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MAR-ABR 2017

Uma revista para pastores e líderes de igreja


Exemplar avulso: R$ 14,98

O PASTOR-TEÓLOGO
A hermenêutica a
serviço do ministério
EDITORIAL Wellington Barbosa

O obreiro aprovado

P
aulo, ao escrever sua última carta a Timóteo, ex- Santo, foram os responsáveis por transmitir o conteúdo
pressou preocupação acerca da relação entre o da revelação. Enfatizar um aspecto em detrimento de
líder e o estudo da Palavra de Deus. Ele afirmou: outro leva a distorções significativas no processo de
“Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro compreensão da Bíblia. Por isso, ao abordar a Palavra
que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a de Deus, temos que manter em mente a noção equili-
palavra da verdade” (2Tm 2:15). brada de sua origem e composição.
O verbo manejar (gr. orthotomeō) pode ser traduzi- Outra preocupação está relacionada ao entendimen-


do como “cortar retamente”. Os comentaristas discutem to acerca de nosso papel como intérpretes das Escrituras.
as possibilidades do que poderia significar a expressão, Precisamos reconhecer nossas limitações ao lidar com a
quando aplicada ao trato com a Bíblia. F. F. Bruce, um profundidade da revelação bíblica. Devemos estar cien-
especialista em literatura paulina, afirmou: “O retrato na tes de que lemos a Bíblia de acordo com lentes fabrica-
mente de Paulo pode ter sido o de um sulco ou de uma das a partir da vivência num mundo de pecado, coloridas
estrada reta, ou possivelmente de um pedreiro buscan- por influências familiares, sociais e religiosas, que podem
do a simetria perfeita no seu trabalho. Ambos podem es- distorcer de modo côncavo ou convexo a verdade con-
tar por trás desse apelo à exegese correta e equilibrada Todo tida na Palavra de Deus. Por esse motivo, nossa atitude
das Escrituras Sagradas.” conhecimento diante do texto bíblico deve ser de humildade e depen-
Esse é um desafio contínuo para a liderança cris- possível dência do Espírito Santo, ao procurar extrair dele (e não
tã. Como fazer uma exegese “correta e equilibrada” da extraído da aplicar sobre ele) significado e lições para a vida.
Bíblia, de modo a ser aperfeiçoado por ela e tornar-se Bíblia deve ser Por fim, necessitamos entender e reconhecer o pa-
um instrumento efetivo de sua proclamação? apresentado pel da hermenêutica em nosso ministério. Lamentavel-
A história da interpretação bíblica aponta para o de modo con- mente, desenvolveu-se a ideia nociva de que a exegese
desenvolvimento de uma variedade significativa de textualizado bíblica consistente é tarefa exclusiva de teólogos eru-
métodos interpretativos. A diversidade começou com à comunidade ditos. Entretanto, essa concepção é inexistente nas Es-
os judeus que, no período anterior ao surgimento do de fé.” crituras. Grant Osborne faz uma afirmação provocativa:
cristianismo, elaboraram normas de interpretação que “O verdadeiro propósito das Escrituras não é explica-
iam desde a exegese escribal, passando pela comuni- ção, mas exposição, não é descrição, mas proclamação.”
dade de Qumrã, pelas tradições rabínicas, até Filo de Longe de querer alimentar uma rivalidade desnecessá-
Alexandria. No contexto cristão, a trajetória de mais ria entre “teólogos” e “pastores”, a ideia é de que todo
de 2 mil anos de estudo da Bíblia testemunhou extre- conhecimento possível extraído da Bíblia deve ser apre-
mos metodológicos semelhantes aos da cultura exe- sentado em sua plenitude, e de modo contextualizado,
gética judaica, e também foi palco do surgimento de à audiência na comunidade de fé.
abordagens místicas, racionalistas, liberais e, atual- Ao considerar apropriadamente esses três elemen-
mente, pós-modernas. tos, estaremos habilitados a cumprir a exortação pau-
Diante da multiplicidade de pressupostos e métodos lina: “Pregue a Palavra!” (2Tm 4:2, NVI). E esse deve ser
que estão à disposição dos estudiosos das Escrituras, é um compromisso inegociável em nosso ministério.
importante que nós, pastores e líderes cristãos, tenha-
mos uma sólida perspectiva a respeito da Bíblia, do in- Wellington Barbosa,
térprete e da hermenêutica. doutorando em Ministério
(Andrews University), é editor
William de Moraes

Em primeiro lugar, precisamos reconhecer a natu- da revista Ministério


reza divino-humana das Escrituras. Deus revelou Sua
mensagem e homens santos, inspirados pelo Espírito

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SUMÁRIO

10 Bases sólidas
William Johnsson
Uma reflexão sobre os fundamentos
da hermenêutica adventista
10

13 Na trilha dos pioneiros


Marcos Blanco
Lições dos primeiros adventistas acerca
2 Editorial
4 Espaço do leitor
da interpretação bíblica
5 Panorama

16 Exegese pós-moderna
6 Entrelinhas
Jônatas Leal 7 Entrevista
Podemos usar a hermenêutica filosófica como
ferramenta para a compreensão da Bíblia?
32 Pastor com paixão
33 Dia a dia

20 Somente as Escrituras
34 Recursos
 lberto R. Timm
A 35 Palavra final 13
A relação dos reformadores e de Ellen G. White
com a Bíblia Sagrada

24 Todo o Israel será salvo


Kim Papaioannou
Um estudo a respeito da salvação de Israel
em Romanos 11

28 Deus e a escravidão
 lauber S. Araújo
G
O Antigo Testamento defende
24
uma posição escravocrata?

Ministério na Internet SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO CLIENTE


www.revistaministerio.com.br
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Ano 89 – Número 530 – Mar/Abr 2017 Twitter: @MinisterioBRA Segunda a quinta, das 8h às 20h
Periódico Bimestral – ISSN 2236-7071 Redação: ministerio@cpb.com.br Sexta, das 7h30 às 15h45
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Editor Wellington Barbosa CASA Site: www.cpb.com.br
Editor Associado Márcio Nastrini PUBLICADORA E-mail: sac@cpb.com.br
Revisora Josiéli Nóbrega BRASILEIRA
Assistente de Editoria Milenna Vieira Editora da Igreja Adventista do Sétimo Dia Assinatura: R$ 72,70
Rodovia SP 127 – km 106 Exemplar Avulso: R$ 14,98
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Tatuí, SP total ou parcial, por qualquer meio, sem prévia
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ESPAÇO DO LEITOR

Plantio de igreja Teologia da pregação Ninguém sabe nem


Fiquei muito feliz com a ênfase dada ao Apreciei as reflexões e aplicações em o dia nem a hora
plantio de igrejas na última edição da revista torno do livro de Deuteronômio como Li o artigo de Ekkehardt Mueller na re-
Ministério (1º bim/2017). Como pastor distri- exemplo de mensagem que exorta à sal- vista Ministério (1º bim/2017). Sua análise
tal, tive o privilégio de plantar algumas igre- vação (1º bim/2017). Destaco a observação exegética de Mateus 24:36 é admirável e
jas nos últimos anos. Ver uma igreja nascer do doutor Aarón Menares sobre o direito esclarecedora. Eu tirei do artigo o seguin-
é uma experiência marcante e inesquecível que as congregações têm de clamar por ou- te: os servos do Senhor Jesus Cristo devem
– o nascimento do sonho de uma nova con- vir mensagens vindas de Deus e não sim- esperar ativamente Seu retorno, servindo
gregação, as orações junto aos membros da plesmente experiências pessoais. O livro de os necessitados que existem entre nós,
futura igreja, a busca por um local adequa- Deuteronômio coloca o “ouvinte” diante de isto é, o perdido, faminto, solitário, explo-
do, o culto inaugural, a alegria contagiante duas alternativas – obter bênçãos pela obe- rado, rejeitado e esquecido, com todo nos-
da vitória sobre os desafios, enfim, tudo ter- diência ou maldições por menosprezar a Pa- so coração, mente e força. Glória a Deus!
mina na certeza de que estamos realizando lavra. Estamos às portas de Canaã, afirma o Tenham um dia abençoado!
a missão dada a nós por Cristo. Continue- autor, e é urgente que a mensagem divina Robert Smith Jr.
por e-mail
mos, portanto, firmes por esse caminho! faça a diferença nas igrejas atuais.
Fernando Beier Alceu Lúcio Nunes
Hortolândia, SP Tatuí, SP

Contribua com a • Liturgia e temas relacionados, como mú-


A revista Ministério é um periódico internacional editado e publi- sica, liderança do culto e planejamento.
cado bimestralmente pela Casa Publicadora Brasileira, sob supervisão •A
 ssuntos atuais relevantes para a igreja.
da Associação Ministerial da Divisão Sul-Americana da Igreja Adventis-
ta do Sétimo Dia. A publicação é dirigida a pastores e líderes cristãos. Tamanho
• Seções de uma página: até 4 mil caracteres com
Orientações aos escritores espaço.
Procuramos contribuições que representem a diversidade mi- • Artigos de duas páginas: até 7,5 mil caracteres com espaço.
nisterial da América do Sul. Diante da variedade de nosso público, • Artigos de três páginas: até 11,5 mil caracteres com espaço.
utilize palavras, ilustrações e conceitos que possam ser com- • Artigos solicitados pela revista poderão ter mais páginas, de
preendidos de maneira ampla. acordo com a orientação dos editores.
A Ministério é uma revista peer-review. Isso significa que os
manuscritos, além de serem avaliados pelos editores, poderão ser en- Estilo e apresentação
caminhados a outros especialistas sobre o tema que seu artigo aborda. • Certifique-se de que seu artigo se concentra no assunto. Escreva de
maneira que o texto possa ser facilmente lido e entendido, à medi-
Áreas de interesse da que avança para a conclusão.
•C
 rescimento espiritual do ministro. • Identifique a versão da Bíblia que você usa e inclua essa informação
•N
 ecessidades pessoais do ministro. no texto. De forma geral, recomendamos a versão Almeida Revista
•M
 inistério em equipe (pastor-esposa) e relacionamentos. e Atualizada, 2ª edição.
•N
 ecessidades da família pastoral. • Ao fazer citações bibliográficas, insira notas de fim de texto (não notas
•H
 abilidades e necessidades pastorais, como administração do tem- de rodapé) com referência completa. Use algarismos arábicos (1, 2, 3).
po, pregação, evangelismo, crescimento de igreja, treinamento de • Utilize a fonte Arial, tamanho 12, espaço 1,5, justificado.
voluntários, aconselhamento, resolução de conflitos, educação • Informe no cabeçalho: Área do conhecimento teológico (Teologia,
contínua, administração da igreja, cuidado dos membros e assun- Ética, Exegese, etc.), título do artigo, nome completo, graduação e
tos relacionados. atividade atual.
•E
 studos teológicos que exploram temas sob uma perspectiva bí- • Envie seu texto para: ministerio@cpb.com.br. Não se esqueça de
blica, histórica ou sistemática. mandar uma foto de perfil para identificação na matéria.

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PANORAMA

Entre o ensino e a prática


Em dezembro de 2016, o Instituto Datafolha, no Brasil, apre- entre 25 e 34 anos têm nível superior e 72% dos evangélicos com
sentou o resultado de um levantamento sobre as mudanças de 60 anos ou mais vivem com uma renda de até R$ 1.760,00 (dois
comportamento do público evangélico do país. Foram ouvidas salários mínimos).
2.828 pessoas, maiores de 16 anos, em 174 municípios. Os nú- O Datafolha também pesquisou sobre o ensino e a prática
meros apontam para transformações significativas nesse seg- de alguns comportamentos defendidos pelas igrejas evangéli-
mento que, até poucos anos atrás, era visto de modo periférico, cas. Os resultados, que comparam as respostas de evangélicos
mas que atualmente corresponde a 29% da população brasileira. e católicos, demonstram que existe uma sensível diferen-
O estudo mostra, por exemplo, que 66% dos evangélicos en- ça entre o que se prega e o que se vive no contexto cristão
tre 16 e 24 anos nunca tiveram outra religião; 23% dos evangélicos brasileiro.

Sua igreja ensina? Você pratica?


Católicos Católicos
27% Uso de 12%
roupas
Evangélicos adequadas Evangélicos
64% no dia a dia 37%

Católicos Católicos
45% Proibição 20%
do consumo
Evangélicos de bebidas Evangélicos
85% alcoólicas 66%

Católicos Católicos
15%
Tipos de 4%
alimentos
Evangélicos que devem Evangélicos
25% ser evitados 14%

Católicos Católicos
40%
Conteúdos na 16%
Ilustrações: Juliars / Fotolia

TV e internet
Evangélicos que devem Evangélicos
76% ser evitados 51%

Fonte: Instituto Datafolha, Novas Gerações de Evangélicos, <folha.uol.com.br>, dezembro de 2016.

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ENTRELINHAS Carlos Hein

Prega a Palavra

T
ente voltar sua imaginação à segunda metade do transformados e renovados à imagem da Sua pureza.
primeiro século, época do martírio de Paulo, em Teremos fome e sede de nos tornar iguais Àquele a quem
Roma. Imagine os soldados dirigindo-se à cela do adoramos. Quanto mais nossos pensamentos estiverem
idoso pregador do evangelho. O envelhecido apóstolo centralizados em Cristo, mais falaremos dele para os ou-
está escrevendo os últimos conselhos e orientações a tros e mais o representaremos perante o mundo” (Ellen
seu amado discípulo, Timóteo, e também a mim e a você. G. White, Caminho a Cristo, p. 89).
Os anos de trabalho em favor do cristianismo não fo- A Palavra. A Bíblia deve ser nosso livro de cabeceira.
ram fáceis, mas a certeza da missão cumprida pode ser “Não devemos aceitar o testemunho de homem algum


percebida em suas conhecidas palavras: “Quanto a mim, quanto aos ensinamentos das Escrituras, mas devemos
estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da mi- estudar por nós mesmos as palavras de Deus. Se per-
nha partida é chegado. Combati o bom combate [...]. Já mitirmos que outros pensem por nós, nossa energia e
agora a coroa da justiça me está guardada” (1Tm 4:6-8). as habilidades que adquirimos se atrofiarão. Os pode-
Para o apóstolo, aproximava-se o inverno de sua vida. res nobres da mente poderão ficar tão debilitados pela
Além de seus amigos, ele sentia falta de duas coisas: sua falta de exercício nos temas que mereçam concentra-
capa e seus livros (1Tm 4:12). A capa era para abrigá-lo ção que poderão perder a capacidade de compreen-
do frio, os livros para se aprofundar no conhecimento Somente se der o profundo significado da Palavra de Deus” (Ibid.).
da Palavra de Deus. conhecermos O receptor da Palavra. Paulo ordenou que Timóteo cor-
Foi nesse contexto que ele escreveu suas últimas ins- Jesus, por rigisse, repreendesse e exortasse a igreja (2Tm 4:2), evi-
truções. Percebendo que lhe restava pouco tempo de experiência tando assim a tentação de deixar de lado as advertências
vida, Paulo apelou para que Timóteo terminasse a tare- pessoal, e correções das Escrituras. Contudo, é impossível fazê-lo
fa que ele mesmo havia iniciado: “Conjuro-te pois dian- poderemos com equilíbrio a menos que conheçamos bem as ovelhas
te de Deus, e do Senhor Jesus Cristo [...] Que pregues a pregar com do rebanho. O ministro da Palavra deve conhecer e amar
Palavra” (2Tm 4:1, 2, ARC). propriedade, seus ouvintes, e repreendê-los quando for necessário. No
Posso até imaginar o amado apóstolo escrevendo eficiência e entanto, essa repreensão deve ser feita com toda paciência
com letras grandes: “Conjuro-te [...] Que pregues a pa- poder.” e doutrina (2Tm 4:2), demonstrando compaixão e ternura.
lavra”. Sim! Porque viriam tempos em que as pessoas se Como ministros do evangelho, fomos chamados para
voltariam às fábulas (2Tm 4:3, 4). Tenho a impressão de pregar a Palavra de Deus nesta hora final da história do
que esse tempo chegou. No entanto, somente podere- mundo. Se desejamos fazê-lo com responsabilidade,
mos pregar eficazmente se conhecermos bem o Autor precisamos conhecer e amar o Autor da Palavra, Sua
da Palavra, a Palavra e o receptor da Palavra. mensagem e o rebanho que o Senhor colocou sob nos-
O Autor da Palavra. Somente se conhecermos Jesus, so cuidado.
por experiência pessoal, poderemos pregar com proprie-
dade, eficiência e poder. Não é de teoria que o mundo
necessita, é de Jesus. Esse Jesus que você e eu devemos Carlos Hein, doutor em Teologia
conhecer, amar e anunciar. Quem anuncia as boas-novas (Universidad Peruana Unión), é secretário
ministerial para a Igreja Adventista na
da salvação precisa conhecer Seu autor, conversar com América do Sul
Gentileza DSA

Ele e meditar em Seu sacrifício. “Ao meditarmos na


perfeição do Salvador, desejaremos ser inteiramente

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ENTREVISTA JACQUES DOUKHAN

A primazia
da Palavra
“Passamos mais tempo no púlpito mostrando
nossa espiritualidade e pregando sobre a
necessidade de estudar a Palavra de Deus
do que realmente estudando-a, deixando

Gentileza do entrevistado
que ela fale por si mesma. Os sermões devem
ser mais centrados na Bíblia e menos
centrados em nós mesmos.”

por Flavio Prestes Neto e Elmer A. Guzman

Jacques Benjamin Doukhan nasceu na Argélia, em 1940. Quando se tornou jo- se não souber corretamente o significado
vem adulto, aceitou a Cristo como o Messias. Devido à sua determinação em perma- de Sua Palavra, se não apreciar as rique-
necer fiel à observância do sábado, sofreu perseguição, tortura, ameaças de morte zas, a beleza, a profundidade, a relevância
e ficou preso por vários meses, enquanto esteve no serviço militar obrigatório fran- e a urgência de suas orientações.
cês, entre 1961 e 1963. Esses momentos difíceis e dolorosos acabaram se tornando Infelizmente, neste mundo das co-
ocasiões para intervenções milagrosas e desempenharam um papel importante em municações e da mídia de massa, o foco
sua decisão de se dedicar ao ministério e, consequentemente, ao estudo da Teologia. tem mudado do conteúdo para o meio de
No início da década de 1960, Jacques e sua família se mudaram para a França, onde comunicar a verdade. Pouco a pouco, as
ele obteve duas graduações: uma em Teologia (1967) e outra em Hebraico (1970). Em formas de expressar o conteúdo da Pala-
1971, obteve o mestrado e, em 1973, o doutorado em Hebraico, pela Universidade de vra prevaleceram sobre a própria Palavra.
Estrasburgo. Durante o ano seguinte, cursou pós-doutorado na Universidade He- Cada vez mais, o barulho da voz humana
braica de Jerusalém. Em 1978, recebeu seu segundo doutorado, em Teologia Bíblica tem coberto, se não substituído, a Pala-
e Sistemática, pela Universidade Andrews, Estados Unidos. Em 2004, obteve o ter- vra divina.
ceiro mestrado, em Egiptologia, pela Universidade de Montpellier, França.
Ele ensinou hebraico, teologia bíblica e exegese na França, nas Ilhas Maurício e nos Em muitas partes do mundo, o púl-
Estados Unidos, onde trabalha desde 1984. Jacques Doukhan é autor de 20 livros e pito tem sido usado para promover
vários artigos, e foi editor das revistas L’Olivier e Shabbat Shalom. Atualmente, é o uma variedade de interesses, en-
editor-geral do Seventh-day Adventist International Bible Commentary (SDAIBC), quanto a exposição da Bíblia recebe
um projeto que começou em 2010 e deverá terminar até 2020. pouca atenção. Como isso poderia ser
É casado com Lilianne, com quem tem uma filha, Abigail. revertido?
Infelizmente vocês estão certos! Essa
Que habilidades importantes as pessoas que desejam servir a Deus devem ad- situação pode ser observada em muitas
quirir em seu processo de capacitação? denominações cristãs, mas também em si-
Estou profundamente convicto de que as habilidades mais importantes que as pessoas nagogas e mesquitas. Em vez de exaltar
que desejam servir a Deus devem desenvolver são aquelas relacionadas ao estudo da Pa- a Palavra, o púlpito tem sido usado cada
lavra do Senhor a quem querem servir. Você não pode servir a um Mestre eficientemente vez mais para promover a trivialidade

