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(DI)versos

(DI)versos
Eliane Testa (Org.)

φ
Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni
Arte de capa: “mix sunergétikos”, de Lia Testa; Técnica: “colagem c/apropriação”
Revisão: João de Deus Leite

A regra ortográfica usada foi prerrogativa de cada autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


TESTA, Eliane (Org.).

(DI)versos. [recurso eletrônico] / Eliane Testa (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017.

86 p.
ISBN - 978-85-5696-159-4
Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Estética, 2. Arte, 3. Poesia, 4. Verso, 5. Colagem, 6. Poema; 7. Conto; I. Título.

CDD-100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Para todos os leitores, esse nosso “diversos”,
em criação.
pensar-se como enigma

M. Merleau-ponty

Je mords ce que je puis

Valéry

A vida é insuportável para


quem não tem sempre à mão
um entusiasmo

Maurice Barrès
SUMÁRIO
PREFÁCIO - JANETE SANTOS ..............................................................................................................15
NOTA E AGRADECIMENTOS ................................................................................................................25

POEMAS

Osso côncavo do olho


MICROPOEMA: CON TEXTO
POEMA: OLHOSCÓPIO
Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 30

MOÇA TOMBADEIRA
Kauany Fernandes ............................................................................................................................... 31

HOMÚNCULO
Jannyffer Sousa Almeida ...................................................................................................................... 32

VERME NECRÓFAGO
Juliana Sousa Rocha ............................................................................................................................ 33

OS MEUS OLHOS PIRILAMPOS


Elizandra Sousa ................................................................................................................................... 34

À MOÇA VIRGEM
Willas Santos ...................................................................................................................................... 35

FRATURA
Victor França ....................................................................................................................................... 36

LA VIDA
Davi Gomes ......................................................................................................................................... 37

Hamilton Araújo .................................................................................................................................. 38

NO OLHO DO SEU C.U


Ana Sena ............................................................................................................................................ 39

Cobra que morde o rabo


Juliana Sousa Rocha ............................................................................................................................ 42

Victor França ....................................................................................................................................... 43

O ÓVULO DA SERPENTE
Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 44
Hamilton Araújo .................................................................................................................................. 45

Ana Sena ............................................................................................................................................ 46

GIRO SERPENTINA
Jannyffer Sousa Almeida ...................................................................................................................... 47

Davi Gomes ......................................................................................................................................... 48

SERPENTE SUICIDA
Willas Santos ...................................................................................................................................... 49

OROBORO
Kauany Fernandes ............................................................................................................................... 50

MEU FIM É MEU COMEÇO


Elizandra Sousa ................................................................................................................................... 51

Haicais
Jannyffer Sousa Almeida ...................................................................................................................... 54

Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 54

Juliana Sousa Rocha ............................................................................................................................ 55

HAICAIS A DUAS MÃOS


Juliana Sousa Rocha & Cristiano Alves Barros ........................................................................................ 56

Jannyffer Sousa Almeida & Victor França ............................................................................................... 56

CONTOS BREVES

SILÊNCIO!
Davi Gomes ......................................................................................................................................... 58

O ENCONTRO DA GAROTA DE LINCHTENSTEIN


Victor França ....................................................................................................................................... 58

DO OUTRO LADO DA LINHA


Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 59

ZERO GRAU
Willas Santos ...................................................................................................................................... 59

MORMAÇO
Juliana Sousa Rocha ............................................................................................................................ 59
PROIBIDO
Kauany Fernandes ............................................................................................................................... 60

O SILÊNCIO
Ana Sena ............................................................................................................................................ 61

Hamilton Araújo .................................................................................................................................. 61

Willas Santos ...................................................................................................................................... 62

Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 63

CRÔNICAS

UMA CENA URBANA


Willas Santos ...................................................................................................................................... 65

O DESCASCADOR DE LARANJAS
Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 65

HAITI
Davi Gomes ......................................................................................................................................... 66

