência bem sucedida do progresso
industrial dos Estados Unidos, começando pelo protótipo do gênio capitalista que foi Henry
Ford – como correspondia, aliás, a uma época de transição de hegemonias. Respondendo ao
brasileiro que não compreendia como o Brasil podia ser pobre a despeito de um imenso
território dotado de recursos e que sugeria que “talvez a gente não preste”, Mr. Slang
respondia peremptoriamente: “Depois que Henry Ford demonstrou como se aproveitam até
cegos e aleijados, ninguém tem o direito de alegar o que não presta. Tudo presta. (…) A
questão está em proporcionar-se-lhes condições para prestar. (…) O brasileiro precisa de
576
condições para prestar – e a condição número um é a fixidez da medida do valor, a moeda”. E
qual o segredo de Henry Ford, segundo Mr. Slang? “Não há categorias de trabalho nas suas
indústrias. Não há trabalho mais nobre ou menos nobre. Há trabalho apenas. Varrer ou
desenhar plantas: tudo é trabalho. (…) O trabalho, só ele, resolve todos os problemas da
1
vida”, concluía o inglês.
Mr. Gordon, um americano conhecido direta ou indiretamente de todos os brasileiros
que estudaram a trajetória do Brasil para a ditadura militar, não é propriamente candidato a
novo Mr. Slang, não apenas porque não se trata de personagem imaginário, mas sobretudo
porque ele não se refugia em algum sítio inacessível, nem ostenta a arrogância típica dos
representantes imperiais da velha Albion. Ao contrário, desde que ele deixou o cargo de
embaixador dos Estados Unidos no Brasil (entre 1961 e 1966), Mr. Gordon continuou a
interessar-se e a estudar seriamente os problemas do Brasil, como fazia aliás o inglês da
Tijuca. Tendo se tornado morador em Washington desde outubro de 1999 e frequentador por
obrigação profissional de todos os encontros sobre o Brasil ali realizados, logo descobri quem
era aquele simpático e atento espectador das coisas brasileiras na capital do novo Império: ele
mesmo, o “embaixador do golpe”, Mr. Gordon.
Um contato inicial permitiu-me conhecer um Mr. Slang em carne e osso, assim como
a chance de apreciar este livro ainda antes que ele aparecesse na edição original americana,
tendo seu autor me dado a possibilidade de comentá-lo em primeiríssima mão. Constatei,
aliviado, que a obra não possuía nenhum daqueles julgamentos furibundos, por vezes
impressionistas, com que Mr. Slang rebatia as sugestões algo ingênuas de seu interlocutor
brasileiro. Não há dúvida, contudo, que, sem ostentar os traços idealistas do filósofo inglês,
Mr. Gordon pode ser considerado como um intérprete realista do itinerário econômico e
político brasileiro das últimas décadas, bem como, a julgar por este livro que agora sai
publicado em versão ampliada, como um crítico sincero das velhas questões econômicas e
sociais que, já nos anos vinte, retinham a atenção do inglês imaginário e de Lobato.
A Segunda Chance do Brasil, não com esse título, estava em preparação há pelo
menos uma década e meia antes de nosso primeiro encontro em Washington no final de 1999.
Como confessou-me o próprio Mr. Gordon, as chances do livro ser concluído tinham

1
Cf. José Bento Monteiro Lobato, Mister Slang e o Brasil: colloquios com o inglez da Tijuca (São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927), pp. 27-28 e 69-72, citado por Carmen Lucia de Azevedo,
Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia (3ª ed.; São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2001), p. 205-210. A personagem de Mr. Slang seria retomada em seu livro
de 1932, América, no qual relata um pouco de sua experiência como adido comercial junto ao
Consulado brasileiro em Nova York, no final dos anos 20; op. cit., p. 249-252.
577
simplesmente desaparecido do cenário durante a “década perdida” de desarticulação
macroeconômica dos anos oitenta e começo dos noventa. Ele ficou no forno por muitos anos,
submetido a diversas revisões estatísticas e novas análises de atualização substantiva, mas o
fato é que a trajetória do Brasil não ajudava na tarefa de “definição de uma época”: o País
simplesmente não conseguia encontrar um caminho de estabilização macroeconômica que
justificasse a publicação da obra como uma espécie de balanço de uma trajetória de
desenvolvimento, como era intenção do autor. Assim como Lobato recomendava o “biotônico
Fontoura” para curar alguns dos males endêmicos do Brasil, esta obra foi salva pelo “rum
creosotado” do Plano Real, que devolveu ao País a esperança de sonhar com a retomada do
crescimento e de aspirar ao eventual salto para o Primeiro Mundo, na interpretação do antigo
embaixador americano nos governos João Goulart e Castelo Branco.
Uma advertência inicial quanto ao conteúdo da obra. Não se queira encontrar aqui um
relato circunstanciado dos eventos que levaram ao movimento militar de 1964 ou revelações
“revisionistas” sobre o envolvimento americano no golpe, a despeito de o livro ostentar, sim,
material inédito ou pouco conhecido sobre os movimentados meses que antecederam o
episódio de 31 de março daquele ano. Dentre os documentos novos, referidos apenas
parcialmente em trabalhos anteriores, foram incluídos nesta edição brasileira a versão integral
– finalmente levantada depois de quatro décadas de caráter “classificado” – de alguns
telegramas expedidos pelo próprio Lincoln Gordon, então à frente da Embaixada no Rio de
Janeiro, respondendo às demandas de Washington quanto aos processos em curso, ou ainda
2
em relação atores envolvidos, naquela conjuntura dramática da história nacional.
Melhor ainda, esta edição comporta, por recomendação minha, um capítulo adicional
inteiro sobre esses tormentosos momentos finais da República de 1946, todo ele dedicado à
visão que os Estados Unidos mantiveram sobre João Goulart nesse período, desde as
expectativas iniciais de um relacionamento correto até a quase certeza de que o líder
trabalhista estava articulando um golpe sindicalista à la Perón (e, o que era pior, com o apoio
e a provável hegemonia dos comunistas). A recapitulação desses episódios, nos quais
transparece a preocupação em garantir legitimidade política aos conspiradores brasileiros
contra Goulart, permite em todo caso a Mr. Gordon reafirmar sua convicção de que o golpe

2
Já por sugestão minha, a edição original americana tinha acolhido um addendum ao capítulo 2,
voltado para a questão do papel dos Estados Unidos no golpe de 1964, com a inclusão de telegramas
pertinentes.
578
foi “100% brasileiro”, o que certamente será visto com desconfiança pelos historiadores de
esquerda.3
Antes de arregalar o olho cético de indignação anti-imperialista, o leitor deste livro
deve certificar-se, contudo, que esta obra não se ocupa primordialmente, dessa conjuntura de
conspirações militares – melhor abordadas nas obras já bem conhecidas de John W. F. Dulles
ou de Thomas Skidmore – nem, essencialmente, das peripécias políticas das últimas décadas.
Ela trata, basicamente, de um processo estrutural, o desenvolvimento brasileiro na era
republicana, com ênfase nos aspectos econômicos, tecnológicos e políticos (inclusive no que
se refere à política externa) e nas dimensões sociais que permearam a experiência histórica do
Brasil desde a época da “primeira chance” – grosso modo a era Kubitschek – até a atual, e
ainda aberta, janela da “segunda chance” das administrações FHC.
O livro é, com efeito, uma discussão exaustiva – e razoavelmente isenta para um
representante da principal potência imperial de nossa época – das razões que impediram o
Brasil de atingir o status de nação desenvolvida naquela primeira fase e dos requerimentos
colocados à sua sociedade e elites políticas para que ele possa fazê-lo na atual. O julgamento
do novo Mr. Slang não faz concessões às aparências: enganam-se aqueles que julgam que seu
livro poderia mostrar complacência com os militares que derrubaram o populista Goulart e
que pretendiam, justamente, alçar o Brasil à condição de “grande potência”, mediante doses
maciças de investimento pesado e de boa receptividade ao capital estrangeiro. Faltou ao Brasil
militar um dos ingredientes que Mr. Gordon julga indispensáveis ao status de nação do
Primeiro Mundo: a democracia política.
O fracasso da era militar foi de natureza política e o da Nova República, de Sarney a
Collor, foi de caráter econômico, pois que o populismo social da Constituição de 1988 e o
quadro de inflação crônica vivido até 1994 impediram o Brasil de realizar sua segunda chance
de desenvolvimento. Os resultados das eleições de 2002 podem determinar, segundo Mr.
Gordon, se o Brasil conseguirá alcançar o que ele chama de “uma autêntica inserção no
Primeiro Mundo” (full first world status), ou se o País continuará patinando naquela trajetória
errática que Darcy Ribeiro interpretava como sendo um desenvolvimento aos “trancos e
barrancos”, com tremendas doses de desperdício humano e muita frustração social e política.
O livro de Mr. Gordon, diferentemente das interpretações algo impressionistas de Darcy
Ribeiro, apresenta uma rigorosa análise econômica e um sensato diagnóstico político sobre os
3
O ceticismo é plenamente justificável, uma vez que todos sabemos que a defesa feita pelos EUA da
democracia e dos direitos humanos no Terceiro Mundo, mesmo quando não simplesmente retórica,
sempre foi condicionada, aliás desde a Guerra Fria até os dias de hoje, aos critérios primordiais da
segurança nacional americana e dos interesses exclusivos dos EUA.
579
quatro grandes desafios estruturais enfrentados pelo Brasil na presente conjuntura: consolidar
a estabilidade macroeconômica, reduzir o grau anormalmente elevado de desigualdade social
e de pobreza, continuar o ativo processo de inserção internacional e de engajamento na
globalização e persistir na reforma das instituições políticas, pouco funcionais para os
requisitos do desenvolvimento integrado de um país tão complexo e diversificado como o
Brasil.
Não há porque pensar que Mr. Gordon está interessado em aplicar “receitas
americanas” ao caso brasileiro. Longe disso, ainda que um certo comparatismo com os
Estados Unidos, mesmo deplacé, seja de rigueur. Assim, segundo ele, nós estaríamos, por
exemplo, na situação dos EUA dos anos 20, o que não leva em conta os diferenciais
estruturais de produtividade que derivam, segundo este apresentador, do fato de ter o
capitalismo americano conseguido modelar, ainda na primeira Revolução industrial, um
“modo inventivo de produção”, caracterizado pela capacitação endógena em novas
tecnologias, ao passo que nós sempre esperamos por “alvarás d’El Rey” para iniciar qualquer
novo empreendimento econômico, somos consciente ou inconscientemente defensivos na
questão da inserção internacional, não conseguimos criar uma cultura exportadora e ainda
insistimos em preservar uma mentalidade tecnológica que rejeita, de certa forma, um sistema
patentário intensivo. As comparações efetuadas neste livro – sobretudo as do capítulo 4, sobre
a transformação incompleta das estruturas econômicas – se efetuam mais bem com países
emergentes ou de industrialização tardia de potencial igual ou similar, como a Índia, o
México, a Coréia do Sul, ou ainda a Espanha e a Itália, economias cuja atividade
manufatureira ostenta intensidade em capital relativamente equivalente à da brasileira.
Mr. Gordon tem um grande respeito pela racionalidade intrínseca dos dados numéricos
– ele já era professor-assistente de relações econômicas internacionais em Harvard ainda antes
da Segunda Guerra Mundial, quando metade da atual população brasileira ainda não tinha
nascido – e tampouco acredita que fórmulas políticas bem sucedidas num determinado
contexto social (como o dos EUA) sejam transplantáveis a um outro cenário institucional. Ele
conhece bem o Brasil, os brasileiros e os diferentes autores que ao longo dos anos foram
acumulando “explicações” sobre as razões de nosso fracasso ou da não repetição do bem
sucedido experimento americano de desenvolvimento econômico e tecnológico e de relativa
4
inclusão social. Leitor de Viana Moog, ele conhece a diversidade de raízes culturais e pode,

4
Para os leitores mais jovens, esclareça-se que Clodomiro Viana Moog foi o autor de um famoso
ensaio comparativo de inspiração weberiana, Bandeirantes e Pioneiros: paralelo entre duas culturas
(Porto Alegre: Livraria O Globo, 1954), no qual ele traçava um paralelo entre o desenvolvimento dos
580
por isso mesmo, reconhecer no Brasil e nos brasileiros a capacidade de realizar nossa própria
modalidade de ascensão ao “primeiro mundo”. Seu livro é verdadeiramente equilibrado e
completo e, se lido com a isenção que a distância de 1964 nos recomenda, pode ser uma
excelente fonte de reflexões para todos nós, de gerações pré- e pós-golpe militar, que
pensamos em colocar o Brasil, não no “primeiro”, mas num mundo mais desenvolvido e
humano como gostariam todos os brasileiros.
Apenas um reparo, do ponto de vista de quem se ocupa acadêmica e
profissionalmente, como este apresentador, das relações internacionais do Brasil desde
algumas décadas. Para quem frequentou os meios universitários e diplomáticos e conhece
bem nossos agentes do serviço exterior e a própria agenda internacional, Mr. Gordon mostra-
se bastante cético quanto às chances de o Brasil aceder ao status de membro permanente do
Conselho de Segurança da ONU (vide cap. 1: “Não é provável, contudo, que o Brasil
preencha sua ambição de ocupar um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações
Unidas.”). Se admitirmos que a reforma da Carta da ONU possa ser realizada no futuro
previsível e que um novo membro possa ser designado a partir da América Latina, é o caso de
perguntarmos a Mr. Gordon: se não o Brasil, quem na América Latina disporia de chances
comparáveis?
O ceticismo é contraditório com a postura de quem acredita que o Brasil pode chegar,
efetivamente, ao status de potência mundial. Admitida uma hipótese, fica difícil recusar a
outra, a da nossa admissão nesse círculo restrito do poder mundial, de fato um “diretório
oligárquico” que já chegamos a censurar – por acaso desde as conferências da paz realizadas
na Haia e antes mesmo do surgimento da ONU, no caso da Liga das Nações – como
antidemocrático e pouco condizente com a igualdade soberana das nações. A menos,
obviamente, que a nova Roma já tenha decretado, secretamente, que não haverá reforma da
ONU, o que aliás, a despeito de uma retórica aparentemente favorável ao ingresso da
Alemanha e do Japão, parece coincidir com os interesses de todos, ou quase todos, os demais
membros permanentes do Conselho. Trata-se, mais uma vez, de uma realidade que um antigo
embaixador brasileiro em Washington, Araújo Castro – e que Mr. Gordon deve ter conhecido

Estados Unidos e do Brasil em seus processos respectivos de formação nacional. A obra foi traduzida
e publicada nos EUA, tendo gozado de grande prestígio entre os meios acadêmicos e oficiais
justamente quando Mr. Gordon se desempenhava nas lides brasileiras do Departamento de Estado:
Bandeirantes and Pioneers (tradução de L. L. Barret; New York: G. Braziller, 1964). Mr. Gordon,
entretanto, leu Vianna Moog já em 1960, ainda no original, portanto, ao preparar-se para assumir seu
posto diplomático no Brasil, juntamente com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek e a obra
seminal de Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil (1958), que só seria traduzida em inglês
em 1963.
581
–, caracterizou como sendo o “congelamento do poder mundial”, algo inaceitável para velhas
e novas gerações de diplomatas brasileiros. Mas, isso Mr. Gordon deve saber muito bem. A
questão não parece residir tanto na “incapacidade” de o Brasil aceder ao CSNU, mas na
aparente impossibilidade da reforma da Carta. Pessoalmente acredito que, se houver reforma e
ampliação do Conselho, o Brasil é um candidato “natural”, ou mesmo incontornável.
Finalmente, uma nota pessoal vem a calhar nesta introdução a uma obra que, a
despeito de sua concentração em temas estruturais de longa duração – como os processos
econômicos, sociais e políticos que moldaram o Brasil contemporâneo –, pode vir a contribuir
para o início de uma reavaliação isenta, e não mais passional ou partidarizada, do regime
militar e seu papel no sistema econômico e político brasileiro contemporâneo. Quando o
Embaixador Lincoln Gordon, e a própria Editora Senac, formularam, quase ao mesmo tempo,
o convite para que eu escrevesse a introdução-apresentação à edição brasileira desta obra,
pensei comigo mesmo: mas, justo eu, que em 1964 me encontrava do outro lado do muro?
Com efeito, minha educação política se fez à sombra das chamadas “lutas democráticas” da
república populista e na oposição ao golpe militar; pertenço a uma geração que se acostumou
a gritar, desde as primeiras manifestações contra o novo regime, a conhecida frase de Otto
Lara Resende: “Chega de intermediários, Lincoln Gordon para presidente!”. Pouco tempo
depois, o tamanho dos cassetetes começou a aumentar, a repressão se fez mais dura e muitos
de nós, com participação direta ou indireta na resistência armada (e, cabe aqui reconhecer, de
certa forma responsáveis pelo endurecimento subsequente do regime), começamos a buscar o
caminho do exílio.
Desde então o Brasil tem vivido politicamente dividido, se não mais do ponto de vista
do funcionamento do seu sistema político – hoje amadurecido e que, finalmente, comporta
poucos representantes que ainda “vivem” nos idos de 1964, como um Brizola, por exemplo –
pelo menos do ponto de vista da produção historiográfica. Esta ainda exibe uma “muralha”
ideológica e um maniqueísmo político que continuam visíveis, sobretudo, nos livros
didáticos. Uma obra como esta, trazendo o ponto de vista de um novo e sensato Mister Slang
sobre um país tão diferente e no entanto ainda tão similar, em vários aspectos, àquele
analisado no início do século XX por homens como Lobato, pode contribuir para diminuir o
“fosso mental” entre opositores e partidários de um regime que já pertence à história do
Brasil, tanto quanto o período varguista ou o processo de seu alegado “desmantelamento” a
partir dos anos 90.
O Brasil atual, sobre o qual se debruçou um estudioso constante e aplicado como Mr.
Gordon, tornou-se muito diferente do Brazil que figurava em seus telegramas e ofícios aos
582
Departamento de Estado do início dos anos 60. Aparentemente nos libertamos do complexo
de inferioridade que fazia com que nossas elites olhassem para o estrangeiro, mais
precisamente para a sede do único império que então contava (e ainda conta) em termos
econômicos e financeiros, para a solução da maior parte dos nossos problemas. Muita coisa
mudou, certamente, e para melhor, nestes últimos quarenta anos, muito embora a mesma
fragilidade financeira externa e a mesma miséria educacional do ponto de vista das massas
populares continuem sendo fatores que nos assombram enquanto economia ou como
sociedade carente de verdadeira integração. Pelo menos não nos voltamos mais, como nos
tempos em que Mr. Gordon era embaixador, para o estrangeiro em busca de novas soluções a
velhos problemas que já deixavam indignado o jovem Lobato: sabemos que as respostas se
encontram aqui mesmo, ao alcance de um entendimento político genuinamente nacional. Por
vezes, carecemos de suficiente distância – neste caso ideológica, não temporal – para ver com
clareza quais são os verdadeiros problemas de que padece a sociedade brasileira e como
poderíamos enfrentá-los na missão de diminuir os níveis anormalmente elevados de
iniquidade social que ainda caracterizam nosso País. Dentre esses problemas, o de uma
suposta dominação estrangeira sobre nossa economia é provavelmente o de menor
importância relativa, sobressaindo-se, ao contrário, os de origem propriamente interna, como
os da baixa capacitação educacional da população e dos níveis inaceitavelmente baixos de
geração e adaptação endógenas de tecnologia. Um livro como este de Mr. Gordon, um autor
estrangeiro sinceramente amigo do Brasil, nos ajuda a ver mais claro nesse esforço analítico,
aliás não desprovido e de fato impulsado por um legítimo interesse nacional americano (o de
ver a economia brasileira ainda mais vinculada e interconectada à dos EUA, objetivo que,
tomado num sentido não excludente ou naturalmente interdependente, em nada se choca com
o interesse nacional brasileiro). O leitor brasileiro está convidado verificar por sua própria
conta esta afirmação. Que tenha bom proveito!

Washington, 22 de abril de 2002.


Apresentação à edição brasileira do livro.
Resenha, intitulada “Mr. Gordon e o Brazil” (Washington, 3 maio 2001, 5 p.)
publicada em Conjuntura Política (Belo Horizonte: UFMG, boletim eletrônico do
Dep. de Ciência Política, n. 26, junho de 2001) e em Via Mundi, Boletim de análise do
estado da arte em relações internacionais (Brasília: Dep. de Relações Internacionais
da UnB; n. 4, abril-junho 2001, pp. 20-21, ISSN 1518-1227); em versão abreviada em
O Estado de São Paulo (10.06.01, Caderno 2: Cultura) e na Revista Brasileira de
Política Internacional (Ano 44, n. 1, 2001, p. 179-181).

583
A marcha da integração no Mercosul: vivace ma non troppo

Felipe A. M. de la Balze (comp.):


Argentina y Brasil: enfrentando el Siglo XXI
(s.l. [Buenos Aires:] Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales-Asociación de
Bancos de la República Argentina, 1995, 487 p.)

Hélio Zylberstain, Iram Jácome Rodrigues, Maria Silvia Portella de Castro, Tullo Vigevani
(orgs.):
Processos de Integração Regional e Sociedade: o sindicalismo na Argentina, Brasil, México e
Venezuela
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, 381 p.)

Haroldo Pabst:
Mercosul: direito da integração
(Rio de Janeiro: Forense, 1997, 278 p.)

Ana Cristina Paulo Pereira:


Mercosul: o novo quadro jurídico das relações comerciais na América Latina
(Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1997, 208 p.)

Luizella Giardino B. Branco:


Sistema de Solução de Controvérsia no Mercosul: perspectivas para a construção de um
modelo institucional permanente
(São Paulo: Editora LTr, 1997, 180 p.)

Deisy de Freitas Lima Ventura:


A ordem jurídica do Mercosul
(Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 1996, 168 p.)

Mercosul: acordos e protocolos na área jurídica


(Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 1996, 153 p.)

A produção acadêmica e a literatura especializada sobre os processos de integração


regional na América Latina e, em especial, sobre o Mercosul e o processo Brasil-Argentina,
parecem finalmente estar encontrando, no Brasil, uma “velocidade de cruzeiro”, talvez ainda
não no mesmo ritmo e com um volume editorial similar ao conhecido no grande país vizinho,
mas podendo já ser classificado como relativamente satisfatório e de certa forma compatível
com a importância desses processos em nosso próprio país. As obras que são discutidas a
seguir tratam todas dos desafios jurídicos, político-institucionais e econômicos da construção
da integração regional, demonstrando que, se a sua marcha econômico-comercial adota o
estilo andante-veloce, o ritmo jurídico-institucional conhece, por motivos diversos, um certo
compasso de espera. Se os teóricos e “juristas” da integração impacientam-se com a

584
“resistência anti-comunitária” dos burocratas governamentais, os empresários, agricultores e
sindicatos operários manifestam visível preocupação com uma certa “pressa livre-cambista”
que vigoraria sobretudo no vizinho do Prata.

