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DECISÃO

Vistos.

Habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União, em favor


de Rafael Gomes, contra o Superior Tribunal de Justiça que, no julgamento do HC nº
65.810/RJ (fls. 64 a 73), entendeu não existir reformatio in pejus no acórdão do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro de fls. 45 a 49.
Alega a impetrante que:

“O Ministério Público denunciou o paciente junta a 35ª


Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro pela
prática das condutas típicas descritas no art. 157, § 2º, I e II (roubo
duplamente agravado), e art. 157, § 3º, primeira figura, duas vezes
(roubo com resultado lesão corporal grave em duplicidade), na forma do
art. 29, todos do Código Penal Brasileiro (doc. 1). Outros quatro (4) co-
réus foram também denunciados na ocasião.
Vale ressaltar que os fatos aqui versados referem-se ao
lamentável episódio que culminou na morte da jovem Gabriele Maia
Prado Ribeiro, ocorrido no dia 25 de março de 2003 na estação São
Francisco Xavier do metrô do Rio de Janeiro, e que à época ganhou
grande destaque na imprensa nacional.
Ao oferecer a denúncia, o MP encaminhou em separado
promoção (doc. 2) na qual se reservou o direito de aditar a prefacial
acusatória no curso da instrução criminal, bem como requereu, entre
outras coisas, a expedição de ofício ao Instituto de Criminalística Carlos
Éboli requisitando o laudo de confronto balístico do projétil extraído do
corpo da vítima Gabriela Prado Maia Ribeiro entre as armas
apreendidas na ocasião da ocorrência, e a extração de cópias do
procedimento para encaminhamento à 19ª Delegacia Policial com o fim
de dar continuidade às investigações visando apurar a autoria do
disparo que vitimou a menor Gabriela Maia Prado Ribeiro.
O processo teve seu curso normal até a sentença (doc.
3), proferida em 27 de novembro de 2003, quando então veio a lume
violação a direito do paciente que se quer ver estancada neste writ.
O magistrado condenou o paciente nas penas do art. 157,
§ 2º, I e II, na forma do art. 70, a um total de sete anos e seis meses de
reclusão e sessenta dias-multa no valor unitário mínimo. No que tange
ao delito do art. 157,§ 3º, primeira figura, fixou-lhe a pena em oito anos

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de reclusão e quarenta dias-multa. Seguindo adiante, e aqui está a
motivação deste habeas corpus, condenou ainda o paciente como
incurso no art. 157, § 3º, parte final (roubo com resultado morte –
latrocínio), a vinte e três anos de reclusão e cem dias-multa.
Agindo assim, o ilustre magistrado violou de forma
irremediável o salutar PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO ENTRE
ACUSAÇÃO E SENTENÇA, pois condenou o paciente por um crime
não narrado na denúncia, e que por isso mesmo sequer foi objeto de
capitulação na peça inaugural da ação penal. Apesar de fazer referência
ao fato na denúncia, a Promotora de Justiça definitivamente não
imputou tal acusação (de latrocínio) aos réus, até mesmo porque na
promoção pugnou pela continuidade das investigações para apurar a
origem do projétil que ceifou a vida da menor Gabriela.
Mas não é só isso.
Em sede recurso de apelação exclusivo da defesa,
que visava entre outros pleitos combater a ilegalidade perpetrada pelo
douto magistrado, que julgou ultra petita, o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro proferiu acórdão (doc. 4) que mais uma vez
deixou pasma a defesa. A Corte Estadual entendeu que assistia razão à
defesa, mas não para adequar a pena imposta em consonância com o
Princípio da Correlação entre Acusação e Sentença, mas para
anular a decisão de primeiro grau e determinar que os autos
baixassem à Vara de origem para que fosse observado o disposto
no art. 384 e seu parágrafo único do CPP (mutatio libelli).”

“E assim se deu. Os autos baixaram à origem, com a


abertura de vista ao parquet, que aditou e re-ratificou a denúncia
(doc. 7) para incluir a conduta relativa _a parte final do parágrafo
terceiro do art. 157 do CP, ato que foi recebido pelo magistrado a quo
para dar cumprimento ao acórdão.
Inconformada com o ocorrido, que mais uma vez violou o
direito do paciente, pois não poderia a Corte trilhar este caminho em
recurso exclusivo da defesa, foi impetrado hábeas corpus junto ao
Superior Tribunal de Justiça, que restou denegado”

“A não observância da regra processual da mutatio libelli


levou a Corte Estadual a violar também outro princípio, o tantum
devolutum quantum apellatum, pois anulou a sentença não para que
outra fosse proferida respeitando-se o princípio da correlação, nem
adequando a reprimenda de acordo com a narrativa e a imputação feita
na denúncia, mas determinou a baixa dos autos ao primeiro grau de
jurisdição para que fossem observados o art. 384 e seu parágrafo único
do CPP. Isto em recurso exclusivo da defesa!
E o princípio da inércia da jurisdição (ne procedat judex
ex officio)? Também restou violado! Repita-se: não houve recurso da