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humana, se não as agendas culturais ou com o Pão substancial e saboroso da vida. sapiencial por causa da profundidade de
mesmo políticas. Entretanto, também precisamos de pas- seu pensamento, sua beleza poética e sua
Como reverter o quadro? Precisamos tores que sejam humanos em conta- relevância existencial. Essa apreciação
de uma revolução! Precisamos rever nos- to com a realidade e a complexidade do dupla pode ser observada no decorrer da
sas prioridades. Precisamos de conversão. mundo, pastores sensíveis ao sofrimen- história. Não é anormal que pessoas se in-
Isso não poderia e não deveria vir por meio to e que se relacionem com as pessoas, teressem pelos livros de Daniel ou Apoca-
de votos administrativos. Você não resolve que as amem e sejam amados por elas. lipse nestes dias problemáticos. Contudo,
um problema espiritual por meio de poder E sim, o pastor (e o professor de teologia) essa “atenção especial” não deve nos dis-
político. Naturalmente, para isso preci- deve unir os dois aspectos, da mesma for- trair do restante das Escrituras. Seria teo-
samos do poder do Espírito Santo, para ma que Jesus. Ele era o grande Rabino e o logicamente errado e psicologicamente
despertar novos interesses e nossas sen- grande Pastor. insalubre concentrar-se apenas na litera-
sibilidades para Sua Palavra. Talvez, tura apocalíptica. A história mostra
em nível humano, devamos simples- que essa “obsessão” produziu pes-
mente voltar ao texto sagrado. Iro- soas mentalmente perturbadas e até
nicamente, passamos mais tempo no criminosos perigosos. Por outro lado,
púlpito mostrando nossa espiritua- uma atenção excessiva à literatura de
lidade e pregando sobre a necessi-
O “fator-chave” na sabedoria à custa de textos apoca-
dade de estudar a Palavra de Deus hermenêutica bíblica lípticos pode promover o ceticismo
do que realmente estudando-a, dei- e, em última análise, levar à negação
xando que ela fale por si mesma. dificilmente se acha em de Deus.
Os sermões devem ser mais centra- Tanto a literatura apocalíptica
dos na Bíblia e menos centrados em qualquer sistema, mas deve ser quanto a sapiencial são importantes
nós mesmos. e devem ser tomadas em conjunto. A
encontrado na exploração do
O sermão deve ser o abrir da Bí- necessidade dessa integração é tes-
blia, uma ocasião para a glorificação próprio texto sagrado. temunhada no livro de Daniel, que
do Autor da Palavra, e não um mo- combina ambos os gêneros. Curio-
mento de diversão, entretenimen- samente, Daniel é descrito como
to vazio ou uma oportunidade para profeta apocalíptico e como sábio,
autoexaltação. O pastor muitas ve- ilustrando, em si, a importância des-
zes fala mais sobre si mesmo do que sa junção.
sobre Deus. Mesmo quando ele se refere Por que é importante que o pesqui-
a Deus, as palavras humanas frequente- sador saiba lidar com os diferentes Qual é o fator-chave nas discussões
mente prevalecem sobre o Senhor falando gêneros literários das Escrituras? De acerca de uma hermenêutica bíblica?
de Si mesmo. Portanto, a única solução é modo específico, quais são algumas Creio que estabelecer o método herme-
simplesmente apresentar o texto inspira- armadilhas que os adventistas devem nêutico seja importante em função de sua
do aos membros e envolver-se com eles na evitar em sua paixão pelas profecias? clareza. No entanto, não tenho certeza de
jornada e nas surpresas da Palavra. Reconhecemos que tanto o Antigo que essa discussão seja crucial em todos
quanto o Novo Testamento têm o mes- os lugares e em todos os momentos. Mui-
Uma tendência que surgiu entre evan- mo grau de inspiração. Desse modo, toda a tos bons cristãos nem sequer estão cientes
gélicos é o que tem sido chamado Bíblia deve receber nossa atenção. No en- dessas questões e, ainda assim, estão per-
de o “pastor-teólogo”. Como os pas- tanto, às vezes, alguma parte parece ser to da Palavra de Deus. Em minha opinião,
tores podem se tornar melhores mais relevante, dependendo de momentos o “fator-chave” na hermenêutica bíblica
pensadores? particulares em nossa vida ou em períodos dificilmente se acha em qualquer sistema,
O conceito de “pastor-teólogo” é real- específicos da história humana. mas deve ser encontrado na exploração
mente interessante. Precisamos de mais Pessoalmente, fui atraído à literatura do próprio texto sagrado.
pastores que possam pensar direito, de apocalíptica quando passei por uma ex- Outro “fator-chave” importante na
modo profundo. Pastores que não apenas periência de intenso sofrimento e preci- questão da interpretação bíblica é a apli-
queiram manter o status quo, mas que sei despertar e nutrir minha esperança. cação da Palavra de Deus à nossa existên-
desejem inspirar e nutrir sua congregação Por outro lado, fui atraído pela literatura cia. Há um processo de mão dupla entre

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as Escrituras e o leitor. Por um lado, a lei- originais, eles têm sido escritos para que se- escritores bíblicos a transmitir Sua men-
tura do texto inspirado afetará a pessoa e jam compreendidos sem qualquer conheci- sagem por meio de palavras e expressões
sua vida. Por outro, a experiência de con- mento dessas línguas antigas. No entanto, literárias humanas. Assim, o texto é es-
tínua “conversão” dirigida pelo Espírito quando uma referência à língua original é tudado em seu fundo histórico, não para
Santo guiará a busca pela compreensão necessária para formular um argumento, a determinar o contexto a partir do qual o
correta do texto bíblico. transliteração da palavra hebraica ou grega texto surge, mas para entender o contexto
é fornecida. Os autores tentaram, na me- no qual Deus comunicou Sua mensagem.
O senhor é editor-geral do Seventh- dida do possível, escrever de modo sim- A procura pelo significado do texto é
day Adventist International Bible ples e claro, a fim de permitir que o maior acompanhada pela compreensão maior de
Commentary (SDAIBC), uma im- número de leitores possível siga sua ex- todo o contexto bíblico (AT e NT). Quan-
portante ferramenta para o estudo plicação. Para os leitores interessados em do outros comentaristas são citados ou in-
da Bíblia. Entretanto, por que dicados nas notas de rodapé, isso é
é necessário mais um comen- feito para dar o reconhecimento obri-
tário bíblico publicado pelos gatório à parte de uma pesquisa bí-
adventistas? blica realizada ou para apreciar uma
Apesar de o Comentário Bíblico declaração particularmente bem for-
Adventista do Sétimo Dia ser um clás- mulada de uma verdade, e não repre-
A humildade e a
sico, tornou-se necessário escrever senta um endosso acerca de tudo o
um novo comentário por, pelo menos, capacidade de ouvir a que o autor pode ter escrito. As es-
três razões. Primeira, o mundo mu- peculações e pressuposições filosó-
dou e a humanidade enfrenta novos Palavra de Deus é o melhor ficas do método crítico-histórico e de
desafios filosóficos e espirituais. Se- teorias derivadas dele foram rigoro-
gunda, o conhecimento das Escritu-
método para compartilhar samente evitadas.
ras e de suas línguas originais. Novas a mensagem bíblica.
informações e habilidades técnicas Para finalizar, que mensagem
nos forneceram novas descobertas, o senhor gostaria de deixar aos
que iluminam e enriquecem a leitu- pastores que não se sentem ca-
ra da Bíblia. Terceira, a igreja mudou. pazes de ensinar eficazmente a
Antes predominantemente norte- mensagem bíblica?
americana, atualmente a Igreja Ad- Paradoxalmente, tenho mais con-
ventista é uma comunidade internacional. detalhes mais técnicos, incluímos as discus- fiança naqueles que se sentem inseguros e
Pela primeira vez na história, a denomina- sões nas notas de rodapé, com as informa- sabem que necessitam de ajuda especial do
ção pode contar com os benefícios de ter ções bibliográficas relevantes. Além disso, que naqueles que têm todas as respostas
muitos eruditos em diversas áreas do co- as lições teológicas e espirituais, com suas e sabem tudo. Por exemplo, o profeta Da-
nhecimento teológico e de todas as par- aplicações práticas, são integradas no co- niel começou seu processo de compreen-
tes do mundo. mentário e apresentadas à medida que se são (Dn 9:1) somente depois que percebeu
avança na leitura do texto bíblico. que não entendia todas as coisas (Dn 8:27).
Qual é o público-alvo do novo comen- Então, o que gostaria de fazer é encorajá-
tário? Quem será beneficiado com ele? Que abordagem é utilizada no novo los: continuem reconhecendo a necessida-
O novo comentário visa alcançar dois comentário para análise do texto de que vocês têm. Deus responderá sua
tipos de leitores. O primeiro grupo é com- bíblico? oração. Na prática, o que quero dizer é que
posto por pastores, seminaristas, teólogos O método adotado é o close reading. a humildade e a capacidade de ouvir a Pala-
e professores de Bíblia que expõem as Es- Isso significa que temos dado atenção ao vra de Deus é o melhor método para com-
crituras na igreja ou em sala de aula. O se- texto bíblico, à sua maneira de falar, en- partilhar a mensagem bíblica. Esteja atento
gundo grupo inclui todas as pessoas que volvendo um estudo de suas palavras, à Palavra, cave fundo suas verdades, in-
estão interessadas em entender o texto seu significado, sua gramática, suas for- terrogue o texto e, então, deixe-se envol-
bíblico em um nível mais profundo. Embo- mas e estruturas literárias e sua teologia. ver por ele. Compartilhar a verdade fluirá
ra os comentários estejam sendo elabora- Essa abordagem surge da convicção de por si só. O Espírito Santo faz parte desse
dos com base nos textos em suas línguas que Deus agiu na história para inspirar os processo.

MAR-ABR • 2017 | 9
CAPA

Bases sólidas
Nove fundamentos para uma hermenêutica adventista

William Johnsson

U
ma das questões mais complexas Como alguém que teve a oportunidade de 2. O fator divino nas Escrituras. Ellen
que os eruditos adventistas enfren- estudar em níveis mais avançados, espe- G. White, uma das vozes mais influentes
tam é chegar a um consenso sobre ro que, como povo, vejamos nossos eru- do adventismo, escreveu: “Os Dez Manda-
os princípios de interpretação das Escritu- ditos como um trunfo, não uma ameaça; mentos foram pronunciados pelo próprio
ras. A Bíblia sempre foi a fonte e a norma como servos da igreja, em vez de funcioná- Deus, e por Sua própria mão foram escri-
para nossas crenças. Devido à sua particular rios duvidosos. Por outro lado, almejo que tos. São de redação divina e não humana.
compreensão da Palavra de Deus, nossos nossos eruditos não vejam seu aprendiza- Entretanto, a Escritura Sagrada, com suas
pioneiros deixaram suas igrejas de origem, do como um fim em si mesmo, mas como divinas verdades, expressas em linguagem
e nós mantemos até hoje uma identidade um privilégio para compartilhar as riquezas de homens, apresenta uma união do divino
distinta e um senso peculiar de missão. das Escrituras com os membros da igre- com o humano. União semelhante existiu
Contudo, às vezes, observa-se que al- ja. Acima de tudo, espero que não caiam na natureza de Cristo, que era o Filho de
guns estudiosos têm se posicionado de na tentação de se sentirem especialistas. Deus e Filho do homem. Assim, é verdade
modo diferente em relação à hermenêu- Como cristãos protestantes, os ad- com relação à Escritura, como o foi em re-
tica bíblica. Como chegamos a esse ponto ventistas não têm “especialistas” nas Es- lação a Cristo, que ‘o Verbo Se fez carne e
em nossa história é algo interessante, mas crituras. Todos podemos abrir a Bíblia habitou entre nós’ (Jo 1:14).”1
essa não é nossa preocupação neste arti- e aprender com o maior Especialista: o Devemos primeiramente referir-nos à
go. O importante é que encontremos uma Espírito Santo. Os estudiosos e erudi- Bíblia como sendo a Palavra de Deus, da
forma de chegar a um consenso. Os nove tos podem nos ajudar a obter maior com- mesma forma que dizemos a respeito de
pontos que proponho a seguir para uma preensão da Palavra de Deus, mas jamais Jesus que Ele é o Filho de Deus. No entanto,
hermenêutica adventista são o resultado poderão substituir a experiência individual quando entramos em contato com a Bíblia,
de convicções que criaram raízes em mim de cada crente com o Deus das Escrituras. nós a temos primeiramente como compo-
ao longo de várias décadas como pastor Não deve haver nenhum elitismo na sição humana, assim como o povo nos dias
adventista, duas delas dedicadas ao ensi- Igreja Adventista. Nenhuma hermenêuti- de Jesus viu pela primeira vez Sua huma-
no das Escrituras. ca que exija um doutorado para ser aceita. nidade. Em ambos os casos, a fé deve nos
1. Uma hermenêutica adventis- Nada que obrigue a saber grego, hebraico conduzir à divindade além da humanida-
ta precisa ser única para toda a igreja, ou aramaico. A hermenêutica adventista de. Com essa pressuposição, nossa pers-
tanto para leigos quanto para eruditos. deve ser para toda a igreja. pectiva subjacente muda.

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para entender o enigma, porém, em úl- (Mc 15:26); em Lucas, “Este é o rei dos ju-
tima instância, devemos aceitar o mis- deus” (Lc 23:38) e; em João, “Jesus Nazareno,
tério. Insistir na clareza lógica resultará o rei dos judeus” (Jo 19:19). Todos eles ressal-
na ênfase imprópria de um elemento taram o mesmo ponto: Cristo era o rei dos
ou de outro. judeus. A memória é complicada e seletiva,
Devemos reconhecer francamen- mas a ideia-chave, a informação que Deus
te a humanidade das Escrituras, com quer que tenhamos, está muito clara.
imperfeições de linguagem, erros de
cópia e tradução, aparente falta 4. A Bíblia deve ser seu próprio in-
de ordem e unidade. De fato, “não são térprete. Uma vez que a Bíblia é a Palavra
as palavras da Bíblia que são inspira- de Deus, ela tem apenas um Autor, porém,
das, mas os homens é que o foram”;2 muitos escritores. Isso faz das Escrituras
assim, rompemos com uma postura uma unidade sólida, espiritual, que se re-
fundamentalista. vela ao estudante sincero e diligente. Mui-
Essas palavras são assustadoras! Se- tas vezes essa unidade é obscurecida pela
ria mais simples ter uma Bíblia em que humanidade da Bíblia – as fragilidades dos
cada palavra tivesse sido ditada por seus escritores, o tempo e o lugar da reve-
Deus, assim como seria mais fácil com- lação divina. Apesar disso, devemos sempre
Chad McDermott / Fotolia

preender o mistério da pessoa de Jesus procurar entender o quadro geral. Precisa-


se Sua humanidade fosse apenas um in- mos ler e estudar toda a Bíblia, sem negli-
vólucro ou uma forma. Assim como al- genciar nenhum capítulo ou livro porque
guns estudiosos nunca aceitaram a real nos parece menos atraente.
Por essa razão, estabelece-se uma humanidade de Cristo, também há aqueles Permitir que a Bíblia se interprete signifi-
disputa com as diversas alternativas de se que têm a tendência de pensar que a inspi- ca não impôr conclusões pré-estabelecidas
estudar a Bíblia, como alguém estudaria ração das Escrituras ficaria ameaçada se le- sobre o texto. Precisamos ouvir as Escritu-
outro livro qualquer, antigo ou contempo- vássemos a sério sua humanidade. ras. Não afirmamos, por exemplo, que por-
râneo. Os pesquisadores concordam que, Vemos aqui um exemplo do que ocorre que a inspiração significa tal ou tal coisa ou
em qualquer disciplina, o método empre- em minha área de estudo e especialização, nossa teologia exige isso ou aquilo, que o
gado deve ser condizente com o conteú- o Novo Testamento. Há um grupo signifi- texto não pode significar o que parece dizer.
do. Estranhamente, porém, grande parte cativo de eruditos críticos que dissecam A hermenêutica adventista deve ser
da crítica erudita moderna tenta estudar os Evangelhos, lançando dúvidas sobre a moldada pelo estudo integral da Palavra.
as Escrituras por si mesma, enquanto ape- própria pessoa de nosso Senhor, até que Podemos nos beneficiar do que outros es-
nas estende a “possibilidade” para um ele- alguém seja deixado no ar imaginando o creveram sobre a Bíblia, mas nossa abor-
mento divino – o que, de fato, é seu fator que Jesus realmente disse, o que foi colo- dagem deve emergir do minucioso estudo
constitutivo. Como uma criança do Ilumi- cado em Sua boca pela igreja que O suce- da própria Bíblia.
nismo, tentando libertar seu estudo das deu, e até que Seu nascimento miraculoso,
conclusões dogmáticas exigidas pelos lí- Seus milagres e Sua ressurreição sejam re- 5. A interpretação é mais uma arte
deres eclesiásticos, a crítica tem, no en- legados à categoria de mito. Esses críticos, do que uma ciência. Deus Se revela na
tanto, colocado de lado o que é o cerne de no entanto, concordam em um ponto: que Bíblia, ela é Sua Palavra, e Ele não ocul-
sua matéria. Se queremos interpretar cor- Cristo morreu em uma cruz. tou a mensagem que desejava transmitir.
retamente a Bíblia, precisamos nos aproxi- Observe como cada um dos evangelistas Por meio do estudo cuidadoso da revela-
mar dela com atitude humilde e reverente. registrou as palavras que Pilatos mandou ção, os pesquisadores sinceros da verda-
colocar sobre a cabeça de Jesus. À primei- de conhecerão como Deus é e como eles
3. A humanidade das Escrituras. Em ra vista, o fato que surpreende é que cada podem manter um relacionamento salví-
relação à Bíblia, afirmamos: Ela é a Palavra evangelista fez um relato diferente dessas fico com Ele.
de Deus e é palavra humana. Há um misté- palavras. Como poderia ser isso? O que Pila- Entretanto, o estudo da Bíblia é mais
rio divino aqui. Novamente, é semelhante tos realmente mandou escrever? Em Mateus uma arte do que uma ciência. Ao estudá-la,
à união da divindade e da humanidade na está escrito “Este é Jesus, o rei dos judeus” trazemos nossa personalidade e indivi-
pessoa de nosso Salvador. Podemos lutar (Mt 27:37); em Marcos, “O rei dos judeus” dualidade, e filtramos a Bíblia através de