A visão argentina da integração


É precisamente da Argentina que nos vem o primeiro dos livros compulsados neste
artigo-resenha, aliás o único da meia dúzia de obras aqui discutidas, confirmando plenamente
a fama de boa qualidade analítica dos estudos publicados na outra margem do Prata. Ele foi
organizado por Felipe de la Balze para o CARI, o Conselho Argentino de Relações
Internacionais, que desempenha naquele país um papel protagônico não apenas na discussão,
mas igualmente no encaminhamento de propostas concretas em prol da integração bilateral e
regional. Argentina y Brasil: enfrentando el Siglo XXI resulta, assim, de trabalhos conduzidos
no terceiro seminário de uma série empreendida pelo CARI em 1980 e continuada em 1985,
por iniciativa da Associação de Bancos da Argentina. Trata-se de sete estudos organizados em
tornos da “política” e da “economia” da integração e da inserção econômica internacional dos
dois países, precedidos por um oitavo, escrito pelo compilador como uma espécie de síntese
dos trabalhos do seminário e de “caderno de tarefas” para enfrentar os desafios colocados à
Argentina e ao Brasil nesta véspera de terceiro milênio.
Na parte da “política”, comparece em primeiro lugar Torcuato Di Tella, o grande
sociólogo, irmão do atual chanceler do Presidente Menem, com uma análise do sistema
político brasileiro na perspectiva argentina. Como tal, ele não apresenta maiores novidades
para um leitor brasileiro, não fosse sua leitura relativamente exaustiva do itinerário político do
Brasil desde a era Vargas, na verdade desde 1808 e com especial ênfase a partir do
tenentismo, esse peronismo avant la lettre que presidiu à modernização do país a partir dos
anos 30. Mais interessante é sua análise do posicionamento das principais forças políticas do
Brasil — partidos, empresários, sindicatos — em face dos grandes problemas de política
econômica ou das opções colocadas aos setores econômicos (aço, automóveis, bens de
capital, indústrias diversas) que, pelo seu natural dinamismo, apresentam importante impacto
no processo de integração conduzido com a Argentina desde meados dos anos 80 (baseado,
no primeiro período, em acordos setoriais, precisamente).
O diplomata Jorge Hugo Herrera Vegas apresenta um estudo comparativo
notavelmente sintético sobre as políticas externas da Argentina e do Brasil, nas quais ele
identifica, desde as origens coloniais, “divergências e convergências”, isto é, pontos de
dissenso e de aproximação nas posturas bilaterais, multilaterais e com terceiros países, vale
585
dizer, com os Estados Unidos, a ponta do triângulo inevitável na política pendular mantida
por um e outro país em diferentes épocas de uma história sempre complexa, mas raramente
conflitiva a ponto de precipitar guerras ao estilo França-Alemanha. Ainda assim, a releitura
do contencioso bilateral em torno do aproveitamento dos recursos hídricos do Paraná, nos
anos 70, segundo a perspectiva argentina é bastante instrutiva, da mesma forma como a busca
das “origens” do processo de integração. Paulo Roberto de Almeida Vegas, a história paralela
das duas políticas exteriores demonstra que os dois países, Brasil e a Argentina, “nacen con
polaridades geográficas e históricas opuestas y van convergiendo progresivamente hasta sellar
una unidad de destino en el Tratado de Asunción”; mais importante, ele também afirma que o
debate, crucial durante a fase de transição, sobre a alternativa Mercosul ou NAFTA pode ser
considerado como “superado” na Argentina.
Encerra essa parte da “política” um curto estudo “geopolítico” de Vicente Gonzalo
Massot sobre a evolução dos dois países, de um “equilíbrio de inimizades à cooperação
bilateral”, no qual são examinadas as muitas incompreensões, de parte e outra, mantidas por
diplomatas e militares dos dois lados do Prata sobre as intenções respectivas de seus governos
sobre o sentido geral da projeção estratégica de cada um e com respeito a armamentos,
inclusive o nuclear. Trata-se de um itinerário ainda não concluído que deveria levar, segundo
o autor, à desejada “defesa cooperativa”.
A parte de “economia” tem início por extenso trabalho de Elvio Baldinelli sobre o
comércio bilateral, no qual, além de uma análise dos fluxos, se discute também o problema
das paridades cambiais e o dos incentivos fiscais e creditícios, os principais pontos
remanescentes de assimetria nas políticas macroeconômicas dos dois países. Para a primeira
questão se sugere a adoção de um sistema de “banda de flutuações” a partir da paridade real
das duas moedas e, para a segunda, a incorporação plena de todas as normas da Rodada
Uruguai sobre a matéria. O estudo seguinte, a cargo de Roberto Bouzas, traça um panorama
completo das políticas nacionais em matéria de investimento estrangeiro, assinalando as
divergências (e restrições ao tratamento nacional) ainda existentes nos regimes respectivos e
seus efeitos sobre os fluxos internos e externos nessa área, sumarizando também os
movimentos de negócios que foram registrados reciprocamente no decorrer do processo de
integração. Adalberto Rodrigues Giavarini opera uma brilhante análise comparada dos setores
financeiros respectivos, ambos emergentes de uma história pregressa de inflação
descontrolada e adaptando-se duramente aos requisitos de uma economia estabilizada: sua
relevância atual foi entretanto comprometida pelo fato de ter sido conduzida no momento
mais agudo do impacto da crise mexicana sobre os dois países, o que diminui um pouco sua
586
importância em termos “prescritivos” para o estudo dos atuais desafios na área bancária.
Finaliza a parte econômica um estudo de Eduardo Fasulino sobre as políticas de concorrência
nos dois países, setor de crescente significação na medida em que o aprofundamento da
integração torna cruciais os aspectos regulatórios e macroestruturais que enquadram a
competição entre empresas da região na busca de maior acesso a mercados e de condições
equitáveis de concorrência.
O capítulo mais importante do livro é contudo o primeiro, no qual Felipe de la Balze
discorre sobre os desafios que a Argentina enfrenta nesta passagem de milênio para assegurar
uma taxa adequada de crescimento econômico, criar um sistema institucional legítimo e
inserir-se de forma exitosa na economia e na política mundiais. Em sua opinião a estratégia de
seu país deveria desenvolver-se em duas etapas: consolidar o processo de integração
econômica e de cooperação política com o Brasil e, simultaneamente, aprofundar o
acercamento bilateral com os Estados Unidos, tanto nos temas estratégicos como nos
econômicos. Sua análise nos parece pecar aqui por um certo voluntarismo, pois ele vislumbra
a possibilidade de um acordo de cooperação militar entre os países do Mercosul e a OTAN,
ao mesmo tempo em que se desenvolveria uma rede de relações privilegiadas com o NAFTA
e com a União Europeia. A justificativa para a prioridade atribuída aos Estados Unidos “se
sustenta en nuestra creencia en que, a pesar de haber perdido su rol hegemónico, será la única
nación que, en términos diplomáticos, militares, tecnológicos y económicos, mantendrá los
atributos de una superpotencia, al menos durante las próximas décadas”. Mas, ele indica que
essa estratégia é coerente e beneficiosa para os dois países mais importantes do Mercosul
“sólo si Brasil se incorpora plenamente a la estrategia de acercamiento iniciada por la
Argentina con los Estados Unidos”, o que, se parece corresponder de fato aos interesses da
Argentina, atende bem menos aos interesses nacionais do Brasil.
O organizador desse importante livro apresenta em seu capítulo os cinco desafios do
processo atual de integração: aprofundamento do Mercosul, reforço das alianças regionais e
extra-regionais (ALADI, NAFTA e UE), coordenação macroeconômica, coordenação das
políticas de comércio exterior e de promoção comercial e, finalmente, o da
institucionalização, no qual se descarta a tese da supranacionalidade, mas se recomenda
fortemente um Tribunal de Justiça supranacional, independente e imparcial. No que se refere
à cooperação política, ele reflete também sobre o papel do Brasil como grande potência
regional, chegando a sugerir que uma eventual admissão no Conselho de Segurança poderia
se dar mais facilmente através de um esquema regional do Cone Sul e não como candidatura
individual. A “estratégia central” de seu cenário para o século XXI está, assim, fortemente
587
baseada numa aliança privilegiada com os Estados Unidos e numa “convergência” com o
Primeiro Mundo, como se tal tipo de política unilateral pudesse produzir respostas
cooperativas e promessas efetivas de incorporação no centro de poder em nível mundial.

As dimensões políticas e sociais da integração


Os textos recolhidos no volume da Paz e Terra sobre os processos de integração
regional e o sindicalismo em países da América Latina resultaram de seminário organizado
cooperativamente em 1995 pelo Instituto de Estudos Avançados da USP e pela Associação
Brasileira de Estudos do Trabalho. Os autores (da Argentina, Brasil, México e Venezuela) se
posicionam nitidamente numa postura contrária ao neoliberalismo aparentemente dominante
nas esferas governamentais desses países e tendem a colocar em termos realistas os desafios
colocados às centrais sindicais em face do que é chamado de “transição liberal-
modernizadora” no continente.
Organizado em quatro partes, o livro recolhe trabalhos apresentados por especialistas
desses quatro países nos campos da integração regional e do emprego, das mudanças no
mercado de trabalho e nas relações trabalhistas, as atitudes sindicais e patronais ante a
integração e o papel do Estado e das sociedades nesse contexto; uma mesa redonda sobre o
Brasil e os caminhos da integração regional conclui a obra. O impacto da constituição do
NAFTA e do Mercosul nos respectivos mercados de trabalho e nos sistemas laborais é
analisado com detalhe, mas as propostas de “internacionalização” da defesa dos interesses dos
trabalhadores e da ação negociadora sindical parecem expressar mais um desejo do que uma
possibilidade efetiva. Em plena era da globalização, o capital não tem fronteiras, mas o
trabalho ainda não dispõe de mobilidade geográfica; o que é certo é que a integração introduz
ainda mais competição nos mercados laborais e portanto maior pressão sobre os salários e as
condições de trabalho.
Esses fatores levaram todos os movimentos sindicais nos países considerados a
verdadeiras encruzilhadas, tendo eles próprios de operar uma reconversão dos métodos de
ação e um ajuste adaptativos às novas regras do jogo: não só mudam os parâmetros pelos
quais se definiam a autonomia e a iniciativa sindicais (supondo-se que elas existissem em
países como México e Argentina) como o próprio conceito de poder coletivo de barganha das
centrais nacionais. Hoje há uma maior informalização das relações trabalhistas e uma
precariedade acentuada nas condições de emprego. O sindicalismo é de certa forma
preservado naqueles países, como o Brasil, onde ele pode participar de conselhos ou
estruturas consultivas de tipo corporativo (câmaras setoriais), o que significa que sua
588
manutenção se dá pela participação cada vez maior no sistema político. Iram Rodrigues e
Hélio Zylberstain, num texto sobre o Brasil, chamam esse tipo de interação de “cooperação
conflitiva”, ao passo que as clientelas do setor público preservam grupos políticos radicais,
identificados com a esquerda socialista.
Tullo Vigevani e João Paulo Veiga focalizam o que eles chamam de “dilema sindical
no Mercosul”: internacionalismo ou protecionismo, mostrando as estratégias inovadoras
adotadas pelas centrais da sub-região, com intensa participação nos grupos de trabalho e nos
debates sobre diretrizes de políticas setoriais e macroeconômicas, num contexto em que uma
“Carta Social” muito abrangente e ambiciosa revela-se uma utopia. De certa forma, o
Mercosul foi bem acolhido pelas lideranças sindicais, à diferença do NAFTA, que significou
uma derrota para o movimento sindical daquela área (o que é compreensível tendo em vista as
enormes assimetrias sociais e disparidades de rendas e de salários ao norte e ao sul do Rio
Grande).
Num brilhante texto sobre a dimensão política do Mercosul, Monica Hirst identifica os
atores de primeiro e de segundo plano do processo integracionista – mercocratas, empresários
e líderes políticos por um lado, partidos, pequenos empresários e sindicatos por outro – e
discute os principais temas de politização desse processo: relações com o NAFTA, política
industrial ou liberalização, temas sociais, possibilidade de cooperação política e, sobretudo a
questão da institucionalidade: intergovernamental como preferem os governos, ou
supranacional como recomendam alguns teóricos.

A problemática institucional no Mercosul


A questão da definição de estruturas políticas e de decisão exclusivamente
intergovernamentais ou moderadamente supranacionais encontra-se presente, com maior ou
menor grau de detalhe, nos demais livros aqui analisados. O catarinense Haroldo Pabst, em
utilíssimo manual que deve ser recomendado a todo estudante em direito econômico e
comercial, enfoca o tema sob o prisma da uniformização jurídica do espaço integracionista,
partindo dos métodos recomendados pelo Unidroit para examinar com mais ênfase as
experiências da União Europeia e do Mercosul. Ele afirma, com razão, que esse processo de
uniformização no Mercosul deve ocorrer ainda antes que se possa avançar decisivamente no
caminho de uma institucionalidade mais elaborada na região, facilitando as atividades
econômicas e antecipando de certa forma o surgimento do direito comunitário no espaço
territorial comum.

589
Essa uniformização jurídica pode ser feita tanto pela via do direito internacional
público como pela via do direito comunitário, opção retida no caso da Europa, ao passo que o
Mercosul se vale ainda da primeira. O livro de Pabst é uma espécie de plaidoyer por essa
uniformização, ressaltando que a construção do mercado comum a torna indispensável. Da
mesma forma, diz ele, quando esse mercado comum for uma realidade, “a harmonização
jurídica mais ampla e a instituição de órgãos supranacionais, inclusive do Tribunal de Justiça
do Mercosul, serão inevitáveis”. Mesmo reconhecendo a necessidade de um órgão
jurisdicional supranacional, suscetível de uniformizar a interpretação legal dos textos legais
vigentes no espaço integracionista, Pabst adota uma postura cautelosa e “etapista”, se se pode
dizer, apontando, nesta fase do Mercosul, para a criação de “um direito harmonizado de forma
tópica e pontual, atingindo as áreas mais críticas”, para, numa segunda fase, passar à
harmonização mais ampla, precursora da unificação do direito na região.
Muitos juristas, mesmo sem preconizar diretamente a criação de órgãos
supranacionais, apontam a necessidade da construção jurisprudencial comunitária, ou pelo
menos comum, em matéria de liberalização de mercados e de direito da concorrência, como
por exemplo Werter Faria. Pabst reconhece que a harmonização do Mercosul por via de
órgãos supranacionais definitivos está distante, mas insiste em que essa harmonização se dê
agora, no momento da construção do mercado comum, no que ele tem perfeitamente razão:
“Os mecanismos para o início imediato da harmonização existem e não há justificativa
plausível para postergá-la”. O livro, respondendo à dificuldade que têm muitos estudantes de
encontrar os textos “fundacionais” da integração europeia e na região, traz um anexo
documental com os tratados de Roma e de Assunção, os protocolos de Brasília e de Ouro
Preto, bem como diversos outros instrumentos de cooperação em matéria jurisdicional entre
os países do Mercosul.
O livro de Ana Cristina Pereira recolhe a primeira parte de sua tese de doutoramento
na Universidade de Paris-I, sobre o novo quadro jurídico das relações comerciais na América
Latina, enfocando mais particularmente as bases jurídicas e as regras de funcionamento do
Mercosul. Trata-se de estudo minucioso dos diversos instrumentos da integração regional à
luz do sistema multilateral regido pelo GATT e pelo direito dos tratados, tal como regulado
pela Convenção de Viena de 1969. A importância desse tipo de reflexão não precisa ser
sublinhada, em vista da história pregressa, nem sempre exitosa, de iniciativas integracionistas
na região, com a coexistência por vezes pouco harmoniosa de diferentes instrumentos
tratando da liberalização do comércio intrarregional. Com efeito, o Tratado de Assunção
recupera e mantém diversos outros instrumentos bilaterais e plurilaterais — Tratado de
590
Integração entre o Brasil e a Argentina, de 1988, diferentes acordos de alcance parcial no
âmbito da ALADI — assim como ele se superpõe e em alguns casos colide com normas
legais nacionais e disposições administrativas internas a cada um dos países membros. Da
mesma forma, ele deve ser compatibilizado com as regras e obrigações vinculantes de caráter
mais amplo inscritas no GATT (artigo 24 do Acordo Geral, 1947), mas podendo ainda
beneficiar-se das condições mais permissivas e lenientes previstas na Cláusula de Habilitação
de 1979.
A autora examina questões de grande relevância na construção de uma ordem jurídica
no Mercosul, como a da aplicabilidade das decisões adotadas pelos órgãos
intergovernamentais no âmbito interno dos Estados Partes, o sistema de solução de
controvérsias e a do próprio sistema de decisões previsto no Tratado de Assunção e no
Protocolo de Ouro Preto. Ela também se dedica a uma análise das regras de funcionamento do
Mercosul, em especial no que tange ao comércio de mercadorias, à livre circulação no
território dos países membros e ao estabelecimento da união aduaneira. São igualmente
enfocadas as regras sobre práticas comerciais restritivas e as políticas nacionais de apoio às
exportações e subvenções à produção. A obra constitui uma boa aproximação à problemática
integracionista no contexto mais vasto do sistema multilateral de comércio, administrado
desde janeiro de 1995 pela Organização Mundial do Comércio.

O direito comunitário e o tribunal supranacional


Mais específico é o estudo de Luizella Giardino Branco, sobre o sistema de solução de
controvérsias no Mercosul que, como seu subtítulo indica, pretende oferecer uma contribuição
para a construção de um modelo institucional permanente. Resultado de uma tese de mestrado
sob a orientação competente da Professora Nádia de Araujo, o trabalho faz um estudo
comparado dos mecanismos de resolução de conflitos já existentes e em funcionamento na
União Europeia, no Pacto Andino e no NAFTA, para discutir o modelo do Mercosul numa
perspectiva evolutiva, isto é, apontando tendencialmente para a constituição de um Tribunal
supranacional. Essa opção não é meramente retórica ou derivada de uma preferência teórica
pelo modelo de integração supostamente mais avançado, mas resulta de um cuidadoso estudo
comparado e empírico das vantagens e deficiências de cada um dos sistemas de solução de
controvérsias selecionados no livro, vale dizer, as mais importantes experiências atualmente
disponíveis no “supermercado” dos processos integracionistas.
Para a autora, a esfera jurídica é a “única que pode garantir a continuidade a longo
prazo da integração, porque não se esgota com a instauração desta, mas ao contrário,
591
acompanha o processo de desenvolvimento”. Daí sua reafirmação da essencialidade de um
sistema jurídico adequado e da instituição de um Tribunal Supranacional: este “representaria
não só a efetiva vontade política dos países em assegurar esse processo, como também
concorreria para formar a harmonia e o respeito ao cumprimento do direito comunitário,
requisito fundamental para preservar o laço associativo dos Estados-membros”. Este brilhante
trabalho de uma jovem jurista, que merece mais ampla divulgação, vem precisamente reforçar
o bloco daqueles que, ainda que reconhecendo o caráter prematuro de instituições
supranacionais no Mercosul, advogam pela criação de uma corte arbitral ou de um tribunal
permanente de justiça no âmbito do Cone Sul. Se algum grão de supranacionalidade deve ser
inserido ou se insinuar no ainda circunspecto esquema intergovernamental do Mercosul, ele
certamente começará pelo sistema de solução de controvérsias. Trabalhos como o de Luizella
Branco contribuem precisamente para justificar a racionalidade desse tipo de escolha.

Ordem jurídica e direito comunitário


O livro de Deisy de Freitas Ventura, outra jovem pesquisadora, desta vez do Rio
Grande do Sul, vai direto à questão mais importante, do ponto de vista dos juristas, no
processo de construção do Mercosul: deve-se passar sem delongas à etapa do direito
comunitário, erigindo uma ordem jurídica que se superponha às soberanias nacionais, ou
caberia, ao contrário, como fazem de fato os governos dos países membros, avançar
gradualmente, cuidadosamente, de molde a evitar rupturas políticas e econômicas muito
graves no ainda frágil edifício integracionista ou fissuras institucionais irremediáveis se se
decidisse por estender em demasia a viga mestra de sua sustentação jurídica?
A resposta da autora, nesta obra que também resulta de uma tese de mestrado, não
deixa dúvidas quanto ao caminho por ela escolhido. Com efeito, A ordem jurídica do
MERCOSUL é, antes de mais nada, uma vibrante defesa de uma normatividade jurídica
plenamente eficaz no Mercosul, contra a inércia “soberanista” dos Estados Partes. Trata-se,
como já antevisto em várias outras obras de juristas e acadêmicos universitários, de uma
demanda recorrente em livros e artigos de caráter jurídico-institucional, algo como um
plaidoyer pro domo sua no estabelecimento oportuno da institucionalidade supranacional. Se
apenas esse aspecto estivesse em jogo, os mercocratas e outros altos funcionários
governamentais envolvidos com a manipulação diária do coquetel integracionista poderiam
descartar essa obra como mais um exemplo de irrefreável romantismo jurídico, de exagerado
idealismo político ou, o que seria pior, de algum mal de jeunesse acadêmico.

592
Mas, não se trata disso. O trabalho de Deisy Ventura está muito bem construído,
apresenta sólida fundamentação teórica e discute os problemas pertinentes da atual fase de
constituição de um edifício integracionista no Cone Sul. A autora começa por se perguntar se
há uma ordem jurídica no Mercosul; para apresentar sua resposta ela começa por examinar as
fontes do direito no “bloco integracionista”, para depois deter-se no exame de cada uma das
constituições dos Estados Partes do Tratado de Assunção, para evidenciar o caráter restritivo
de algumas disposições. A resposta à questão seria positiva caso se admita a interação das
ordens jurídicas nacionais com os propósitos do instrumento constitutivo do futuro mercado
comum, no pressuposto de que as decisões dos órgãos autônomos do Mercosul são ou possam
ser integrados automaticamente no ordenamento interno de cada um dos Estados.
Tal não parece ser entretanto o caso, daí a constatação de uma lacuna de ordem
jurídica, na acepção do direito comunitário, o que parece bastante evidente a qualquer
observador um pouco mais informado. As normas do Mercosul só se tornam efetivas se e
quando todos os Estados Partes tiverem adotado os procedimentos executórios e
administrativos pertinentes em seu próprio ordenamento legal e constitucional e uma vez que
esse cartório que constitui a Secretaria Administrativa de Montevidéu tenha feito
comunicação apropriada sobre esse fato ao conjunto de países membros. Em outros termos, o
Mercosul, em termos jurídicos, é um animal da ordem dos invertebrados, da classe da
mitologia e da família dos marsupiais, isto é, um filhote vindo à luz de forma prematura e
segundo um método diferente daquele que usará para sobreviver e se desenvolver.
Pessoalmente, não tenho nenhuma objeção de princípio quanto a essa construção
zoomorfa algo inédita nos anais balzaquianos das experiências integracionistas conhecidas;
historicamente, deve-se reconhecer, aliás, que os juristas latino-americanos já deram mais de
uma prova de sua inventividade conceitual. O Mercosul é certamente híbrido do ponto de
vista institucional e não há porque pensar que o modelo comunitário europeu constitui o nec
plus ultra dos padrões aceitáveis de construção de um mercado comum. A lógica do Mercosul
é a do menor custo possível, político ou social, para não dizer econômico, daí a própria
economia feita pelos países membros em número de mercocratas e outros gêneros de
tecnocratas. Os juristas não se reconhecerão nessa descrição, podendo mesmo argumentar que
a ordem legal é absolutamente indispensável ao bom funcionamento de todo e qualquer
empreendimento integracionista. Talvez, mas então o Mercosul se faz pelo método do ensaio
e erro, da empiria consagrada em norma.