OUTROS ESCRITOS

EXERCÍCIO POÉTICO: ATEMPORAL


Juliana Sousa Rocha ............................................................................................................................ 68

EXERCÍCIO POÉTICO
Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 69

CONTÁGIO
Cristiano Alves ..................................................................................................................................... 70

COLAGENS .......................................................................................................................................71

POSFÁCIO - DA LINGUAGEM POÉTICA EM CENA: A TESSITURA DE (DI)VERSOS - JOÃO DE DEUS LEITE .......83
PREFÁCIO
Janete Santos1
A energia produtiva da poeta Lia Testa é solidária, partilha
sonhos diversos e de versos. Sendo laboriosa poetisa _ referência
que ela prefere à “poeta”, forma lexical com a qual mais me afino
por dar, a meu ver, o mesmo status a poetas de diferentes gêneros
(masculino/feminino)_, é também dedicada a não só conquistar,
mas também a formar apreciadores do trabalho criativo da
poesia. E nada mais gratificante que, a partir de outro lugar, digo,
já na instância de docente, enunciando da posição de professora
de um curso de Letras, oportunizar essa experiência (a vivência
desse processo) a seus alunos de graduação, tendo como
resultado (produto) a presente coletânea, cujo prefácio me coube
fazer após convite que muito me honrou. A obra reúne três
gêneros literários (poesias, contos e crônicas) produzidos pelos
participantes das oficinas do exitoso projeto de criação literária,
encampado e coordenado por Eliane Cristina Testa, a docente, e
temperado em excelente medida pelo vigor criativo de Lia Testa,
a poeta (ou a poetisa, como ela preferir).
O volume vem distribuído em seis partes ou seções. A
primeira é composta de dez poemas que trazem em si, como fio
condutor que enlaça os textos, o sintagma nominal osso côncavo do
olho. A segunda, também constituída de dez poemas, traz como
proposta de composição a alegoria cobra que morde o rabo, na qual
um dos poemas conjuga signo linguístico e não-linguístico. A
terceira está organizada por onze haicais. A quarta parte, de dez
contos curtos. A quinta, de três crônicas. A sexta, de três poemas
livres de eixo temático, com uso no terceiro poema de outros
signos que não apenas o linguístico, e mobilizado este tipo
somente no título.
Fechando a obra, a sétima e última parte vem composta
por imagens resultantes de colagens de figuras outras. Escolhi
dois poemas da primeira seção para beliscar a curiosidade do
leitor quanto à riqueza das propostas produzidas no exercício

1Escritora e poeta, por inquietação. Janete Silva dos Santos (mestre e doutora em LA,
pela Unicamp), docente e pesquisadora da UFT, por ofício.
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criativo do grupo de autores, e da qual o leitor poderá desfrutar


ao aceitar o desafio de mergulhar neste trabalho singular,
proporcionado pelo projeto de Eliane Cristina Testa.
Em (DI)versos, osso côncavo do olho é o sintagma que reitera
a metáfora a alinhavar os poemas da primeira parte, com o jogo
criativo resultando em instigantes imagens ou cenas, a depender
de como o leitor “espia” cada texto ou de como “acompanha”
seu movimento, na sua relação com os demais. O modo de
sintonia e de bifurcação de sentidos, que aqui gostaria de destacar
como exemplificação, é bem representativo entre os poemas de
Juliana Sousa Rocha e de Willas Santos, os quais transcrevo para
mais abaixo pontuar alguns breves comentários:

Verme Necrófago À MOÇA VIRGEM


Ouço as ondas do mar
Sinto a brisa a tocar o corpo
Nasci nesta carcaça E a boca como um beijo!
Inquieto.
Dentro do crânio Moça, ouça a voz do dia
Putrefação O chamamento para a alegria
Passeio pela face do morto. Feche os olhos e pule ao mar!
Encontro-me
Na cavidade do osso côncavo do olho [?] Poço de águas largas!
Então sem pestanejar No teu corpo naufrago-me sem cessar
Devoro teu globo ocular! Roço o osso côncavo do olho
E logo sinto as borbulhas de amar.