MAR-ABR • 2017 | 11
nossas experiências de vida. As Escrituras sobrenatural, a sequência linear da histó- creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,
têm uma forma particular de falar a cada ria e a postura meramente “objetiva”, não e para que, crendo, tenhais vida em Seu
um de nós. Portanto, ninguém pode rei- podem fazer parte de uma hermenêuti- nome” (Jo 20:31).
vindicar ter a única e definitiva interpreta- ca adventista. Essa abordagem eviscera o O versículo pode ser entendido como
ção da Palavra de Deus. Nunca fiquei tão texto e rouba sua alma. “chegar a crer em Jesus como o Cristo” ou
impressionado com uma de suas men- No entanto, também estou convenci- “continuar a crer em Jesus como o Cristo”
sagens como quando ouvi um pregador do de que a Bíblia é uma produção huma- (os manuscritos antigos variam no tempo do
afro-americano expor a riqueza e a pro- na, e pode ser estudada como tal. Fiz meu verbo). Em ambos os casos, o ponto é espe-
fundidade dos textos que falam da liber- doutorado na Universidade Vanderbilt e, cífico: o objetivo da Bíblia é nos conduzir à fé.
tação de Israel da escravidão egípcia. Isso como outros estudantes adventistas, cur- Assim, se somos teólogos, eruditos,
nos leva ao próximo fundamento. sei a disciplina obrigatória de Método de pastores ou membros leigos, nosso estudo
Interpretação Bíblica, do grande professor das Escrituras não será um fim em si mes-
6. Precisamos uns dos outros. A Bí- J. Philip Hyatt. A primeira área que estu- mo. Seu exame envolve atividade inte-
blia é o livro da igreja, não simplesmente do damos sob o método crítico-histórico foi lectual, mas não é meramente uma busca
mundo acadêmico. Precisamos ouvir uns a crítica textual. Atualmente, não conhe- intelectual. O Senhor deseja que nossos
aos outros, aprender uns com os outros. ço nenhum teólogo ou erudito adventista esforços para interpretar Sua Palavra en-
O membro leigo necessita do conhecimen- que não reconheça o valor da crítica tex- volvam todo o nosso ser e resultem em
to do erudito, e o erudito precisa das ideias tual para a interpretação do texto bíblico. mudanças cruciais em nossa vida. Ao nos
que o fiel membro leigo, nutrido por anos Contudo, acho que é um debate sem fim ar- alimentarmos de Sua Palavra e interagir-
de reflexão pessoal e aplicação da Pala- gumentar que, por causa do uso da crítica mos com Seu Espírito, cresceremos na fé.
vra, imprime ao texto. Os eruditos bíblicos textual, os estudiosos adventistas se en- Além disso, estaremos mais bem equipa-
precisam escutar uns aos outros, construir volveram com o método crítico-histórico. dos para transmitir a mensagem a outros.
pontes de comunicação e diálogo. O erro das “erudições bíblicas moder-
Essa dimensão corporativa de interpre- 8. Concentrar nos ensinamentos nas” é sua postura intencional de desape-
tação é o complemento do aspecto indivi- simples das Escrituras, e não nas “no- go à fé e ao compromisso que a Palavra
dual, e serve não só para enriquecer, mas zes duras”. Não digo que devamos ne- requer. Todos estamos sujeitos a cair em
para proteger. Na multidão de conselhei- gligenciar as “nozes duras”. Elas podem armadilha semelhante quando nos limi-
ros encontramos sabedoria, e todo crente conter uma castanha ou amêndoa usada tamos somente a discutir o significado do
é um mestre na família da igreja. pelo Senhor para impactar nossa mente e texto bíblico ou debater como interpretar
nosso viver. Mas não devemos nos concen- as Escrituras em vez de colocar em práti-
7. Abandonar a terminologia confli- trar tanto nas passagens difíceis da Bíblia ca o que elas nos dizem, interagindo as-
tante. Após todos esses anos analisando e ficar tão obcecados com os textos pro- sim com o próprio Senhor por meio delas.
o assunto, penso que a melhor decisão que blemáticos a ponto de perder nossa pers- Que o Senhor nos faça homens e mu-
nossos eruditos e teólogos poderiam to- pectiva subjacente. lheres que realmente preguem a Palavra da
mar seria apagar o termo “método crítico- A pessoa para quem a Bíblia já não apre- verdade, e que vivam de toda palavra que
histórico” do seu vocabulário. Sou avesso senta mais dificuldades é alguém que pa- procede da boca de Deus!
a cunhar outro termo para nossa aborda- rou de pensar. Entretanto, a pessoa que
Referências
gem bíblica, e pergunto: será que realmen- permanece continuamente sobre as “no-
1
Ellen G. White, O Grande Conflito, <egwwritings.org>,
te precisamos de um novo termo? Não zes duras” se tornará desequilibrada em
p. 7.
tenho dúvida de que o “método crítico- hermenêutica e, talvez, até mesmo na fé. 2
_______________, Mensagens Escolhidas, v. 1,
_
histórico” se tornou um terror entre nós, <egwwritings.org>, p. 21.
uma expressão que aumenta as dificulda- 9. Estudar, aplicar e praticar. A her-
des e gera tensão em vez de luz. Somente menêutica adventista não deve se con-
permaneceremos unidos se abandonar- tentar apenas com a interpretação e William Johnsson, doutor
em Teologia (Vanderbilt
mos essa abordagem. compreensão do texto sagrado. O apóstolo University), está jubilado
Gentilaza do autor

Estou convencido de que os pressu- João resume o propósito das Escrituras: atualmente. Por 24 anos, foi
editor da Adventist Review
postos desse método: a racionalização do “Estes, porém, foram registrados para que

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12 | MAR-ABR • 2017
CAPA

Na trilha dos
pioneiros
O que podemos aprender do modo como
os primeiros adventistas estudavam a Bíblia?

Marcos Blanco

O
s princípios hermenêuticos são fun- Miller se propôs a harmonizar as chamadas Dessa forma, uma de suas maiores pressu-
damentais para a leitura e inter- “contradições” da Bíblia ou continuar sendo posições hermenêuticas foi o conceito de
pretação da Bíblia. Nesse sentido, um deísta. Essa busca o levou a adotar uma que a Bíblia é um todo coerente, em que
a visão teológica e missiológica do movi- visão racionalista do método hermenêutico.4 todas as partes podem ser harmonizadas.8
mento adventista surgiu no contexto de Após dois anos de estudo, nos quais tratou Ele disse: “A Bíblia é um sistema de verda-
uma hermenêutica bem definida: as regras de harmonizar o texto bíblico, ele afirmou: des reveladas, proporcionadas de manei-
de interpretação bíblica de Guilherme Mil- “A Bíblia passou a ser para mim um novo ra clara e simples.”9
ler. Elas foram responsáveis por lançar os livro. Na verdade, era uma festa da razão. Seus princípios básicos, a Bíblia como
fundamentos hermenêuticos da Igreja Ad- Tudo o que me parecia obscuro, místico ou sua própria intérprete e a harmonização
ventista do Sétimo Dia. incompreensível em seus ensinos havia se dos textos bíblicos, também ocupam um
Durante os 12 anos em que foi deísta, dissipado de minha mente, diante da clara lugar preeminente em suas famosas “re-
Miller acreditou que a Bíblia estava reple- luz que irradiava de suas páginas sagradas.”5 gras de interpretação”: Por exemplo, a
ta de inconsistências.1 Depois de uma sé- O baconianismo, ou método indutivo, quarta e a quinta regra dizem: “(4) Para
rie de situações que alteraram o rumo de havia se convertido no método científi- conhecer as doutrinas, junte todos os tex-
sua vida, como a participação na guerra co clássico do período.6 Com isso em vista, tos acerca do tema que você deseja estu-
de 1812 e a morte de seu pai no mesmo ano,2 Miller adotou o princípio hermenêutico que dar; então, deixe que cada palavra exerça
Kichigin19 / Fotolia

ele decidiu voltar-se às Escrituras e dar-lhes tornou possível a sincronização das dife- sua devida influência. Se você puder elabo-
“a oportunidade de serem respeitadas”.3 rentes profecias em um sistema coerente.7 rar sua teoria sem haver uma contradição,

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você não pode estar em erro. (5) As Escri- todo, é uma cadeia perfeita, prendendo-se sua conexão com o todo ou sem referência
turas precisam ser sua própria expositora, uma parte à outra, e explicando-se mutua- às demais partes. [...] Se a Bíblia é interco-
sendo essa sua própria regra.”10 mente.”17 “O estudante deve aprender a ver nectada, então todas as partes são neces-
Esses princípios estão fundamentados a Palavra como um todo, e bem assim a re- sárias para formar o todo. Esse princípio se
na pressuposição hermenêutica de que a lação de suas partes.”18 aplica tanto a um livro da Bíblia quanto a
Bíblia é um sistema harmonioso. Uma vez Com base na pressuposição hermenêu- um texto somente. Não existe livro bíbli-
que as Escrituras têm um único Autor, não tica de que a Bíblia é um sistema harmo- co que não possa ser iluminado por qual-
existe conflito entre a mensagem de toda a nioso de verdades, Ellen G. White também quer outro livro das Escrituras. Dizer que
Bíblia como sistema e qualquer passagem enfatizou a necessidade de comparar ver- os livros da Bíblia não têm conexão é qua-
em particular. Ou seja, o todo como chave sículo com versículo como procedimen- se o equivalente a dizer que ela não foi to-
hermenêutica não ameaça a interpreta- to hermenêutico: “A Bíblia é seu próprio talmente inspirada pelo mesmo Espírito”.22
ção das partes. Steen Rasmussen concluiu expositor. Uma passagem será a chave Da perspectiva de Waggoner, a com-
seu estudo acerca dos princípios herme- que descerrará outras passagens, e desse preensão da Bíblia necessita de uma
nêuticos de Miller afirmando que “a maior modo haverá luz sobre o significado ocul- abordagem sistemática que a considere
pressuposição” da hermenêutica de Mil- to da Palavra. Comparando diversos textos completamente na busca por significado
ler é que “a Bíblia contém uma apresenta- que tratam do mesmo assunto e exami- teológico. Esses princípios hermenêuticos
ção sistemática das palavras de Deus para nando sua relação em todo o sentido, se foram seguidos por outros grandes teólo-
o homem, e é uma coleção de verdades tornará evidente o verdadeiro significado gos entre os pioneiros, como, por exemplo,
harmoniosas”.11 Miller explicou o assunto das Escrituras.”19 Uriah Smith, um dos mais prolíficos auto-
da seguinte maneira: “Não existe um livro Embora ela não tenha elaborado uma res adventistas do período.23
escrito que tenha melhor interconexão e lista detalhada de regras hermenêuticas, Em resumo, a Bíblia como um sistema
harmonia do que a Bíblia.”12 endossou enfaticamente os princípios harmonioso de verdades foi o pressupos-
adotados por Miller.20 Ao resumi-los, El- to elementar dos pioneiros adventistas. Ao
Os pioneiros e a len G. White destacou a Bíblia como siste- mesmo tempo, tal pressuposição os levou
hermenêutica ma de verdade e a necessidade de reunir a adotar dois princípios-chave: As Escritu-
As regras de interpretação de Miller ti- todas as passagens acerca de determina- ras interpretam as Escrituras e a harmoni-
veram grande impacto nos princípios her- do assunto. zação das passagens bíblicas. Isso presume
menêuticos dos primeiros adventistas.13 Ellet J. Waggoner, por sua vez, escre- a existência de um “sistema” (como princí-
Tiago White, por exemplo, adotou uma veu em um editorial da Signs of the Times pio de articulação do todo) na Bíblia. Uma
abordagem sistemática do estudo da Bí- o que é considerada a “primeira apresen- vez que os primeiros adventistas reconhe-
blia, afirmando que era necessário “reunir tação abrangente dos princípios herme- ceram a conexão vital entre as partes das
suas diferentes porções”,14 a fim de poder nêuticos adventistas”.21 Nesses princípios Escrituras, eles consideraram que a tare-
compreender totalmente o significado de é possível notar com clareza a ideia de que fa hermenêutica não estava finalizada até
uma palavra, sentença ou doutrina. Para a Bíblia é um sistema harmonioso de ver- que uma palavra, um símbolo ou um tema
ele, “Escritura deve explicar Escritura e, dades em que as partes concordam per- fosse estudado à luz de toda a Bíblia.
então, se poderá ver a harmonia ao lon- feitamente com o todo:
go do todo”.15 Essa abordagem da Bíblia “(2) A Bíblia é um livro interconectado, Abordagem teológica
como um todo sistemático permitiu que coerente e harmonioso. [...] a perfeita har- dos pioneiros
ele visse na teologia adventista “um sis- monia entre suas diferentes partes é uma Está claro que Miller utilizou uma abor-
tema conectado de verdades, o mais belo prova de que proveio de Deus. Como co- dagem sistemática em relação ao texto
em todas as suas partes, que a mente hu- rolário desse princípio, seria possível dizer bíblico.24 Quanto aos primeiros adventis-
mana já contemplou”.16 que ela não necessita ser ‘harmonizada’. tas, embora tenham trabalhado de acor-
Ellen G. White também enfatizou a ne- Tentar fazer isso é uma tarefa inútil, uma do com o princípio Sola Scriptura, eles não
cessidade de um tratamento sistemático vez que a Bíblia está harmonizada. Tudo se utilizaram das ferramentas modernas
no estudo das Escrituras. Para ela, as partes que o estudante deve fazer é estudar a da teologia bíblica como disciplina teoló-
da Bíblia se harmonizam perfeitamente em harmonia que já existe. [...] (3) A Bíblia deve gica. Nesse sentido, Jon Paulien afirma:
um sistema de verdades, como os elos de ser sua própria intérprete. (4) Uma parte da “Quando examinamos a obra dos pionei-
uma corrente. Em 1887, a autora afirmou: Bíblia não pode ser totalmente compreen- ros adventistas, descobrimos rapidamen-
“Vi, porém, que a Palavra de Deus, como um dida quando é estudada isoladamente de te que, com a possível exceção de John N.

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Andrews, a exegese como é descrita atual- uso da síntese como metodologia que bus- 17
Ellen G. White, Primeiros Escritos, <egwwritings.org>,
p. 220. Ela repetiu por muitas vezes esse mesmo
mente foi pouco realizada por eles, se é que ca integrar as partes em um todo harmo-
conceito. Por exemplo: “Elo após elo da preciosa
chegaram a utilizá-la.”25 nioso e o descobrimento de um “centro” ao cadeia da verdade foi pesquisado, até que todos
Por outro lado, os primeiros adventis- redor do qual giram todas as verdades bíbli- apresentassem bela harmonia, unidos em perfeito
encadeamento.” Testemunhos para a Igreja,
tas consideravam a Bíblia um sistema har- cas são elementos que indicam que eles ti- <egwwritings.org>, 2:651.
monioso de verdades; algo que os levou a veram uma abordagem sistemática em sua 18
Ellen G. White, Evangelismo, <egwwritings.org>,
desenvolver uma abordagem “sistemáti- elaboração teológica.32 p. 339.

ca” da teologia. Eles entendiam que sua 19


 llen G. White, Fundamentos da Educação Cristã,
E
Referências <egwwritings.org>, p. 187.
teologia era um sistema harmonioso de
1
 uilherme Miller, Apology and Defense (Boston, MA:
G 20
 llen G. White, “Notes of Travel”, The Advent
E
doutrinas inter-relacionadas, que tinha o
J. V. Himes, 1845), p. 3. Review and Sabbath Herald, 25/11/1884, p. 738.
santuário celestial como “centro”. 2
Ver Sylvester Bliss, Memoirs of William Miller 21
Crocombe, p. 178.
Diversos pioneiros adventistas reco- (Boston, MA: J. V. Himes, 1853), p. 28-55. 22

Ellet J. Waggoner, “The Bible, Commentaries, and
nheceram a centralidade teológica do san- 3
Miller, Apology and Defense, p. 5. Tradition”, The Signs of the Times, 6/1/1887, p. 6.
tuário celestial. José Bates, por exemplo, 4
 avid L. Rowe, Thunder and Trumpets: Millerite and
D 23
 er, por exemplo: Uriah Smith, “The Bible, and
V
viu uma “cadeia perfeita e harmoniosa” Dissenting Religion in Upstate New York , 1800-1850 the Bible Alone”, The Advent Review and Sabbath
(Chico, CA: Scholars Press, 1985), p. 10. Herald, 19/3/1857, p. 155.
de verdades no santuário.26 Tiago Whi-
5
Bliss, Memoirs of William Miller, p. 76. 24
 oltan Szalos-Farkas, The Rise and Development
Z
te declarou que o santuário “tem sido e of SDA Spirituality: The Impact of the Charismatic
6
Theodore Dwight Bozeman, Protestants in an Age of
continua sendo o grande pilar da fé adven- Guidance of Ellen White (Cernica: Editura Institutului
Science: The Baconian Ideal and Antebellum America
Teologic, 2005), p. 106-107.
tista”.27 Uriah Smith defendia que o san- Religious Thought (Chapel Hill, NC: The University of
North Carolina Press, 1977), p. xv. 25
Jon Paulien, “Three Ways to Approach the Bible:
tuário é “o grande núcleo ao redor do qual
Disciplinary Distinctions–Some Suggestions”
se reúne a gloriosa constelação da verdade
7
 sses princípios hermenêuticos eram muito similares
E
(Berrien Springs, MI: Andrews University, 1997), p. 18.
aos que Isaac Newton adotou em seu estudo das
presente”.28 John N. Andrews afirmou que profecias bíblicas. Ver Frank E. Manuel, The Religion of 26
Joseph Bates, A Vindication of the Seventh-Day
o santuário é o “grande centro doutrinário” Isaac Newton (Oxford: Clarendon Press, 1974), p. 98. Sabbath, and the Commandments of God: With
a Further History of God’s Peculiar People, from
do sistema adventista, uma vez que “se co- 8
Jeff Crocombe, “‘A Feast of Reason’: The Roots
1847 to 1848 (New Bedford, MA: Press of Benjamin
of William Miller’s Biblical Interpretation and Its
necta inseparavelmente a todos os pon- Influence on the Seventh-Day Adventist Church”
Lindsey, 1848), p. 90.