Soberania estatal e interesse nacional


593
A segunda grande questão levantada no trabalho de Deisy Ventura refere-se à
possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul. Aqui a resposta
parece ter vindo ao mesmo tempo que a pergunta, pois se toma como óbvio o conceito
oriundo do direito comunitário europeu, isto é, uma ordem autônoma e hierarquizada. Em
outros termos, o Mercosul deveria ou precisaria aproximar-se do modelo europeu para receber
uma espécie de label comunitário, uma certificação de origem supranacional. Contra essa
perspectiva são levantados vários óbices estruturais e sobretudo políticos nos países membros.
A despeito de uma aceitação de princípio por parte das elites desses países dos pressupostos
da construção comunitária — ou seja, a cessão de soberania, a delegação ou transferência de
poderes, a limitação da vontade soberana do Estado — a internacionalização efetiva de suas
economias respectivas ou uma ativa e assumida interdependência entre os países membros do
Mercosul parece ainda distante. O problema aqui parece ser mais de ordem prática do que
teórica: os economistas, que são os que de fato comandam o processo de integração, pelo
menos em seus aspectos práticos, não têm o mesmo culto à noção de soberania — seja contra
ou a favor — em que parecem deleitar-se os juristas. Não se trata de uma questão em relação
à qual se possa ser contra ou a favor ou de uma noção para ser encaminhada ou resolvida por
um tratado jurídico de qualquer tipo: a soberania não faz parte dos cálculos de PIB ou dos
equilíbrios de balança comercial e não se sujeita à coordenação de políticas
macroeconômicas, daí sua irrelevância prática para a condução efetiva do processo
integracionista. Ela é, sim, exercida diariamente, na fixação da taxa de câmbio — que pode
até ser declarada estável — ou na determinação do nível de proteção efetiva em situações de
baixa intensidade integracionista, que é justamente aquela na qual vivem os países do
Mercosul ou pelo menos o maior deles.
A autora acredita que “a vontade política e não o conceito de soberania são
determinantes da opção pelo modelo supranacional” e que o Brasil, mesmo apresentando uma
grande “influência externa em toda a condução de sua política econômica”, foi o “grande
responsável pela compleição intergovernamental da estrutura orgânica mercosuliana”. É
verdade, mas neste caso se tratou de obra meritória, na medida em que tal atitude salvou o
próprio Mercosul de um provável desastre político e de possíveis dificuldades econômicas e
sociais. A Realpolitik é sempre a linha de maior racionalidade nas situações de forte incerteza
quanto aos resultados de qualquer empreendimento inovador, seja uma batalha militar, seja
um salto para a frente nesse modesto Zollverein do Cone Sul.
Dito isto, este resenhista pretende deixar claro que não defende uma posição
“soberanista” estrita no processo de construção, necessariamente progressivo e gradual, do
594
Mercosul. A soberania, como no velho mote sobre o patriotismo, costuma ser o apanágio dos
que se atêm à forma em detrimento do conteúdo, à letra em lugar do espírito da lei; sua
afirmação, em caráter peremptório ou irredentista, é geralmente conservadora, podendo
mesmo sua defesa exclusivista e principista ser francamente reacionária no confronto com as
necessidades inadiáveis de promoção do desenvolvimento econômico e social e do bem-estar
dos povos da região. O que, sim, deve ser considerado na aferição qualitativa de um
empreendimento tendencialmente supranacional como é o caso do Mercosul é em que medida
uma renúncia parcial e crescente à soberania por parte dos Estados Partes acrescentaria
“valor” ao edifício integracionista e, por via dele, ao bem-estar dos povos integrantes do
processo, isto é, como e sob quais condições especificamente uma cessão consentida de
soberania contribuiria substantivamente para lograr índices mais elevados de
desenvolvimento econômico e social.
O assim chamado interesse nacional — tão difícil de ser definido como de ser
defendido na prática — passa antes pela promoção de ativas políticas desenvolvimentistas do
que pela defesa arraigada de uma noção abstrata de soberania. Deve-se colocar o jurisdicismo
a serviço da realidade econômica e não o contrário e ter presente que cabe ao Estado colocar-
se na dependência dos interesses maiores da comunidade de cidadãos e não servir objetivos
imediatos e corporatistas de grupos setoriais ou fechar-se no casulo aparentemente imutável
de disposições constitucionais soberanistas. Em certas circunstâncias, pode-se admitir que
uma defesa bem orientada do interesse nacional — que é a defesa dos interesses gerais dos
cidadãos brasileiros e não a do Estado, a da Nação, não a do governo — passe por um
processo de crescente internacionalização, ou de “mercosulização”, da economia brasileira.
Quando se ouve impunemente dizer que a “defesa do interesse nacional” significa a proteção
do “produtor” ou do “produto nacional” poder-se-ia solicitar ao mercocrata de plantão que
saque, não o seu revólver, mas a planilha de custos sociais da proteção efetiva à produção
nacional (o que envolve também, é claro, o cálculos dos efeitos renda e emprego gerados no
País).
A última questão analisada no libro de Deisy Ventura refere-se à eficácia jurídica no
âmbito do Mercosul, terreno no qual a boa técnica jurídica nos incita a concordar com as
pertinentes observações da autora. Que as instituições nacionais sejam as boas guardiãs das
normas de direito no quadro do Mercosul parece repugnar ao jurista cioso da enforceability
dos atos constitutivos do processo de integração. Quem guarda o guarda?, seria o caso de se
perguntar, numa analogia tão latina quanto brasileira. As deficiências da ordem jurídica do
Mercosul nesse particular são reais, o que nos faz concordar com a autora no sentido em que
595
esse componente (a baixa eficácia dos fatos jurídicos gerados pelas regras do Mercosul)
“determina a instabilidade e a insegurança destas relações jurídicas, atributos que se
multiplicarão com o aprofundamento do processo integracionista”. Seria o caso de se desejar,
mas apenas desejar, que maior grau de eficácia — aplicabilidade direta, primazia da regra
comunitária — venha a coroar o edifício em construção do Mercosul, pois estamos certos de
que externalidades negativas e maiores custos de transação no terreno econômico incitarão
progressivamente os “mercocratas”, quando não os empresários que são os principais
interessados na plena vigência de regras claras, a lutarem eles mesmos por esse aumento da
eficácia jurídica da nova ordem mercosuliana. Alea jacta est.
O livro de Deisy Ventura é utilmente complementado, em dois anexos, pelo texto do
Protocolo de Ouro Preto e por dispositivos selecionados (relativos aos temas internacionais e
integracionistas) das mais importantes constituições europeias, o que se constitui em valioso
auxílio documental aos estudantes universitários brasileiros.

Com vistas, justamente, a municiar estudantes e pesquisadores com o conhecimento


adequado dos principais instrumentos jurídicos existentes no âmbito do Mercosul, o
Ministério da Justiça (por meio de sua assessoria internacional), o Mestrado em Integração
Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (coordenado pelo Professor
Ricardo Seitenfus) e a Livraria do Advogado do Porto Alegre vêm oferecer a coletânea dos
textos dos acordos e protocolos firmados na área jurídica pelos Estados Partes do Tratado de
Assunção: os nove instrumentos publicados na íntegra vêm acompanhados de seu respectivo
índice alfabético-remissivo, o que facilita a consulta aos diversos elementos constitutivos dos
atos de cooperação jurídica estabelecidos no âmbito da reunião de ministros da justiça do
Mercosul. Esse foro se ocupa de importantes questões jurídicas e administrativas, cobrindo
desde o estudo da consolidação de um direito comunitário até problemas eminentemente
práticos como o tráfico de menores e a lavagem de dinheiro.
Os sete livros aqui examinados contribuem, de diversos modos, para o
aprofundamento de um debate que se tornou inadiável no Mercosul: o do reforço de sua
institucionalidade com vistas a enfrentar os desafios que são colocados de contínuo aos
Estados membros, sobretudo no âmbito hemisférico (ALCA) e na esfera multilateral (OMC).
Eles oferecem algumas armas teóricas, vários argumentos jurídicos de excelente qualidade
técnica e uma boa visão comparativa sobre como o Mercosul pode continuar sua marcha
segura em direção do almejado mercado comum, talvez não sem os atropelos políticos,

596
sociais ou econômicos da globalização, mas pelo menos segundo um processo ditado
exclusivamente pela conveniência dos interesses de seus povos respectivos.
O Mercosul, por certo, não emergirá pronto e acabado da prancheta de mercocratas,
dos gabinetes de juristas ou dos anfiteatros de acadêmicos, como se fosse uma obra de
engenharia político-institucional que se movimentasse apenas por indução externa ou por
algum “Santo Espírito” integracionista, consubstanciado em lideranças políticas preclaras e
em técnicos geniais em alquimias jurídicas e administrativas. Ele é o resultado de forças
historicamente mais vastas e socialmente mais profundas que se movem no amplo caudal dos
processos econômicos e sociais de largo curso no Cone Sul latino-americano; como tal, esse
processo complexo deve e necessita acompanhar a dinâmica econômica e societária sob risco
de nascer defasado ou desenvolver-se de forma disfuncional para seus objetivos últimos.
Estes, cabe lembrar, não são os da construção de uma bela catedral gótica comunitária pelo
simples mérito estético da ideia integracionista, ou a repetição inquestionada de modelos
aparentemente bem sucedidos em outras experiências do gênero, como se a história devesse
repetir-se por osmose intercontinental. Os objetivos primordiais do Mercosul são o
desenvolvimento econômico e social dos povos da região, a promoção de seus interesses no
plano internacional e a elevação do “índice de felicidade humana” neste pequeno canto do
planeta: tudo o mais deve subordinar-se a estes critérios de racionalidade intrínseca.
Os métodos requeridos para serem alcançados tais objetivos é que devem adaptar-se
aos fins almejados — ainda que para tal os mercocratas devam contentar-se, durante largo
tempo ainda, em trabalhar numa casinha de taipa em lugar de num palácio de vidro — e não
buscar encaixar a realidade no molde conceitual de organizações ideais pré-concebidas. O
Mercosul é, assim, um ongoing process, um work in progress, uma construção inacabada;
estou certo de que estes livros contribuem na tarefa de melhor compreendê-lo, inclusive pela
visão comparativa que eles fornecem, acrescentando mais alguns tijolos nesta obra
eminentemente societária e solidária, propriamente comunitária, que é o processo de
construção de um espaço econômico integrado no Cone Sul.

Brasília, 11 de junho de 1997.


Publicado, com cortes, na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: IBRI, ano 40, n. 1, 1997, p. 222-231).

597
A Integração como Processo Histórico

Helder Gordim da Silveira:


Integração latino-americana: projetos e realidades
(Porto Alegre: EDIPUCRS, 1992, 88 p.)

Comparativamente a nossos vizinhos hispano-americanos, a bibliografia acadêmica


brasileira no campo da integração regional é reconhecidamente paupérrima, consistindo no
mais das vezes em textos especializados em temas comerciais, voltados para um público já
iniciado. A história e a política de nossas relações com os vizinhos continentais é uma área
praticamente inexplorada pelos profissionais do ramo e o surto observado há duas décadas, de
lançamentos editoriais voltados para temas geopolíticos, prendia-se a um momento
especialmente tenso nas relações bilaterais entre os dois principais países do Prata (e da
América do Sul), quando, tanto na Argentina como no Brasil, vigoravam regimes autoritários
manifestamente avessos à integração regional e diretamente preocupados com a questão da
hegemonia militar.
Em ambos os países, o conceito de integração regional era identificado com um
projeto propriamente esquerdista e, pelo menos no Brasil, essa noção era utilizada pelos
militares tão exclusivamente em relação ao fenômeno da incorporação de novas fronteiras
agrícolas à economia nacional. O lema da época, aliás, era “integrar para não entregar”, num
falso ufanismo nacionalista que ajustava-se inteiramente à defesa à outrance da noção de
soberania absoluta tão ao gosto dos anti-integracionistas.
Resolvidos os principais impasses diplomáticos ou militares entre o Brasil e a
Argentina, a partir de um acordo sobre o aproveitamento dos recursos hídricos na região, e
implementada a volta ao caminho democrático nesses países, começa uma nova fase para o
relacionamento político e a cooperação econômica entre eles. Nem por isso as pesquisas sobre
a integração regional escaparam, no Brasil, de sua modorra habitual. A despeito do trabalho
persistente de alguns especialistas – e aqui é preciso mencionar os ensaios e estudos de Moniz
Bandeira e de Monica Hirst – esse campo da investigação acadêmica permaneceu
relativamente intocado até bem recentemente. Os esforços nesse terreno ficaram restritos a
artigos eruditos publicados em revistas universitárias ou então limitados ao habitual
populismo esquerdista identificado no slogan sobre a “identidad cultural latinoamericana”
apregoada por algumas agrupações progressistas a vocação internacionalista.

598
O lançamento do processo integracionista Brasil-Argentina, seguido logo depois pelo
projeto MERCOSUL, parece oferecer à academia uma oportunidade real para que ela passe a
encarar a questão da integração segundo um prisma menos romântico e mais voltado para o
inevitável pragmatismo das soluções possíveis num ambiente econômico pouco receptivo a
projetos desse gênero. O romantismo, no caso, é aqui vinculado aos projetos irrealistas do
passado, que pretendiam realizar o velho sonho bolivariano de um continente unido num
único processo econômico e político de desenvolvimento. Se há alguma lição a tirar de mais
de três décadas de experimentos integracionistas no continente é precisamente a de que o
processo só avançou quando ele foi declaradamente e manifestamente sub-regional e restrito
geograficamente (a despeito mesmo dos fracassos do MCCA e do Grupo Andino), tendo
empacado inevitavelmente quando se tentou impulsioná-lo numa ótica excessivamente
multilateralista e territorialmente abrangente.
O livro que ora resenhamos do Professor de História Contemporânea da América da
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Helder Gordim da Silveira, padece talvez de um
certo viés romântico no que se refere à visão “latino-americanista” apontada acima, mas trata-
se certamente do melhor ensaio histórico sobre a questão da integração continental disponível
nas estantes brasileiras, merecendo, como tal, ser saudado enfaticamente por todos aqueles
interessados na história tortuosa desse fenômeno em nossa região. O subtítulo do livro –
Projetos e Realidades – revela aliás uma preocupação saudável com as limitações impostas
pelo real aos velhos sonhos bolivarianos.
O trabalho de pesquisa histórica, em que pese a brevidade do texto (84 páginas) e da
bibliografia (apenas 18 títulos, o que aliás confirma o que dissemos acima), é efetivamente
digno de elogios já que não só o autor logrou apresentar um panorama relativamente completo
dos diversos projetos integracionistas acalentados neste continente nos últimos 170 anos,
como também conseguiu sintetizar os ensinamentos desses esforços mais ou menos frustrados
numa ótica propriamente histórico-política. A concisão da exposição não diminuiu de forma
alguma a densidade interpretativa, mesmo se alguns conceitos outdated ou passés — como o
de dependência, por exemplo — penetram aqui e ali um discurso basicamente fiel do ponto de
vista histórico e vigoroso em seu estilo de argumentação.
A utilidade desse pequeno e valioso trabalho — e não apenas para os historiadores de
profissão — está em que a análise histórica ali desenvolvida segue um esquema bastante
simples e poderosamente eficaz para explicar cada uma das conjunturas integracionistas neste
século e meio de tentativas. O discurso do autor, como ele mesmo explica em sua introdução,
está articulado em torno das seguintes questões:
599
a) origem da iniciativa integracionista – em que medida a iniciativa parte dos próprios
estados latino-americanos ou das potências hegemônicas;
b) condições em que a proposta é negociada pelos interessados – onde se situam as
resistências, apoios, alianças e pressões à implementação do projeto;
c) criação de mecanismos supranacionais de implementação – grau de
institucionalização do projeto no sistema político latino-americano;
d) grau de sucesso ou insucesso do projeto – atingimento ou não das metas
integracionistas propostas.
Armado desse esquema, o Professor Helder nos convida a um passeio extremamente
rico e bem sinalizado pela história dos projetos integracionistas latino-americanos, com ênfase
nas décadas de 60 a 80. De Bolívar ao pan-americanismo, o processo será dominado pelo
neocolonialismo, pela desintegração econômica de países controlados pelas oligarquias
tradicionais e pela vontade hegemônica de “integrar para dominar” (capítulos II e III). A
partir da segunda guerra, porém, a integração continental segue o ritmo dos projetos de
desenvolvimento econômico, quando não sucumbe ao desenvolvimentismo substitutivo que
caracterizou a industrialização latino-americana. Da ALALC à ALADI, assistimos à ascensão
e queda do ideal integracionista cepalino, perdido entre o voluntarismo político e o
gradualismo comercialista (capítulo IV).
A análise dessa rica experiência integracionista é muito bem conduzida, com
referências pertinentes à questão do GATT e às diversas concepções teóricas que
impulsionaram projetos de cunho sub-regional (como os do Grupo Andino e do MCCA). Os
fatores propriamente políticos que também influenciaram essas experiências – Aliança para o
Progresso, SELA – tampouco são descurados na reconstituição da trajetória dos anos 60 e 70.
Finalmente, um último capítulo, nos conduz a uma exposição da integração Brasil-
Argentina e ao caso do MERCOSUL, com uma discussão das perspectivas a médio prazo
deste projeto (onde são criticados seus supostos “preceitos liberais clássicos”). Aqui, mais
uma vez retornam à superfície as prevenções do meio acadêmico em relação a um projeto
integracionista despudoramente capitalista, “atrelado aos velhos mitos da ortodoxia liberal”
nas palavras do autor. Esse tipo de compromisso, segundo o professor da PUC/RS, “pode vir
a desperdiçar, uma vez mais, a possibilidade, tremendamente complexa mas concreta, de se
estabelecer — dentro do marco das relações capitalistas — soluções conjuntas criativas e
eficazes para o enfrentamento efetivo das questões históricas do subdesenvolvimento
regional” (p. 81).

600
Alguns desafios do momento são, no entanto, corretamente enfatizados: a
instabilidade macroeconômica brasileira, um primeiro-mundismo de fachada nas políticas
exteriores dos principais países engajados no processo do Cone Sul, a dispersão de alguns
importantes parceiros de velhos projetos integracionistas (como o Chile e o México) e os
problemas institucionais já apontados por diversos especialistas na matéria (caráter provisório
dos órgãos políticos, dúvidas quanto à eficácia dos mecanismos de solução de controvérsias e
problemas de harmonização legislativa). A dúvida colocada pelo autor é a de saber se o
Mercosul não será mais um sonho bolivariano jogado para o futuro.
Em sua conclusão, o Professor Helder levanta uma hipótese que talvez se pudesse
classificar de “romântica-realista”. Na medida em que as elites políticas interessadas no
desenvolvimento regional não se revelarem capazes de implementar um projeto
integracionista de base sólida, “com amplo comprometimento dos estados e das sociedades da
região”, quem sabe um fenômeno novo, o da participação das entidades representativas das
classes trabalhadoras, não poderia conduzir, de fato, as mudanças qualitativas importantes no
âmbito das projeções integracionistas ?
A questão, tal como colocada de maneira absolutamente pertinente pelo historiador
gaúcho, representa um verdadeiro desafio político e organizacional aos partidos e agrupações
representativas dos trabalhadores do Cone Sul latino-americano: já não basta com varrer o
chamado “entulho autoritário” de anos de desenvolvimento capitalista excludente; é preciso
também eliminar o “entulho anti-integracionista” de décadas de industrialização protecionista
e falsamente nacionalista.
O “romantismo” do objetivo final não exclui, de forma alguma, o “realismo” da
participação democrática dos mais diversos setores sociais no projeto MERCOSUL. Em todo
caso, o livro do Professor Helder é um excelente convite a uma reflexão de longo curso sobre
o processo integracionista neste pedaço da América Latina.

Brasília: 6 de outubro de 1992.


Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana
(Brasília: n. 7, Outubro-Dezembro 1992, p. 144-146).