Juliana Sousa Rocha Willas Santos

Em Verme Necrófago, de Juliana Rocha, aberto a outras


possíveis leituras evidentemente, temos um poema forte,
impactante, e associado ao estilo Augusto dos Anjos, com uma
descrição fisiológica de parte do corpo no pós-morte, despida de
amenidades, mostrada na sua feição in natura, sem maquiagem de
outra ordem ou que remeta à palavra esterilizada para contexto
impróprio: Nasci nesta carcaça/Inquieto/Dentro do
ELIANE TESTA (ORG.) | 17

crânio/Putrefação/Passeio pela face do morto/Encontro-me/Na cavidade do


osso côncavo do olho [?]/Então sem pestanejar/Devoro teu globo ocular!.
Vê-se aí que a autora comissiona o verme a denunciar-se, narrando
as próprias peripécias. E, nesse exercício criativo, a disposição
dos signos negritados nos versos (com exceção apenas do
terceiro), que compõem o poema de estrofe única (com uma
nona, pois não há espaço entre os versos para considerá-lo um
poema de nove monósticos, i.e, com nove estrofes de verso único
cada), faz emergir refinado oximoro (me olho sem globo ocular)
na finalização do micropoema, construído mediante o recurso
estilístico do encavalgamento (enjambement), imbricado no macro
que o recobre, cutucando o leitor a descobrir que, nessa
narratividade em que um ser engole outro, em que um ser
depende do outro, tal como todo texto de outro se alimenta, o
poema é corpo que a outro aboleta, e neste caso o é para que o
sujeito poético, personificado pelo verme, também melhor se
descreva, provocando o interlocutor, emocionando-o:

Nasci/Inquieto/Putrefação/do morto/me/olho/sem/globo ocular.

Trazemos novamente abaixo o poema de Juliana Sousa


Rocha a fim de finalizar um último comentário. Atente o leitor
para mais um detalhe na arquitetura do poema: verme move-se
por rastejo, fazendo movimento sinuoso que, no poema, pode ser
acompanhado pela disposição das palavras negritadas e em
desalinho, mais um toque genial deixado pela autora em seu
exercício criativo, que anuncia formações discursivas (mobilizadas
nesta produção) que a constituem como sujeito inserido no uso
heterogêneo da linguagem:
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Verme Necrófago

Nasci nesta carcaça


Inquieto.
Dentro do crânio
Putrefação
Passeio pela face do morto.
Encontro-me
Na cavidade do osso côncavo do olho [?]
Então sem pestanejar
Devoro teu globo ocular!

Já em À MOÇA VIRGEM, alinhavando o sintagma elo


(o osso côncavo do olho) entre os poemas da primeira série de
textos, mas se distanciando do viés privilegiado por Juliana
Rocha, bem como do estilo que remete ao de Augusto do Anjos,
a que ela se filiou proposital ou inconscientemente, Willas Santos
constrói um poema romântico, navegando em sutil (e também
pueril) erotismo poético a chamar a moça (virgem) para entregar-se
ao mar (místico), que poderia simbolizar o desejo de conjunção
amorosa do sujeito poético, apaixonado e sonhador, e a que o
poeta, usando com perspicácia o recurso da exclamação,
mobilizando bela metáfora, chama de “poço de águas largas!”. Esse
percurso de sentido é sugerido pelo uso de palavras e expressões
como corpo, boca, beijo, no teu corpo naufrago, borbulhas de amar, que
mobilizam interdiscursos alinhados ao campo semântico
proposto por nosso gesto de leitura. Apreciemos mais
atentamente a segunda e a terceira estrofes do poema em pauta:

Moça, ouça a voz do dia


O chamamento para a alegria
Feche os olhos e pule ao mar!

Poço de águas largas!