tos de sua fé e apresenta o tema como um (tese de doutorado, The University of Queensland, 27
Tiago White, “Our Present Position”, Review and
2011), p. 2. Herald, dez. 1850, p. 13.
grande todo”.29 Por último, Ellen G. Whi-
9
Miller, Apology and Defense, p. 6. 28
Uriah Smith, “Synopsis of the Present Truth. No. 19”,
te resumiu essa compreensão generaliza-
Adventist Review and Sabbath Herald, 25/3/1858,
da entre os pioneiros acerca do santuário:
10
 illiam Miller, “Mr. Miller’s Letters No. 5: The Bible
W
p. 148.
Its Own Interpreter”, Signs of the Times, 15/5/1840,
“O assunto do santuário foi a chave que p. 25-26. 29
John N. Andrews, “The Sanctuary”, Adventist
desvendou o mistério do desapontamen- Review and Sabbath Herald, 18/6/1867, p. 12.
11
 teen R. Rasmussen, “Roots of the Prophetic
S
to de 1844. Revelou um conjunto completo Hermeneutic of William Miller” (dissertação de 30
Ellen G. White, O Grande Conflito, <egwwritings.org>,
mestrado, Andrews University, 1983), p. 100. p. 423.
de verdades, ligadas harmoniosamente
12
William Miller, Evidences from Scripture and History 31
 enis Fortin, “Nineteenth-Century Evangelicalism
D
entre si.”30 of the Second Coming of Christ, About the Year 1843 and Early Adventist Statements of Beliefs”, Andrews
Por isso, Denis Fortin afirma que a dou- (Troy, NY: Kemble and Hooper, 1836), p. 4. University Seminary Studies 36, nO 1 (1998): 65.
Ver também Alberto R. Timm, O Santuário e as
trina do santuário foi o “centro teológico 13
George R. Knight, Em Busca de Identidade: O
Três Mensagens Angélicas: Fatores Integrativos no
Desenvolvimento das Doutrinas Adventistas do
dos pioneiros adventistas, e se converteu Desenvolvimento das Doutrinas Adventistas, 4ª ed.
Sétimo Dia (Tatuí, SP: CPB, 2005), p. 11. Ver Alberto
em um princípio articulador de todas as (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2002).
R. Timm, “Antecedentes Históricos da Interpretação
demais doutrinas”.31 Essa abordagem pro- Bíblica Adventista”, em Compreendendo as Escrituras: 32
Knight, Em Busca de Identidade, p. 74, 75, 86.
Uma Abordagem Adventista, ed. George W. Reid
curou encontrar a lógica interna das Es- (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007), p. 6.
crituras em sua totalidade e buscou um 14
James White, Life Incidents, in Connection with the
tratamento que não somente usou a sínte- Great Advent Movement, as Illustrated by the Three
Angels of Revelation XIV (Battle Creek, MI: Steam
se ou articulação de textos bíblicos, como Marcos Blanco, doutorando
Press of the Seventh-day Adventist Publishing
também de ensinamentos, noções e ideias Association, 1868), p. 150, 151. em Teologia (Adventist
International Institute of
como metodologia principal.
Gentilaza do autor

15
Tiago White, “The Sabbath”, The Advent Review
Advanced Studies), é editor
Em suma, a abordagem dos pioneiros ad- and Sabbath Herald, 7/4/1851, p. 62.
da revista Ministério, edição
ventistas em relação à Bíblia como sistema, o
16
White, Life Incidents, p. 267. em espanhol

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MAR-ABR • 2017 | 15
CAPA

Exegese pós-moderna
Uma reflexão sobre o uso da hermenêutica filosófica na interpretação bíblica

Jônatas Leal

À
medida que o tempo passa, surgem Hans-Georg Gadamer que, embora não nos abster e que, por sua vez, torna-se a
novos desafios para a interpretação tenha tratado especificamente de textos própria condição de possibilidade de qual-
das Escrituras. O método histórico- bíblicos, tem os princípios de sua herme- quer pretensão à ‘verdade’ em ciência”.2
crítico marcou o alvorecer da exegese nêutica filosófica amplamente utilizados O segundo conceito a ser considerado
bíblica na modernidade. Enquanto se dis- por exegetas bíblicos, especialmente os é o da tradição. Por tradição, o autor en-
tanciava dos ideais hermenêuticos da Re- defensores das novas hermenêuticas con- tende o que tem validade sem precisar de
forma Protestante, ele se desenvolvia como textuais, ainda que isso ocorra de forma fundamentação. A relação entre tradição
um sistema hermenêutico em que não ha- inconsciente. e costume é elucidada quando ele afirma
via lugar para o sobrenatural. Consequen- Como deveriam os pastores reagir a que “os costumes são adotados livremen-
temente, tornou-se inadequado, tendo em essas novas abordagens hermenêuticas? te, mas não são criados nem fundados em
vista a natureza singular da Bíblia, especial- As reações podem ir do isolamento à to- sua validade por um livre discernimento”.3
mente sob a perspectiva adventista. tal assimilação. Entretanto, ambas as op- Portanto, já que sua validez não necessi-
Contudo, os novos ares da pós-mo- ções não parecem saudáveis. Assim, este ta de fundamentos racionais, a tradição
dernidade, principalmente no pós-guerra, artigo propõe que o melhor caminho é, em é determinada de modo espontâneo. De
trouxeram consigo novos conceitos her- primeiro lugar, entender essa nova realida- acordo com Gadamer, “encontramo-nos
menêuticos que, por meio da filosofia da de hermenêutica e, em segundo lugar, ten- sempre inseridos na tradição, e essa não é
linguagem, impactaram irreversivelmente tar extrair dela oportunidades de diálogo uma inserção objetiva, como se o que a tra-
tanto as ciências literárias quanto as ciên- e crescimento. dição nos diz pudesse ser pensado como
cias humanas em geral. A hermenêutica estranho ou alheio”.4 Sua crítica ao moder-
bíblica não ficou ilesa. Novos métodos de Pilares da hermenêutica nismo também se dá aqui pelo fato de a
interpretação têm surgido como o estru- pós-moderna ciência de sua época reivindicar liberdade
turalismo, o desconstrutivismo, o reader- Como ilustração, aqui são explorados total não só dos preconceitos, mas tam-
response e as hermenêuticas contextuais três conceitos elaborados na obra de Gada- bém de estar presa a qualquer tradição.
da libertação e do feminismo. mer que são fundamentais para as novas Isso ele chama de recepção ou reflexão in-
Embora se tenha, por meio desses no- hermenêuticas contextuais: pré-conceito, gênua. Custódio Almeida destaca: “A tradi-
vos métodos, positivamente superado a tradição e fusão de horizontes. Em primei- ção é linguagem e esta é um verdadeiro tu
ilusória realização do conhecimento total- ro lugar, quanto ao pré-conceito, o autor e, enquanto tu, serve de referência ao eu,
mente objetivo prometido pelo método afirma que “os preconceitos de um indiví- mas fala por si mesma. [...] Ninguém pode
histórico, passou-se ao outro extremo, o duo, muito mais que seus juízos, consti- projetar um olhar completamente exte-
da autonomia histórica do texto. A conse- tuem a realidade histórica de seu ser”.1 Ele rior à linguagem ou à tradição, daí porque
quência inevitável disso foi o surgimento não os vê de forma negativa, como fazia o ideal da Ilustração de superar os condi-
do indeterminismo do significado na in- o historicismo clássico. Ao contrário, além cionamentos históricos é algo irrealizável”.5
terpretação bíblica e o retorno a um tipo de serem inescapáveis, eles é que tornam Nesse sentido, o próprio Iluminismo era
de eisegese como defendida, por exem- possível o entendimento. De fato, para Ga- uma tradição, mesmo que não reconhe-
plo, por José Croatto, na América Latina. damer, “pré-conceito não se refere a algo cesse isso. Seus autores eram esponta-
Entre os principais filósofos da lingua- que deve ser neutralizado ou deixado de neamente influenciados, e disso, segundo
gem dessa nova corrente está o alemão lado, mas sim algo do qual não podemos Gadamer, não podiam fugir. Eles estavam

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imersos inconscientemente em sua pró- é útil, “o pensamento aqui é um horizon- temporal é uma ótima ferramenta para
pria tradição. te que pode ser colocado em contato com avaliar a linha interpretativa, os acertos e
Por fim, destaca-se o conceito de fu- outro horizonte. Em vez de um obliterar os erros de quem interpretou o texto an-
são de horizontes. Antes de Gadamer, o o outro, acontece um processo de fusão”.13 tes, mas ainda não serve como critério para
termo foi utilizado por Friedrich Nietzs- O resultado é o entendimento do texto. separar falsos de legítimos pré-conceitos.
che e Edmund Husserl, ao se referirem a Tendo discutido brevemente esses três Claude Geffré concorda com isso ao afirmar
determinado ponto de vista ou perspec- conceitos, cabe considerar de que modo que “a hermenêutica de Gadamer fracassa
tiva.6 Chris Lawn enfatiza que, em Gada- eles podem ser prejudiciais ou úteis para ao fornecer critério para o discernimento
mer, “‘fusão de horizontes’ é basicamente uma hermenêutica bíblica. das consciências falsa e autêntica”.14
uma inspiração; nunca pode ser totalmen- Em segundo lugar, deve-se levar em
te obtida ou finalmente completada”.7 É Contribuições e limitações conta a pertinência do conceito gadameria-
incompleta porque ter um horizonte é ter Gadamer tem razão ao afirmar cate- no de tradição. Por meio dessa concepção,
uma perspectiva do mundo e, nesse caso, goricamente a existência, influência e Gadamer alerta sobre a “recepção ingênua”,
a própria natureza humana é inacabada e importância dos pré-conceitos para o en- a ideia de que o pesquisador pode se sus-
sempre em construção. Por outro lado, o tendimento de um texto. Principalmen- pender acima do próprio mundo em que
horizonte do texto que está no pas- está inserido. Desse modo, o mito da
sado não é fixo, está sempre aberto neutralidade é desmascarado, cons-
para novas possibilidades. A fusão de cientizando o intérprete de sua fi-
horizontes, como uma interação en- nitude inerente como ser histórico.
Os pastores devem estar
tre o presente e o passado, ocorre a Somente essa consciência herme-
partir do jogo de perguntas e respos- conscientes das novas nêutica permitirá ao intérprete rea-
tas. Jogo cujas possibilidades sempre lizar um trabalho adequado em sua
estão abertas; pois, nas palavras de tendências hermenêuticas, interpretação.
Gadamer, “a conversação autêntica No entanto, há perigo em exage-
jamais é aquela que gostaríamos de
que não impactam apenas a rar a importância da tradição propos-
levar [...] em geral, é mais correto di- maneira pela qual as pessoas ta por Gadamer. De fato, todos estão
zer que desembocamos e até que nos inseridos numa tradição que exerce
enredamos numa conversação”.8 interpretam a Bíblia, mas a profunda influência na percepção que
Para o autor, “horizonte é o âmbi- cada pessoa tem do mundo. Contu-
to de visão que abarca e encerra tudo própria realidade. do, é difícil conceber que a aceitação
o que pode ser visto a partir de de- cega da tradição não acabe levan-
terminado ponto”.9 No sentido her- do ao conservadorismo ou relativis-
menêutico, ter horizontes “significa mo, uma vez que todas as tradições
não estar limitado ao que há de mais pró- te quando vistos como “terreno comum” podem apreender o significado correto
ximo, mas poder ver para além disso”;10 entre o intérprete e o mundo do texto. ao mesmo tempo. O melhor seria aceitar
e ganhar um horizonte “quer dizer sem- A noção do pré-conceito enfatiza o papel as influências desta sobre o pensamento
pre aprender a ver para além do que está do leitor no processo hermenêutico, que do pesquisador, em vez de asseverar que
próximo e muito próximo, não para abs- o historicismo negava ou não valorizava. ele não tem condições de ultrapassá-la ou
trair dele mas, precisamente para vê-lo O texto bíblico se dirige a cada pessoa exa- rejeitá-la. Tendo isso em vista, melhor seria
melhor, em um todo mais amplo e com cri- tamente onde ela está, em sua própria afirmar que a tradição sempre será o pon-
térios mais justos”.11 Gadamer ainda conclui cultura, ambiente e época. Entretanto, to de partida, mas nem sempre o ponto de
que a tradição é o lugar em que a fusão de cada um deve avaliar na medida do possí- chegada. A estrada poderá apresentar cur-
horizontes sempre ocorre, onde passado vel seus próprios preconceitos. Eles preci- vas novas e, quando necessário, o viajante
e presente se encontram. sam ser analisados criticamente, precisam abrirá seu próprio caminho.
Nesse sentido, o “entendimento é sem- ser questionados pelo texto no fio con- Em terceiro lugar, deve-se considerar
pre a fusão dos horizontes”.12 Tal fusão de dutor da distância temporal ou história o conceito de “fusão de horizontes” e sua
horizontes se dá quando o texto (passa- efeitual. Contudo, os critérios para tal crí- pertinência para a prática hermenêutica
do) e o leitor (presente) entram em conta- tica não são fornecidos adequadamente em textos sagrados. A imagem da fusão de
to. Mais uma vez, o comentário de Lawn por Gadamer. É verdade que a distância horizontes denota que a interação entre o

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passado (horizonte do texto) e o presente alemão é feita por Grant Orborne, em sua o equilíbrio entre identidade e relevância
(horizonte do leitor) produz um novo signi- obra A Espiral Hermenêutica.15 Suas prin- seja mantido, de modo a capacitar a igre-
ficado que tem validade atual no ambiente cipais observações estão listadas a seguir. ja a cumprir sua missão.
em que a fusão ocorre, a saber, a tradição. (1) Não é muito claro como Gadamer evita
Referências
Contudo, tal ideia conduz inevitavelmente a interpretação subjetiva. Ele propõe al-
1
Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método
a um indeterminismo de significado. guns controles: a história efeitual, a tra-
(Petrópolis, RJ: Vozes, 2007), v. 1, p. 368.
Do ponto de vista deste artigo, seria dição e o horizonte do texto. Entretanto, 2
Jean Carlo de Carvalho Costa. “Hans-Georg
melhor restringir essa fusão à aplicação “não há critérios claros para evitar o subje- Gadamer: Notas introdutórias à hermenêutica
pessoal de um texto enquanto reflexão, tivismo”.16 (2) Gadamer não desenvolve um filosófica contemporânea”, Fragmentos de Cultura,
v. 14, n. 5, p. 902.
e não ao seu significado. Em outras pa- método para distinguir verdadeira de falsa
3
Gadamer, p. 372.
lavras, embora o significado de um texto interpretação, ou seja, não há critérios para
4
Ibid., p. 374.
permaneça o mesmo ao longo do tem- se perceber entendimentos inadequados.
5
 ustódio Luís Silva de Almeida; Hans-Georg
C
po, a relevância e as aplicações devocio- (3) Ele tem uma opinião não crítica da fun- Flickinger; Luiz Rohden, Hermenêutica Filosófica:
nais, no caso de textos sagrados, podem ção do leitor na interpretação. Por isso, é Nas Trilhas de Hans-Georg Gadamer (Porto Alegre,
RS: EDIPUCRS, 2000), p. 200.
mudar dependendo do horizonte indivi- difícil ver como evitar a polivalência de sig-
dual do leitor. Nesse sentido, a fusão pode nificados e, consequentemente, a anarquia
6
 hris Lawn, Compreender Gadamer, (Petrópolis, RJ:
C
Vozes, 2010), p. 192.
e deve acontecer. hermenêutica. (4) Gadamer dá à tradição 7
Ibid., p. 92.
uma função não crítica no ato de se che- 8
Gadamer, p. 497.
Conclusão gar à compreensão. (5) Por fim, e mais im- 9
Ibid., p. 399.
Em termos gerais, a teoria hermenêuti- portante, é que o resultado de seu trabalho
10
Ibid., p. 400.
ca de Gadamer fornece ferramentas úteis leva inevitavelmente a uma mudança radi-
11
Ibid., p. 403.
para entender o processo interpretativo. cal na definição de verdade, já que ela se-
12
Ibid., p. 306.
O grande benefício da obra do autor foi ter ria diferente, dependendo da tradição que
13
Lawn, p. 92.
destacado o papel do leitor na interpreta- a desenvolvesse.
14
 laude Geffré, Como Fazer Teologia Hoje:
C
ção que, desde o historicismo iluminista, vi- Sendo assim, sem dúvida os pastores Hermenêutica Teológica (São Paulo, SP: Paulinas,
nha sendo negado. Ele também destacou a devem estar conscientes das novas ten- 1989), p. 34.
influência da tradição, o que previne o pes- dências hermenêuticas que não impactam 15
 rant R. Osborne, A Espiral Hermenêutica: Uma
G
Nova Abordagem à Interpretação Bíblica (São Paulo,
quisador de uma recepção ingênua da pró- apenas a maneira pela qual as pessoas in-
SP: Vida Nova, 2009), p. 602-606.
pria interpretação. Com a ideia da fusão de terpretam a Bíblia, mas a própria realidade, 16
Ibid., p. 605.
horizontes, Gadamer trouxe à tona a im- incluindo aspectos relacionais e comporta-
portância da perspectiva pessoal no pro- mentais no âmbito eclesiástico e pessoal.
cesso hermenêutico. Entretanto, além de conhecer, é necessário Jônatas Leal, mestre em
Contudo, há sérias limitações em sua adquirir a habilidade de dialogar com essas Ciência das Religiões e
em Teologia, é professor
Gentilaza do autor

teoria que precisam ser mencionadas novas tendências sem cair no isolamento de Teologia na Faculdade
aqui, ainda que brevemente. Uma das crí- nem na assimilação. Nesse sentido, a eficá- Adventista da Bahia
ticas mais equilibradas da obra do filósofo cia do diálogo será fundamental para que

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18 | MAR-ABR • 2017
CAPA

Somente as
Escrituras
O que os reformadores e Ellen G. White tinham
em comum ao lidar com o princípio Sola Scriptura?