601
Princípios do Mercosul

José Ângelo Estrella Faria:


O Mercosul: Princípios, Finalidade e Alcance do Tratado de Assunção
(Brasília: NAT/SGIE/MRE, 1993)

Der Mercosüd: Prinzipen, Endzweck und Umfang des Azuncion-Vertrag. Tal poderia
ser o título da presente obra, saída da pluma, ou melhor, do computador de José Ângelo
Estrella Faria. Com efeito, este tão erudito quanto pioneiro estudo sobre o Tratado de
Assunção e o processo de constituição do MERCOSUL foi redigido em português, mas ele
poderia tê-lo sido igualmente em alemão, língua na qual o Autor se distinguiu como Magister
Iuris Europæi (pela Universidade de Saarbrücken). O trabalho mantem, aliás, inúmeras
“afinidades eletivas” com o espírito e a forma das grandes teses alemãs de pós-graduação,
como se verá por sua leitura.
A cultura universitária germânica está habituada ao sistema dos ensaios monográficos
de amplo escopo, nos quais um único tema é analisado em suas mais diferentes vertentes e
facetas. Esses verdadeiros monumentos à erudição acadêmica costumam esgotar o assunto a
que se entregou um paciente pesquisador, muitas vezes durante longos anos. Uma de suas
características mais marcantes está provavelmente no fato de que suas imensas notas de
rodapé adquirem uma importância similar ao próprio texto principal, descendo ao menu détail
de cada problema abordado no corpo do trabalho.
O Mercosul: Princípios, Finalidade e Alcance do Tratado de Assunção segue
exatamente esse padrão culto da pesquisa universitária alemã. Assim, esta análise jurídico-
econômica do Tratado de Assunção esmiúça literalmente todos os aspectos relevantes do
instrumento criador do MERCOSUL e parece esgotar a interpretação de seus mecanismos
internos. Ela o faz, inclusive, numa perspectiva dupla ou triplamente comparatista, pois que
os referenciais mais constantes para a avaliação do processo de integração do Cone Sul latino-
americano são o sistema multilateral de comércio consubstanciado no GATT, a experiência
da Comunidade Econômica Europeia e a jurisprudência acumulada pela Corte de
Luxemburgo na interpretação do Tratado de Roma, ademais dos instrumentos propriamente
regionais de integração, como o Acordo de Cartagena e o(s) Tratado(s) de Montevidéu.
Todos os argumentos de natureza jurídica ou econômica desenvolvidos no estudo
remetem invariavelmente ao Tratado de Assunção – inserido como apêndice ao presente
volume – e o modelo analítico seguido pelo Autor opera uma divisão relativamente simples e

602
meridianamente clara dos temas em debate. Numa primeira parte, são avaliados os princípios
e regras gerais do Mercosul, enquanto esquema integracionista, ao passo que, na segunda
parte, são expostas e discutidas as disposições materiais do próprio Tratado de Assunção, isto
é, seus compromissos relativos à liberalização do intercâmbio recíproco e ao estabelecimento
de uma política comercial comum.
Os founding fathers do processo de integração sub-regional sabiamente decidiram
fundá-lo sobre os princípios da flexibilidade, gradualismo, equilíbrio e reciprocidade de
direitos e obrigações, normas aliás criadas na fase bilateral Brasil-Argentina e transferidas
quase que ipsis litteris ao esquema acordado entre os Estados Partes do Tratado de Assunção.
No que se refere às regras gerais do Mercosul, o Autor faz as necessárias distinções
metodológicas e práticas entre zonas de livre comércio, uniões aduaneiras e um mercado
comum pleno, que corresponde ao modelo privilegiado pelos quatro países membros. Estes se
comprometem a desenvolver uma ação conjunta na implementação dos objetivos do Tratado e
a efetuar a coordenação das políticas macroeconômicas necessárias para tal finalidade.
A segunda parte está dedicada, como se disse, à análise das disposições do Tratado
que regulam a livre circulação de mercadorias no Mercosul (isto é, redução tarifária, princípio
do tratamento nacional, eliminação de restrições e medidas de efeito equivalente) ou que
estabelecem alguns limites a tal prática, como é o caso das cláusulas de salvaguarda.
Os compromissos relativos à política comercial (comércio com terceiros países,
proteção contra práticas desleais) são tratados no capítulo V, enquanto que o último discute a
relação entre o Tratado de Assunção e os acordos regionais anteriores (acordos Brasil-
Argentina, Tratado de Montevidéu), inclusive no que se refere a seu suporte intelectual
(regras gerais sobre sucessão e hierarquia de tratados). O Autor chega a aproximar a
experiência da transição entre a fase bilateral e a quadrilateral no Cone Sul da anterior
experiência europeia de transposição do Benelux para o MCE, sem aparentemente atinar que,
a despeito da similitude geral de propósitos entre o Tratado de Assunção e o Tratado de
Roma, o Mercosul atual é o próprio Benelux, tanto no que concerne a estrutura institucional
privilegiada como no que tange aos mecanismos utilizados para a conformação da união
aduaneira pretendida para 1995.
Com efeito, constando de apenas 24 artigos, o Tratado de Assunção não pode ser
comparado diretamente ao Tratado de Roma, muito embora persiga, grosso modo, os mesmos
objetivos integracionistas. Diferentemente, porém, do instrumento institucional que lançou o
Mercado Comum Europeu, o Tratado de Assunção não comporta nenhum procedimento de
tipo comunitário, nem prevê órgãos supranacionais; tampouco ele contempla aspectos
603
normativos de alcance tão vasto como, por exemplo, a política agrícola comum da CEE, cujos
parâmetros são definidos no âmbito da Comissão Europeia.
Do ponto de vista comparativo, portanto, o Tratado de Assunção se aproxima bem
mais da Convenção Benelux de 1944 (firmada em Londres, em 5 de setembro de 1944, e
completada pelo Protocolo da Haia, de 14 de março de 1947), que instituiu uma união
aduaneira entre a Bélgica, o Luxemburgo e os Países Baixos. Esses países se propunham,
resumidamente, a criar um território econômico no qual nada se oporia à livre circulação de
bens, serviços, capitais e pessoas, a eliminar qualquer discriminação entre produtos e
produtores nacionais respectivos, a instaurar uma política econômica, financeira, fiscal e
social coordenada, a instituir uma tarifa externa comum, a estabelecer uma política comercial
e cambial comum em relação a terceiros países e a promover o bem-estar econômico e social
de seus povos. No plano institucional, a implementação do Benelux deveria ser obra de
conferências ministeriais entre os três países, assim como de órgãos mistos econômicos e
técnicos, com função puramente consultiva.
Estes mesmos objetivos e mecanismos são encontrados, com as diferenças que se
sabe, no Tratado de Assunção, que também prevê, como no caso do Benelux, uma Comissão
Interparlamentar de caráter consultivo, mas não um Parlamento dotado de poderes específicos
no quadro de uma comunidade de Estados. O Tratado de Roma, por sua vez, apresenta-se
como uma construção sistemática e progressiva de um conjunto “regional”, cujo
funcionamento dependia desde o começo de instituições, senão supranacionais, comuns e pelo
menos “desnacionalizadas”: a Comissão, guardiã do Tratado, independente dos Governos,
vela, junto com a Corte de Justiça, pelo cumprimento das obrigações (que são muito precisas
em termos de desarme aduaneiro e de tarifa comum). A Comissão por sua vez remete projetos
de diretivas, de regulamento ou de decisão ao Conselho, cujas decisões, durante a fase de
transição para o mercado comum, também requeriam a unanimidade. Mas as decisões e
regulamentos do Conselho tinham força de lei para os Estados membros, sendo diretamente
aplicáveis nos territórios destes, ou, no caso das diretivas, necessitando de sua transposição
para a lei nacional.
A aproximação do atual Mercosul-Benelux ao modelo da CEE se dará, na verdade, a
partir da conclusão de um novo tratado de integração, a ser negociado e firmado no segundo
semestre de 1994, quando então a instituição de órgãos comunitários definitivos significará o
ato efetivo de criação do Mercado Comum do Sul. Assim, sem ser necessariamente um
“híbrido conceitual”, o Mercosul representa uma estrutura de transição entre uma união
aduaneira e um mercado comum de tipo simplificado.
604
Essas características não escapam, por certo, ao bisturi analítico de José Ângelo Faria,
que disseca o corpo ainda em formação do Mercosul, aprofunda-se no estudo de sua anatomia
institucional e não hesita em apontar as lacunas mais evidentes e as omissões mais
preocupantes do Tratado de Assunção, fazendo com isso obra de desbravador intelectual desta
terra incógnita que ainda é a integração sub-regional. O principal mérito do trabalho de Faria
está precisamente nos inúmeros ensinamentos – retirados sobretudo do confronto entre as
disposições e a prática do GATT, da CEE e do comércio internacional em geral com os
mecanismos em vigor no Tratado de Assunção – que ele pode aportar para a negociação e a
conformação do instrumento definitivo do Mercosul. Nesse sentido, sua leitura atenta do
Tratado, conformada nesta obra, fornece aos negociadores diplomáticos dos quatro países
membros uma preciosa “agenda” de consulta para as tarefas que devem ser implementadas no
terreno institucional e político no segundo semestre de 1994.
A edição e divulgação deste livro foi tornada possível graças à cooperação que desde
cedo se estabeleceu entre a Subsecretaria-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de
Comércio Exterior, do Ministério das Relações Exteriores, e a Associação Brasileira de
Estudos da Integração, emérita instituição de pesquisa dirigida desde Porto Alegre pelo Dr.
Werter Faria, e representa o primeiro exemplo de uma colaboração entre o MRE e a ABEI
que promete estender-se nas próximas etapas da integração do MERCOSUL.

Brasília: 23 de fevereiro de 1993.


Publicado como introdução ao livro (p. vii-x);
republicado no Boletim de Integração Latino-Americana
(n. 12, janeiro-março 1994, p. 222-224).

605
Mercosul: Passado, Presente e Futuro

Pedro da Motta Veiga:


A Evolução do Mercosul no Período de Transição: Hipóteses Alternativas e Cenários
(Rio de Janeiro: Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior, Projeto IPEA/GESEP de
apoio às Negociações no Mercosul, 1992)

Assim como existe, na história política e constitucional de muitos países, uma


categoria especial de homens aos quais, pelo devotamento especial dedicado à causa nacional
e a clarividência com que fixaram o itinerário futuro do país, se lhes apregoa a condição
altamente elogiosa de founding fathers, também deveria existir, na história do pensamento
acadêmico e da reflexão prospectiva, uma categoria de textos aos quais, pela qualidade
analítica, densidade de informações e capacidade de projeção, se agregaria o rótulo de
founding papers.
Este é o caso de obras clássicas – a posteriori, evidentemente – que “fundaram” o
pensamento social do Ocidente moderno e o título certamente se aplicaria aos conhecidos
livros de Montesquieu, Adam Smith, Marx, Freud, Keynes e muitos mais. Outros “clássicos”,
menos festejados fora de um público restrito de especialistas – como Karl Popper, por
exemplo – ou estigmatizados politicamente durante boa parte da vida – era o caso de
Raymond Aron – deixaram ainda assim obras que marcaram profundamente a reflexão teórica
e prática sobre determinadas questões importantes da sociedade contemporânea.
O Brasil, com algumas raras exceções – Gilberto Freyre, Celso Furtado, José
Guilherme Merquior – quase não chegou a produzir pensadores que extravasassem as
fronteiras do debate acadêmico nacional. O País é grande, mas o mundo é ainda mais vasto e
tanto a escassez da produção científica nacional como a língua contribuem para isolar-nos das
correntes mais avançadas da reflexão acadêmica.
Em escala regional, porém, o Brasil é certamente um gigante, o que pode ajudar a
ampliar nossa contribuição ao debate latino-americano sobre os dilemas do presente e as
escolhas do futuro. Uma reflexão responsável sobre as linhas estratégicas e as opções táticas
desses países no processo de desenvolvimento econômico e social deve, assim, ser bem
recebida por todos aqueles que se preocupam com nosso destino como nações em fase de
adaptação às novas e difíceis condições da ordem econômica mundial. Se a contribuição
acadêmica, além de tudo, enfoca de maneira lúcida um terreno relativamente pioneiro, como é

606
o da integração econômica, ela pode, a justo título, aspirar ao epíteto criado por nós de
founding paper.
Para orgulho do pensamento econômico brasileiro, no campo específico da reflexão
sobre o movimento integracionista, o paradigma se aplica, sem falsos elogios, ao trabalho de
Pedro da Motta Veiga sobre os desafios atuais e futuros do Mercosul.1 Mais precisamente,
não se trata de uma obra “meramente” econômica, já que os argumentos apresentados sobre
os problemas da institucionalização da nova área de integração e sobre os atores sociais nesse
processo mereceriam enquadrá-la no campo mais amplo da teoria social, no sentido
propriamente frankfurtiano da palavra. E, em se tratando de uma discussão que aponta para o
futuro, ela poderia se encaixar no universo conceitual do que o filósofo alemão Reinhart
Koselleck já chamou de “projeção utópica do futuro”.
O Mercosul, felizmente para nós, já não é uma simples utopia, e sim uma decisão
política irreversível, quase que uma fatalidade geoestratégica nesses tempos de formação de
blocos comerciais e zonas preferenciais. Se há algo de utopia no projeto do Mercosul, trata-se
de uma utopia formulada conscientemente e perseguida como meta objetiva do planejamento
político governamental. Em outros termos, trata-se de um cenário em construção, talvez com
modestos tijolos de barro, mas com muita vontade política na argamassa.
O texto ora em resenha de Pedro da Motta Veiga está precisamente organizado em
torno dos possíveis cenários para a evolução do Mercosul, isto é, constitui-se num ensaio de
formulação das trajetórias futuras da área de integração do Cone Sul com base numa
discussão de seu itinerário passado e da situação atual. Como ele mesmo diz em sua
introdução, “A confecção de cenários acerca da trajetória futura do Mercosul é uma tarefa
inédita no Brasil”. Mais uma razão para sermos gratos a Pedro da Motta, convertido em
bandeirante nessa verdadeira terra incógnita que parece ser o Mercosul, uma imenso território
ainda não suficientemente mapeado do ponto de vista da economia política, feito de alguns
desertos analíticos, muitas selvas macroeconômicas, alguns pântanos sociais e muitos buracos
burocráticos pelo caminho. Enfim, é um edifício que pode não ter a perfeição geométrica dos
palácios acarpetados onde circulam os “eurocratas” de Bruxelas, mas que promete igual
firmeza de decisão na conformação de um espaço econômico de enormes dimensões, no qual
devem passar a circular livremente, no futuro previsível, homens, bens e serviços.

1
O Autor já organizou uma antologia de textos sobre a integração no Cone Sul com forte ênfase no
processo Brasil-Argentina; vide Pedro da Motta Veiga (org.), Cone Sul: A Economia Política da
Integração (Rio de Janeiro: FUNCEX, 1991).
607
O presente do Mercosul – marcado como se sabe por fortes assimetrias entre as
economias dos países membros, eles mesmos enfrentando situações de crise estrutural e
conjuntural inéditas em suas respectivas histórias econômicas – não parece oferecer
argumentos para um itinerário tranquilo e muito menos para um futuro feliz. E, com efeito,
um dos cenários idealizados por Motta Veiga é feito das piores hipóteses permitidas pelas
variáveis selecionadas: pouca vontade política nos estadistas da região, estabilidade
macroeconômica próxima de zero, harmonização microeconômica nula ou insuficiente,
baixíssimo grau de institucionalização comunitária e interna, comércio intrarregional mantido
em níveis modestos e fluxos inexistentes ou baixos de capitais de investimento entre os países
membros, combinado a efeitos negativos do processo de reestruturação industrial. É o que ele
chamou de “cenário 3”, uma situação limite feita de incompetência política por parte das
chamadas classes dirigentes, de sabotagem econômica por parte das elites empresariais e de
insucesso relativo ou absoluto das atuais políticas de estabilização econômica e de ajuste
estrutural. Enfim, o pior dos mundos para os líderes políticos e os planejadores
governamentais “mercosulianos” (não se pode ainda chamá-los de “latinocratas”). E o quadro
pode se complicar ainda mais se, em lugar da existência de blocos cooperativos no sistema
mundial de comércio, estivermos em face de várias “fortalezas comerciais” relativamente
independentes e preocupadas em administrar os termos e quotas do “managed trade”, a
palavra da moda da nova “teoria estratégica do comércio internacional”.
Mas, o futuro também pode dar certo: teríamos então, no “cenário 1”, um
MERCOSUL quase róseo, feito de enorme vontade política para responder aos desafios da
atual instabilidade econômica, embalado por uma perfeita coordenação das políticas
macroeconômicas, acalentado por uma harmonização micro relativamente satisfatória,
institucionalizado segundo os mais acabados padrões da racionalidade weberiana,
estimulando o comércio intrarregional em taxas exponenciais e abrindo fronteiras aos
investimentos diretos e associações conjuntas. Enfim, o mundo com que sonhariam nossos
políticos e burocratas engajados na tarefa de vender o Mercosul ao público interno e externo.
Acalmem-se, porém, os pessimistas e otimistas: nem um nem outro cenário têm
chances razoáveis de se efetivarem completamente, pelo menos na forma pura em que são
apresentados, tanto mais que eles representam situações limites, concentrando os sinais
positivos ou negativos das variáveis em jogo. O mais provável, segundo Motta Veiga, é uma
realização combinada dos cenários 2a e 2b, ou seja, um Mercosul nem tão perfeito como a
delicada arquitetura europeia, que funcionaria com a precisão dos relógios suíços – que aliás

608
devem permanecer fora da CEE durante um certo tempo ainda –, mas, também, nem tão
precário como uma tapera africana ou tão desengonçado quanto um alemão dançando samba.
Em outros termos, o Mercosul tem chances razoáveis de se realizar economicamente
(entre 50 e 60%, calcula Motta Veiga) e mais ainda politicamente, dependendo da vontade
política dos estadistas no comando. Como ele diz, “a ‘politização’ das relações econômicas
internacionais é um traço essencial que acompanha a crescente importância atribuída ao
princípio da reciprocidade na gestão das políticas comerciais. É talvez na dinâmica dos
processos de integração regional que o papel dos fatores políticos e das disposições
subjetivas na configuração daquelas relações se revela mais forte, contradizendo análises
‘economicistas’ da viabilidade dos processos de integração, que invariavelmente desembocam
no diagnóstico de sua inviabilidade, ressaltando dificuldades e obstáculos macroeconômicos,
estruturais, etc. No caso concreto da integração do Cone Sul, o papel da dinâmica política é
ainda maior do que o observado em outros processos em curso no mundo, contrastando com a
incipiência de interesses solidários e de iniciativas regionais no âmbito empresarial.”
O Autor não elude os problemas reais que terão ainda de enfrentar os planejadores
políticos e as autoridades econômicas dos países membros do Tratado de Assunção, os
principais deles se situando no terreno da instabilidade cambial e no da coordenação
macroeconômica. As assimetrias de políticas microeconômicas, seguramente enormes entre
os países membros – tanto entre os “dois grandes”, quanto entre estes e os “dois pequenos” –
conformariam uma “agenda problemática, mas factível”, em que pese o fato de que é nesse
setor onde os custos sociais da reconversão mais duramente se farão sentir. Em qualquer
hipótese, os atores políticos, mais provavelmente do que os atores econômicos, estão
conscientes da enormidade da tarefa que ainda resta a ser cumprida para que em 1995
consigamos alcançar, não ainda o “mercado comum” apregoado nos textos oficiais, mas, uma
“zona de livre comércio cum união aduaneira” relativamente bem constituída e razoavelmente
importante em termos geoeconômicos para justificar uma certa ponta de orgulho em relação
às gerações passadas.
O futuro verdadeiro do Mercosul, este vai começar a ser construído a partir do Tratado
definitivo que, em finais de 1994, fixar as instituições permanentes da nova área de
integração. Até lá, os cenários evolutivos constituem meras hipóteses de trabalho para
utilização dos planejadores políticos. Como sabem todos aqueles que se dedicam a leituras
prospectivas, o “cemitério do futuro” está cheio de previsões não realizadas, desde as mais
modestas envolvendo preços de matérias-primas e quebras nas bolsas (desde que o nosso

609
próprio dinheiro não esteja metido na brincadeira), até as mais catastróficas, envolvendo
guerras comerciais ou até mesmo – agora, felizmente, mais distante – a guerra nuclear.
As trajetórias alternativas – bem mais realistas – traçadas no trabalho de Motta Veiga
sobre o Mercosul têm um grande mérito intrínseco, e por isso ele merece plenamente o título
paradigmático de founding paper da integração sub-regional: elas oferecem um guia
razoavelmente seguro ao planejador político sobre a importância relativa de cada uma das
variáveis operacionais na presente fase de transição, dimensionando seu impacto econômico e
político na marcha do processo, pesando a conveniência ou utilidade de se insistir numa ou
noutra vertente de coordenação de políticas, lançando luzes, enfim, sobre o que é o que não é
verdadeiramente estratégico na política de integração. A esse respeito, o estudo é mais do que
uma simples “economia política” – no sentido clássico da palavra – da integração regional;
ele representa uma espécie de lanterna conceitual e analítica, apta a guiar os passos dos
negociadores governamentais. É tudo o que se pede de um founding paper.

Brasília: 27 de março de 1992.


Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana
(Brasília: MRE, n. 4, janeiro-março de 1992, p. 72-74).

610
Harmonização de Políticas no Mercosul

José Maria Aragão:


La Armonización de Políticas en el Mercosul: La construcción de un Mercado Común
(Buenos Aires: Instituto para la Integración de América Latina, 1991; BID/INTAL-DP/458,
Publicación n. 383)

José Maria Aragão é, se ele me permite a expressão, um vieux routier do processo de


integração na América Latina. Ele assistiu a todos os momentos chaves desse longo processo,
desde os tempos românticos – ou heroicos, como se queira – da antiga ALALC, conheceu
todos os personagens importantes desse sonho continental, que passa por um período de
relativo desencanto com a ALADI, e participa igualmente da fase atual de renascimento do
projeto integracionista, agora numa vertente sub-regional, com a aceleração da conformação
de uniões aduaneiras no âmbito do Grupo Andino e do próprio Mercosul.
O livro, ou melhor, o relatório publicado pelo INTAL, condensa provavelmente a mais
significativa contribuição teórica de Aragão para a compreensão do processo integracionista
no Cone Sul latino-americano, oferecendo um marco referencial de análise sobre a
harmonização de políticas macroeconômicas e setoriais nos países que se propuseram
constituir o Mercado Comum do Sul.
Como ele mesmo lembra em sua introdução, a dotação natural de recursos da sub-
região, as dimensões territoriais e humanas do conjunto dos países membros, a diversidade
agrícola e industrial “fazem do Mercosul uma das mais importantes agrupações econômicas
em formação no mundo ocidental”. Mas, ele também se encarrega de recordar que o
funcionamento do Mercosul deverá efetivar-se num contexto internacional diferente daquele
que marcou a criação e consolidação da CEE, num momento em que a inovação tecnológica
diversifica produções, altera o ciclo de vida dos produtos, redimensiona economias de escala,
restringe os aportes da mão-de-obra e das matérias-primas no custo final e modifica os
pressupostos em que se baseava a teoria clássica das vantagens comparativas. Mais ainda, o
Mercosul tem de consolidar-se em meio à crescente abertura externa das economias
nacionais, que muitas vezes adotam decisões de caráter unilateral (como a rebaixa tarifária,
por exemplo), sem consulta aos parceiros regionais.
O texto de José Maria Aragão é tão instrumental para os objetivos do processo de
transição quanto o trabalho de Pedro da Motta Veiga sobre os desafios atuais e futuros do
Mercosul, acima resenhado. Diferentemente deste último, porém, ele não está articulado em
torno dos possíveis cenários para a evolução do Mercosul, mas sim procura oferecer subsídios
611
teóricos para a discussão dos temas que integrarão o amplo campo de negociações para a
harmonização e/ou coordenação de políticas. Como tal, ele oferece igualmente um quadro
teórico suscetível de guiar os representantes governamentais na definição de uma estratégia de
harmonização e/ou coordenação de políticas, em função dos instrumentos de política
econômica julgados mais relevantes nos processos de formação e de funcionamento do
Mercosul.
Pela agudeza e detalhamento na identificação desses instrumentos e pela precisão com
que ele enumera as tarefas básicas no período de transição, o relatório de Aragão conforma,
nem mais nem menos, um verdadeiro “manual de harmonização” do Mercosul, indo inclusive
mais além, uma vez que trata, com igual proficiência, das etapas mais avançadas da
construção comunitária, por meio de medidas que criam uma ativa interdependência
econômica e social entre os países membros. O Autor, aliás, elaborou um quadro sinótico do
tipo de atividades requeridas para a implementação e desenvolvimento do Mercosul, em suas
várias etapas, classificadas segundo seu grau de essencialidade ou prioridade para a
consecução dos objetivos do Tratado de Assunção. Esse quadro mereceria ser ampliado,
destacado e pendurado na parede dos principais planejadores políticos e coordenadores do
Mercosul durante o período de transição, dadas sua capacidade de comunicação visual e
densidade de informação.
O Capítulo II do Relatório, sobre a estratégia de harmonização de políticas, traz uma
relação dos diversos elementos para a conformação de um “programa de trabalho” durante o
período de transição. No caso da Tarifa Externa Comum, por exemplo, Aragão discute as
virtudes intrínsecas aos modelos de “tarifa neutra” (isto é, o nível que mais se aproximaria da
“tarifa ótima” em termos estritamente comerciais) ou de “tarifa funcional” (ou seja, referida a
objetivos mais amplos de indução de fatores produtivos e estruturas industriais), bem como
explicita as tarefas operativas para a implementação da TEC. O mesmo tipo de análise se
repete para cada um dos instrumentos de harmonização, fazendo do relatório de Aragão um
text-book extremamente importante para todos aqueles que se encarregarão, precisamente, de
“harmonizar” os trabalhos dos diversos subgrupos técnicos do Mercosul, que muitas vezes
operam em isolamento um do outro.
O volume é completado por uma rica bibliografia seletiva, cobrindo tanto os aspectos
teóricos da integração, como a experiência Brasil-Argentina, o Mercosul e as áreas setoriais
objeto de tratamento no texto. A importância e a pertinência do trabalho de Aragão
certamente recomendariam sua tradução, edição e ampla distribuição no Brasil, sobretudo nos

612
meios acadêmicos, tão carentes de documentação ao mesmo tempo abrangente e sintética
sobre o processo de integração em que agora se encontra engajado o Brasil.