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acusação. A sentença transitou em julgado para o Ministério
Público!
O verbete nº 160 dessa Corte Suprema também aponta
na linha de corroborar as alegações aqui ventiladas.”(fls. 10/14)

Requer, em caráter liminar, “medida cautelar para afastar o trânsito em


julgado da sentença, suspendendo os efeitos da condenação (...) com a imediata
expedição de alvará de soltura, vez que o título judicial que ampara a execução da
pena remanesce eivado de ilegalidade, até a decisão final desta Suprema Corte” (fl.
14).
No mérito, pede a confirmação da liminar com a “anulação integral da
ação penal instaurada em face do paciente, tendo em vista a manifesta ilegalidade
perpetrada” (fl. 15).
Decido.
A denúncia oferecida contra o paciente dava-o como incurso nas penas
dos artigos 157, § 2º, incisos I e II, e 157, § 3º, primeira figura – lesão corporal grave -
do Código Penal (fls. 16 a 19).
A sentença condenatória proferia pelo Juízo de Direito da 35ª Vara
Criminal da Comarca do Rio de Janeiro, condenou o réu pela prática dos ilícitos
previstos nos artigos 157, § 2º, incisos I e II, e 157, § 3º, primeira parte; mas,
considerando que o roubo praticado também estava qualificado pelo resultado morte,
condenou-o, ainda pela prática do ilícito previsto no artigo 157, § 3º, última parte, do
Código Penal (fls. 23 a 44).
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em grau de
apelação, deu provimento aos recursos interpostos pelo paciente e por outros co-réus
no processo para anular a sentença condenatória.
A Desembargadora Relatora consignou em seu voto:

“Destarte, como se vê, violado restou o princípio da


adstrição ou correlação entre imputação e sentença, o qual representa
uma das mais relevantes garantias do direito de defesa, que se acha
tutelado por via constitucional.

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A r. sentença apelada não analisou somente os fatos
descritos na denúncia, mas ampliou a incidência dos mesmos, e,
conseqüentemente acabou por condenar os ora apelantes por um crime
do qual não tiveram oportunidade de defesa, de modo que faz-se
necessária a anulação do decisum, para que, na vara de origem,
cumpra-se o que determina o artigo 384, parágrafo único, do Código de
Processo Penal.
Pelo exposto, acolhe-se a preliminar suscitada pelas
defesas e, em conseqüência, anula-se a r. sentença atacada,
determinando a baixa dos autos à vara de origem para que se cumpra o
disposto no parágrafo único do artigo 384, do Código de Processo
Penal” (fls. 48/49).

A decisão impugnada, a seu turno, manteve o acórdão aos seguintes


argumentos:

“No caso em exame, o magistrado, ao proferir a sentença,


externou a conclusão de que a prova colhida durante a instrução
demonstrou a presença da qualificadora morte no crime de roubo
praticado pelos réus, não imputada a eles na denúncia, situação que se
amolda, precisamente, à hipótese de mutatio libelli.
Não obstante tal constatação, o magistrado, em vez de
observar o procedimento previsto no parágrafo único do art. 384 do
CPP, condenou o réu, violando, com isso, o princípio da correlação entre
a acusação e a sentença, além da ampla defesa e do contraditório, uma
vez que o acusado não teve oportunidade de se defender da nova
imputação.
Nesse contexto, o Tribunal a quo, apreciando o recurso
de apelação da defesa, corretamente, reconheceu a nulidade da
sentença, determinando a baixa dos autos à vara de origem para que se
cumprisse o disposto no parágrafo único do art. 384 do Código de
Processo Penal.
Com efeito, não há falar, na espécie, em reformatio in
pejus, considerando que o provimento do recurso não implicou o
agravamento da situação dos apelantes, mas, ao contrário, acolhendo a
preliminar suscitada no apelo, destinou-se a assegurar-lhes o direito à
ampla defesa, em observância ao devido processo legal” (fls. 70/71).

O artigo 384, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal


estabelece:

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“Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova
definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos
de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na
denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no
prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser
ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova
definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz
baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a
denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o
processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de
3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três
testemunhas”

Em outras palavras, o que o autoriza a norma posta em destaque é que


o juiz, após a instrução criminal, se entender provada a existência de circunstância ou
elementar não contida na denúncia (ou queixa), altere o fato imputado ao agente
(artigo 384 caput) ou diligencie no sentido de que o Ministério Público adite a denúncia
(artigo 384, parágrafo único). O instituto da mutatio libelli pressupõe em ambas as
hipóteses, porém, a existência de prova relativa à elementar ou à circunstância não
descrita na denúncia, explícita ou implicitamente.
Nesse mesmo sentido a lição de Denílson Feitosa Pacheco (Direito
Processual Penal, Teoria, Crítica e Práxis, 4ª ed.: Impetus, 2006, p. 773)