No teu corpo naufrago-me sem cessar
Roço o osso côncavo do olho
E logo sinto as borbulhas de amar
ELIANE TESTA (ORG.) | 19

Vê-se que, no poema constituído por três estrofes,


especificadas por dois tercetos e por um quarteto, o autor comete
um supimpa solavanco semântico na arquitetura do texto (pelo
pulo de sentido em um de seus versos), mediante figura de estilo
(a metáfora e em forma de exclamação) que lhe permitiu cimentar
habilidosamente a cauda de sentido do último verso da segunda
estrofe com a mesma laje semântica que ao segundo verso da
última estrofe recobre. Ou seja, o sentido de parte do verso
anterior estende-se ao verso seguinte, porém, este mesmo “verso
seguinte” recobre o sentido do verso posterior, sendo assim tanto
uma metáfora do “mar” quanto uma metáfora do “corpo” da
virgem. Não chamo de encavalgamento por não localizar o
aspecto sintático (ligação lógica e direta de continuidade sintática)
como seguramente ocorre no poema em negrito embutido no
macropoema de Juliana Rocha, já mencionado anteriormente.
Refiro-me, neste caso, como já sinalizado, ao verso Poço de
águas largas!, que, no meu movimento de leitura, tanto alude ao
mar (místico), que simbolizaria a conjunção amorosa, ou melhor,
o desejo de conjunção amorosa do sujeito poético, constante no
verso final da estrofe anterior, quanto ao corpo (da virgem)
enunciado no verso seguinte. Ou seja, ao que está referido no
segundo verso da última estrofe, que aqui novamente transcrevo:
Poço de águas largas!/No teu corpo naufrago-me sem cessar/Roço o osso
côncavo do olho/E logo sinto as borbulhas de amar. É o tipo de verso
que poderia por si só constituir uma estrofe independente (um
monóstico), configurada entre a segunda e a última, se assim o
autor preferisse arriscar.
Uma outra possibilidade de leitura seria ver o “Poço de
águas largas!” como um outro ente evocado, com o qual o sujeito
poético passa a dialogar (ou monologar) e ao qual se entrega
deliberadamente como faz todo aquele que se atira às águas num
abraço confiante, sendo, então, as “borbulhas de amar” uma
representação da satisfação pueril de quem se deleita ao mero
contato revigorante com a natureza, de quem se diverte
desbravando o mar, seja qual for o efeito lírico a ele atribuído.
Numa leitura mais superficial, decerto se poderia considerar
também que, nos mergulhos, os olhos ardem pela salinidade do
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mar, daí a necessidade de se roçar o “osso côncavo do olho”.


Nesse caso, “as borbulhas de amar” remeteriam ao dito corrente
“sofrer no paraíso”, ou seja, à felicidade mesmo que ela traga,
como apêndice, algum desconforto. Logo, o diálogo (ou
monólogo, pois, à primeira vista, só um toma a palavra e não há a
responsividade ativa nos termos bakhtinianos) com a “moça
virgem” (ou a tentativa de diálogo) seria apenas um convite
despretensioso do sujeito poético para que ela aderisse ao singelo,
mesmo que revigorante, prazer de desfrutar da natureza água,
porém e ao mesmo tempo, o diálogo com o ente “moça virgem”
sofreria um corte brusco, pois se perderia ou se isolaria na
segunda estrofe, desenhando-se um tipo de anacoluto entre as
vozes do texto, que antes caminhavam em relativa sintonia, pois
não se evoca quem não pode “ouvir”, ou, em outras palavras,
quem não estaria disposto a interagir. Mas creio que este percurso
de sentido ficaria enfraquecido pelo campo semântico sugerido
pelas palavras, expressões e enunciados apontados no parágrafo
que inicia a breve análise do respectivo poema, visto que se
configuram como palavras e expressões que justificariam a leitura
anterior se considerado o percurso integral do poema, incluindo-
se aí principalmente seu título, que muito influi no movimento de
leitura de qualquer texto desta natureza.
Um outro destaque que se faz notar é a licença poética,
ou o efeito da não padronização gramatical quando o poeta evoca
a moça virgem, isto é, quando se refere à segunda pessoa do
discurso: tu. Os verbos no imperativo estão flexionados à forma
gramatical você (Moça, ouça...feche...pule) na segunda estrofe,
mas o pronome correspondente “seu”, que, nesse contexto, teria
efeito de mais formalidade e mais distanciamento, não é
acionado, vindo em seu lugar a forma linguística “teu” na terceira
estrofe, o que poderia ser um reforço para a segunda leitura
sugerida. Entanto prefiro tomar essa “escolha” como registro de
um uso linguístico mais recorrente, ancorado no hibridismo de
uso das formas e flexões gramaticais, mas que não ocorre por
acaso (se considerado que o autor, como sujeito que enuncia de
determinada posição, é sempre afetado pelo inconsciente, assim
suas “escolhas” linguísticas estão condicionadas por formações
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discursivas, imaginárias e ideológicas, que não lhe são evidentes