Brasília: 27 de março de 1992.


Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana
(Brasília: nº 4, Janeiro-Março 1992, pp. 74-75).

613
NAFTA: Um Bloco Comercial em Construção

Gary Clyde Hufbauer e Jeffrey J. Schott:


North American Free Trade: Issues and Recommendations
(Washington: Institute for International Economics, 1992).

Parafraseando Mark Twain, que, ao comentar versões indevidamente divulgadas sobre


seu suposto passamento repentino, afirmava ironicamente que “as notícias sobre a minha
morte são bastante exageradas”, também poderíamos dizer que os argumentos relativos a uma
iminente ou possível guerra comercial entre os blocos regionais relevam muito mais da
imaginação política de seus autores do que da realidade da vida econômica internacional.
Da mesma forma, os rumores sobre a conformação de um bloco asiático, sob a
liderança do Japão, pertencem mais ao reino da fantasia do que ao terreno da prática concreta:
ainda que esse desenvolvimento geoeconômico, mas de imensa significação político-
estratégica, seja teoricamente possível ele não é realisticamente plausível, pelo menos no
curto prazo. Apesar de economicamente pacificado, o Extremo Oriente é — e permanecerá
ainda durante algum tempo — um quebra-cabeças diplomático e uma incógnita geopolítica.
E, como demonstrou o Embaixador Amaury Porto de Oliveira, em brilhante análise da
história recente da Asia oriental, mesmo os esforços atuais de cooperação naquela região
destinam-se mais a criar um “consenso do Pacífico com vistas à edificação da política
econômica que assegure o crescimento inabatido da região”, no próximo século, do que a
criar um megabloco comercial similar a seus congêneres da Europa e da América do Norte.1
O que não se pode negar, todavia, é que os blocos regionais de comércio tornaram-se
uma verdadeira moda – ou, talvez, uma epidemia econômica – nestes tormentosos tempos de
reestruturação das regras multilaterais que devem presidir o sistema internacional de
comércio. A lenta agonia da Rodada Uruguai, patrocinada pelas economias mais poderosas do
planeta, convive com animadas conversações bi-, tri- ou plurilaterais entre esses mesmos
parceiros, repentinamente entediados dos grandes foros internacionais e convertidos às
virtudes do “minilateralismo” seletivo.
Não apenas assistimos a uma rápida proliferação de agrupamentos regionais a vocação
econômica, como também a um considerável reforço dos já existentes e ao aprofundamento
de seus compromissos políticos no processo de liberalização econômica intrarregional (agora

1
Cf. Amaury Porto de Oliveira, História Recente do Oriente Remoto (São Paulo: Instituto de Estudos
Avançados-Universidade de São Paulo, Coleção Documentos, Série “Assuntos Internacionais” n. 21,
abril de 1992), p. 85-86.
614
não mais restrita ao terreno comercial, mas cobrindo as áreas financeira, de serviços, da
propriedade intelectual e dos investimentos). As mútuas recriminações trocadas publicamente
entre esses agrupamentos, com ameaças repetidas de retaliações comerciais recíprocas, não
exclui, evidentemente, a possibilidade de uma confrontação econômica entre eles, mas os
laços de interdependência já criados pela rápida transnacionalização dos circuitos produtivos
no período recente tornam remotas as chances de uma ruptura fundamental nos fluxos
intercontinentais já consolidados (e sempre crescentes) de bens, serviços e capitais.
Em outros termos, se ainda não assistimos ao “fim da História”, como gostaria Francis
Fukuyama, estamos talvez bem pertos de contemplar algo que se poderia chamar de “fim da
Geografia”, com a incorporação definitiva das últimas terrae incognitae do comércio
internacional – que eram a ex-União Soviética e a própria China continental – ao grande
intercâmbio dos mercados capitalistas. Os blocos regionais de comércio, em que pese sua
motivação muito pouco liberal, têm um papel a desempenhar nessa reestruturação da ordem
econômica mundial, ao atuarem simultaneamente como pontos focais de criação e de desvio
de comércio, influenciando portanto na alocação internacional de recursos, nas decisões sobre
localização de indústrias e no planejamento estratégico de médio prazo a que se dedicam tanto
os executivos das grandes corporações como os burocratas econômicos dos novos impérios
mercantis.
É nesse contexto que vem se inserir o debate sobre a zona de livre comércio em
construção na América do Norte, a que nos convida o livro de dois distinguidos “fellows” do
“Institute for International Economics”, o respeitado “think-tank” dirigido desde Washington,
a “Meca do unilateralismo global” por esse eminente defensor do “multilateralismo liberal”
que é Fred Bergsten. O Instituto detém uma lista considerável de publicações nos mais
diversos campos da economia internacional – inclusive alguns “special reports” sobre os
países latino-americanos, entre eles o Brasil — e uma lista ainda mais impressionante de
“forthcoming books”.
A obra analítica e opinativa – daí o “issues and recommendations” do subtítulo – de
Gary Hufbauer e Jeffrey Schott está organizada em três partes: a discussão da “economia
política” da NAFTA (North American Free Trade Area), uma apresentação detalhada de suas
implicações econômicas em relação a elementos macroeconômicos selecionados – comércio,
investimentos, trabalho, meio ambiente, regras de origem e propriedade intelectual – e, por
fim, análises setoriais sobre o impacto da NAFTA no comportamento atual e na performance
futura da economia mexicana e das indústrias automobilística, siderúrgica e têxtil, nos setores
agrícola, financeiro e energético dos Estados Unidos e do Canadá.
615
A constituição da NAFTA representa um passo mais no processo de integração
econômica que está em curso na América do Norte desde o primeiro acordo contraído entre os
EUA e o Canadá, em 1965, sobre indústria automobilística. Alguns anos depois, as chamadas
indústrias “maquiladoras” na fronteira com o México começavam a desempenhar um papel
relevante no intercâmbio bilateral. Em 1988, os Estados Unidos e o Canadá davam
lançamento ao Acordo de Livre Comércio envolvendo as duas maiores economias do
hemisfério ocidental. Em junho de 1990, o Presidente George Bush apresentava seu plano
para a implementação de uma zona de livre comércio hemisférica, anunciando imediatamente
a abertura de negociações com o México com esse objetivo. O Canadá, visivelmente
preocupado com o impacto sobre seu próprio comércio com os EUA, concordou em juntar-se
ao processo negociador, o qual concluiu-se em agosto de 1992 com a assinatura do “North
American Free Trade Agreement”.
Por suas dimensões nominais e importância econômica, a nova área livre-cambista
pode ser comparada ao “Espaço Econômico Europeu”, a área de livre comércio que resultará
da unificação territorial dos mercados da CEE e da EFTA. Ambas apresentam um PNB global
na faixa dos 6 trilhões de dólares e um mercado consumidor de mais de 350 milhões de
habitantes, ou seja, perfis relativamente similares no que se refere à capacidade econômica
potencial desses enormes subsistemas no plano mundial. Comparado a esses gigantes, o
Mercosul fica bem atrás em termos de população (200 milhões) e perde feio no que se refere
ao Produto bruto: menos de 450 bilhões de dólares, o que se reflete igualmente numa renda
per capita dez vezes menor (em que pese o fator negativo representado pelo ainda limitado
poder de compra dos cidadãos mexicanos no conjunto dos mercados norte-americanos). Em
qualquer hipótese, porém, quando totalmente conformada e implementada, já em pleno século
XXI, a NAFTA desponta como um dos mais promissores blocos regionais dessa nova era de
comércio “estratégico”, um renascimento paradoxal do mercantilismo dos séculos XVII e
XVIII.
Do ponto de vista político, entretanto, a NAFTA é uma experiência de integração bem
menos ambiciosa do que os modelos europeu e do Cone Sul, já que ali foram deixados
deliberadamente de lado a questão da unificação alfandegária e os problemas da
uniformização cambial e monetária, para não falar de instituições políticas a vocação
comunitária. A NAFTA implica uma menor (ou quase nenhuma) cessão de soberania e uma
limitada mobilidade de mão-de-obra (a não ser a dos “white-collars”, já que os trabalhadores
mexicanos continuarão a emigrar clandestinamente).

616
Um aspecto mais importante do projeto norte-americano é que ele é um dos primeiros
a envolver países social e economicamente tão diferenciados como os EUA e o Canadá, por
um lado, e o México, por outro. O contraste com as duas outras experiências de integração
econômica – na Europa e na América do Sul – é digno de nota. A despeito da incorporação
ulterior da Grécia, de Portugal e da Espanha, o processo europeu foi deslanchado a partir de
uma base social e econômica relativamente homogênea, ou pelo menos dispondo de
condições e níveis de desenvolvimento relativamente similares. No Cone Sul, igualmente, os
contrastes internos ao Brasil são mais importantes do que os que resultam da comparação das
médias nacionais dos principais indicadores socioeconômicos. Na América do Norte, ao
contrário, a heterogeneidade estrutural parece ser uma espécie de “pecado original” da
NAFTA: enquanto o PNB per capita dos dois gigantes anglófonos supera a casa dos 20 mil
dólares, a renda média mexicana ainda não chegou na faixa dos 3 mil dólares. Um elemento,
contudo, a aproximar os blocos em conformação nas duas extremidades das Américas é o
peso relativo e absoluto representado pelos principais parceiros em cada um dos
agrupamentos regionais: tanto os EUA como o Brasil respondem, na NAFTA e no
MERCOSUL, por cerca de 70 e 85% das respectivas populações e produtos globais, enquanto
que na Europa a participação da Alemanha unificada não vai além de 22 e 25% da população
e do produto combinados da CEE-EFTA.
Deixemos compreensivelmente de lado a componente propriamente sociológica da
integração, representada por dois conjuntos culturais diametralmente opostos – objeto de
estupendo trabalho de história cultural comparada por parte do grande Latin-Americanist
Richard Morse2 –, o que provavelmente explica porque o processo norte-americano se encerra
(pelo menos temporariamente) em sua dimensão estritamente comercial.
A despeito disso, a experiência da NAFTA guarda ensinamentos importantes para
outros processos de integração regional, ou pelo menos de liberalização comercial, sendo que
algumas lições já tinham sido levantadas a partir do acordo bilateral EUA-Canadá. O livro de
Hufbauer e Schoot constitui-se, precisamente, num precioso manual de discussão dos
problemas mais relevantes a serem enfrentados atualmente por candidatos a novas zonas de
livre-comércio, ao apresentar e discutir o conjunto da agenda substantiva que esteve no centro
das negociação para a constituição da NAFTA.
Basicamente, estavam em jogo seis grandes conjuntos de problemas a serem
enfrentados trilateralmente: acesso aos mercados, regras comerciais, serviços, investimentos,

2
Ver Richard M. Morse, O Espelho de Próspero: Cultura e Idéias nas Américas (São Paulo:
Companhia das Letras, 1988); título original: Prospero’s Mirror: a Study in New World Dialectic.
617
propriedade intelectual e solução de controvérsias, os três últimos basicamente de interesse
dos EUA, que continuam assim, nos planos bilateral e plurilateral, sua santa cruzada em favor
dos “novos temas” inaugurada na conferência comercial ministerial de 1982. O julgamento
dos autores sobre o encaminhamento dessas complicadas “issues” da agenda trilateral é
relativamente otimista, muito embora as questões relativas a trabalho e meio ambiente sejam
socialmente sensíveis, economicamente complexas e politicamente difíceis (sobretudo entre
os EUA e o México). Suas recomendações são meridianamente claras – especialmente no que
concerne o caráter do novo Acordo, que eles veem como uma simples extensão do atualmente
existente entre os EUA e o Canadá, em versão revista, ampliada e melhorada – quando não
brutalmente sinceras: as obrigações respectivas devem ser rigorosamente simétricas, não
sendo acordado ao México nenhum tipo de tratamento especial e mais favorável.
As salvaguardas eventualmente introduzidas durante a fase de transição – e aqui vai
um pequeno ensinamento para os negociadores do MERCOSUL – devem limitar-se aos
ajustes temporários requeridos pelos processos de reconversão ligados à repartição inter-
setorial dos fluxos comerciais e, em nenhum caso, dificultar ou impedir a marcha da
especialização e da interdependência intraindustrial. As regras de origem não devem ser
indevidamente utilizadas para impedir fluxos de comércio com outras regiões ou
investimentos de terceiros países, reconhecidamente mais dinâmicos em determinados setores
de exportação.
O México comparece na mesa de negociações como o verdadeiro demandeur da
extensão do Acordo Canadá-EUA de 1988, e por isso é o país que mais ajustes terá de fazer
para adaptar-se ao novo meio ambiente econômico. Será também o maior beneficiado com
novos investimentos e com a perspectiva de altas taxas de crescimento nos próximos anos, o
que promete alterar significativamente não apenas o tecido social mexicano, mas também sua
estrutura política e sua própria postura internacional. De imediato, antes mesmo do Chile –
que pareceria ter melhores condições sociais e econômicas – o México já é um sério
candidato a engrossar no curto prazo as fileiras da OCDE, provavelmente ao mesmo tempo
em que a Coréia venha a ingressar na organização do Château de la Muette.3 O Canadá, por
sua vez, adere relutantemente à NAFTA para não ver seus ganhos reais da relação especial
com os EUA nulificados por um eventual arranjo bilateral entre o México e seu “big brother”
setentrional.

3
Ver Sérgio Abreu e Lima Florêncio, “Area Hemisférica de Livre Comércio: dados para uma
reflexão”, Boletim de Integração Latino-americana (MRE, n. 5, abril-junho de 1992), p. 9-11.
618
Quanto aos EUA, eles aparecem como os grandes ganhadores, pelo menos do ponto de
vista político e ideológico, com a conformação da NAFTA, ainda que os resultados
econômicos devam ser mais modestos, no cômputo global, que os anunciados triunfantemente
pelas lideranças republicanas. Um resultado positivo é também o de impulsionar a agenda dos
EUA – em especial nas áreas dos novos temas, serviços, investimentos, propriedade
intelectual – nos planos multilateral e hemisférico, o que os coloca em boa posição no diálogo
econômico-diplomático com parceiros mais recalcitrantes dentro e fora da região.
Os autores não reconhecem, evidentemente, o novo “imperialismo livre-cambista” dos
EUA no cenário regional, o que, de toda forma, não retira em nada o mérito dessa obra tão
densa quanto intelectualmente isenta e equilibrada (para dois economistas do centro
hegemônico, entenda-se). Eles reconhecem plenamente a interdependência – no sentido
propriamente estrutural, mais que político, da palavra – entre a NAFTA e o sucesso da
Rodada Uruguai do GATT: a possibilidade da balança pender mais para o lado da criação do
que do desvio de comércio depende, em fato, de uma liberalização global conduzida de
maneira uniformemente multilateral.
Os autores abordam muito pouco, ou quase nada, os efeitos da NAFTA sobre os
demais parceiros latino-americanos dos EUA, a não ser para reconhecer que a NAFTA “may
lead to a modest diversion of trade toward Mexican suppliers and away from other Latin
American suppliers in a few important industries and sectors” (p. 343). Na verdade, sabemos,
por estudos preliminares e ainda parciais, que o Brasil – e possivelmente seus parceiros do
Mercosul – conhecerão um impacto negativo decorrente da conformação da nova área de
livre-comércio, não apenas em termos de desvio de comércio para o – e de investimentos do –
hemisfério norte, como também nos próprios mercados regionais latino-americanos. Nessas
condições, caso o padrão de comércio regionalizado venha a prevalecer cada vez mais, o
Brasil realmente deveria preparar-se para cenários estratégicos como o sugerido na proposta
norte-americana de uma zona hemisférica de livre comércio. Não se trata propriamente de
um “sonho americano”, mas talvez seja a maneira de se evitar pesadelos mundiais.

Brasília: 12 de agosto de 1992.


Publicado na RBCE: Revista Brasileira de Comércio Exterior
(Rio de Janeiro: Funcex, Ano 8, n. 33, Outubro-Novembro-Dezembro de 1992, p. 70-72).

619
A Alca do gigante e a Alca dos anões: incompatibilidade de gênios?

Tullo Vigevani e Marcelo Passini Mariano:


Alca: o gigante e os anões
(São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2003, 174 p.; ISBN: 85-7359-305-9)

A Alca, pelo menos no Brasil, parece ter-se convertido numa espécie de rogue
concept, ou seja, no vilão do momento. De fato, esse mero projeto se apresenta como uma
perspectiva temida (para alguns, ele já seria uma realidade), ao mesmo tempo em que como
um destino recusado, e isso pelas mais variadas correntes de opinião, englobando
profissionais do anti-imperialismo e bispos da CNBB, políticos autoproclamados
nacionalistas e industriais protecionistas, sindicalistas tradicionais e ecologistas pós-
modernos. Mesmo economistas, usualmente tidos como ponderados, têm recorrido a
conceitos como “dominação hegemônica”, “assimetria de poder”, “desmantelamento
industrial”, que não costumam frequentar seu discurso normalmente circunspecto. Não se
passa aliás uma semana sem que algum artigo vitriólico, descrevendo o saco de maldades
embutido no futuro acordo hemisférico, seja publicado em algum jornal de circulação
nacional, aproveitando o autor para cobrar do partido atualmente majoritário (e no poder) as
dubiedades ou hesitações em relação a esse antigo projeto de “anexação” da economia
brasileira ao território de caça do novo império.
Com tal exibição de paixões econômicas e de fúrias políticas, fica difícil manter um
debate racional sobre a mais importante proposta de integração continental desde a primeira
conferência internacional americana, realizada na capital do (então nascente) império em
1889-1890. No entanto, esse mesmo caráter controverso indica que estamos necessitando de
bons estudos e de pesquisas rigorosas, como forma de devolver um certo equilíbrio a esse
debate, que não pode obviamente ficar entregue a parti-pris redutores ou simplismos
ideológicos, obscurecendo uma avaliação ponderada sobre a importância da Alca e seu
possível papel no futuro das relações hemisféricas e para o próprio processo brasileiro de
inserção econômica internacional (que não pode ser confundido como um itinerário para o
desenvolvimento, o que a Alca não pode fazer sozinha).
O livro de Vigevani e de Mariano vem justamente preencher essa função de ampliação
(racional) e de balizamento (conceitual) desse importante debate para o Brasil e o Mercosul, e
que vinha sendo impossibilitado pelo festival de superficialismo até aqui disponível para o
grande público. Como apresentação sistemática da estrutura e das etapas seguidas até aqui