Alberto R. Timm

Markd800 / Fotolia
cristianismo pós-apostólico per- a autoridade de julgar o “verdadeiro sen-
deu grande parte de sua identida- tido e a interpretação” das Escrituras Sa-
de bíblica original sob a influência gradas.3 Consequentemente, os interesses
pagã da cultura greco-romana. Muitos in- eclesiásticos prevaleceram sobre a verda-
térpretes cristãos encontraram no método deira fidelidade à Palavra de Deus e, assim, de fé e prática em matéria religiosa, e (2)
alegórico alexandrino liberdade suficiente foi construída uma forte tradição herme- a aplicação desse princípio na interpreta-
para uma acomodação sincretista das Es- nêutica não-bíblica. ção bíblica. Do ponto de vista teórico, Lu-
crituras à cultura popular. A aceitação des- Durante a Idade Média, pré-reforma- tero declarou: “Portanto, a Escritura é a sua
sa metodologia hermenêutica começou a dores como John Wycliffe, John Huss, Je- própria luz. É bom que a Escritura interpre-
corroer várias doutrinas bíblicas do cristia- rônimo de Praga e os valdenses tentaram te a si mesma.”5 Na Dieta de Worms (1521),
nismo. Por si só, o alegorismo teria levado a restaurar a autoridade bíblica acima da o reformador afirmou que “não aceitava a
igreja cristã a uma dimensão tão pluralista tradição religiosa e das decisões da igreja. autoridade dos papas e dos concílios, pois
na interpretação bíblica que sua identida- Embora limitadas em alcance, essas tenta- eles se contradiziam” e, a menos que fosse
de religiosa acabaria desaparecendo com- tivas ajudaram a preparar o caminho para “condenado pela Escritura e pela razão”, ja-
pletamente. Entretanto, a igreja de Roma a grande reforma eclesiástica e hermenêu- mais recuaria de suas posições.6
aproveitou esse subjetivismo hermenêu- tica do século 16. João Calvino argumentou mais explicita-
tico e a influência sociopolítica do Império Este artigo examina, resumidamente, mente que “aqueles a quem o Espírito Santo
Romano para se estabelecer como único como os reformadores do século 16 usa- ensina se ancoram nas Escrituras”, e que a
intérprete verdadeiro das Escrituras. ram o princípio Sola Scriptura em resposta Bíblia, “na verdade, é, por ela mesma, auten-
Gradualmente, muitas “tradições apos- à alegação católica de ser o único intér- ticada; portanto, não é correto submetê-
tólicas” extrabíblicas remodelaram a inter- prete verdadeiro da Bíblia, e como Ellen G. la à prova e à razão”.7 Da mesma forma, o ar-
pretação das Escrituras e dos ensinamentos White enfatizou e aplicou esse princípio tigo número 6 dos Trinta e Nove Artigos da
da igreja. Agostinho chegou a declarar: em suas exposições das Escrituras.4 Tais Igreja da Inglaterra (1571) diz: “As Escrituras
“De minha parte, eu não devo acreditar no conceitos podem prover a estrutura ne- Sagradas contêm todas as coisas necessá-
evangelho, exceto quando proposto pela cessária para compreender o papel de El- rias à salvação: então, tudo o que nela não
autoridade da Igreja Católica.”1 Tomás de len G. White no tempo do fim, enaltecendo se lê nem pode ser provado, não deve ser
Aquino argumentou que “o objeto formal o princípio Sola Scriptura. exigido de qualquer homem nem deve
da fé é a primeira verdade, como manifesta- ser acreditado como um artigo da fé, ou ser
do na Escritura Sagrada e no ensino da Igre- O príncipio Sola Scriptura considerado necessário para a salvação.”8
ja, que procede da primeira verdade.”2 Mais A Reforma do século 16 foi primeira- Todavia, na prática, os reformadores
tarde, o Concílio de Trento, em sua quarta mente uma reforma hermenêutica que magisteriais não utilizaram o princípio Sola
sessão (1546), afirmou que todas as verda- gerou uma reforma eclesiástica. Um dos Scriptura como razão para rejeitar outras
des salvadoras e normas de conduta estão mais importantes princípios defendidos fontes de conhecimento religioso. Lute-
contidas “nos livros escritos e nas tradi- pelo movimento foi o princípio Sola Scrip- ro não somente aceitou os primeiros Cre-
ções não escritas [...] preservadas na Igre- tura, que implicou (1) o reconhecimento dos Ecumênicos e grande parte dos Pais da
ja Católica”. À “Santa Igreja-Mãe” pertence teórico das Escrituras como a única regra Igreja, como também escreveu o Catecismo

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Menor (1529) e o Catecismo Maior (1529). No entanto, Alister E. McGrath argu- ou ofuscar a Bíblia (como alguns querem
Da mesma forma, Calvino escreveu suas menta que “a única ala da Reforma a aplicar afirmar), na realidade, leva as pessoas a um
famosas Institutas da Religião Cristã (1536, consistentemente o princípio Sola Scriptura comprometimento incondicional com o Li-
revisada em 1559) e seu próprio Catecis- foi a da reforma radical, ou ‘Anabatismo’”.16 vro Sagrado como seu próprio intérprete.
mo (1538). Outras confissões e artigos de Mesmo os anabatistas, porém, que as- Isso fica evidente em seus conselhos so-
fé foram criados, expondo uma variedade sinaram os sete artigos da Confissão de bre como a Bíblia deve ser interpretada e
de crenças protestantes. Além disso, en- Schleitheim (1527), não foram muito longe a maneira como ela de fato a interpretou.
quanto Zwinglio e Carlstadt rejeitaram tudo no processo de restauração das verdades Sem mencionar nominalmente as teo-
o que a Bíblia não endossava, Lutero tendeu bíblicas por meio do princípio Sola Scriptu- rias futuristas e preteristas, a escritora
a permitir o que a Bíblia não proibia,9 assu- ra. Assim, o lema “igreja reformada, sempre sustentou a identificação protestante his-
mindo que “o que não é contra a Escritura é em reforma, segundo a Palavra de Deus” toricista do papado como o “chifre peque-
para as Escrituras, e as Escrituras para ele”.10 (ecclesia reformata, semper reformanda, no” de Daniel 7:8, 11, 21, 22, 24-26; 8:9-14;
Ele manteve vários componentes da missa secundum verbum Dei ),17 deve permane- o anticristo de 2 Tessalonicenses 2:1-12; e
católica em seu modelo litúrgico.11 cer como princípio para aqueles que dese- a besta do mar de Apocalipse 13:1-9.18 Ela
Diferentes tentativas foram feitas para jam continuar o processo de restauração também endossou a interpretação da vi-
definir a relação entre as Escrituras inspira- iniciado pelo Protestantismo. são dos 1.260 dias simbólicos de Apoca-
das e outros escritos cristãos e declarações Em vez de prosseguir com tais esforços, lipse 11:3 e 12:6 (Dn 7:25, Ap 11:2; 12:14; 13:5)
não inspirados. Por exemplo, a Fórmula de muitos pós-reformistas protestantes co- como o período da supremacia papal en-
Concórdia (1577) sugeriu “uma camada tri- meçaram a adotar uma hermenêutica al- tre 538 e 1798 d.C.19
pla de autoridade”,12 compreendendo (1) as ternativa que obscureceu o princípio Sola Por outro lado, Ellen G. White advertiu
Escrituras proféticas e apostólicas do Anti- Scriptura e uma interpretação historicista veementemente que a fé na Bíblia esta-
go e Novo Testamento, que são “o único pa- mais específica das profecias bíblicas. Es- va sendo destruída “tão eficazmente pela
drão verdadeiro ou norma pela qual todos sas alternativas incluíam a interpretação alta crítica e as especulações, como o era
os mestres e doutrinas devem ser julgados”; católica futurista e preterista das profe- pela tradição e o rabinismo dos dias de
(2) “a doutrina cristã verdadeira”, extraída da cias; o método crítico-histórico, que afas- Jesus”.20 E acrescentou: “A obra da ‘alta crí-
Palavra de Deus e contida nos três credos ta das Escrituras o elemento sobrenatural tica’, em dissecar, conjeturar e reconstruir
ecumênicos – o Credo Apostólico, o Credo e; a fragmentação dispensacionalista da está destruindo a fé na Bíblia como uma
Niceno e o Credo de Atanásio – na confis- unidade geral das Escrituras. Cada um de- revelação divina. Está roubando a Palavra
são luterana e nos artigos doutrinários; e (3) les usou um princípio humano em lugar de Deus em seu poder de controlar, erguer
“outros livros bons, úteis e puros, exposições da Bíblia, distorcendo ou mesmo destruin- e inspirar vidas humanas.”21
das Escrituras Sagradas, refutações de er- do o princípio Sola Scriptura. Durante o Em divergência com a teoria dispensa-
ros e explicações de artigos doutrinários”.13 século 20, várias hermenêuticas sóciocien- cionalista, que divide a história bíblica em
Lutero enfatizou a autoridade incondi- tíficas apareceriam, desafiando ainda mais várias (normalmente sete) dispensações
cional das Escrituras em contraste com a esse princípio. distintas, a autora falou de duas dispen-
autoridade relativa e condicional dos teó- sações (do Antigo e do Novo Testamento),
logos da igreja. Foi concedida autoridade Ellen G. White e o princípio conectadas entre si por uma interrelação
derivada somente àquelas partes da tra- Sola Scriptura tipológica. Ela declarou: “Não existe o con-
dição da igreja “que provam estar funda- Muitos restauracionistas e revivalis- traste que muitas vezes se afirma haver
mentadas na Escritura” e aos três credos tas norte-americanos do século 19 enfa- entre o Antigo e o Novo Testamento, en-
ecumênicos, “porque ele estava conven- tizaram a necessidade de se redescobrir tre a lei de Deus e o evangelho de Cristo,
cido de que estavam em conformidade alguns ensinamentos da igreja apostólica. entre os requisitos da dispensação judaica
com as Escrituras”.14 Consequentemente, Entretanto, nenhum outro movimento re- e os da cristã. Toda pessoa salva da antiga
a partir de uma perspectiva protestante, ligioso contemporâneo aplicou tão consis- dispensação era salva por Cristo tão ver-
um credo é apenas uma norma normata tentemente o princípio Sola Scriptura para dadeiramente quanto somos salvos por
(regra secundária de fé) “com autoridade restaurar a verdade bíblica como fizeram Ele hoje em dia. Os patriarcas e os profetas
eclesiástica somente e, portanto, relativa, os adventistas sabatistas (fundadores da eram cristãos. A promessa do evangelho
que depende de seu nível de concordân- Igreja Adventista do Sétimo Dia). Funda- foi dada ao primeiro casal no Éden, quando
cia com a Bíblia”, que é a norma normans mental nesse processo foi o ministério pro- haviam se separado de Deus, pela trans-
(regra primária de fé).15 fético de Ellen G. White que, sem substituir gressão. O evangelho foi pregado a Abraão.

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Os hebreus todos beberam da Rocha es- harmonia com o princípio Sola Scriptura, as Nações35 inspira confiança na maneira
piritual, que era Cristo.”22 permitindo que a Bíblia fosse seu próprio como Jesus e Seu ministério são retrata-
Reconhecendo a existência de “graus intérprete. dos nos evangelhos canônicos e fornece
diversos de desenvolvimento” para satis- Enquanto muitos críticos bíblicos ques- informações úteis sobre essas narrativas.
fazer às necessidades dos seres humanos tionaram a historicidade de Gênesis 1-11 e Esse livro é um bom exemplo de seu com-
em diferentes épocas, Ellen G. White argu- negaram seus milagres, a escritora per- prometimento com o princípio Sola Scrip-
mentou que, em ambas as dispensações, maneceu em harmonia com os profetas tura no estudo da Bíblia e na exposição de
“as reivindicações de Deus são as mes- bíblicos que confirmaram a historicida- sua mensagem.
mas” e “os mesmos são os princípios de de e a veracidade desses acontecimentos.
Seu governo”.23 “O Antigo Testamento é o Por exemplo, a historicidade dos eventos Conclusão
evangelho em figuras e símbolos. O Novo da criação (Gn 1, 2) é confirmada por ou- Vale lembrar que o comprometimen-
Testamento é o corpo, ou substância. Um tros textos tanto do Antigo Testamento to de Ellen G. White com o princípio Sola
é tão essencial como o outro.”24 (Sl 33:6-9; 94:9; 95:4, 5; 121:2; 136:5-9; Scriptura não é aceito por aqueles que leem
Tendo rejeitado as alternativas herme- 146:5, 6; 148:1-5; Is 40:26) quanto do Novo a Bíblia sob uma perspectiva hermenêuti-
nêuticas mencionadas acima, Ellen G. Whi- (At 17:24-26, Cl 1:15, 16; Hb 4:4, 10; Ap 14:7); ca diferente, que negam qualquer mani-
te contribuiu com diretrizes eficazes para Ellen G. White também confirmou isso.29 A festação pós-canônica do dom profético e
interpretar as Escrituras Sagradas de acor- Bíblia se refere à queda de Adão e Eva pela que discordam das exposições que ela faz
do com o princípio Sola Scriptura. Falando instigação da serpente (Gn 3) como literal das doutrinas bíblicas . No entanto, numa
da Bíblia como “seu próprio intérprete”, (Rm 5:12, 14, 18, 19; 2Co 11:3; Ap 12:9); a autora época em que o cristianismo se encontra
ela destacou que a Palavra de Deus deve compreendeu o assunto da mesma manei- dividido em muitas “escolas” quanto à in-
ser estudada no âmbito do grande conflito ra.30 Tanto o Antigo Testamento (Sl 104:6-9) terpretação bíblica e em 45 mil diferentes
cósmico-histórico entre Deus e Satanás.25 quanto o Novo Testamento (Mt 24:37-39; “denominações” cristãs (até 2014),36 os es-
Ela também promoveu o equilíbrio entre Hb 11:7; 1Pe 3:20; 2Pe 2:5, 3:6) consideram a critos da autora funcionam como “um filtro
o estudo exegético de determinada pas- história de Noé e o dilúvio universal (Gn 6-8) profético divino”, útil para remover falsas
sagem26 e sua interpretação à luz da ana- literais; Ellen G. White também.31 interpretações artificialmente impostas à
logia das Escrituras.27 A destruição de Sodoma e Gomorra Palavra de Deus,37 permitindo que ela se in-
Em outra parte, reiterando sua ênfase (Gn 19:23-29) é descrita como um evento terprete e toque nossa vida com sua men-
na analogia das Escrituras, Ellen G. White histórico no Antigo Testamento (Dt 29:23; sagem transformadora.
confirmou seu resultado positivo: “A Bíblia Is 13:19; Jr 49:18; 50:40; Am 4:11) e no Novo
Referências
é seu próprio intérprete, uma passagem (Lc 17:28, 29; 2Pe 2:6-8; Jd 7); Ellen G. White
1
 gostinho, “Against the Epistle of Manichæus, Called
A
explicando a outra. Mediante a compara- também o descreveu assim.32 A historicidade
Fundamental,” A Select Library of the Nicene and
ção de textos referentes aos mesmos as- dos milagres relacionados com o Êxodo Post-Nicene Fathers of the Christian Church (NPNF),
suntos, você verá beleza e harmonia com e a peregrinação no deserto são confir- Série 1, v. 4, p. 215.

que nunca sonhou.”28 Esses conceitos evi- madas não somente no Antigo Testamen- 2
Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q. 5, a. 3,
<documentacatholicaomnia.eu>.
denciam a maneira como ela realmente to (Sl 66:6; 78:10-55; 105:26-45; 106:7-33;
3
 . J. Schroeder, “Council of Trent, 4th session”,
H
usou o princípio Sola Scriptura para inter- 136:10-16; Ml 4:4), mas também no Novo The Canons and Decrees of the Council of Trent ,
pretar a Bíblia. (At 7:17-44, Hb 11:22-30); a escritora tam- (Rockford, IL: TAN, 1978), p. 17, 19.
bém o fez.33 A história de Jonas no ventre 4
 ste artigo é uma versão resumida do capítulo “Sola
E
Ellen G. White e o uso do do grande peixe (Jn 1:17; 2:10) realmen- Scriptura and Ellen G. White: Historical Reflections”
do livro The Gift of Prophecy in Scripture and
princípio Sola Scriptura te ocorreu conforme está registrada na History, eds. Alberto R. Timm e Dwain N. Esmond
O fato de Ellen G. White não ter feito Bíblia e relatada por Jesus (Mt 12:39-41); (Silver Spring, MD: Review and Herald, 2015).

uma análise exegética moderna do texto Ellen G. White acreditava assim.34


5
 artinho Lutero, WA 10/III: 238, linhas 10, 11; WA 7:97,
M
linha 23 (“scriptura [...] sui ipsius interpres”).
bíblico não pode ser usado para negar suas Em contraste com as tentativas crí-
6
 oland H. Bainton, Here I Stand: A Life of Martin
R
exposições das Escrituras. De fato, o uso ticas de descobrir o “Jesus histórico” Luther (Nashville, TN: Abingdon, 1990), p. 144.
que ela fez da Bíblia é profético, revelan- (Albert Schweitzer) e “desmitologizar” os 7
João Calvino, Institutes of the Christian Religion 1.7.5,
do, em muitos casos, as motivações inte- quatro evangelhos (Rudolf Bultmann), (Filadélfia, PA: Westminster Press, 1960), v. 1, p. 80.
riores das pessoas envolvidas e as batalhas Ellen G. White reconheceu como históri- 8
“ The Thirty Nine Articles, 1571, 1662”,
<fordham.edu>.
espirituais que aconteciam nos bastidores. cas as narrativas e os milagres dos evange-
9
Roland H. Bainton, Christendom: A Short History of
Além disso, suas exposições estavam em lhos. Seu clássico livro O Desejado de Todas

22 | MAR-ABR • 2017
Christianity and Its Impact on Western Civilization Calvinus Sacrarum Literarum Interpres: Papers 28
 llen G. White, Testemunhos para a Igreja,
E
(New York: Harper & Row, 1966), p. 31. of the International Congress on Calvin Research, <egwwritings.org>, v. 4, p. 499.
Herman J. Selderhuis, ed., (Göttingen: Vandenhoeck
10
Barnas Sears, The Life of Luther; With Special 29
Ellen G. White, Patriarcas e Profetas,
& Ruprecht, 2008), p. 285-299.
Reference to Its Earlier Periods and the Opening <egwwritings.org>, p. 17-23.
Scenes of the Reformation (Filadélfia, PA: American 18
Ellen G. White, O Grande Conflito, <egwwritings.org>, 30
Ibid., p. 24-32.
Sunday-School Union, 1850), p. 370, 371. p. 439, 443.
31
Ibid., p. 54-64.
11
 eja Luther’s “The New Ecclesiastical System, 1523-
V 19
Ibid., p. 439; veja também p. 54, 55, 266, 267.
4”, B. J. Kidd, ed., Documents Illustrative of the 32
Ibid., p. 105-115.
20
 llen G. White, A Ciência do Bom Viver,
E
Continental Reformation (Oxford: Clarendon, 1911), 33
Ibid., p. 168-364.
<egwwritings.org>, p. 142.
p. 121-133.
21
 llen G. White, Atos dos Apóstolos,
E 34
 llen G. White, Profetas e Reis, <egwwritings.org>,
E
12
 obert D. Preus, Getting Into the Theology of
R p. 136-143.
<egwwritings.org>, p. 265; Educação, p. 227.
Concord: A Study of the Book of Concord (Saint
Louis, MO: Concordia, 1977), p. 22. 22
 llen G. White, Comentário Bíblico Adventista do
E 35
 llen G. White, O Desejado de Todas as Nações,
E
Sétimo Dia (Tatuí, SP: CPB, 2014), v. 6, p. 1179, 1180. <egwwritings.org>.
13
C
 oncordia: The Lutheran Confessions: A Reader’s
Edition of the Book of Concord, 2ª ed. (Saint Louis, 23
Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, 36
“ Status of Global Mission, 2014, in the Context of
MO: Concordia, 2006), p. 508, 509. <egwwritings.org>, p. 268. AD 1800–2025”, n. 41, <gordonconwell.edu>.
14
Paul Althaus, The Theology of Martin Luther 24
Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, 37
 lberto R. Timm, “Ellen G. White: Prophetic Voice
A
(Filadélfia, PA: Fortress, 1966), p. 6, 7. <egwwritings.org>, v. 2, p. 104. for the Last Days”, Ministry, fev. 2004, p. 20.
15
T
 he Creeds of Christendom: With a History and 25
 llen G. White, Conselhos aos Pais, Professsores e
E
Critical Notes, Philip Schaff, ed. (Grand Rapids, MI: Estudantes, <egwwritings.org>, p. 462, 463.
Baker, 1990), v. 1, p. 7. Alberto R. Timm, doutor
26
Ellen G. White, Caminho a Cristo, <egwwritings.org>,
em Teologia (Andrews
16
Alister E. McGrath, Reformation Thought: An p. 56.
University), é diretor

Gentilaza do autor
Introduction, 4ª ed. (Oxford: Wiley-Blackwell, 2012), 27
 llen G. White, “The Science of Salvation the First of
E associado do Ellen G. White
p. 101 (“scriptura sola”). Sciences”, The Advent Review and Sabbath Herald, Estate, Estados Unidos
17
Michael Bush, “Calvin and the Reformanda Sayings”, 1/12/1891.