mas que produzem seus efeitos ao dar voz ao sujeito poético),
pois atende ao desejo de maior proximidade, ao desejo de uma
relação mais intimista (pela quebra, por outro anacoluto, agora da
formalidade tecida antes) entre os envolvidos na cena costurada
pelo autor do texto.
Confirmando-se a leitura primeira (logo, diluindo-se ou se
enfraquecendo a segunda), é ainda interessante destacar, aqui,
relativamente à última estrofe, outra bela metáfora emprestada,
pode-se dizer, do título da música do cantor romântico brasileiro
Fagner: Borbulhas de amor, no qual Willas Santos, como sujeito da
linguagem, pondo-a em funcionamento (conforme certa posição
teórica sobre linguagem), opera hábil deslocamento da classe
gramatical no sintagma preposicionado (de amor) ligado ao
sintagma nominal (ou a seu núcleo) borbulhas, trocando a forma
substantiva “amor”, que tem efeito de captura de objeto, pela
forma verbal “amar”, que tem efeito de captura de processo, de
movimento, mantendo o mesmo campo semântico, para
completar, porém, e refinadamente, o verso final de seu poema,
evocando a ideia do prazer esfuziante e ao mesmo tempo contido
de um amor platônico do sujeito lírico, que vive de sonhos, de
quimeras, de contemplação, sem a urgência do enlace físico.
Tal configuração remete ao sentido de um amor inclinado
à sublimação (a moça do poema é virgem e permanece, no decorrer
do texto, intocável, pois o desejo em ebulição é o do poeta e não
o dela, digo, não é o mesmo do sujeito desejado, a quem voz não
é dada). Por isso, quando o sujeito poético diz: “Roço o osso
côncavo do olho”, para, em seguida, confessar: “E logo sinto as
borbulhas de amar”, permite ao leitor, também poético, pensar
em “sadios distúrbios” que inspiram, que afogam ou liberam a
paixão, a emoção, a disposição (produtiva) ao labor da palavra, o
desejo do sujeito em seu transe poético e criativo.
O sujeito lírico (ou poético) afoga-se em seu devaneio
amoroso, encastelado por suas quimeras. Vítima da não-
correspondência implícita do objeto de seu amor platônico,
sugerida pelo modo de responsividade de ação retardada (na
perspectiva bakhtiniana), “naufraga sem cessar”, pois não desiste
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jamais de mergulhar nesse sonho, de se arriscar em tentar