620
pelo processo da Alca e como discussão dos problemas enfrentados pelas três dezenas de
“anões” em face do gigante hemisférico, o livro cumpre amplamente esse papel didático-
analítico, dispondo de inegáveis méritos de recapitulação, ademais de uma rara capacidade
(para os padrões do debate intelectual no Brasil) de colocar, no tocante à questão da Alca,
senão todas as respostas que poderiam esperar seus leitores, pelo menos todas as perguntas
pertinentes que podem ser feitas em relação a esse objeto. A despeito de uma concentração na
ciência política, em contraposição ao que seria uma exposição basicamente econômica, cabe
desde já descrever o livro e louvar-lhe as qualidades enquanto primeiro exemplo de avaliação
abrangente do “problema” da Alca no e para o Brasil.
Trata-se de obra relativamente modesta (150 páginas de texto em formato reduzido)
para a complexidade da tarefa, mas que atende à finalidade de apresentar o que é o projeto da
Alca e de introduzir à questão de como ela poderia impactar o Brasil e o Mercosul. Após um
capítulo introdutório (“Esclarecendo dúvidas”), essencialmente conceitual, o livro se compõe
de três grandes capítulos substantivos, cujos títulos são autoexplicativos: “Origem e
desenvolvimento da Alca”, “Por que ‘o gigante e os anões’?” e “O Brasil e suas opções”. Um
capítulo conclusivo retoma as principais questões abordadas ao longo do texto, completando-
se o livro com uma cronologia, um glossário de siglas e de organizações internacionais e
regionais, bem como por uma relação de fontes adicionais de consulta na Internet e uma
bibliografia não exaustiva.
O tom geral do discurso é razoavelmente crítico em relação à Alca, como são em geral
as poucas ilustrações selecionadas provavelmente pelo editor: três cartoons típicos do
jornalismo brasileiro (nos temas clássicos da cobiça imperialista e das desigualdades de
riqueza e poder entre o Norte e o Sul) e uma foto de uma grande “Marcha contra a Alca” (na
qual figuram vários expoentes do atual governo). Não se poderia mesmo esperar ilustrações e
fotos favoráveis à Alca, ou em geral manifestações a favor do livre-comércio, pois essa seria
uma realidade impossível em qualquer país do mundo atual, no qual há uma quase
unanimidade da opinião pública contrária à liberalização comercial, ao mesmo tempo em que
os governos tentam, por vezes de forma discreta e desajeitada, privatizar alguns mamutes,
abrir a economia e atrair investimentos estrangeiros.
Não deve causar espanto, assim, o fato de que a maior parte das análises relativas à
Alca apresentem, invariavelmente, essa visão crítica do processo, como aliás revelado no
próprio subtítulo do livro: “anões”. Por que, exatamente, um julgamento severo, de maneira
preventiva, contra a Alca, com base na desigualdade de base dos parceiros envolvidos, ao
mesmo tempo em que, também invariavelmente, esses opositores julgam de modo muito
621
benigno (e de forma algo míope, eu poderia acrescentar) o mesmo projeto de livre-comércio
em curso de negociação entre o Mercosul e a UE? Por acaso, as chamadas “assimetrias
estruturais” são menos relevantes neste caso, quando a UE ostenta aproximadamente o
mesmo gigantismo em termos de PIB e de comércio exterior do que os EUA, sendo aliás
muito menos atraente dos pontos de vista da composição do intercâmbio e do protecionismo e
do subvencionismo revoltantes na área agrícola?
A despeito dessa característica comum à maior parte das análises relativas à Alca
conduzidas no Brasil, o livro de Vigevani e Mariano constitui, até aqui, a mais completa
exposição do processo negociador hemisférico, desde suas origens até as recentes tomadas de
posição do novo governo brasileiro. Nele se dispõe de uma recapitulação cuidadosa de todos
os encontros mantidos a partir da reunião de cúpula de Miami, em 1994, quando foi lançada a
ideia de um acordo de livre-comércio hemisférico para ser implementado a partir de 2005 (são
examinados inclusive os precedentes, sob a forma da “Iniciativa para as Américas”, lançada
em 1990 por Bush pai, e que conduziria ao acordo do Nafta, tão vilipendiado quanto está
sendo hoje sua extensão continental). De fato, o capítulo sobre “Origem e desenvolvimento da
Alca” apresenta um relato fatual, honesto e objetivo (às vezes transcrevendo até o aborrecido
da linguagem oficial dos comunicados presidenciais, ademais da estrutura negocial em cada
etapa), de cada um dos encontros de cúpula e ministeriais ocorridos desde 1994. Não se
descarta, outrossim, a visão crítica, já que o pressuposto das “bondades” do livre-comércio
está sempre sendo confrontado às suas limitações objetivas em termos de desenvolvimento
econômico e social para todos.
Trata-se, portanto, em primeiro lugar, de uma referência útil a todos aqueles que
necessitam ou desejam saber de onde veio e como caminhou, até aqui, esse problemático
processo de integração (à falta de se poder dizer, com precisão, o que acontecerá com ele na
fatídica data de 2005). O conceito de integração é, aliás, definido no primeiro capítulo como
um meio de se alcançar objetivos considerados estratégicos e que não seriam atingidos
isoladamente. Os governos podem utilizar-se desse método para minimizar riscos ou produzir
aumento de ganhos econômicos. Para os EUA, segundo o livro (p. 14), a proposta da Alca
está a meio caminho da busca de “desenvolvimento econômico” – o que pode parecer
incongruente, na medida em que não há, propriamente, referência mais avançada de
desenvolvimento do que o próprio país – e do fortalecimento de seu “papel hegemônico”,
segundo a “lógica da globalização” (o que sem dúvida corresponde à visão que se tem
externamente dos “objetivos estratégicos” dos EUA). Para outros, numa estratégia mais
defensiva, como por exemplo o novo presidente brasileiro, o reforço do Mercosul deve servir
622
para “uma negociação soberana diante da proposta da Alca” (p. 15), o que também está
conforme à visão que se costuma ter, no Brasil, dos desafios do projeto hemisférico para uma
economia percebida como frágil e despreparada.
Essa dupla visão é aliás confirmada em diversas passagens do capítulo “Origem e
desenvolvimento da Alca”, de resto mais expositivo do que propriamente analítico. As razões
que impulsionaram os EUA a propor esse projeto teriam sido a necessidade de preservar sua
“supremacia econômica que parecia ameaçada pelo avanço de alemães e japoneses” e o
desejo de impulsionar a “globalização dos mercados” (p. 22). Como reação a essa ofensiva, os
autores acreditam que os governos do Brasil e da Argentina decidiram aprofundar e acelerar o
processo de integração bilateral começado nos anos 1980 e que receberia, a partir de 1991, o
formato quadrilateral do Mercosul, apresentado como uma escolha de suas elites políticas e
econômicas. Os autores evidenciam a nítida relutância do governo e das lideranças políticas
brasileiras em relação ao projeto da Alca, com base no fato, obviamente manifesto, de que a
conveniência de se criar, ou não, uma área de livre-comércio hemisférica “nunca chegou a ser
objeto de debate nacional significativo” (p. 43).
Aqui parece residir a questão básica que angustia a maior parte dos observadores
isentos, ou pretensamente imparciais, em relação à Alca: não se sabe, de fato, se ela será, ou
não, boa para o Brasil, dada a ausência de debates adequados e mais ainda de estudos
satisfatórios. Existem, obviamente, aqueles que respondem de imediato pela negativa, e até se
permitem fazer plebiscitos com perguntas manifestamente capciosas (como as que vinculam a
existência da Alca a uma ameaça à soberania nacional), assim como existem aqueles (poucos)
que respondem positivamente, com base numa simples constatação de que uma maior
exposição ao comércio internacional melhorará os índices de competitividade da economia
brasileira, além de ampliar o acesso ao maior mercado do planeta. Não se pode dizer que o
livro tenha respondido claramente a essa questão – o que seria de todo modo impossível de
fazer em bases puramente hipotéticas, pois que tudo depende da Alca que se logre formalizar
– mas ele abre, pelo menos, algumas avenidas de discussão sobre o assunto (como na
discussão sobre as condições de acesso a mercados e, mais importante, sobre as normas
regulatórias desse acesso).
O capítulo principal, entretanto, vem já marcado por uma certa predisposição negativa,
ao referirem-se os autores ao “gigante” (apenas os EUA) e aos “anões” (todos os demais),
quando isso não parece tão claro a partir de uma análise desagregada das várias interfaces da
integração. Se colocarmos lado a lado o PIB individual (e nominal) de cada um desses atores,
parece claro que as discrepâncias são incomensuráveis e talvez mesmo insuperáveis.
623
Diferenças de tamanho, porém, nunca aboliram, ao que se sabe, o princípio das vantagens
comparativas, que continua tão válido agora como nos tempos de David Ricardo, podendo se
tanto produzir ganhos de escala que nunca são absolutos em vista de outras variáveis
envolvidas na escala de competitividade.
De resto, o tão alardeado gigantismo das “megacorporações norte-americanas” –
argumento aliás muito pouco utilizado em relação às “megaempresas europeias” – não parece
sustentar-se em várias áreas de nítida competitividade brasileira (não apenas nas áreas labor-
intensive, diga-se de passagem), com base em tecnologias tão ou mais avançadas do que
aquelas existentes nos EUA – em siderurgia ou agribusiness, por exemplo – ou em muitos
outros terrenos nos quais podem ser mobilizados nossos imensos recursos naturais, os preços
menores de vários insumos (terra, energia, mão-de-obra) ou a própria inovação e
engenhosidade brasileira (apesar de haver muito pouca confiança em nossas virtudes). Se não
fosse assim, por que, exatamente, os lobbies no Congresso americano foram tão ativos e se
apressaram em colocar limites ou várias condicionalidades no mandato que aprovou a
capacidade negociadora do Executivo para a atual rodada de acordos comerciais? Se a
assimetria é tão brutal, como explicar esses surtos de protecionismo setorial que de resto se
exercem com igual acuidade no caso da Europa e de outros parceiros da OMC? Com apenas
1% do comércio internacional (e algo equivalente nas importações totais dos EUA), o Brasil
pode não ser um global player, como alardeado de forma permanente por nossos
negociadores, mas certamente não é o “anão” que se pretende mostrar em termos de poder de
barganha e de vantagens competitivas. No frigir dos ovos, inclusive, nosso poder negociador é
bem maior do que a mera expressão do nosso PIB quando confrontado ao do gigante.
Questão de tamanho à parte, o cerne da discussão neste capítulo refere-se às diferenças
de condições econômicas entre os parceiros da Alca, problema que tende a ser respondido
pelos autores mediante a invocação das sérias dificuldades ocorridas nos países latino-
americanos nas duas últimas décadas, em especial daqueles que teriam aberto suas economias
e seguido o receituário neoliberal. A liberalização eventualmente patrocinada pela Alca
tenderia a acentuar, nessa visão, essas dificuldades, em especial em termos de desigualdades e
precarização das condições de trabalho (p. 88). Ora, não é certo que a liberalização comercial
agrave as condições macroeconômicas de um país, como o provaria o caso do Chile, um dos
países mais assumidamente neoliberais e, ao mesmo tempo, detentor de uma maiores taxas de
crescimento com estabilidade da região.
Os autores também retomam, no debate de uma Alca “ideal”, alguns dos temas caros
ao governo brasileiro, anterior e sobretudo atual, no que concerne, por exemplo, à
624
transferência (presumidamente induzida) de tecnologia ou à existência de mecanismos
compensatórios das desigualdades estruturais. Nesse último aspecto, existe a tendência a se
invocar o exemplo europeu e seus alegados fundos corretores de desvantagens, e se pretende
que os EUA assumam esse papel de dispensador líquido de recursos, de know how e de
benesses para os mais pobres, de modo geral (entre os quais supostamente se incluiria o
Brasil).
Na verdade, os autores reconhecem que diferenças entre países “não são obstáculos
intransponíveis para a constituição de blocos econômicos” (p. 98), mas voltam a dizer, no
capítulo sobre “O Brasil e suas opções”, que “deixado livre, o mercado rege-se de acordo com
suas próprias motivações, não tende necessariamente a equilibrar benefícios, pode manter ou
aumentar as assimetrias e pode levar ao acúmulo de poder nas mãos dos que já o detêm” (p.
120). A recomendação, portanto, seria uma acumulação preliminar de capacitação tecnológica
e econômica, se possível “no sentido de atribuir ao Estado a capacidade de promover o
desenvolvimento” (idem). Trata-se da velha tese, conhecida em nossa história, que recomenda
que, em face de um desafio, postergue o quanto puder a solução do problema – abolição do
tráfico, eliminação da escravidão, por exemplo – até conseguir juntar forças para enfrentar o
valentão da escola.
Estou obviamente exagerando na caracterização do que seria uma posição atentista ou
meramente postergadora defendida por certos países, mas é o que julgo perceber na seguinte
passagem em que os autores apresentam a doutrina do livre-comércio de David Ricardo:
“Essa lei (sic) seria verdadeira se a alocação dos fatores se desse num quadro de condições
semelhantes. Quando esse quadro de referência básico não existe, para que o livre-comércio
produza resultados satisfatórios para todos os países interessados são necessárias medidas não
de mercado, mas que viabilizem previamente um nível mínimo de igualdade de condições,
ainda que a longo prazo” (p.127). Ora, a experiência histórica ensina que a “lei” funciona
justamente porque as condições são diferentes e, se alguém pretendesse igualdade prévia entre
os parceiros, nunca ocorreria intercâmbio entre eles. Não se compreende, aliás, como, e em
quê, uma integração com a UE seria mais vantajosa, dadas a existência das mesmas
assimetrias estruturais e uma composição dos fluxos de comércio ainda menos diversificada
do que aquela incidente no plano hemisférico.
Não se pode obviamente deixar de reconhecer as fortes assimetrias existentes ou as
fragilidades latino-americanas, mas considerar, como fazem os autores, que “A eventual
debilidade da posição brasileira, assim como da de outros países latino-americanos, reside na
fragilidade das políticas estatais” (p. 136), significaria admitir que apenas depois de muito
625
planejamento indicativo, de fortes investimentos estatais e de “políticas corretivas” esses
países estariam prontos para enfrentar um projeto como o da Alca. A mesma visão, segundo a
agenda brasileira descrita pelos autores, que tende a pedir “metas de ajuste nos setores mais
sensíveis; negociar políticas compensatórias; e definir um ritmo mais lento para que as
modificações necessárias sejam implementadas” (p. 139), explica os medos ancestrais
brasileiros de ter de enfrentar antes do tempo uma realidade que se crê desconhecida e
ameaçadora.
A solução consiste, invariavelmente, em apontar para a falta de um “projeto nacional”
e em recomendar assim que o Estado, devidamente dotado de “planejamento estratégico”,
assuma o papel condutor no fortalecimento da capacidade negociadora externa. Nem adianta,
nessas circunstâncias, invocar uma bela frase do tipo “o Mercosul é destino e a Alca uma
mera opção”, pois as invocações impressionistas não resolvem alguns dos problemas básicos
do Brasil: a falta de confiança em sua própria capacidade negociadora e a decisão de, por uma
vez, enfrentar a realidade, em lugar de ficar eternamente postergando os embates.
O presente livro sobre a Alca e o “anão brasileiro” não responde, como se disse, a
todos os problemas colocados ao Brasil e ao Mercosul nesse debate relevante para o futuro do
País e o bloco sub-regional, mas ele permite colocar, de maneira inteligente, todas as
perguntas pertinentes para que esse debate possa ser feito com o mínimo de teologia e de
ideologia, e com o máximo de racionalidade e de refinamento analítico. Num ambiente
bibliográfico extremamente rarefeito sobre a questão, ele constitui uma publicação doravante
indispensável para uma discussão bem informada sobre um projeto que está praticamente
batendo na porta do futuro imediato.

Washington, 15 julho 2003.


Publicado, em versão reduzida, na revista Política Externa
(São Paulo: vol. 12, n. 2, setembro-novembro 2003, p. 154-158);
em versão completa na revista Plenarium
(Brasília: Câmara dos Deputados, ano I, n. 1, novembro 2004, p. 255-264).

626
Propriedade intelectual e política externa:
o Brasil no contexto internacional

Tullo Vigevani:
O Contencioso Brasil x Estados Unidos da Informática: uma análise sobre formulação da
política exterior
(São Paulo: Alfa-Ômega, Editora da Universidade de São Paulo, 1995, 349 p.)

Marcelo Dias Varella:


Propriedade Intelectual de Setores Emergentes: biotecnologia, fármacos e informática
(São Paulo: Editora Atlas, 1996, 255 p.)

Tullo Vigevani é, dos acadêmicos que tenho prazer de conhecer, a figura brasileira (no
caso ítalo-brasileira) mais próxima da velha definição de “homem da Renascença”. Explico-
me: ele estudou e pesquisou nas áreas da engenharia, da história, da sociologia, da política
internacional, trabalhou em temas econômicos, sociais, de direitos humanos, fez militância
política no movimento estudantil, exerceu o jornalismo, desempenhou cargos executivos e, se
tudo isso não bastasse, ainda contribuiu – e continua colaborando – para a produção
acadêmica de boa qualidade ao editar a revista Lua Nova, do CEDEC/SP e a dirigir pesquisas
naquela instituição acadêmica. Numa mesma semana, sou capaz de encontrar um artigo dele
sobre os sindicatos no Mercosul, sobre a política exterior na fase inicial da Velha República
ou ter a satisfação de resenhar um livro sobre tema tão relevante como a formulação da
posição diplomática do Brasil no contencioso informático com os Estados Unidos, que
constitui precisamente o objeto da primeira parte deste artigo de resenha.

As relações informáticas internacionais contemporâneas: a política externa


brasileira entre o império da lei e o poder do império
O objetivo do livro está colocado claramente pelo autor em sua introdução: estudar
uma questão de grande relevância intrínseca para a inserção econômica internacional do
Brasil – a disputa “informática”, na verdade uma disputa de poder, entre o Brasil e os Estados
Unidos – e refletir sobre pontos fundamentais para as relações internacionais contemporâneas.
Buscou o autor, com muita proficiência, “ampliar a compreensão de como são tomadas as
decisões no Brasil no que se refere à política exterior”. Devo confessar, como acadêmico em
tempo parcial e diplomata em tempo integral, que sempre me interroguei sobre a validade
propriamente científica, a coerência argumentativa e a legitimidade heurística dos estudos
tipicamente acadêmicos sobre mecanismos de tomada de decisão em política internacional e

627
na política externa brasileira em particular. Os pesquisadores universitários geralmente
partem de um modelo teórico e de um esquema conceitual muito bem construídos, passam a
entrevistar diplomatas e outros atores relevantes numa análise de caso bem delimitado e
terminam por tirar conclusões sobre a “eficácia weberiana” de seu tipo-ideal de processo
decisório, no caso aplicado a um exemplo concreto das relações políticas entre as nações.
Os resultados costumam ser insatisfatórios ou frustrantes, seja porque o pesquisador
parte de um modelo de racionalidade ideal de conduta diplomática que não costuma
encontrar-se na realidade, seja porque os próprios atores racionalizam a posteriori sua atuação
no caso, de molde a justificar os resultados alcançados, “que só poderiam ser” aqueles
efetivamente obtidos. Como diriam os franceses, CQFD, ou seja, eis o que era preciso
demonstrar. Não é o caso, devo logo adiantar, deste precioso estudo sobre mecanismos de
decisão aplicados ao caso do contencioso informático entre o Brasil e seu principal parceiro
ocidental, o império norte-americano da informática.
Trata-se, em primeiro lugar, de uma descrição fiel de todos os aspectos envolvidos no
famoso contencioso bilateral: política nacional de informática, presença norte-americana no
mercado brasileiro e internacional, decisões do governo brasileiro, negociações diplomáticas
em várias fases, implicações econômicas, políticas e diplomáticas do setor, enfim, o universo
completo dos elementos em jogo, l’enjeu, como ainda diriam os franceses; assiste-se, em
segundo lugar, a uma riquíssima discussão sobre as virtudes e limitações da política externa
nacional in motion, isto é, tal como construída e defendida no próprio processo de sua
constituição por responsáveis governamentais, dirigentes políticos, líderes empresariais e, of
course, pelos próprios diplomatas do Itamaraty, atores relevantes neste case study.
O resultado é propriamente brilhante: Tullo Vigevani soube captar com rara acuidade
para um “observador externo” – mas talvez um espectador politicamente motivado, o que em
nada diminui sua objetividade acadêmica e sua imparcialidade de julgamento – todos os
matizes de uma difícil questão que contaminou durante a segunda metade dos anos 80 as
relações políticas e mesmo econômicas entre os dois maiores países do hemisfério ocidental.
O problema transcendeu a esfera propriamente bilateral pois que, nessa época, ambos os
países eram atores relevantes durante a primeira fase, já bastante complicada politicamente
por força das ambiguidades da Declaração de Punta del Este, das negociações comerciais
multilaterais da Rodada Uruguai. A esse título, a “estória” do contencioso contida neste livro
vale pelo que ele de fato é: um registro histórico meritório sobre uma queda de braço
diplomático – que prestou-se, diga-se de passagem, a muitas bravatas ideológicas e posturas
desafiadoras da parte de certos atores nos dois países – e uma interpretação “acadêmica” (no
628
bom sentido da palavra) verdadeiramente inovadora das condicionantes internas e externas
que atuam na política internacional do Brasil. Nesta segunda vertente, a obra vai além de
“um” estudo do “caso” da informática para penetrar no próprio modo de funcionamento da
diplomacia brasileira e, por que não?, do próprio Estado enquanto burocracia organizada (no
caso brasileiro, com as ressalvas conhecidas ao confuso processo pós-1985 de
desmantelamento do período militar e de inauguração de uma nova fase política nacional).
Precisamente por isso, o livro é talvez mais útil do ponto de vista metodológico do que
propriamente enquanto racconto storico – o que de toda forma ele o faz, de maneira excelente
– sobre um “banal” incidente diplomático que figurará como parágrafo marginal nos livros de
história das relações diplomáticas do Brasil (e sequer entrará nos records da história
diplomática do império). Como evidencia o Embaixador Rubens Ricupero na apresentação da
contracapa, Tullo Vigevani ilumina as causas internas e externas do caso exemplar da
informática e demonstra a “dificuldade de consolidar uma política num contexto internacional
conturbado, quando as bases de sustentação dessa política vão se debilitando, sem surgir
qualquer outra alternativa”. No caso em espécie, a conceituação de “política” acima
mencionada pode referir-se tanto à interna como à externa, já que o Brasil vivia então um
período excepcional de transição entre o velho modelo substitutivo de desenvolvimento
industrial e tecnológico e um novo, ainda não totalmente configurado (aspecto híbrido
representado pela política nacional de informática), entre um Estado dirigista herdado do
recente passado militar e um novo Estado (neopopulista?, social-democrático?, pretensamente
reformista?, modestamente amorfo?), entre uma política externa razoavelmente consensual e
inovadoramente catalogada até então (pragmatismo responsável, diplomacia ecumênica) e
uma fase de incertezas na forma e na substância da atuação internacional do País.
Como diz ainda Vigevani, “as eventuais fortunas da política externa se assemelham
em grande medida às sortes da política em geral”, concluindo, de forma lúcida, que a
“exiguidade dos espaços democráticos institucionais para a discussão ampla de problemas
relevantes de política interna e externa como o da informática talvez seja uma das razões da
dificuldade em definir estratégias, partindo de um reconhecimento bem fundamentado das
relações de poder efetivamente existente”. Essa dificuldade, diz ainda nosso autor, “foi
claramente detectada na reconstrução histórica do contencioso”. Nesse sentido, o contencioso
informático é exemplar, uma vez que ele evidencia a falta, “na sociedade e no Estado
brasileiros, de um acompanhamento sistemático das relações internacionais”.
O livro de Tullo Vigevani vem precisamente suprir uma dessas lacunas, ao contribuir
significativamente para uma discussão fundamentada das questões nele enfocadas nos meios
629
acadêmicos, empresariais e governamentais. Como tal, ele deveria ser adotado como leitura
“obrigatória” no ensino de história diplomática, de política exterior ou de relações
internacionais nos cenáculos universitários e na academia diplomática. Sua contribuição para
o estudo “prático” dessas disciplinas, assim como para uma teoria das “relações internacionais
do Brasil”, é tanto mais relevante que a análise do caso informático é enfeixado e precedido
por cinco capítulos dedicados ao exame e discussão das teorias históricas e políticas sobre
relações internacionais contemporâneas. É aqui, entre outras passagens, onde Tullo Vigevani
revela o melhor de seu “renascentismo” intelectual, discutindo desde Hobbes, Rousseau e
Kant até Morgenthau, Aron, Kehoane, Rosecrance, Gilpin e Kennedy. Um livro para ser não
apenas lido e anotado, mas saboreado e desfrutado com prazer por todos aqueles que se
interessam por política externa e relações internacionais e por políticas públicas em geral.