Público-alvo: Teólogos, pastores, estudantes de Teologia e


demais interessados no assunto. Os participantes terão a
oportunidade de refletir e aprofundar-se na análise da Epístola
aos Romanos a partir de uma perspectiva exegética, histórica,
teológica, pastoral e interdisciplinar.

Convidados:
Dr. Artur Stele, Associação Geral
Dr. Elias Brasil de Souza, Instituto de Pesquisa Bíblica
Dr. Ekkehardt Mueller, Instituto de Pesquisa Bíblica
Dr. Frank Hasel, Instituto de Pesquisa Bíblica
Dr. Alberto R. Timm, Ellen G. White Estate
Dr. Clinton Wahlen, Instituto de Pesquisa Bíblica
Dr. Kwabena Donkor, Instituto de Pesquisa Bíblica
Dr. Félix Cortéz, Universidade Andrews

MAR-ABR • 2017 | 23
EXEGESE

Todo o Israel
será salvo
O Israel de Deus é a comunidade
universal de crentes em Cristo Jesus

Kim Papaioannou

“T odo o Israel será salvo” (Rm 11:26).1


Quando confrontados a respeito
dessa afirmação paulina, geral-
a resposta seja não. Embora Abraão tives-
se gerado pelo menos oito filhos biológicos
(Gn 16:11; 21:3; 25:1, 2), somente um se
Certa ocasião, ele reuniu 318 homens “nas-
cidos em sua própria casa” (Gn 14:14) e os
liderou para libertar Ló. Que sua família te-
mente os comentaristas bíblicos pergun- tornou parte da aliança, os outros não nha compartilhado a mesma fé fica eviden-
tam: “Qual Israel? O físico ou o espiritual?” O (Gn 21:10, cf. Gl 4:30, Gn 25:6). Por outro ciado pelo fato de que o patriarca confiou
Israel físico é constituído pelos judeus des- lado, outros que não descenderam bio- em um de seus servos para encontrar uma
cendentes de Abraão, considerados ainda logicamente do patriarca passaram a fa- esposa para Isaque, que o fez jurando “pelo
por muitos como o povo escolhido de Deus. zer parte da aliança: “Aqueles que tiverem Senhor” (Gn 24:1-3).
O Israel espiritual são todos os que se tor- oito dias de idade entre vós serão circun- Os descendentes diretos de Jacó que
naram crentes em Cristo Jesus. Aqueles que cidados, todos os filhos do sexo masculi- entraram no Egito eram 70 (Êx 1:5). No
defendem o conceito de um Israel espiritual no nas vossas gerações, aquele que nascer Êxodo, Israel contava com 600 mil homens
acreditam que o Israel físico tenha sido o em vossa casa ou o comprado com dinhei- em idade militar (Êx 12:37, ver Nm 1:46),
povo escolhido na época do Antigo Testa- ro de qualquer estrangeiro, que não é seu além de mulheres, crianças e idosos, totali-
mento. No entanto, sua rejeição de Jesus descendente. [...] E a minha aliança estará zando 2 a 3 milhões de pessoas. Nenhuma
permitiu que o Senhor seguisse em frente na vossa carne como uma aliança eterna” taxa de crescimento biológico realista po-
com Seus propósitos. Ele estendeu o evan- (Gn 17:12, 13, ênfase acrescentada). deria ter produzido tal crescimento.
gelho a todas as nações, e a comunidade De fato, uma das razões por que Deus Entretanto, se compreendemos que
de fé que se formou em Cristo se tornou escolheu Abraão foi que ele ensinaria não Israel agia de modo inclusivo, da mesma
o Israel espiritual. Espiritual no sentido de só seus filhos, mas todas as pessoas de forma que a família de Abraão foi inclusi-
que não tem ascendência física em Abraão, sua casa, independentemente do contex- va, então fica mais fácil entender o incrível
mas é contado como povo de Deus pela fé. to histórico a que pertenciam: “Eu o escolhi crescimento numérico. Os cerca de 3 mi-
[Abraão] para que ordene a seus filhos e a lhões de pessoas que deixaram o Egito não
Israel físico? sua casa depois dele, a fim de que guardem eram descendentes biológicos de Abraão,
Subbotina Anna / Fotolia

Seria bíblico o conceito de um Israel o caminho do Senhor” (Gn 18:19). mas todos ligados à casa de Israel, unidos
somente “físico” atualmente ou nos tem- A casa de Abraão era numerosa. por meio de cônjuges, servos e ajudantes
pos do Antigo Testamento? Acredito que Provavelmente, mais de mil pessoas. de diversas procedências.

24 | MAR-ABR • 2017
Na verdade, no momento em que os autorização para converter pessoas de ou- que estava na congregação [ekklēsia] no
israelitas deixaram o Egito, uma multidão tras nações.3 deserto” (At 7:38). Para que ninguém se
mista foi com eles (Êx 12:38), participando Durante o período intertestamentário, sinta tentado a considerar esse um exem-
plenamente da aliança. A integração e acei- o rei João Hircano converteu toda a nação plo solitário, a LXX usa ekklēsia 77 vezes,
tação desses estrangeiros fica evidenciada dos idumeus (edomitas) ao judaísmo, sob e quase todas as menções se referem a
pelo fato de que um deles, Calebe, tornou-se ameaça de morte.4 Dali veio a célebre fa- Israel.
líder da tribo de Judá (Nm 13:3, 6). Não há mília de Herodes.5 À luz das evidências apresentadas até
razão para supor que tais integrações te- Nos tempos do Novo Testamento, os aqui, seria antibíblico falar do “Israel físi-
nham ocorrido somente durante o Êxodo fariseus ficaram conhecidos por seu zelo co” como “descendentes físicos exclusivos”
e não antes, embora em número menor. missionário (Mt 23:15). As sinagogas tinham de Abraão. Embora o Israel literal existis-
Quando Deus renovou o concerto com conversos estrangeiros que temiam ao se como nação durante boa parte de sua
Israel (Êx 19-24), foi um pacto aberto. A par- Senhor (At 13:16, 26; 16:14; 17:17). Gentios história no Antigo Testamento, aos olhos
ticipação era voluntária. Na história dos is- se reuniam em Jerusalém para adorar du- de Deus, a verdadeira filiação não depen-
raelitas, muitas pessoas que não eram rante as festas (Jo 12:20). Quinze nações dia da ascendência, senão da fé (Rm 2:29).
descendentes diretos de Abraão passaram são mencionadas entre “judeus” e “pro- Paulo reconheceu isso quando afirmou
a fazer parte da comunidade da aliança. José sélitos” (At 2:9-11) que participaram do que, durante o tempo de Acabe, de toda
se casou com uma egípcia (Gn 41:45); Moi- Pentecostes. a nação, somente um remanescente de
sés, com uma midianita (Êx 2:16-21); Cale- Deus desejava que Sua aliança fosse es- 7 mil fiéis permaneceu leal a Deus, e eles
be, já mencionado, era quenezeu (Nm 32:12); tendida a todas as nações: “A minha casa constituíam o verdadeiro Israel (Rm 11:1-5) .
Raabe, cananeia (Js 2:1, 2); Rute, moabita será chamada casa de oração para todos Biblicamente, portanto, Israel era uma co-
(Rt 1:4); Urias, heteu (2Sm 11:3). O próprio rei os povos” (Is 56:7). O fato de que para al- munidade espiritual à qual as pessoas se
Davi não era totalmente israelita (Rt 4:17). guns, como os moabitas, houve certas res- uniam e/ou dela eram removidas sem con-
Não somente pessoas, mas grupos in- trições para participar da aliança (Dt 23:3), sideração de ascendência ou raça.6
teiros de estrangeiros aderiram à aliança. mostra que, para outros, o acesso era livre. Com essas circunstâncias em men-
Por exemplo, além da “multidão mista” Qualquer pessoa, de qualquer etnia, te, podemos entender a declaração pau-
mencionada, os cananeus que não foram podia fazer parte do concerto. Contudo, lina de que “todo Israel será salvo” em seu
mortos nem expulsos, e também os re- os israelitas que pertenciam a ele podiam contexto.
cabitas, que foram aceitos por sua fide- optar entre permanecer ou ser expulsos.
lidade a Deus (Jr 35:1-19). Os capitães de Ser “cortado” do povo de Israel equivalia a A parábola da oliveira
Davi comandavam queretitas e peletitas estar sendo castigado por vários pecados Em Romanos 11:16-24, Paulo tomou o
(1Cr 18:17), provavelmente, convertidos, (por exemplo, Êx 30:33, 38; 31:14; Lv 7:20, conceito da identidade espiritual e o de-
pois seria difícil imaginar o exército do rei 21, 25, 27). Até que ponto isso foi realiza- senvolveu para explicar a relação entre
de Israel cheio de soldados pagãos. do, não sabemos, mas a provisão estava lá. a igreja cristã e os judeus que rejeitaram
Ao longo de toda a monarquia, hou- A palavra apostasia, ou “afastar-se da fé”, Jesus. Ele fez isso por meio da parábola da
ve milhares de estrangeiros em Israel não é incomum na LXX para descrever a oliveira.
(1Cr 22:2; 2Cr 30:25), aos quais a Septuagin- atitude às vezes rebelde de Israel em rela- A parábola foi extraída de Jeremias
ta (LXX) chama de prosēlutoi, “prosélitos” ção a Deus (Js 22:22; 2Cr 29:19). 11:16, 17, em que Israel é comparado a
ou conversos.2 No tempo de Salomão, seu É evidente, então, que qualquer pes- uma “oliveira verde, formosa por seus de-
número chegou a mais de 153 mil (2Cr 2:17). soa podia aderir à aliança divina, e cente- liciosos frutos” (v. 16). No entanto, como
Na época de Ester, após o colapso do nas de milhares (talvez milhões) o fizeram o povo havia se conduzido mal, seguin-
plano de Hamã, “muitos do povo da terra ao longo da história de Israel. Além disso, do a Baal, Deus queimaria alguns ramos
se tornaram judeus” (Et 8:17). Essa onda qualquer pessoa podia escolher não mais com fogo. Parte do motivo dessa puni-
de conversões continuou mesmo após fazer parte dela. ção era porque haviam rejeitado as men-
os eventos importantes descritos no li- Na linguagem atual, poderíamos di- sagens de advertência do profeta Jeremias
vro (Et 9:27). Artaxerxes autorizou Esdras zer que Israel funcionou como uma igreja, (Jr 11:17-23).
a nomear juízes para o povo da provín- tendo pessoas se juntando a ela ou sain- A oliveira representava Israel, a comu-
cia “além do rio” que conhecia a lei, e para do dela. Na verdade, ekklēsia, “igreja”, foi o nidade da aliança, que uma vez fora bela
ensinar aqueles que não a conheciam termo escolhido por Estêvão para descre- e perfeita. Contudo, assim como os is-
(Ed 7:25). Possivelmente, tenha sido uma ver o antigo Israel de Deus: “Este é aquele raelitas rejeitaram os apelos de Jeremias

MAR-ABR • 2017 | 25
(v. 19), que se sentia como um “manso cor- eliminação dos ramos infrutíferos e da adi- original não apenas teológica e cerimonial-
deiro” sendo levado ao matadouro, eles ção de novos fiéis. mente, mas também fisicamente, e forma-
rejeitaram outro Cordeiro, Jesus, e O leva- A árvore era bela e majestosa. Depois, ram a conhecida comunidade de Qumran.9
ram à morte. Não somente isso: mesmo ficou disforme, porque alguns de seus ra- Portanto, quando Paulo tratou os judeus
após Sua ressurreição, muitos judeus ain- mos foram podados. No entanto, após no- que haviam rejeitado Jesus como ramos
da O rejeitaram. vos ramos serem enxertados, a planta se cortados da oliveira verdadeira (Israel), e
Paulo comparou os ramos que foram tornou novamente formosa e completa. os crentes em Cristo como verdadeiros ra-
cortados aos judeus que haviam rejeitado Os novos ramos são a continuação natu- mos, ele argumentou com fundamentos
Jesus (Rm 11:17) “por causa da incredulida- ral dessa maravilhosa árvore. teológicos que eram conhecidos dos seus
de” (v. 20). Esses ramos “naturais” foram A igreja não substituiu Israel. A igreja é a contemporâneos.
excluídos da família de Deus (v. 20, 21). continuação natural de Israel, assim como Além disso, inicialmente, Paulo não se
Duas coisas se destacam aqui. Primei- os ramos são a continuação natural de uma preocupou em discutir a questão da sepa-
ra, apenas os ramos mortos (estéreis) fo- árvore! Os crentes em Cristo são o verda- ração entre cristãos e judeus, a qual come-
ram cortados, a árvore não foi rejeitada. deiro Israel. çou a amadurecer somente uma geração
De fato, ela continua viva e “santificada” É importante notar que, ao fazer tal depois. Nessa fase inicial, os cristãos eram,
(v. 16), a fim de nutrir e sustentar os ramos abordagem Paulo refletiu o pensamento em sua grande maioria, de origem judaica,
restantes (v. 18). Segunda, uma
vez que a árvore representa Is-
rael e os ramos que eram esté-
Uma vez que a
reis foram cortados, segue-se
que eles não são mais parte da oliveira simboliza o
árvore (Israel). Assim, nenhum
ramo “incrédulo” pertence Israel de Deus e os
mais ao verdadeiro Israel.
Com seus ramos cortados,
ramos selvagens são
a árvore que foi bela agora pa- enxertados nela, eles
rece disforme. Como Deus lida
com esse problema? Os ramos se tornam parte do
de outras oliveiras, oliveiras
Israel bíblico.

Brszattila / Fotolia
selvagens, são enxertados na
boa oliveira. Esses ramos são
pessoas de todas as nações
que vêm pela fé em Jesus, “[os cristãos de de seu tempo. O conceito judaico de estar e trabalhavam no contexto da sinagoga e
todas as nações], sendo uma oliveira selva- em apostasia ou “cortado” não era des- do judaísmo. Então, ver alguns participan-
gem, foram enxertados entre eles” (v. 17). conhecido naqueles tempos turbulentos. tes do serviço da sinagoga como ramos
Um ponto importante precisa ser ob- Os fariseus, que foram os responsáveis saudáveis e outros como cortados seria
servado. Deus não planta uma nova árvo- pelo desenvolvimento teológico do ju- um conceito familiar. Que cristãos e judeus
re, a igreja cristã. Em vez disso, os ramos, daísmo, surgiram dos judeus piedosos que tenham tomado rumos totalmente sepa-
que eram selvagens, são enxertados na haviam rejeitado a adoção do sumo sacer- rados, talvez sirva para reforçar o para-
mesma árvore antiga, que continua a exis- dócio pelos asmoneus no segundo século digma que o apóstolo estava adotando.
tir e a fornecer alimento. Uma vez que a antes de Cristo, e se consideravam sepa-
planta simboliza o Israel de Deus e os ra- rados da elite governante.7 “Todo o Israel será salvo”
mos selvagens são enxertados nela, eles se De fato, o termo fariseu deriva do ara- Paulo concluiu sua argmentação com
tornam parte do Israel bíblico. Eles não são maico perisa, que significa “separado”, a declaração inicial deste artigo, afirma-
uma nova instituição. Em certo sentido, o “separados”.8 Os essênios, que eram con- ção quase sempre mal-interpretada: “Todo
Israel do Antigo Testamento que, como vi- temporâneos de Jesus e de Paulo, consi- Israel será salvo” (v. 26). Afinal, qual Israel
mos, era uma entidade espiritual, continua deravam a si mesmos o verdadeiro Israel, será salvo, o “físico” ou “espiritual”?
a existir e prosperar, depois de ter passa- e o templo de Jerusalém e seu sacerdócio, De maneira bem simples, a chave para en-
do por um processo de poda por meio da apóstatas. Eles se separaram do judaísmo tender esse texto está na interpretação de

26 | MAR-ABR • 2017
suas palavras em paralelo com a ilustração Conclusão Israel bíblico e a igreja cristã, que provoca
paulina sobre a oliveira e seus ramos. Israel, Este artigo procurou estabelecer dois muitos debates teológicos atualmente, é
o povo de Deus, era belo e majestoso. Entre- pontos principais. Primeiro, o termo “Is- arbitrária e não bíblica. Ela rouba do cris-
tanto, uma “cegueira” (NKJV) ou “endureci- rael” na Bíblia não se refere à descendência tianismo algo que é muito valioso. A igre-
mento” tomou conta de uma grande parte física, mas denota aqueles comprometidos ja cristã é a continuação natural do Israel
dos israelitas (Rm 11:25). Eles endureceram o com a fé em Deus. Uma comunidade espi- da aliança abraâmica, assim como os ra-
coração (Hb 4:7).10 Recusaram a salvação em ritual, não racial. mos são a continuação natural da árvore.
Cristo. Essa condição foi ilustrada por Paulo Segundo, de acordo com Romanos 9, Uma redescoberta mais completa de nos-
pelo corte de alguns ramos da oliveira origi- o “Israel espiritual” nunca foi rejeitado. sas raízes pode aumentar nossa espiritua-
nal. O fracasso de Israel para com a aliança É verdade que a rejeição à morte e res- lidade e adoração.
abraâmica e a rejeição de Jesus transformou surreição de Jesus por parte dos israe-
a expectativa divina da oliveira em uma de- litas foi o ponto principal da mudança
Referências
cepção. Entretanto, a intenção de Deus para das relações divinas com a humanidade
1
 alvo indicação contrária, todas as passagens são da
S
com a oliveira, que ela dê fruto e manifeste a (Dn 9:24-27; Mt 21:43). Entretanto, pes-
Almeida Revista e Atualizada.
graça divina revelada na cruz para a redenção soas foram rejeitadas. Israel como povo de 2
 enry George Liddell e Robert Scott, An
H
da humanidade, não pode e não deve falhar. Deus continua a existir. É constituído por Intermediate Greek-English Lexicon, “prosēlutoi”
Como Deus lida com isso? Ele traz “a todos aqueles que aceitam Cristo como (Oxford: Oxford University Press, 1945).

plenitude dos gentios” (Rm 11:25). Traz para Senhor e Salvador, independentemente 3
 fato de Artaxerxes reconhecer Deus como o
O
“Deus dos céus” (Ed 7:23, NVI) pode indicar que a
onde? Para Israel, é claro! Para preencher de ascendência ou raça. Os crentes em Je- autoridade conferida a Esdras tivesse uma aplicação
o espaço deixado por aqueles cujo cora- sus são os verdadeiros filhos de Abraão mais ampla, incluindo permissão para converter não
judeus.
ção endureceu. A palavra grega plērōma, (Gl 3:7).
4
 lávio Josefo, Antiguidades 13.9.1. Ver também
F
“plenitude”, é um substantivo que indica Quais são as implicações? Várias, mas
Bernard M. Zlotowitz, “Sincere Conversion and
algo que está parcialmente vazio ou sen- vamos mencionar três: Ulterior Motives,” em Conversion to Judaism in
do preenchido.11 Assim, o vazio deixado por 1. Com relação aos judeus modernos, Jewish Law: Essays and Responses, ed. Walter Jacob
e Moshe Zemer (Pittsburgh, PA: Rodef Shalom,
aqueles que não acreditaram é preenchi- não há nenhum espaço para o antissemi- 1994), p. 67.
do pelos gentios que entram e ocupam tismo. Sua Escritura Sagrada é parte da 5
Josefo, Antiguidades 14.1.3.
seu lugar. Paulo argumentou que os gen- nossa, sua herança bíblica é também nos- 6
 queles que se convertem ao judaísmo são
A
tios, os ramos da oliveira brava, estranhos sa. Eles não são uma nação indigna da sal- considerados judeus e passam a ter o direito
de imigrar para Israel. Por outro lado, judeus
à aliança, são enxertados e formam a co- vação. São ramos cortados, irmãos e irmãs
que se convertem ao cristianismo não mais são
munidade da fé cristã, uma árvore frutífe- que falharam em aceitar o Messias. Nossa considerados judeus e não podem imigrar para lá.
ra, reunida de toda a raça humana. missão é amá-los e convidá-los a aceitar, 7
Everett Ferguson, Backgrounds of Early Christianity
Então, Paulo declarou: “E, assim todo o pela fé, Jesus Cristo, como todos os outros (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003), p. 514.