satisfazer seu desejo, isto é, insiste no suplício de evocar a
cumplicidade amorosa da moça virgem, por ansiar pelo objeto de
seu desejo, vivenciando metafórica e recorrentemente as
“borbulhas de amar”, que sugerem, então, as consequências do
“amor a um”, digo, do amor sem a devida reciprocidade.
Este sentido me parece possível, pois o sujeito poético
convida a “moça (virgem)” a enveredar pela paixão ou por sua
descoberta, a entregar-se ao desejo, pedindo que “pule ao mar”,
mas a qual o poema também não dá voz para dizer a sua vontade,
por isso duvido do diálogo ao pé da letra e brinco com a
possibilidade do monólogo, mesmo que as vozes que constituem
o sujeito discursivo imponham o diálogo como inerente ao uso
da palavra. Além disso, vale notar que o poema traz o título como
início de uma missiva (À MOÇA VIRGEM), indicando o
destinatário, o que sugere inicialmente um distanciamento
espacial entre os interlocutores criados pelo autor, e vindo em
letras garrafais tem efeito de supervalorização, pelo destaque
especial que o sujeito poético dá ao objeto de seu desejo, à sua
“musa inspiradora”. Entanto esse distanciamento vai se diluindo
ao longo do poema, conforme vimos no percurso da breve
análise.
Oportuno também considerar, em qualquer gesto de
leitura do texto poético, que metáfora não surge do nada, tem
relação com o sentido que emerge das ações do homem ou da
natureza, pois, se consideradas as estritas relações semânticas
entre borbulhas e naufragar, as borbulhas são produzidas
geralmente durante a luta pela sobrevivência em ocasião de
afogamento, ou quando se respira com equipamento de oxigênio
durante mergulhos com ou sem acidentes. Daí se poder deslocar
tal imagem para diferentes campos discursivos, ressignificando-se
a metáfora para o contexto no qual será empregada.
E como não apreciar a beleza de uma metáfora que
remete a um modo outro de dizer também que, ao esfregarmos
“as janelas da alma”, roçamos “o osso côncavo do olho”,
acionando a maquinaria corporal (como as glândulas lacrimais ali
próximas) que nos ensopa e ao mesmo tempo lubrifica e limpa os
ELIANE TESTA (ORG.) | 23

olhos (ou emoções/sentidos/sensações) com as lágrimas


produzidas pela fricção, favorecendo depois quem sabe a
serenidade de raciocínio que poderá também serenar (ou mastigas
mais ainda) as emoções?! Note-se que as lágrimas possuem um
sabor que remete ao da água do mar, pelos sais minerais dos quais
comungam, em alguma medida, ambas as matérias.
Antes de finalizar, mais uma provocação ao leitor:
desmontando-se a leitura até aqui costurada, de que, ainda no
referido texto, o sujeito poético vive o devaneio de um amor
platônico, tomando-se à parte especialmente a última estrofe (e o
título) do poema com outro olhar, é possível também ler ali uma
confissão (cifrada?) de que o desejo do sujeito poético não apenas
foi realizado mas também se mantém vivo como uma memória
da qual ele não abre mão e a qual quereria pública, entretanto,
para não afetar a “reputação da moça virgem (intocada)”, dirige-
lhe um poema missiva exaltando, por escrúpulo, a singularidade
identitária da qual ela não abre mão. Ou, numa outra hipótese,
ainda se poderia indagar: o uso das letras garrafais, no título, para
expressão cândida (desconstruída na última estrofe) irromperia
como uma ironia ([in]consciente) do autor ou como uma ironia
(consciente?) do próprio sujeito lírico?!
Finalizando-se esse exercício, cabe ressaltar que muitas
outras conjecturas se poderiam efetuar diante de tantas
possibilidades de gestos de leitura que esta coletânea enseja, e a
depender do ponto de observação daquele que sobre os textos se
debruça. Por ora, fica esta como um singelo convite ao leitor para
que a si mesmo outras também proponha, pois, atentando-se a
todos os textos e à conversa entre eles, o leitor verá que, a cada
leitura, será recompensado por efeitos de sentidos
surpreendentes.
NOTA E AGRADECIMENTOS
Este livro é resultado do Projeto de Criação literária: da
teoria à prática (de 2016 a 2017), coordenado pela professora Dra.
Eliane Testa2, desenvolvido com um grupo de acadêmicos do
Curso de Letras/UFT, no Campus Universitário de Araguaína
(TO). A partir de uma vivência mais calorosa da relação teoria e
prática, os envolvidos neste projeto se lançaram à diferentes
percursos sensíveis e intelectuais. No cerne de todas as
experiências e as experimentações além das inúmeras trocas, estão
as intersubjetividades, elas funcionam como dispositivos de
criação ou de co-criação.
Além disso, procuramos desenvolver este projeto, de
modo espontâneo, dinâmico, coletivo, colaborativo e prazeroso.
Então, mobilizados por uma rede complexa, formada de
múltiplas interações e ajustes, vem à luz, hoje, este (DI)versos.
Meus agradecimentos mais afetuosos e poéticos a cada
aluno participante que me ensinou que é possível estabelecer
entusiásticos e frutíferos elos com a docência/vida.
Meus sinceros agradecimentos aos professores
participantes deste livro (que também propiciaram em alguns
encontros descontraídos, valiosos e instigantes bate-papos).
Agradeço, ainda, ao amigo, poeta e Mestre em Letras
Samuel Delgado, por nos brindar com um belíssimo minicurso
sobre haicai.