Novas tecnologias e proteção patentária: redefinindo o interesse nacional


A excelente obra de Marcelo Dias Varella, jovem pesquisador em Direito da
Universidade de Viçosa, atualmente fazendo mestrado em Relações Internacionais em Santa
Catarina, traça um panorama completo da proteção à propriedade intelectual nos setores de
ponta da inventividade humana – biotecnologia, químico-farmacêutica e software – e insere o
sistema de proteção à tecnologia patentária do Brasil no quadro internacional. O livro está
dividido em quatro partes bem caracterizadas: uma introdução histórico-filosófica sobre a
proteção à tecnologia proprietária e a evolução do sistema no Brasil, o patenteamento de
processos e produtos da biotecnologia (inclusive os direitos do melhorista de cultivares e a
questão dos microorganismos), uma terceira parte sobre produtos e processos da indústria
farmacêutica e, finalmente a proteção intelectual de softwares; completa o volume três anexos
sobre a legislação aplicável nos setores de biotecnologia e de informática e a convenção sobre
diversidade biológica, ratificada pelo Brasil em 1995. A simples menção dessa cobertura
temática diversificada numa área tão complexa como a propriedade intelectual de novas
tecnologias dá uma ideia da riqueza do empreendimento de Varella e de sua pertinência
política e econômica para um debate de alto nível sobre esses temas no Brasil, numa área
ainda sujeita a preocupações alarmistas da opinião pública (com a chamada “manipulação dos
seres vivos”, por exemplo) ou a impulsos românticos, muitas vezes irracionais econômica e
socialmente, de ecologistas e “amigos” muito pouco científicos da Natureza.
Muito embora grande parte da discussão levada a cabo na obra também se refira ao
contexto internacional e às pressões suportadas pelo Brasil de meados dos anos 80 a
princípios dos 90, deve-se ler esse precioso livro pelos seus méritos próprios e não como uma
630
espécie de suporte intelectual a um combate “anti-imperialista” ou de resistência aos
interesses “oligopolistas” dos grandes conglomerados químico-farmacêuticos do Primeiro
Mundo. A principal virtude do livro é dar um esteio intelectual e doutrinário, científico, a uma
correta compreensão da problemática social e econômica e do impacto tecnológico e político
da proteção proprietária nos setores emergentes, permitindo ademais uma informação de boa
qualidade sobre a natureza jurídico-econômica da nova legislação que foi introduzida
recentemente no Brasil nesses campos (o Código da Propriedade Industrial de 1996, a lei de
cultivares recém adotada e os debates continuados sobre a proteção de softwares).
Como diz o próprio autor, os setores selecionados para análise, biotecnologia,
indústria farmacêutica e informática, são os que “constituem células fundamentais do tecido
econômico, político e social e (...) qualquer transformação por que passem, provocarão
profundas modificações na própria sociedade”. Ele procurou, assim, abordar os pontos “que
geraram maiores dúvidas e controvérsias, tanto no Brasil, como em âmbito internacional”,
esperando com isso “desmitificar tão propalado tema, que tem importante significado para o
desenvolvimento nacional”. Deve-se reconhecer que Varella cumpriu inteiramente o
prometido em sua introdução e seu livro pode desde já ser considerado como único no gênero
no Brasil, não apenas porque escapa dos modelos no gênero (os habituais “comentários à lei
brasileira de propriedade intelectual”), como também porque combina a análise desses
diversos temas da tecnologia proprietária em setores emergentes com a precisão do jurista e a
base técnica do cientista especializado.
Com efeito, a obra em nada se parece aos áridos comentários dos advogados
especialistas em propriedade intelectual (que frequentemente nada mais fazem senão a
exegese para o leigo do “juridiquês” inscrito nos textos legais), preferindo Varella discutir
exaustivamente o contexto histórico-político e o quadro econômico-internacional no qual foi
elaborado o sistema legal da propriedade intelectual, nos planos nacional e multilateral. O
grande público brasileiro, geralmente dominado pelas informações jornalísticas sobre a
“riqueza biológica” da floresta amazônica ou por um certo confusionismo “progressista” entre
patenteamento farmacêutico e “soberania nacional”, não tem ideia da complexidade do debate
internacional nessas áreas, do intenso trabalho dos acadêmicos e peritos de organizações
intergovernamentais e das acirradas negociações diplomáticas em foros como a Organização
Mundial da Propriedade Intelectual e o GATT-OMC.
O texto de Varella é meridianamente claro, tanto do ponto de vista técnico, como
político-jurídico. Na primeira seção substantiva, por exemplo, ele se propõe “expor como se
realiza a proteção intelectual de seres vivos, em destaque para plantas e organismos. Também
631
objetivamos traçar os principais impactos das modalidades de proteção sobre o cenário
econômico do desenvolvimento de novas pesquisas, sobre o meio ambiente e sobre a
sociedade como um todo. No entanto, não poderíamos cumprir esta tarefa sem apresentar ao
leitor os elementos necessários para a compreensão da realidade internacional da
Biotecnologia”. Esse mesmo método simples, objetivo e completo de introdução à discussão
dos problemas da área se repete em cada uma das partes sobre os demais setores selecionados,
como forma de introduzir sua contribuição verdadeiramente original: uma discussão cerrada
das modalidades jurídicas das formas de proteção intelectual sobre plantas, fármacos e
programas de computador, terminando com a descrição da legislação em vigor no Brasil e
mesmo aquela que ainda estava em elaboração no momento da redação do texto (lei de
cultivares, por exemplo).
Trata-se, sem dúvida alguma, da melhor introdução disponível no Brasil sobre os
desafios atuais e futuros à sua inserção soberana no processo de globalização econômica, mais
do que nunca dominado pela excelência da pesquisa e desenvolvimento nos setores
emergentes. O cenário focalizado por Varella é ainda aquele no qual o Brasil procurava
resistir — no GATT, na OMPI, no plano bilateral — às tendências cada vez mais restritivas
de apropriação proprietária no campo das novas tecnologias: essa fase histórica correspondeu
ao período inicial da Rodada Uruguai, marcado pela resistência defensiva do Brasil e da Índia
às demandas “protecionistas” das grandes empresas multinacionais, quando paralelamente os
Estados Unidos adotavam ilegalmente sanções unilaterais e retaliações econômico-comerciais
contra o Brasil por sua atitude intransigente nessas áreas (recusa do patenteamento
farmacêutico e biotecnológico, delonga na adoção de uma legislação sobre o software,
discriminação nacionalista na área da informática, política industrial de reserva de mercado
etc.). Em 1990, afirma o autor, “o governo brasileiro cedeu e colocou como prioridade a
formação de uma nova legislação tocante à propriedade intelectual. Nesta nova norma,
pretendia-se abranger principalmente os reclames da indústria farmacêutica internacional e da
indústria biotecnológica, que teve forte ascensão nos últimos anos”.
Pode-se concordar basicamente com esse tipo de interpretação, muito embora devam
ser ainda considerados certos aspectos atinentes à própria inserção econômica internacional
do Brasil e sua capacitação tecnológica nacional. Tem-se hoje como assente, por exemplo,
que os anos (ou décadas) de não patenteamento farmacêutico ou de reserva de mercado
informática não foram especialmente benéficos em termos de acumulação de know-how ou de
grandes investimentos em P&D laboratorial e industrial em química fina e em sistemas
informáticos (hard e soft). O País formou, por certo, muitos engenheiros especializados em
632
“tecnologia da informação”, mas nunca conseguiu ter uma fábrica de circuitos integrados, da
mesma forma como ele multiplicou fábricas de vitaminas e de remédios genéricos, copiando
muitos produtos não protegidos (et pour cause), sem ter logrado desenvolver, por razões
compreensíveis, tecnologia própria em processos farmacêuticos. Um militante da causa
nacionalista certamente continua se posicionando contra o patenteamento farmacêutico, mas a
postura dos pesquisadores acadêmicos é provavelmente mais matizada, não sendo de
surpreender que uma maioria deles se coloque resolutamente a favor da proteção patentária
(inclusive por óbvios motivos de apropriação de “rendas monopólicas”).
O País como um todo, por sua vez, precisa fazer uma espécie de trade-off entre a
proteção à tecnologia proprietária embutida numa legislação mais severa — e o pagamento de
royalties que daí decorre — e a atração de novos investimentos, praticamente inevitáveis num
país de grande mercado como é o Brasil. Sabe-se que a indústria farmacêutica é
particularmente sensível à variável do patenteamento, em todos os países e circunstâncias
econômicas, mas as decisões empresariais de investimento são mais adotadas por
considerações típicas de mercado (dimensão, controle de preços, compras governamentais) do
que especificamente pela disponibilidade da patente. Ainda assim, o quadro jurídico da
proteção patentária é ele mesmo indutor de novos investimentos (sobretudo intelectuais) nos
setores emergentes, podendo aqui assistir-se ao rápido desenvolvimento de novas indústrias
em áreas promissoras (isto é, rentáveis) do conhecimento, inclusive para jovens pesquisadores
ou “venture” capitalistas nacionais.
O livro de Marcelo Dias Varella vem contribuir, como o de Tullo Vigevani, para a
“internalização” de relevantes questões internacionais – que constituem também questões
centrais de nossa política nacional nas áreas industrial e tecnológica – e para a discussão bem
informada, por parte do público interessado, de problemas cruciais da inserção econômica
externa e das relações internacionais do Brasil. Que eles possam figurar sem demora nas listas
de leituras obrigatórias dos cursos especializados e nas bibliografias de todos os estudiosos
dos temas aqui discutidos.

Brasília, 12 de junho de 1997.


Publicado, com cortes, na Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: IBRI, ano 40, n. 1, 1997, p. 208-214).

633
A Guerra das Patentes

Maria Helena Tachinardi:


A Guerra das Patentes: o conflito Brasil x EUA em propriedade intelectual
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993)

Em princípios do século XIX, impossibilitado de conquistar a Inglaterra, Napoleão


decretou o bloqueio continental contra a ilha, eliminando ou restringindo severamente o
comércio britânico com o continente. Já no começo do século XX, canhoneiras europeias, sob
o olhar complacente dos Estados Unidos, bombardeavam Caracas, na tentativa pouco
civilizada de obrigar o Governo da Venezuela a retomar o pagamento de sua dívida externa,
interrompida por inadimplência temporária do país. Ao aproximar-se o final desse século, a
principal – e agora única – potência imperial utiliza de forma recorrente a arma das
retaliações comerciais para tentar atingir seus objetivos. A motivação alegada é a de que os
demais países não “colaboram” com o “progresso” (medido por Washington) das negociações
comerciais em torno de algum tema relevante para o principal interessado, segundo o padrão
global por ele mesmo definido.
A propriedade intelectual converteu-se num desses padrões de comportamento que os
EUA estabeleceram para o resto do planeta, sendo a posição do Brasil nesse particular um
péssimo exemplo para os demais membros da comunidade mundial, passível, portanto, de
punição severa. É desse confronto que trata o livro da jornalista Maria Helena Tachinardi, um
excelente exemplo do que os franceses chamariam de histoire immédiate.
A guerra das patentes referida no título cobre o conflito Brasil x EUA em propriedade
intelectual no período 1985-1990, mas também pode servir para a atual controvérsia em torno
do patenteamento farmacêutico no novo Código de Propriedade Industrial, ainda em exame
pelo Congresso. Naquela ocasião, os EUA impuseram sanções unilaterais ao Brasil, ilegais do
ponto de vista do direito internacional, da mesma forma como ameaçam fazê-lo agora, caso a
nova lei não contemple os pontos julgados indispensáveis pela potência imperial.
A introdução do livro trata, aliás, dessa nova ameaça de sanções, que poderão
materializar-se dentro de mais alguns meses, segundo o formato já conhecido pelos
diplomatas brasileiros servindo sob o Governo Sarney. Ele é, portanto, um guia utilíssimo
para a compreensão dessa guerra fria entre os dois maiores países do hemisfério ocidental.
Trata-se propriamente de uma guerra conceitual, no sentido em que, mais do que interesses

634
comerciais concretos dos EUA ou prejuízos efetivos para suas indústrias, o que está em jogo
na verdade são as posições ideológicas desse contendor.
Com efeito, os Estados Unidos não conseguem entender como um país possa ter, não
o direito, mas a pretensão de defender posições próprias em sua lei interna e nos foros
internacionais. Um ex-funcionário de comércio dos Estados Unidos, entrevistado
anonimamente pela autora a respeito do primeiro contencioso, afirmou claramente que “a
postura do Brasil [na Rodada Uruguai] era extremamente ofensiva, mais do que a de muitos
países latino-americanos. (...) A política brasileira era claramente desenhada para tornar
impossível a outros países [entenda-se algumas companhias dos EUA] fazer negócios com o
Brasil, devido aos problemas com a informática e a falta de patentes para produtos
farmacêuticos. Essa política não ajudava a atrair investimentos”, ou seja, as vendas norte-
americanas.
O principal negociador brasileiro nessa fase, o Embaixador Paulo Tarso Flecha de
Lima, então secretário-geral do Itamaraty, confirma que houve “falta de habilidade do
governo americano, que colocou sua aspiração como fato consumado, sem espaço
negociador”. E o enfant terrible do Brasil no GATT, o Embaixador Paulo Nogueira Batista,
também entrevistado pela autora, localiza o equívoco fundamental de algumas autoridades
norte-americanas na presunção “de que tudo o que os EUA propõem deve ser visto como bom
não apenas para si mesmos mas também para os demais países... O fundamento dessa postura
é a insistência no direito dos EUA de continuar, como no pós-guerra, a fixar por decisão
unilateral, através de sua legislação nacional, os padrões a serem observados pelo resto do
mundo”.
Mas não é só dos diversos contenciosos bilaterais em matéria de propriedade
intelectual que se ocupa o livro de Maria Helena Tachinardi. Ele também apresenta uma
excelente introdução metodológica e analítica ao problema da propriedade intelectual
enquanto variável importante, mas não exclusiva, de qualquer política industrial e tecnológica
nacional. Ela discute, por exemplo, os vários aspectos da relação entre o perfil tecnológico da
indústria, a proteção patentária e o comércio internacional, o conflito daí decorrente entre os
países inovadores e os late-comers (como o Brasil), o sistema evolutivo da proteção
multilateral à propriedade intelectual, bem como seus custos e benefícios para os países
envolvidos.
O capítulo 3 faz uma análise detalhada do funcionamento da indústria farmacêutica no
Brasil e nos EUA, dedicando-se a autora a desmistificar os argumentos passionais que
costumam ser esgrimidos aqui e lá em defesa de posições nem sempre muito claras ou
635
compatíveis com o interesse nacional global das economias respectivas dos dois países. As
conclusões são igualmente equilibradas, reconhecendo Tachinardi a importância da tecnologia
proprietária no processo de desenvolvimento industrial e tecnológico, mas colocando também
no contexto apropriado os argumentos dos setores farmacêuticos nacionais e estrangeiros no
que se refere à proteção dessa indústria no Brasil. Um livro para ser lido urgentemente,
sobrevenham ou não as prometidas retaliações norte-americanas.

Brasília: 21 de junho de 1993.


Publicado, sob o título “Um conflito conceitual”, no Caderno “Ideias-Livros” do
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro: 26 de junho de 1993, p. 4).

636
Dívida Externa: uma velha história

Santiago Fernandes:
A Ilegitimidade da Dívida Externa do Brasil e do III Mundo
(Rio de Janeiro: Nórdica, 1985)

Ao se perguntarem como foi possível que o Brasil atingisse o nível de endividamento


externo a que chegou, sem que mecanismos de controle fossem acionados, os parlamentares
responsáveis pela CPI da Dívida Externa e dos Acordos Brasil-FMI levantaram a questão da
ilegalidade dos empréstimos contratados. Com efeito, argumentaram eles, em nenhum
momento os instrumentos contratuais da dívida foram submetidos à processualística
constitucional da apreciação legislativa, nem poderia o Banco Central renunciar à imunidade
jurisdicional e aceitar foro judicial nos países credores (Nova York e Londres) para
julgamento de pendências e eventual decretação de penhora dos bens mantidos no exterior.
Constatada a ilegalidade dos contratos de empréstimo, não apenas se deveria decretar
sua nulidade por inconstitucionalidade, mas igualmente declarar a responsabilização criminal
dos responsáveis pela enorme dívida e pelas escandalosas cartas de intenção assinadas com o
FMI. Como se sabe, nada disso aconteceu.
Ao tratar da mesma problemática em seu curioso e instigante livro, o economista
Santiago Fernandes prefere analisar a questão do ponto de vista da ilegitimidade da dívida
externa do Brasil e dos países do Terceiro Mundo. A ilegitimidade decorreria, segundo ele, da
ação conjugada de três processos descapitalizadores: a) a secular deterioração dos termos de
intercâmbio, drenando recursos das nações pobres para os países ricos; b) a penetração
financeira do Terceiro Mundo por instituições e agências bancárias dos países centrais, que
passam a operar com recursos locais e muitas vezes a remeter divisas obtidas com
manipulações cambiais; c) a evasão de capitais, oficial e criminosa, propiciada pela singular e
perniciosa situação de privilégio de que goza o dólar, como moeda de reserva internacional.
Constatada a ilegitimidade das dívidas do Terceiro Mundo, não apenas se deveria
decretar o seu repúdio, puro e simples, mas igualmente encetar a reorganização do sistema
monetário e financeiro internacional, desmonetizando o ouro e transformando o FMI numa
Câmara Internacional de Compensação. Como se sabe, nada disso aconteceu tampouco.
Os banqueiros internacionais receberiam com céticos sorrisos propostas de
renegociação que utilizassem os argumentos da legalidade ou da legitimidade das dívidas
contraídas pelos países em desenvolvimento. A História parece lhes dar razão: na longa

637
experiência de renegociação das dívidas de Estados temporariamente insolventes, o repúdio
completo foi comparativamente raro, ocorrendo em alguns casos uma redução temporária,
mas não uma cessação completa do serviço da dívida.
Na época em que a Europa atuava sozinha como world’s banker, ocorreram pelo
menos dois períodos de insolvências generalizadas: ao final das independências latino-
americanas, na terceira década do século XIX, e nos anos setenta do século XX, envolvendo
novamente países latino-americanos e alguns médio-orientais (Turquia, Egito). A Grã-
Bretanha foi evidentemente o primeiro país a sentir necessidade de proteger seus interesses e,
mesmo na ausência de qualquer apoio governamental, os grupos privados organizaram, desde
1868, uma Corporation of Foreign Bondholders. Os resultados parecem ter sido animadores,
pois já em princípios dos anos 80, o economista britânico R.L. Nash informava que “the
losses caused through defaults were, in the long run almost insignificant compared with the
large gains derived by British investors over the whole field of foreign and colonial
securities”.1
Em raras ocasiões – como nos casos históricos do México (1861) e da Venezuela
(1902) – os governos detentores de títulos de dívida pública chegaram a fazer apelo à ação
armada para o ressarcimento dos débitos, provocando, no campo jurídico-conceitual, a
primeira contestação à até então dominante “teoria dos credores”. Esta, como se sabe, afirma
que a obrigação do devedor é controlada pelo Direito privado dos contratos e que as relações
entre as partes estão reguladas por instrumentos vinculativos: quando um Estado contrata um
empréstimo ele tacitamente abdicaria de seu caráter soberano e se submeteria voluntariamente
às regras do Direito privado.
Para contrapor-se a essa doutrina, o então Ministro argentino das Relações Exteriores,
Luís Drago, formulou uma “teoria dos devedores”, colocando ênfase no caráter soberano do
Estado devedor, na impossibilidade de se perseguir judicialmente o Estado e na definição da
dívida como uma simples “questão de honra”. Para conciliar essas posições antitéticas, surgiu,
posteriormente, uma terceira doutrina, a “teoria do contrato sui generis”, que via as transações
de empréstimos como contratos de Direito público.
Seja como for, a Corporation britânica parece ter servido de modelo para diversos
outros grupos organizados na França, na Bélgica, na Alemanha e na Holanda, bem como para
o American Foreign Bondholders Protective Council, organizado diretamente pelo
Departamento de Estado norte-americano em 1932, como consequência do terceiro grande

1
Cf. R. Nash, A Short Inquiry into the Profitable Nature of Our Investments (London: Wilson, 1881),
p. 9.
638
período de insolvências generalizadas, provocado pelo bank crash de 1929-1931, que trouxe
consigo uma serie de inadimplências na Europa e na América Latina. Os ingleses, que
asseguraram sozinhos o funding loan brasileiro de 1898, tiveram, em 1934, de ceder terreno
aos norte-americanos, como observa o historiador econômico Edwin Borchard.2
A estrutura da comunidade financeira internacional alterou-se substancialmente no
segundo pós-guerra, com a emergência do FMI e do Banco Mundial, mas sobretudo com o
desenvolvimento extraordinário do setor bancário privado. Assim, as renegociações
provocadas pelo quarto grande período de defaults, inaugurado em princípios da década de
80, são normalmente conduzidas pelos Advisory Banking Committees, criados pela
comunidade bancária privada, e supervisionadas pelo Clube de Paris e pelo FMI. O cartel dos
credores tem portanto uma longa história atrás de si, e uma das mais “dignificantes”: se as
incursões armadas, os bloqueios de portos e as intervenções diretas nas finanças dos
devedores parecem ter hoje saído de moda, ficou a truculência dos banqueiros atuais que,
mesmo resguardada pelos salões acarpetados dos grandes hotéis, nada fica a dever à ética
enviesada de seus predecessores.
Os devedores, por sua vez, parecem ter estacionado nas banalidades conceituais da
Doutrina Drago, uma vez que o chamado Consenso de Cartagena nada mais fez, até agora, do
que reconhecer o óbvio: a carga financeira é insuportável, os programas de reajuste são
inadequados, mas se continua a drenar recursos líquidos para o exterior a título do serviço da
dívida. Se não parece tão simples proclamar a ilegalidade jurídica dos contratos de
empréstimo, alguns Governos tem procurado avançar a tese da ilegitimidade de fato das
dívidas atuais, sem muitos resultados tangíveis ate aqui.
O livro de Santiago Fernandes procura justamente fornecer argumentos econômicos
para sustentar esta última posição e é com base nessa pretensão que ele deve ser julgado. A
pergunta é: os três mecanismos de descapitalização por ele mencionados – resumindo:
desequilíbrio nas relações de troca, manipulações de bancos estrangeiros e fuga de capitais –
podem realmente ser responsabilizados pela acumulação do enorme passivo financeiro que
caracteriza hoje grande parte do Terceiro Mundo?
A ilegitimidade da dívida externa brasileira e de diversos outros países em
desenvolvimento só poderá ser comprovada na prática se estabelecermos um vínculo
estrutural, isto é uma relação causal, entre os fatores acima citados e o processo de formação
das obrigações financeiras externas desses países. Uma análise isenta das relações econômicas

2
Cf. Edwin Borchard, State Insolvency and Foreign Bondholders (New Haven: Yale, 1951), p. 343.
639
internacionais dos países em desenvolvimento constataria, efetivamente, que os três fatores
selecionados atuaram de forma negativa, muitas vezes de maneira contundente, sobre as
contas nacionais desses países, agravando os desequilíbrios externos e ampliando
indiretamente a dimensão do endividamento externo.
Os dados não são porém conclusivos quanto à transformação daqueles elementos
contingentes em fatores estruturais do endividamento externo dos países em desenvolvimento,
no sentido em que eles passariam de necessários a suficientes. Não cabe, nos limites desta
resenha, uma análise detalhada de cada um daqueles fatores considerados como dotados de
relevância causal no processo de endividamento externo, mas não se pode deixar de notar que,
no plano das variáveis explicativas, nem sempre é fácil ou possível converter a realidade
empírica em paradigma interpretativo.
Em outros termos, o possível histórico não pode ser automaticamente convertido em
lógico necessário: ainda que aqueles mecanismos tenham efetivamente atuado como
processos defraudadores de nosso equilíbrio externo, não existe um nexo diretamente causal
que os ligue ao passivo financeiro acumulado ao longo dos últimos anos. A descapitalização
pode efetivamente ter resultado daqueles processos defraudadores de nossas riquezas, mas o
endividamento não foi provocado, do ponto de vista formal, por lesivos contratos de
empréstimo feitos pelas elites do Terceiro Mundo e nos quais tivessem sido expressamente
consignados o intercâmbio desigual, a manipulação bancária e a fuga de capitais.
O endividamento atual deriva de causas essencialmente financeiras, ligadas à forma de
funcionamento do mercado de capitais de empréstimo e que incidem prioritariamente sobre o
serviço do principal em regime de taxas de juros flutuantes. Do ponto de vista estritamente
econômico, a ilegalidade de alguns contratos de empréstimo e de determinadas práticas
bancárias, bem como a injustiça e a irracionalidade da transferência de recursos operada
apenas para servir a dívida não são suficientes para caracterizar uma situação de ilegitimidade
da dívida externa.
O conceito de (i)legitimidade, segundo Mestre Aurélio, refere-se ao fato de terem sido
ou não atendidos os requisitos legais ou a qualidade ou condição de desarrazoado e injusto. É
evidente que Santiago Fernandes descarta o entendimento jurídico-legal desse conceito,
preferindo encará-lo do ponto de vista da autenticidade ou da adequação aos critérios da razão
e da justiça. Ainda que a razão e a justiça pudessem militar em favor da tese da ilegitimidade
da dívida externa do Brasil e do Terceiro Mundo, deve-se reconhecer que o sistema
econômico internacional está muito longe de fundar-se nesses dois princípios.