Israel será salvo” (v. 26). A expressão:“E, as- seres humanos.


8
Liddell e Scott, An Intermediate Greek-English
Lexicon, “perisa”.
sim” indica uma conclusão. Alguns caíram 2. Contudo, eles também não são o
9
Ferguson, Backgrounds of Early Christianity,
por causa de sua incredulidade, outros en- povo escolhido de Deus. O Senhor esco- p. 521-531.
traram e entrarão para ocupar seu lugar. lheu e nutriu a oliveira verdadeira. Os ra- 10
“ Apo merous” também pode significar (a)
Por isso, Paulo pôde alegremente declarar mos que foram cortados não fazem mais endurecimento “parcial” ou (b) de “uma parte” de
Israel. O contexto favorece a segunda opção.
que todo o Israel será salvo. parte dessa árvore. Eles podem ser rein-
11
Liddell e Scott, An Intermediate Greek-English
Portanto, “todo o Israel” não se refe- tegrados, mas somente pela fé em Cristo
Lexicon, “plērōma”.
re ao “Israel físico”, um conceito errôneo. (Rm 11:23). Os propósitos divinos serão
“Todo o Israel” significa todos os crentes de cumpridos na árvore – os crentes em
todas as épocas, dos patriarcas do Antigo Jesus – não nos ramos cortados.
Testamento aos cristãos da atualidade, das 3. Os cristãos fariam bem em explorar
Kim Papaioannou, doutor
raízes da oliveira original (abraâmica) no novamente as raízes do Israel bíblico, in- em Teologia (University of
Antigo Testamento até seu último e me- cluindo o sábado do sétimo dia, e vê-las Durham), é pastor em Chipre
Gentilaza do autor

nor ramo. Refere-se à totalidade do povo como totalmente, não indiretamente, nos-
de Deus ao longo dos séculos. sa herança. A ruptura profunda entre o

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MAR-ABR • 2017 | 27
ÉTICA

Deus e a escravidão
O Senhor revelado no Antigo Testamento seria um escravocrata?

Glauber S. Araújo

“G ostaria de vender minha filha


como escrava, conforme orien-
ta Êxodo 21:7. Atualmente, qual
comprar os filhos dos estrangeiros que
moram no meio de vocês. Essas crianças
que nascerem na terra de Israel poderão
Diferenças notáveis
Ao procurar compreender os textos do
Antigo Testamento que se referem à es-
seria um preço justo no mercado?” A per- ser compradas como escravos.” Esse tex- cravidão, devemos nos lembrar de que eles
gunta me deixou em estado de choque, to parece indicar que o Criador do universo não autorizam o mesmo tipo de escravi-
ao perceber que não estava lendo um in- recomenda que tenhamos escravos, cer- dão que ocorreu entre os séculos 17 e 19.
quérito do século 18, mas uma carta aber- to? Deveríamos obedecer a essa ordem e Céticos e ateus usam textos bíblicos para
ta a Laura Schlessinger, a apresentadora comprar escravos para nosso lar, em ple- distorcer a imagem que temos de Deus. À
de um programa de rádio que oferece di- no século 21? primeira vista, aparentemente o Senhor
cas práticas para o cotidiano, com base em Essa pergunta, embora pareça absur- parece ser injusto e malévolo. No entan-
princípios fundamentados no Antigo Tes- da, levanta questões atuais, referentes to, quando analisamos a questão de modo
tamento.1 O tom sarcástico do pedido, no à relevância da Bíblia para nosso mundo mais profundo, percebemos que o tipo de
entanto, revelava as verdadeiras intenções pós-moderno. Ela chega a ameaçar a com- escravidão sancionada por Deus era mui-
da inquiridora. preensão acerca do próprio caráter divi- to diferente daquela que alimentamos em
Embora o comércio de escravos não no; pois, como deveríamos nos submeter nossa imaginação. A escravidão que ocor-
mais seja aceito na maior parte do mun- à vontade de um Deus que aprova a es- ria em Israel diferia bastante daquela em
do, essa pergunta remete a uma preocupa- cravidão, quando sabemos que essa é uma que os negros africanos sucumbiram, con-
ção muito atual: como devemos interpretar prática desumana e cruel? Conforme Sam forme retratada por Hollywood em filmes
e aplicar os textos do Antigo Testamento Harris argumentou em Letter to a Chris- como Django Livre (2012) e Doze Anos de
em nossa vida? Alguns textos apresentam tian Nation: “Todo o mundo civilizado con- Escravidão (2013). Christopher J. H. Wright
um verdadeiro desafio, especialmente no corda em afirmar que a escravatura é uma adverte corretamente: “Devemos eliminar
contexto pós-moderno em que vivemos. abominação. Que tipo de instrução moral de nossa mente imagens como os galeões
À primeira vista, eles parecem até descre- obtemos do Deus de Abraão sobre esse romanos de Ben-Hur, as gargalheiras, os
ver um Deus “controlador, mesquinho, in- assunto?”3 navios negreiros e as plantações de cana
justo e intransigente; genocida étnico e Ao lermos o Antigo Testamento, temos a ligadas à escravidão moderna, quando le-
vingativo, sedento de sangue; persegui- impressão de que os escravos no antigo Is- mos a palavra ‘escravo’ no Antigo Testa-
dor misógino, homofóbico, racista, infan- rael eram tratados como animais e objetos. mento.”4 Existem várias diferenças entre
ticida, filicida, pestilento, megalomaníaco, Como compreender esses textos bíblicos ambos os tipos de escravidão.
sadomasoquista e malévolo”, só para ci- quando ensinamos e pregamos a respei- Uma das diferenças está em como al-
tar algumas das injúrias levantadas por Ri- to de um Senhor que ama, salva, perdoa e guém se tornava escravo. No Antigo Tes-
chard Dawkins em sua famosa obra Deus, trata todos os seres humanos como iguais? tamento, um israelita poderia ser vendido
um Delírio.2 Que tipo de moralidade estamos promo- unicamente por um motivo: dívida finan-
Tome, por exemplo, Levítico 25:44-47 vendo quando convidamos todos a seguir ceira (Lv 25:39, 47).5 Por exemplo, um ladrão,
(NTLH): “Se precisarem de escravos ou es- a Bíblia? Como amar um Deus que aparen- quando capturado, deveria devolver o do-
cravas, vocês poderão comprá-los dos po- temente aprovou um sistema que aliena e bro daquilo que havia roubado (Êx 22:1-4).
vos vizinhos do seu país. Também poderão desumaniza seus próprios filhos? Como a maioria dos ladrões normalmente

28 | MAR-ABR • 2017
não tem o suficiente, era muito difícil eles empregatício”, sendo às vezes usada para Se, por algum motivo, um escra-
conseguirem fazer isso. Assim, Deus per- aludir a “cargos elevados, quando era o vo fugisse, os israelitas eram instruídos a
mitiu que eles quitassem sua dívida por caso de servos da realeza”.8 Embora seja acolhê-lo e protegê-lo. Não havia captura
meio de trabalho manual. comum crer que escravos eram proprie- de escravos fugitivos em Israel. Eles eram
Em alguns casos, as pessoas endivida- dade de seus senhores, tratados e usados livres para escolher onde gostariam de vi-
das também poderiam vender-se como es- sem quaisquer direitos pessoais, os escra- ver e que atividade apreciariam empreen-
cravas (Lv 25:39, 47) e saldar sua dívida por vos do Antigo Testamento tinham direitos der (Dt 23:15-16). Além disso, não deveriam
meio do trabalho (2Rs 4:1). Um bom exem- pessoais e poderiam, em muitos casos, gal- sofrer opressão nem violência. Essa era uma
plo disso pode ser encontrado na história gar posições importantes no governo da lei peculiar e impressionante, especialmen-
da fome no Egito nos dias de José. Quan- nação, como foi o caso de José (Gn 41:39-45). te quando consideramos o tratamento que
do os egípcios haviam gastado todo seu De fato, eles eram, em sua maioria, “traba- escravos africanos recebiam quando fugiam
dinheiro e suas posses para comprar ali- lhadores domésticos. […] Eles complemen- de seus senhores. No Brasil, por exemplo,
mento de Faraó, eles decidiram vender-se tavam, mas não substituíam, o trabalho as penalidades recaiam não somente sobre
como escravos em troca de mantimen- dos membros livres do lar. […] Esse tipo de os escravos que fugiam, mas também so-
to. Esse acordo foi mantido entre o bre aqueles que lhes ofereciam abrigo.
povo e Faraó até que a seca/fome Essa questão da violência estabe-
passasse (Gn 47:19). Assim, a servidão lece uma diferença gritante, quando
de um escravo hebreu não produzia comparamos a escravidão do Anti-
mudanças em sua condição social ou go Testamento àquela ocorrida na
As leis escravistas
pessoal – após completar seu tempo América do Sul. Enquanto nos países
de serviço, ele estava livre para reto- do Antigo Testamento sul-americanos era esperado que os
mar seus negócios.6 donos infligissem dor a seus escravos,
Portanto, a escravidão era tida tinham como intenção as leis israelitas proibiam os senho-
como um ato voluntário, isto é, nin- a proteção de pessoas res de aplicar qualquer tipo de trata-
guém deveria ser vendido à força mento violento. Se um escravo fosse
como escravo.7 Conforme a lei israe- vulneráveis a possíveis tratado de forma cruel, ele ganhava
lita, se alguém sequestrasse um com- sua liberdade (Êx 21:26), enquanto
patriota para fazê-lo escravo deveria
tratamentos seu mestre, recebia o castigo (v. 20).
ser sentenciado à morte (Êx 21:16). humilhantes. A própria violência infligida ao es-
Essa foi uma realidade totalmente di- cravo lhe servia de passaporte para
ferente daquela enfrentada pelos es- a liberdade. Portanto, os senhores
cravos negros. de escravos tinham todo o cuida-
Outro equívoco muitas vezes dis- do quando se tratava desse assun-
seminado se refere ao status de escravo serviço pode ser visto como experimen- to, pois qualquer descuido representaria
quando comparado ao de servo comum. talmente pouco diferente daquele desem- a perda de um trabalhador. Esses regula-
Na Bíblia, o termo hebraico ebed ou gre- penhado por empregos pagos em uma mentos claramente mostram que as leis do
go doulos pode ser traduzido como “es- economia monetária”.9 Antigo Testamento estavam preocupadas
cravo” ou “servo”. Paulo, por exemplo, ao Um israelita vendido como escravo não com o bem-estar e a integridade física do
identificar-se como “servo de Jesus Cristo” poderia permanecer nessa condição por escravo.10 Portanto, embora a “escravidão”
(Rm 1:1), empregou a mesma palavra gre- mais do que seis anos (Êx 21:2). Indepen- fosse autorizada por Deus no Antigo Tes-
ga para se referir a Onésimo, o escravo dentemente do valor da dívida, o tempo tamento, era muito distinta do que se vê
que estava retornando à casa de Filemom máximo permitido para o trabalho escra- nos romances e filmes modernos.
(Fm 16). Conforme Wright indica em sua vo era esse. No sétimo ano, ele deveria Além disso, essa prática israelita des-
obra Old Testament Ethics for the People voltar livre para seu lar. Quando isso ocor- toava de como assírios, hititas ou babilô-
of God, considerando a imagem mental resse, o senhor era instruído a fornecer li- nios tratavam seus escravos. Tome, por
que criamos de escravidão, a expressão beralmente recursos “do teu rebanho, da exemplo, o código de Hamurabi. No caso
“escravo” “não foi muito feliz em traduzir” tua eira e do teu lagar; daquilo com que o de um escravo sofrer algum tipo de dano
a palavra hebraica ebed, “que basicamen- Senhor, teu Deus, te houver abençoado, físico ou castigo (perder um olho ou den-
te significava um trabalhador com vínculo lhe darás” (Dt 15:14). te), era seu dono que deveria receber a

MAR-ABR • 2017 | 29
compensação pelo prejuízo, não o escra- reaparece: “Por que Deus simplesmente senhores de escravos durante os séculos 17
vo. “As leis de Esnuna e o código de Hamu- não acabou com tudo?” Se os israelitas so- a 19 tivessem seguido os regulamentos do
rabi jamais consideravam o escravo como freram tanto sob a escravidão do Egito, Antigo Testamento, a história teria trans-
parte injustiçada.”11 Outro exemplo desse por que o Senhor permitiu que essa práti- corrido de forma diferente. Isso só confir-
tipo de prática ocorreu nos dias do Império ca continuasse depois de livres? ma o fato de que a Bíblia continua sendo
Romano. Certa vez, um senador foi assassi- É um equívoco assumir que, porque um livro relevante para assuntos contem-
nado por um escravo. O escravo pagou por Deus não aboliu a escravidão, Ele não te- porâneos. Por meio dela, podemos com-
seu crime não somente com sua vida, mas nha Se pronunciado sobre o assunto. To- preender que todo ser humano foi criado
com a de 400 membros de sua família!12 dos os textos do Antigo Testamento sobre à imagem de Deus e, portanto, é digno de
Enquanto as leis das nações vizinhas o tema são um protesto de Deus contra os valor, cuidado e respeito.18
eram mais severas contra seus escravos, sistemas escravistas mantidos pelas na-
Referências
as leis de Israel serviam para proteger da ções vizinhas de Israel. Devemos nos lem-
1
“ An open letter to Dr. Laura Schlessinger”,
violência, agressão e injustiça.13 Nesse sen- brar de que, no caso de Israel, a escravidão
<dailykos.com>, acesso em outubro de 2016.
tido, a sociedade israelita era atraente para era uma medida desesperada para pessoas 2
Richard Dawkins, Deus, um Delírio (São Paulo, SP:
escravos estrangeiros que estivessem em que não tinham um dispositivo de segu- Companhia das Letras, 2007), p. 55.
busca de refúgio e uma vida com digni- rança contra crises financeiras. O próprio 3
 am Harris, Letter to a Christian Nation (Nova York,
S
dade. De fato, eles dispunham de maior Jesus nos lembrou que sempre haveria po- NY: Alfred Knopf, 2006), p. 14.

segurança econômica e legal do que aque- bres entre nós (Mt 26:11). Como Israel de- 4
 hristopher J. H. Wright, Old Testament Ethics for
C
the People of God (Downers Grove, IL: InterVarsity
les que, embora tecnicamente livres, não veria se tornar uma teocracia, o Senhor Press, 2011), p. 333.
tivessem terras, fossem empregados ou permitiu um sistema que, em tempos de 5
 . Negev, “Slavery and Work”, The Archaeological
A
simples artesãos.14 O Anchor Bible Dictio- fome e crise financeira, daria chances às Encyclopedia of the Holy Land, 3ª ed. (Nova York,
NY: Prentice Hall Press, 1990).
nary ressalta que “na Bíblia, encontramos pessoas de sobreviver por meio de traba-
o primeiro apelo no mundo literário a um lho honroso, em vez de atos criminosos.
6
Ibid.

tratamento humano para escravos, com Os donos de terras e plantações eram


7
Paul Copan, Is God a Moral Monster? (Grand Rapids,
MI: Baker Books, 2011), p. 127.
base em seu valor próprio, e não no lucro incentivados a, além de permitir que os fa- 8
Wright, p. 333.
que seus mestres desfrutariam”.15 mintos colhessem grãos durante o tempo 9
Ibid.
Assim, em vez de tratar escravos como de colheita (Lv 23:22), tratar seus escravos
10
Wright, p. 335.
objetos, propriedades ou seres desumani- como companheiros necessitados, dignos
11
 . Tuente, “Escravo”, Dicionário Internacional de
R
zados, os regulamentos veterotestamen- de respeito humano. Jesus, inclusive, en- Teologia do Novo Testamento, Lothar Coenen e
tários os elevavam a um nível de dignidade quanto ensinava Seus discípulos, estabe- Colin Brown, eds. (São Paulo, SP: Vida Nova, 2000),
v. 1, p. 674.
previamente desconhecido. Walther Ei- leceu os fundamentos que, uma vez postos
12
 on F. Neufeld, “Escravo”, Dicionário Bíblico
D
chrodt, teólogo alemão e especialista em em prática, transformariam cada pessoa
Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: CPB, 2016),
Antigo Testamento, reforça essa singula- da sociedade e conduziriam à abolição dos p. 433.
ridade em Israel: “Na avaliação de danos males sociais. A simples observância da re- 13
Copan, p. 139.
provocados a propriedades, no tratamen- gra de ouro seria suficiente para prevenir a 14
Wright, p. 333.
to de escravos, no estabelecimento de cas- escravidão de seres humanos.17 15
 uhammad A. Dandamayev, “Slavery (Old
M
tigos contra ofensas indiretas e na rejeição Testament)”, Anchor Bible Dictionary, David N.
Freedman, ed., v. 6 (Nova York, NY: Doubleday,
de castigos que envolvem mutilações, o Conclusão 1992).
valor da vida humana é exaltado a um pa- Conforme vimos, as leis veterotesta- 16
Walther Eichrodt, Theology of the Old Testament ,
tamar incomparavelmente maior do que o mentárias não caracterizam um Deus tira- (Londres: SCM Press, 1967), v. 2, p. 321.
valor material […] Isso só se tornou possí- no e cruel. Ao contrário, elas apresentam 17
Neufeld, p. 433.
vel graças à profundidade de um conceito um Deus misericordioso e amável, que co- 18
Artigo publicado originalmente em inglês na
Compass Magazine.
até então nunca considerado – a nobreza nhece a realidade da pobreza, da fome e da
do ser humano, algo que hoje é um concei- miséria, a ponto de permitir um sistema
to fundamental para a conduta moral.”16 que sustentaria os necessitados durante Glauber S. Araújo, mestre
os tempos de crise. As leis escravistas do em Ciência da Religião
(Universidade Metodista
A abolição da escravatura Antigo Testamento tinham como inten-
William de Moraes

de São Paulo), é editor de


Quando lidamos com a questão da es- ção a proteção de pessoas vulneráveis a livros na Casa Publicadora
cravatura na Bíblia, uma pergunta sempre possíveis tratamentos humilhantes. Se os Brasileira