2Docente do Curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras: Ensino de


Língua e Literatura da UFT (PPGL). Desenvolve pesquisas em literatura, em poesia, em
ensino e em formação de leitores de literatura. É poeta autora dos livros de poesia
Guizos da carne: pelos decibéis do corpo (2014, SP/Poesia Menor) e Sanguínea até os dentes (no
prelo).
POEMAS
Osso côncavo do olho
30 | (DI)

MICROPOEMA: CON TEXTO

O ÓciO dO OssO fOi OcOrrendO nO cOrpO, lOgO,


tOdOs Os OlhOs – OleOsOs prO OutrO: Os OcOs dO nOvO
– nOssO cÔncavO mOrtO.

POEMA: OLHOSCÓPIO

Escureço
Na visão.

Olho-me
Por fora.

Para ver
Um cego.

Onde eu
Espelhei
Meu osso
Côncavo.

Do olho
E alheio.

Cristiano Alves
ELIANE TESTA (ORG.) | 31

MOÇA TOMBADEIRA

Moça tombou o moço


Tombada de paixão
Moça tombadeira
Bate o passo da canção.

Tombar os moço já é osso!


No batuque do agogô
Tombadeira abre a roda
Roda a saia prô senhô.

Osso côncavo do olho


Toma o olho do senhô
Moça bonita tombadeira
Roda a saia prô senhô

Moço toca o agogô


Foi tombado pela moça
No batuque do agogô
Que roda a saia prô senhô

Kauany Fernandes
32 | (DI)

HOMÚNCULO

Metade do coração desmorona


ali observo a poesia do caos
sou como uma das estrelas cadentes
realizo desejo fatal.
Examino antes de cruzar tua órbita
recordo cada explosão que me alcançou
aprendi a ultrapassar teu planeta
aprendi a morrer no mar
Sou como uma das estrelas cadentes
e meus olhos em chamas te observam
não sinto a dor no osso côncavo do olho
já não me desatina mais
impressionando até os que não esperam
brilho, amo e morro
assim, fugaz.
O nosso encontro em meio à noite trará dia
nosso atrito produzirá eterno fogo
até os que não veem nos sentirão
e os que a tudo vilmente observam
verão de nossas almas o traço luminoso.
os descendentes dos bardos cantarão
a beleza da origem dos céus
e todos da orbe anunciarão
desde os ingênuos até os incréus.

Jannyffer Sousa Almeida


ELIANE TESTA (ORG.) | 33

VERME NECRÓFAGO

Nasci nesta carcaça


Inquieto.
Dentro do crânio
Putrefação
Passeio pela face do morto.
Encontro-me
Na cavidade do osso côncavo do olho [?]
Então sem pestanejar
Devoro teu globo ocular!

Juliana Sousa Rocha


34 | (DI)

OS MEUS OLHOS PIRILAMPOS

Aqueles olhos que refletiam luz


ofuscam agora dupla escuridão,
o osso côncavo do olho está profundo
transbordando como o Rio Jordão.