“Na emendatio libelli, o fato encontra-se descrito na


denúncia, ainda que implicitamente, com todas as elementares. Apenas
a classificação legal é incorreta. O juiz, então, corrige a classificação.
Na mutatio libelli, há prova nos autos de que o fato não
é aquele descrito na denúncia ou na queixa, com a qual a classificação
legal do fato se altera”

No escólio de Eugênio Pacelli de Oliveira (Curso de Processo Penal, 7ª


ed.: Del Rey, 2007, p. 510) tem-se que:

“Enquanto na emendatio a definição jurídica refere-se


unicamente à classificação dada ao fato, aqui, na mutatio libeli, a nova
definição será do próprio fato. Não se altera simplesmente a capitulação
feita na inicial, mas a própria imputação do fato”

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Na hipótese vertente, o evento em debate foi explicitamente descrito na
denúncia nos seguintes termos: “Um dos disparos provenientes da troca de tiros retro
referida, veio a atingir a menor GABRIELA PRADO MAIA RIBEIRO, que descia as
escadas juntamente com a vítima LUIZ CARLOS, tendo sido o ferimento por ela sofrido
a razão de sua morte, conforme positivado pelo AEC acostado às fls. 77” (fl. 18).
Em princípio, todavia, essa circunstância não descarta a aplicação do
instituto. Isso porque, apesar de previamente conhecida a morte da menor que se
encontrava no local, houve, aparentemente, uma deliberada opção do Ministério
Público em não imputá-la ao réu, ao menos em um primeiro momento. Observe-se
que, conforme trecho já reproduzido acima, a denúncia oferecida inicialmente apenas
mencionou que a menor teria falecido na “troca de tiros”, sem apreciar quem a teria
atingido.
Confira-se, a propósito, a seguinte passagem do acórdão prolatado no
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

“Registre-se que embora a denúncia mencione a


lamentável morte da jovem Gabriela Prado Maia Ribeiro, como ocorrida
em decorrência da troca de tiros entre os denunciados e o policial civil,
Luiz Carlos da Costa Carvalho Neto, que descia as escadas da Estação
do Metrô, não imputa a mesma aos denunciados.
Ademais, como muito bem ressaltado pelo culto
Procurador de Justiça, Dr. Afrânio Silva Jardim, em seu Parecer, a não
imputação, na denúncia, aos ora apelantes do lastimável decesso da
jovem Gabriela Prado fica ainda mais claro em razão da promoção de
fls. 329/331, oferecida pela douta Promotora de Justiça que subscreveu
a inicial, na qual a ínclita representante do Parquet requereu,
especificamente em seus itens 3 e 5, laudo de exame de confronto
balístico entre as armas apreendidas com o projétil extraído do corpo da
vítima Gabriela e a extração de cópias do procedimento para
encaminhamento à 19ª DP, para continuidade das investigações e
apuração da autoria do disparo que a atingiu e retirou a vida da referida
menor, reservando-se, outrossim, a possibilidade de aditamento à
denúncia no curso da instrução, o que não ocorreu” (fl. 47).

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Dessa forma, se o juiz, com base na instrução probatória, reconheceu a
existência de roubo qualificado pelo resultado morte que não foi objeto da acusação,
afigura-se presente, ao menos em um juízo de cognição sumária, o pressuposto
autorizador da mutattio libeli.
Além disso, como bem observado pelo Superior Tribunal de Justiça, a
anulação da sentença proferida sem a observância das formalidades previstas no
artigo 386, caput e parágrafo único do Código de Processo Penal, para que outra
fosse proferida, não configuraria reformatio in pejus. Muito pelo contrário, a
providência parece apenas beneficiar o réu, já que vem resguardar o seu direito à
ampla defesa.
De outra parte, não é razoável sustentar, neste momento, a concessão
da liminar pleiteada na alegada ofensa à Sumula nº 160/STF, com a seguinte redação:
“É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso
da acusação, ressalvados os casos de recursos de oficio”. Em primeiro lugar porque,
como já destacado, o reconhecimento da nulidade da sentença não parece ter vindo
em prejuízo do réu. Em segundo lugar a invalidez da sentença foi expressamente
requerida pela defesa no recurso de apelação interposto, embora com fundamentação
diversa.
A concessão de liminar em habeas corpus, como se sabe, constitui
medida de caráter excepcional, justificada apenas quando a decisão impugnada estiver
eivada de ilegalidade flagrante, demonstrada de plano. Isso, porém, não sucede na
hipótese vertente.
Ante o exposto, indefiro a liminar.
Dê-se vista ao Ministério Público.
Renumerem-se as folhas dos autos, já que a primeira folha iniciou com o
número “09”.
Brasília, 14 de setembro de 2007.

Ministro MENEZES DIREITO

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Relator

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