30 | MAR-ABR • 2017
CONCURSO
DE ARTIGOS

A revista está promovendo pela primeira vez o Concurso


PRÊMIOS
1º lugar: Coleção
de Artigos para estudantes de Teologia. Todos os alunos matriculados em
Minicentro
programas de graduação ou pós-graduação podem participar. Ellen G. White
2º lugar: Coleção Comentário
TEMA E REQUISITOS PARA INSCRIÇÃO: Bíblico Adventista
1. Em 2017 serão celebrados os 500 anos da Reforma Protestante iniciada 3º lugar: Bíblia de Estudo
por Martinho Lutero. Aproveitando essa ocasião histórica, o tema dos Andrews
A comissão avaliadora será
artigos deverá relacionar-se com esse evento. Os textos podem explorar
formada pela equipe editorial
aspectos bíblicos, históricos, teológicos e aplicados que dialoguem com da Ministério, por representantes do
a Reforma. Seminário Adventista Latino-americano
de Teologia e da Associação Ministerial
da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
2. O
 s textos deverão ser enviados em MS Word para o e-mail
ministerio@cpb.com.br. Por favor, inclua as seguintes informações Publicação
no cabeçalho do artigo: nome, endereço, e-mail, telefone, 1. Não haverá devolução dos artigos
afiliação religiosa, nome da instituição educacional em que está enviados.
2. Os ganhadores do concurso darão à
matriculado e o título do manuscrito.
revista Ministério os direitos de publicação
do artigo. Embora os editores pretendam
3. Ao fazer citações bibliográficas, identifique as fontes. Insira publicar esses textos, a publicação não é
notas de fim de texto (não notas de rodapé) com referência garantida.

completa. Use números arábicos nas notas. Utilize a


Data limite de inscrição:
fonte Arial, tamanho 12, espaço 1,5, justificado. Os textos Os textos deverão ser enviados até 30 de maio de 2017
deverão conter no máximo 15 mil caracteres com espaço.
Apoio:
Seminário Adventista
4. Será aceito somente um artigo por autor. Latino-americano de Teologia
Associação Ministerial
PASTOR COM PAIXÃO Aldo Borch

De policial a pastor

C
omo pastores, geralmente falamos a
respeito do chamado que Deus nos
fez e da maneira pela qual Ele nos ca-
pacitou para o ministério. De uma forma ou
de outra, o Senhor nos separou para a no-
bre tarefa de pregar o evangelho. No en-
tanto, com o passar dos anos, corremos o
risco de nos esquecer desse chamado. Por
isso, quero compartilhar meu testemunho
com você, prezado colega, e espero que ele
seja motivador para sua vida.
Quando minha família se tornou adven-
tista, eu tinha apenas cinco anos de ida-

Gentileza do autor
de. Morávamos na cidade de Apóstoles,
na província de Misiones, Argentina. La-
mentavelmente, quando cheguei à adoles-
cência, abandonei a igreja. Acreditava que de abrir o coração a Deus. Com o passar das meu Senhor; por amor do qual perdi todas
minha vocação era servir às forças arma- horas, fui sentindo alívio e paz como se um as coisas e as considero como refugo, para
das. Mais tarde, entrei para a academia de peso tivesse sido tirado de mim. Essa ex- conseguir Cristo” (Fp 3:7, 8).
polícia, e procurei aperfeiçoar-me ao má- periência me levou a desfrutar de um novo Lamentavelmente, por diversos moti-
ximo. No período de estudos, tive a opor- relacionamento com o Criador. vos, vi cair alguns companheiros de estu-
tunidade de ser treinado pelo Grupo de Tempos depois, senti o chamado divi- do e ministério ao longo do caminho. Se
Operações Especiais do exército argentino no para cursar Teologia e me tornar pastor. você, porventura, está passando neste
e por equipes norte-americanas da SWAT. Aos 30 anos, iniciei a faculdade. O primeiro momento por uma crise familiar, econômi-
Após 10 anos de serviço, percebi que ano do curso foi uma prova de fogo para ca, espiritual, vocacional, de saúde ou ou-
minha vida era vazia. Tinha tudo o mim, mas o Senhor, em Sua infinita mise- tro motivo, não deixe de confiar em Deus.
que queria: poder, status e dinheiro, mas ricórdia, encarregou-Se de enviar pessoas Lembre-se de que foi Ele mesmo quem
não era feliz. Certa noite, não conseguia que sempre me incentivaram a prosseguir. o chamou para pastorear Seu rebanho e
dormir. Era madrugada, e tive a impressão Querido colega, seja qual for sua fun- cumprir Sua missão. Seja o que for que es-
de ter ouvido a voz do Espírito Santo. Na- ção: pastor distrital, capelão, administra- tiver enfrentando, o Senhor pode solucio-
quele momento, minha vida toda passou dor, professor... jamais se esqueça de que nar. Neste momento da história terrestre,
como um filme diante de mim. Observei Deus o chamou e de que você está onde Ele necessita de um exército de pastores
minha esposa que dormia tranquilamente está porque Ele tem um plano para sua como os valentes de Davi.
e a quem eu havia feito sofrer por minhas vida. Por isso, procure ser um canal de bên- Meu desejo é que Deus abençoe rica-
atitudes erradas. Pensei em meus pais, e çãos às pessoas. mente seu ministério, e que possamos che-
em como deviam estar sofrendo por eu O apóstolo Paulo disse: “Mas o que, gar juntos à Canaã celestial, tendo cumprido
estar tão distante do Senhor. para mim, era lucro, isto considerei perda a missão que nosso Mestre nos confiou!
Durante aqueles momentos, por duas por causa de Cristo. Sim, deveras conside-
vezes peguei o revólver para me matar. En- ro tudo como perda, por causa da subli- Aldo Borch é pastor em Jardín América,
tretanto, ao mesmo tempo, senti o desejo midade do conhecimento de Cristo Jesus, Província de Misiones, Argentina

32 | MAR-ABR • 2017
DIA A DIA Richard Hickam

Música para adoração

G
eralmente, quando vamos à igre- final do hinário, CDs e DVDs, há uma infini- • A música tem melodia consistente que
ja, esperamos que os responsáveis dade de novos hinos e músicas sendo pro- usa intervalos longos e curtos de maneira
pelo louvor trabalhem de maneira duzidos diariamente pelos compositores criteriosa? Tem extensão vocal equilibra-
bem criteriosa ao escolher as músicas para cristãos contemporâneos. As novas produ- da? É facilmente memorizável?
a adoração. No entanto, em muitas oca- ções podem ser facilmente encontradas na • O ritmo é fácil de ser cantado? É inte-
siões, parece que esse cuidado tem estado internet. Diante de tamanha oferta, como ressante? Retrata a ação do texto e ajuda
ausente. Além do índice temático na parte decidir o que pode ser usado? na declamação? Os cantores conseguem
Na obra Selecting Wor- interpretá-la?
Proclamação ship Songs: A Guide for Lea- • A harmonia sustenta a progressão me-
ders (Triangle Publishing, 2011), lódica sem cobri-la? Usa quantidades de
• É fiel aos ensinamentos fundamentais do cristianismo,
os quais são inegociáveis. Constance Cherry, Mary Brown consonância e dissonância que permitem
e Christopher Bounds, profes- cantá-la em partes?
• Expõe o ensinamento de forma clara e completa.
sores de Música e Adoração, • Os componentes musicais contribuem
• Elabora o ensinamento. utilizam uma ferramenta ava- para apoiar, destacar e interpretar o texto?
• Leva o adorador a responder de maneira específica liativa, anotações e orienta- • A música é acessível para o canto con-
(louvar, mudar, servir). ções litúrgicas, para ajudar os gregacional em relação ao alcance vocal,
Petição responsáveis pela adoração a repetição estrutural e facilidade de canto
escolher as músicas. Eles clas- uníssono e/ou em partes?
• Contém sólida instrução teológica sobre a oração.
sificam o assunto em três ca- As sugestões apresentadas aqui não
• É coerente com os padrões bíblicos de oração.
tegorias: teologia, linguagem e devem ser a palavra final em favor ou con-
Louvor música. Os autores prescrevem tra qualquer música em particular. Entre-
• Apresenta claramente os aspectos do caráter e da um sistema de pontuação, con- tanto, elas fornecem um ponto de partida
natureza de Deus. ferindo o máximo de pontos à para selecionar boas canções em meio à
• Demonstra vasta compreensão da natureza divina. música que preenche os requi- grande variedade que atualmente se en-
sitos em sua respectiva catego- contra disponível. Seria bom usar dife-
• Associa o louvor às ações criativas e salvíficas de Deus.
ria (veja o box). rentes tipos de música em nosso canto
• Relaciona o louvor com as atribuições apropriadas das Considerações adicionais congregacional. Harold M. Best, em seu
pessoas da Divindade.
são sugeridas quanto à letra livro Music Through the Eyes of Faith (Har-
Exortação das músicas: Quão claras são perCollins, 1993), resumiu isso muito bem
• Concentra-se na edificação espiritual para levar a uma suas frases, sua estrutura, sua ao dizer: “O apóstolo Paulo nos motiva a
vida cristã bem-sucedida. gramática e seu uso? E quanto expressar nossos sentimentos a Deus ‘com
• Apresenta os objetivos mais amplos do reino dos Céus, à escolha do tom? A temática ação de graças e súplicas’ (Fp 4:6), seja qual
em vez de se limitar somente à santidade. é coerente? A rima na letra é for nossa condição. Penso que precisamos
interessante? Contém lingua- fazer o mesmo por meio da música.”
Chamado à ação
gem artística, figurada, ima-
• Declara explicitamente o que o cantor fará.
gens e especificidade? Richard Hickam,
• Associa sua resolução com a necessidade da graça Por último, é preciso avaliar doutorando em Música
e do auxílio divinos. (Liberty University), é
sua composição. Essa avaliação
Gentilaza do autor

ministro de adoração na
• Relaciona sua intenção com os propósitos maiores não deve ser quanto ao tipo, igreja do Florida Adventist
do reino de Deus. mas sim, quanto à qualidade: Hospital

MAR-ABR • 2017 | 33
RECURSOS

O Pastor como Teólogo Público: Recuperando uma Visão Perdida


Kevin J. Vanhoozer e Owen Strachan, Vida Nova, 2016, 256 p.
O cristianismo requer com urgência que mentes teológicas retornem ao contexto a que per-
tencem: o corpo de Cristo – Sua igreja. Kevin J. Vanhoozer e Owen Strachan, autores do livro
O Pastor como Teólogo Público, pretendem recuperar a importância teológica da “profissão” mais
excelente do mundo e despertar a igreja para esta vocação imensamente desafiadora, emocio-
nante e prazerosa: a do ministro de Deus.
De forma específica, a obra tem como objetivo ajudar três grupos. Os pastores, porque preci-
sam fortalecer a essência teológica de sua vocação para ministrar a Palavra de Deus. As igrejas,
porque precisam ser incentivadas a repensar a natureza do trabalho de seus pastores, incentivando-
os para que se desenvolvam como teólogos “públicos”. E, por último, os seminários, porque exis-
tem para formar pastores; porém, diminuindo o abismo entre as disciplinas teológicas e as práticas.
O Pastor como Teólogo Público propõe mudança de paradigma pastoral, oferecendo uma al-
ternativa positiva. Sua leitura é recomendada para todos aqueles que desejam servir suas igrejas
como teólogos, pastores, pregadores e líderes.

Compreendendo as Escrituras
George W. Reid (org.), Unaspress, 2007, 363 p.
O cristianismo enfrenta uma grave crise hermenêutica. Muitas denominações, abdicando
o Sola e Tota Scriptura, têm diluído os princípios universais da Palavra de Deus no subjetivismo
cultural contemporâneo. Precisamos urgentemente enaltecer a perpetuidade da Bíblia, em con-
traste com a transitoriedade das ideologias humanas.
Escrita por um grupo de teólogos e eruditos bíblicos, a obra apresenta uma série de princípios
de interpretação das Escrituras. Aborda temas como a natureza da revelação, a inspiração e au-
toridade da Bíblia, e apresenta pressuposições escriturísticas para se obter melhor compreensão
da Palavra revelada. É uma ferramenta indispensável para todo aquele que deseja se aprofundar
nos fundamentos e métodos de interpretação das Escrituras.

Interpretando as Escrituras
Gerhard Pfandl (org.), Casa Publicadora Brasileira, 2015, 384 p.
As dificuldades na compreensão de alguns textos bíblicos podem ser resultado de diferenças
culturais, temporais ou do desafio que eles impõem à nossa maneira de pensar e agir. Interpre-
tando as Escrituras tem como objetivo principal aplicar os princípios da interpretação bíblica abor-
dados no livro Compreendendo as Escrituras a textos de difícil interpretação do Antigo e Novo
Testamentos.
Os 49 autores que contribuíram para essa obra apresentam respostas claras e biblicamente
sólidas a mais de 100 perguntas referentes à Bíblia e a seus ensinos. Por exemplo: Existem erros
na Bíblia? A Terra existia em estado caótico antes da semana da criação? Onde Caim encontrou
esposa? O que Jesus quis dizer ao ordenar que sejamos “perfeitos”? Que vinho Jesus fez em Caná?
Quem são os 144 mil e a grande multidão?
Ele serve de referência para aqueles que estão interessados em compreender o sentido de al-
guns textos bíblicos mais difíceis e, especialmente, para quem atua na área ministerial.

34 | MAR-ABR • 2017
PALAVRA FINAL Walter Steger

A crise hermenêutica
A
lguns dividem a história da filosofia em três gran- de lado nossas ideias preconcebidas, demonstramos
des períodos: pré-modernismo, modernismo e nossa disposição de submeter-nos à mensagem reve-
pós-modernismo. A cosmovisão pré-moderna lada por Deus.
dava primazia ao divino e enfatizava o sobrenatural. Contudo, interpretar as Escrituras também é uma
Havia valores objetivos, princípios absolutos e realida- experiência intelectual enriquecedora. O Espírito Santo
de transcendental. A verdade podia ser conhecida por não ignora nossa intelectualidade. O Senhor espera que
meio da revelação. utilizemos nossa razão santificada para estudar a Bíblia.
No fim do século 18, essa perspectiva começou a ser A sabedoria verdadeira surge do temor do Senhor, de
substituída pelo surgimento da cosmovisão moderna. uma entrega completa a Ele como Rei e Salvador. Quem
A nova ideologia descartou o sobrenatural e propôs que tem a verdadeira sabedoria ouve a Palavra e está dis-
a razão, e não mais a revelação, podia revelar qualquer posto a segui-la por onde quer que ela o conduza em
verdade objetiva. sua busca pela verdade.
Entretanto, a partir da segunda metade do século Nesse sentido, é primordial adotar em nosso estu-
20, o modernismo foi sucedido pelo pós-modernismo do o método apropriado de interpretação, permitindo
(embora alguns já falem até em pós-pós-modernismo). que o Espírito nos ajude a identificar, nas Escrituras, os


Certo é que, em nossa sociedade e cultura atuais, Deus princípios de interpretação que utilizaremos. A Bíblia é
e a razão têm sido descartados, e a verdade se constrói sua própria intérprete e, o Espírito, por meio dela, há de
na mente e na imaginação de cada pessoa. Não existem ser quem julga qualquer método interpretativo. Nossa
fundamentos universais, transcendentais. Há diversida- única segurança está em uma leitura simples e direta
de, caos e relativismo. O emocional supera o racional, a da Bíblia, sem a mistura com teorias científicas ou sis-
experiência pessoal tem substituído a verdade e o ceti- temas filosóficos.
cismo tem ocupado o espaço da certeza moral. Por último, a interpretação bíblica também é uma
Segundo o pós-modernismo, uma leitura simples e A Bíblia é experiência coletiva. O Espírito não ignora a comuni-
direta da Bíblia não pode ser considerada fonte auto- sua própria dade de fiéis. Uma pessoa que pretende ser a voz de
ritativa da verdade absoluta. Existe, em seu lugar, um intérprete e, Deus na formulação de doutrinas ou ensinamentos bí-
desconstrucionismo bíblico, onde cada cristão, seja teó- o Espírito, por blicos, tentando impor sobre a igreja seu próprio ponto
logo, pastor ou leigo, escolhe o que julga ser mais con- meio dela, há de vista, é perigosa para a comunidade de crentes e ge-
veniente e apropriado, faz uma aplicação atual segundo de ser quem ralmente leva à desunião. O Espírito Santo guia o corpo
lhe pareça melhor e descarta o que não aprecia, como julga qualquer de Cristo, como um todo, a uma melhor e mais correta
“questões culturais” antiquadas. método compreensão da Bíblia (At 15:28; Ef 3:17-19). Isso requer
O problema com esse tipo de leitura é que a pessoa interpretativo.” disposição de nossa parte para deixar de lado nossas
se coloca no centro da busca de significado na Bíblia. opiniões pessoais ante ao conselho bíblico apropriado
Obviamente, com tal enfoque, extrai-se uma pequena da comunidade de crentes.
parte de toda a verdade que Deus deseja revelar aos Volvamos à Palavra: estudemos e preguemos mais a
seres humanos. Pior ainda, essa abordagem compro- Palavra, e somente ela. “Seca-se a erva, e cai a sua flor,
mete as conclusões acerca da própria revelação divina. mas a Palavra de nosso Deus permanece eternamente”
É muito apropriado que no ano em que se comple- (Is 40:8).
tam os 500 anos da Reforma Protestante, os herdeiros
do movimento iniciado por Lutero recordem e enfa-
tizem os princípios hermenêuticos que a impulsiona- Walter Steger, graduado em Teologia,
ram: Sola, Tota e Prima Scriptura. Isso implica abandonar é editor associado da revista Ministério,
edição em espanhol.
nossas opiniões e preconceitos pessoais e pedir a dire-
Gentilaza do autor

ção do Espírito Santo (Jo 14:26; 16:13). A interpretação


das Escrituras é uma experiência religiosa e, ao deixar

MAR-ABR • 2017 • 2017 | 35

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