640
As relações de espoliação e de expropriação de recursos, no quadro da interação
centro-periferia (que Braudel chama de “economia-mundo” e Wallerstein de “capitalismo
histórico”), constituem em ultima instância a base sobre a qual se assentam a desigualdade na
distribuição de riquezas e a estrutura iníqua do poder mundial. Uma vez que a organização
atual da produção social não foi feita para reparar injustiças ou introduzir a igualdade de
chances não há razão de esperar que a ordem internacional venha a ser fundada em
imperativos éticos ou critérios morais. A menos de se tomar uma decisão política de cancelar
simplesmente o serviço ou o principal da dívida, decisão que só pode resultar de uma nova
correlação de forças no plano das relações interestatais, os atuais países endividados
continuarão a transferir uma parte de suas riquezas para os cofres dos países credores,
independentemente do caráter mais ou menos legítimo (ou ilegítimo, como se queira) dos
mecanismos de espoliação.
Os argumentos acima expostos em nada invalidam o valor do livro de Santiago
Fernandes no que se refere a uma correta avaliação do funcionamento atual do sistema
monetário e financeiro internacional e a urgente necessidade de sua restruturação nas linhas
propostas outrora por Lord Keynes, tendentes à constituição da uma International Clearing
Union (mas por ele mesmo fraudadas com a criação do FMI em Bretton-Woods. Sem dúvida
que a exigência de Fernandes, no sentido do cancelamento da dívida do Terceiro Mundo, será
dificilmente cumprida integralmente, mas as regras de funcionamento dessa Câmara mundial
de Compensações, relegando o ouro a seu papel de “relíquia bárbara” e introduzindo uma
moeda bancária (o “bancor”) para a regulação dos desequilíbrios de balança de pagamentos,
devem ser seriamente estudadas por qualquer autoridade monetária tant soit peu honnête e
responsável.
Não sejamos muito otimistas porém: a multilateralização dos ajustes de pagamentos,
se ocorrer, ficará durante muito tempo restrita às economias desenvolvidas, que precisarão
coordenar previamente suas políticas monetárias e fiscais. Pode-se alternativamente pensar
em soluções mais modestas, envolvendo projetos de integração regional mobilizando países
relativamente homogêneos, como o demonstra a experiência da Comunidade Europeia.
Aqui Santiago Fernandes antecipa-se às tendências futuras de desenvolvimento em
escala continental, ao propor uma Câmara Regional de Compensação Multilateral para a
América Latina e a instituição de uma moeda comum, o “Latinor”, para ajustes comerciais e
financeiros que até agora são realizados bilateralmente ou utilizando-se de moedas fortes, no
caso o dólar. Os recentes acordos de integração comercial e industrial do Brasil com a
Argentina e o Uruguai, lançando as bases de um espaço econômico comum no Cone Sul, e as
641
negociações para a criação de uma nova moeda de câmbio (o “gaúcho”), vêm dar
inteiramente razão a Santiago Fernandes.
A ousadia e a originalidade da maior parte das teses do autor tornam sem dúvida
alguma deveras atrativa a leitura deste livro, verdadeiro manancial de ideias refrescantes na
atual pasmaceira da “ciência econômica”. A razão e o bom senso parecem caracterizar este
economista “heterodoxo” – para usar um termo na moda – ainda que não concordemos com
todas as suas propostas.
A discordância aliás não está na justeza das medidas propostas, sobretudo aquelas
relativas à dívida externa do Terceiro Mundo, mas tão somente num julgamento diverso do
funcionamento do sistema internacional e sua eventual adequação aos princípios da razão e da
equidade. Santiago Fernandes deve provavelmente estar certo, mas parece avançado demais
para sua época. O futuro lhe dará razão, mas, como diria Lord Keynes, no longo prazo
estaremos todos mortos.

Brasília, 31 de agosto de 1986.


Publicada na Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXIX, 1986/2, n. 115-116, p. 127-130);
reproduzida na Seção “Crítica” da revista Humanidades
(Brasília, Ano III, n. 11, novembro 1986-janeiro 1987, p. 14-15).

642
Futuro preterido?: Zweig e um projeto para o Brasil

João Paulo dos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque (coords.):


Brasil, um país do futuro?
(Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, 154 p.)

Projeto de Brasil: opções de país, opções de desenvolvimento


(Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, 222 p.).

O Fórum Nacional do ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso sempre organiza,
ademais dos encontros anuais, foros especiais dedicados a temas específicos. Em 2006 foram
organizados dois, conectados pelo tema comum de se lograr um “projeto de Brasil”, suas
opções de país e de desenvolvimento. Estes dois livros resultam desse esforço de diagnóstico
e de proposição.
Stefan Zweig teria gostado de assistir ao seminário que lhe foi dedicado, em setembro
de 2006, por ocasião do 125º aniversário de seu nascimento e dos 65 anos da publicação do
seu livro tão famoso, quanto desconhecido (hoje), terminado poucos meses antes do suicídio
do autor, no carnaval de 1942, em Petrópolis. Ele concordaria com o artigo indefinido e talvez
até com o ponto de interrogação. A primeira edição brasileira modificou o título original,
agora restabelecido – Brasilien, ein land der Zukunft, não der land – e o colóquio agregou a
condicionalidade, refletindo o ceticismo dos examinadores quanto à utopia não realizada. No
essencial, Zweig provavelmente se alinharia aos argumentos dos seus revisores
contemporâneos.
Alberto Dines, autor de uma biografia que pode considerar-se completa do escritor
austríaco – Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (3ª ed.; Rio de Janeiro: Rocco,
2004) –, considera que Zweig, depois de assinar mais de quarenta biografias de
personalidades mundiais, fez a biografia de uma nação, no “inferno do Estado Novo”. Como
ele diz, essa obra “tornou-se a crônica mais conhecida e a menos discutida, a mais celebrada e
mais negligenciada” do Brasil. Ela foi um dos primeiros lançamentos simultâneos da história
editorial mundial: oito edições em seis línguas diferentes. Em vista dos percalços recentes no
processo de crescimento, parece difícil concordar com Zweig em que, “quem conhece o
Brasil de hoje, lançou um olhar sobre o futuro”.
Bolívar Lamounier e Regis Bonelli examinam, respectivamente, os avanços políticos e
econômicos obtidos pelo Brasil desde que Zweig traçou seu diagnóstico sobre o Brasil do
início dos anos 1940. Para Lamounier, o Brasil é um país de “muitos futuros”, mas ele critica
as utopias institucionais que frequentemente pretendem revolucionar a participação e as
formas de se fazer política no país: a romântico-participativa da democracia direta, a do
parlamentarismo clássico que ressurge sempre em momentos de crise e a utopia barroca do
presidencialismo plebiscitário. Já Bonelli opera uma “volta para o futuro” ao examinar os
elementos de continuidade e de mudança na esfera econômica: o Brasil certamente mudou
muito, nesse terreno, mas a propensão a esperar tudo do Estado permanece, assim como uma
certa desconfiança dos mercados externos. Algumas mudanças foram na direção errada, como
o aumento na tributação, outras permanências são irritantes, como a péssima distribuição de
renda e as incertezas jurídicas. Finalmente, o “fantasma do estrangulamento externo” estaria,
de fato, superado?
Boris e Sérgio Fausto acrescentam um ponto de interrogação ao título de Zweig,
temperando o otimismo do autor com certa dose de pessimismo. Não se trata do niilismo da
esquerda, que vê na “dominação imperialista” a razão do nosso atraso. O duplo nó górdio da
carga tributária e do gasto público limita hoje as possibilidades de crescimento. João Luís
Fragoso analisa a “equação” de Zweig para o Brasil: concentração de poder + tolerância. Três
comentários finais tratam das promessas não cumpridas de um olhar estrangeiro, do futuro
que já chegou sob a forma da votação eletrônica e das dificuldades para a retomada de taxas
razoáveis e sustentáveis de crescimento. No conjunto, o livro oferece uma boa visita ao que se
poderia chamar de “futuro do pretérito”.

O segundo livro, Projeto de Brasil, é na verdade uma tripla obra. A segunda parte
apresenta dois estudos de especialistas acadêmicos sobre emprego e inclusão digital. A
terceira parte consiste, tão simplesmente, na transcrição (talvez dispensável, em retrospecto)
da visão de Brasil defendida pelos quatro principais candidatos nas eleições presidenciais de
2006: Lula, Alckmin e Heloisa Helena, pelos respectivos coordenadores de campanha, e
Cristovam Buarque, pelo próprio. Digo dispensável porque qualquer um deles, se eleito,
dificilmente seguiria as pomposas recomendações dos respectivos programas, que a rigor não
possuíam nenhuma importância substantiva. A primeira e mais importante parte constitui uma
síntese, por João Paulo dos Reis Velloso, de propostas para uma agenda nacional, com base
em todas as ideias de modernização do Brasil formuladas desde o surgimento do Fórum por
ele presidido, em 1988. Ele consegue resumir claramente os principais obstáculos ao
desenvolvimento do país, mostrando-o como um “Prometeu acorrentado”, que vive hoje uma
crise de “autoestima”, em uma “era de expectativas limitadas” (apud Paul Krugman).

644
As opções de país que ele propõe são, nominalmente: o desenvolvimento como valor
social, prioridade máxima à segurança, reforma política para construir um sistema político
moderno, um Estado “inteligente” (com legislativo e judiciário modernos), a revolução do
império da lei, da equidade, da tolerância e dos valores humanistas e a opção por uma
sociedade moderna. Quanto às opções de desenvolvimento, elas consistem em três conjuntos
de tarefas: a criação de bases para um crescimento sem dogmatismos, uma estratégia de
desenvolvimento baseada na inovação e na sociedade do conhecimento e o progresso com
inclusão social e portas de saída para os pobres. Ele conclui dizendo que subdesenvolvimento
não é destino, é apenas o reflexo de opções equivocadas. Oxalá o Prometeu pudesse tomar
consciência de quais são elas, exatamente. Aparentemente, além das correntes estatais, ele
está com um pouco de cera nos ouvidos e ainda usa viseiras conceituais.

Brasília, 26 de janeiro de 2007.


Publicada em Desafios do Desenvolvimento
(Brasília: IPEA-PNUD, ano 4, n. 31, fevereiro de 2007)

645
..............................................................
Índice alfabético de autores e livros

Abdenur, Roberto, et alii: A Política Externa Brasileira, 74

Albuquerque, Roberto Cavalcanti de; Reis Velloso, João Paulo dos (coords.): Brasil, um país
do futuro?; Projeto de Brasil: opções de país, opções de desenvolvimento, 671

Albuquerque e Silva, Silvio José: As Nações Unidas e a luta contra o racismo, 100

Almeida, Paulo Roberto de: Formação da Diplomacia Econômica (2005), 31, 208

O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (2006), 40, 239

O Moderno Príncipe (Maquiavel Revisitado), 69, 297

Relações internacionais e política externa do Brasil (2012), 77, 311

Integração Regional: uma introdução, 93, 319

O Mercosul no contexto regional e internacional, 117

Cardoso de Oliveira, José Manoel: Actos Diplomaticos do Brasil, 135

Relações internacionais e política externa do Brasil (1998), 140

Mercosul: fundamentos e perspectivas, 140

Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização, 145

O Brasil e o multilateralismo econômico, 148

O estudo das relações internacionais do Brasil (1999), 148

Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, 151

Formação da diplomacia econômica no Brasil (2001), 161

Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais, 182

A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política, 192

Relações internacionais e política externa do Brasil (2004), 200

Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização, 307

Delgado de Carvalho, Carlos: História Diplomática do Brasil, 541

Almeida, Paulo Roberto de; Barbosa, Rubens Antônio; Rogido Fins, Francisco (orgs.): Guia
dos Arquivos Americanos sobre o Brasil, 71, 290

647
Almeida, Paulo Roberto de; Barbosa, Rubens Antônio; Eakin, Marshall C. (orgs.): O Brasil
dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 167

Almeida, Paulo Roberto de; Chaloult, Yves (coords.): Mercosul, Nafta e Alca, 148

Almeida, Paulo Roberto de; Queiroz Mattoso, Katia de: Une Histoire du Brésil: pour
comprendre le Brésil contemporain, 190

Almeida, Paulo Roberto de; Eakin, Marshall C. (eds.): Envisioning Brazil: a Guide to
Brazilian Studies in the United States, 211

Almeida, Paulo Roberto de; Barbosa, Rubens Antônio (orgs.): Relações Brasil-Estados
Unidos: assimetrias e convergências, 215

Almeida Pinto, José Roberto de: O Conceito de Poder nas Relações Sociais, 56

Almeida Santos, Elias Luna: Investidores soberanos, política internacional, 98

Almino, João: Escrita em contraponto: ensaios literários, 58

Alsina, João Paulo, et alii (orgs.): Segurança Internacional: Perspectivas Brasileiras, 70

Álvarez, Vera Cíntia: Diversidade cultural e livre-comércio, 59

Amado, André: Por Dentro do Itamaraty: impressões de um diplomata, 94

Amaral, José Estanislau do: Usos da história: a diplomacia dos Estados Bálticos, 82

Amaral, Luís Gurgel do: O Meu Velho Itamarati, 66

Amaral, Sérgio, et alii: A Política Externa Brasileira, 74

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Camargo, Alfredo José Cavalcanti Jordão de: Bolívia: a criação de um novo país, 44

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Yergin, Daniel: The Prize: The epic quest for Oil, Money and Power; O Petróleo: Uma
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Williamson, John (org.): Latin American Adjustment: How Much Has Happened?, 448

Williamson, John; Kuczynski, Pedro-Pablo (orgs.): After the Washington Consensus; Depois
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Livros de Paulo Roberto de Almeida

Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais


(Curitiba: Appris, 289 p.; ISBN: 978-85-8192-429-8)

Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN: 978-85-02-
19963-7)

Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da


globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN 978-85-216-2001-3)

O Moderno Príncipe (Maquiavel Revisitado) (Brasília: Senado Federal, 2010, 195 p.; ISBN:
978-85-7018-343-9)

Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen


Juris, 2011, xx+272 p.; ISBN: 978-85-375-0875-6)

O estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia


(nova edição; Brasília: Editora LGE, 2006, 388 p.; ISBN: 85-7238-271-2; 1ª ed.: 1999)

Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no


Império (2ª ed.; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 pp., ISBN: 85-7359-210-9; 1ª
edição: 2001)

Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia


brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2004, 440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4;
1ª edição: 1998; ISBN: 85-7025-455-5)

A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo:


Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8)

Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de Queiroz
Mattoso; Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-1453-6)

Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São


Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 286 p.; ISBN: 85-219-0435-5)

Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000, 160 p.;
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O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora da Universidade São
Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3)

O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999,


328 p.; coleção Direito e Comércio Internacional; ISBN: 85-7348-093-9)

Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5)

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Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 85-
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O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993, 204
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Coordenação:

Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos
Estados Unidos (Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1; com Rubens
Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins)

Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (São Paulo: Editora Saraiva,


2006, ISBN: 85-02-05385-X; com Rubens Antônio Barbosa)

Envisioning Brazil: a guide to the study of Brazil in the United States, 1945-2002 (Madison:
Wisconsin University Press, 2005, 536 p.; ISBN: 0-299-20770-6; com Marshall C.
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O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-
2001 (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 514 p., ISBN: 85-219-0441-X; com Rubens
Antônio Barbosa e Marshall C. Eakin)

Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social (São Paulo: LTr, 1999, 272 p.; ISBN: 85-7322-
635-8; com Yves Chaloult)

Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil (Brasília: Senado Federal, 1998;
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José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do periodo colonial
e varios documentos desde 1492 (Brasília: Senado Federal, 1997; coleção Memória
Brasileira; edição fac-similar)

Mercosul: Textos Básicos (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão- IPRI, 1992, Coleção
Integração Regional nº 1)

Para os capítulos em livros coletivos e demais trabalhos:


Webpage do autor: http://www.pralmeida.org

Curriculum acadêmico completo no sistema Lattes:


http://lattes.cnpq.br/9470963765065128

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Prata da Casa: os livros dos diplomatas

[TEXTO PARA ORELHAS]

Resenhas de livros acadêmicos existem em quase todas as revistas da área, geralmente


limitadas a duas páginas e na estrita observância dos padrões desse gênero de avaliação
crítica: informação objetiva sobre o livro, contextualização no seu ambiente próprio e no
estado da arte dos estudos especializados daquele campo, e síntese final. Os grandes jornais
também costumam trazer, pelo menos uma vez por semana, notas sobre livros, mas eles se
referem apenas às publicações recentes, geralmente os livros da moda, ou aqueles que são
“sugeridos” por editores ativistas. Algumas publicações especializadas oferecem, igualmente,
uma informação sintética sobre o que vai pelo mundo editorial, como notas mais curtas ou
mais longas sobre as novidades mais atraentes, ou até números temáticos.
Não existe, porém, no mercado nenhum equivalente deste livro, uma compilação
exaustiva de tudo o que de mais importante se publicou no Brasil (com algumas esticadas ao
exterior) sobre as relações internacionais, em geral, em especial sobre sua política externa, por
alguém que justamente possui a dupla militância para navegar nos dois campos sem qualquer
dificuldade: na diplomacia profissional e na academia, nesta voluntariamente. Foi também
voluntariamente que Paulo Roberto de Almeida coletou algumas dezenas de resenhas de
livros produzidas ao longo das últimas duas décadas, exclusivamente de livros de diplomatas
ou de acadêmicos tratando dos temas que obrigatoriamente interessam aos diplomatas.
Na verdade, são mais de 250 livros lidos e resenhados para publicações diversas, ou
para seu próprio deleite intelectual. As 144 mini-resenhas da Primeira Parte do livro são
exclusivamente de obras de diplomatas, publicadas em grande parte (mais de 50%) pela
Fundação Alexandre de Gusmão, geralmente resultantes de pesquisas direcionadas, visando
objetivos institucionais e profissionalizantes: elas foram publicadas, a título essencialmente
informativo, numa seção do Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros que se chama,
justamente, Prata da Casa, de onde foi tirado o título deste volume de compilações.
A meia centena de resenhas mais longas – algumas bem longas – da Segunda Parte
também é de livros de diplomatas, mas geralmente publicados por editoras comerciais e
divulgadas em revistas acadêmicas, embora muitas delas tenham permanecido inéditas até
aqui. Na Terceira Parte, finalmente, comparece mais uma meia centena de livros de não
diplomatas, acadêmicos brasileiros ou estrangeiros, que produziram obras que falam de perto
aos diplomatas e a todos aqueles que possuem atração pelos temas da diplomacia e da política
internacional. No conjunto, estas resenhas, que permaneciam esparsas em veículos diversos,
ou mesmo sem publicação, oferecem uma oportunidade única para penetrar no mundo da
diplomacia e dos estudos internacionais, por meio dos melhores livros que possivelmente
foram publicados nas últimas duas ou três décadas (alguns livros são bem mais antigos).
De certa forma, o que vai aqui é uma biblioteca miniatura, ou portátil (se o peso
ajudar), incitando à leitura, ou à releitura, de uma vasta gama de obras que já são clássicas
em suas áreas, ou que constituem bibliografia obrigatória nos cursos e centros de estudos da
área.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento


Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e na
Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI) e,
desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e
Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Como diplomata,
serviu nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, nas delegações em Genebra e Montevidéu

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e foi Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington (1999-2003). Foi também Assessor
Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2003-2007).
Desde janeiro de 2013é Cônsul Geral Adjunto do Brasil em Hartford, Connecticut, EUA.
É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e participa de comitês
editoriais de diversas publicações acadêmicas. Tem dezenas de obras e algumas centenas de
artigos publicados (www.pralmeida.org).

[TEXTO PARA QUARTA CAPA]

Tudo o que você sempre quis saber sobre as relações internacionais e a política
externa do Brasil, e não tinha a quem perguntar?
Quase isso. Sem ser um guia sistemático de leituras direcionadas, este livro é, na
verdade, um diretório anotado de todas as publicações mais importantes, escritas nas últimas
décadas por diplomatas e por acadêmicos, sobre questões da agenda internacional e das
relações exteriores do Brasil, sobre temas que interessam aos próprios profissionais da área,
bem como aos estudantes e aos candidatos à carreira diplomática.
Os melhores livros resenhados, anotados, criticados, no que eles têm de bom, de
menos bom, em todo caso de útil, para um aprofundamento crítico sobre o que de melhor se
escreveu em torno dos temas mais relevantes da diplomacia brasileira desde o final do século
passado. Uma referência doravante indispensável a quem quer saber quem escreveu o quê,
como o fez, e com qual metodologia, sobre os mais diversos assuntos da agenda internacional
contemporânea, assim como da própria história e economia do Brasil e mundial.
Ele é o equivalente ao que na tradição britânica se chama de companion, ou seja, um
companheiro de leituras, ou de releituras, para a melhor literatura disponível no setor.
Este autor sempre foi, com muito orgulho, um devorador compulsivo dos melhores
livros publicados no Brasil, em todas as categorias, com destaque, para os tempos mais
recentes, para os lançamentos editoriais brasileiros na área de relações internacionais. Este
livro vale por um catálogo anotado das publicações mais importantes nessa área.

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Redigido em MS Word 2011,
Composto em MacBook Air
Por Paulo Roberto de Almeida
Em 16/07/2014
www.pralmeida.org
pralmeida@me.com
Tel.: (1.860) 989-3284

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