Dispara o negror das minhas retinas


O mar da Galileia fluí a melancolia,
deságua voraz regressa ao mar
morto essa agonia.

Afoguei-me em lágrimas
íris avermelhados deixei,
pupila bem dilatada
nervo óptico a romper.

reflete luz
os meus olhos pirilampos
almejo tanto resplandecer.

Dor, quero descanso


somente ébrio
enlouquecer.

Elizandra Sousa
ELIANE TESTA (ORG.) | 35

À MOÇA VIRGEM

Ouço as ondas do mar


Sinto a brisa a tocar o corpo
E a boca como um beijo!

Moça, ouça a voz do dia


O chamamento para a alegria
Feche os olhos e pule ao mar!

Poço de águas largas!


No teu corpo naufrago-me sem cessar
Roço o osso côncavo do olho
E logo sinto as borbulhas de amar.

Willas Santos
36 | (DI)

FRATURA

Osso côncavo do olho


Carne fraca que afaga
Vinho tinto de sangue
Derramado cálice que cala
Da sangria estanca
Calcifica meu peito de lata
Fratura teu osso que ouço
Com o falo fio da meada
Enxertando de afeto teu oco
Ecoando o som da pancada
A dor que jazia é esforço
Agora exala na alma que rala

Victor França
ELIANE TESTA (ORG.) | 37

LA VIDA

CORVO
CURVA
TUSSO
CORPO
CORPO
CORPO SÚBITO
SÚBITA MORTE
OLHOS APAGADOS NA NOITE
CURVAS BATIDAS
BATIDAS
BOOM,
TURVO
OSSO CÔNCAVO DO OLHO
RUÍDO
QUEBRADO
SALTADO
CURVO
CURVA
CURVO
LINHAS TORTAS
CONCAVIDADE
DO OSSO CAVADO DA VIDA

Davi Gomes
38 | (DI)

Osso côncavo

Osso côncavo do olho

Osso do fêmur

Osso da bacia

Osso do rádio

Rádio comunicar

Coluna é osso

Osso sustentação

Osso do cóccix

Osso da tíbia

Osso do pé

Medula no osso

Tutano de células

Que corre pro sangue

Que corre pro corpo

Que volta à vida

Hamilton Araújo
ELIANE TESTA (ORG.) | 39

NO OLHO DO SEU C.U

Meu olho,
No fundo,
Lá dentro,
Do seu olho.

Adentro,
No osso.
Côncavo do olho,
Do seu C.U.

Vai, lá dentro!
Do osso,
Do olho,
Do côncavo,
Do C.U.
Vai, Ai, Ui
Vai, vai
Ui, Ui.

Ana Sena
Cobra que morde o rabo
42 | (DI)

Juliana Sousa Rocha

Ouroboros: o nome vem do grego antigo: οὐρά (oura) significa


"cauda" e βόρος (boros), que significa "devora".
ELIANE TESTA (ORG.) | 43

“Na epiderme da derme”,


Sinto a neve cobrir tua pele,
40º graus de febre,
Escravos de Ceres,
Trabalham e se ferem,
Monstros mitológicos urram,
Em teus ouvidos sussurram,
Cobra que morde o rabo,
Anfisbena em teu cajado,
Abre o mar do princípio ao fim,
Caem os anjos querubins,
Na epiderme de tua derme,
Sinto de novo a neve,
Expelir-me de tua pele.

Victor França
44 | (DI)

O ÓVULO DA SERPENTE

A cobra morde
O próprio rabo.

O rabo morde
A própria cobra.

Forma-se a eternidade
Do círculo à fecundação.

Nascem outros dentes


Saboreando o veneno
Na vida, na morte.

Cristiano Alves
ELIANE TESTA (ORG.) | 45

Cobra que morde o rabo

Curvas, curvas

Mulheres curvas

Olhar seduzido

Corpo sedução

Mulher, não te curva

Levante-te, resplandece!

É forte, é grande

Amor suicídio?

Cobra que morde o rabo

Devora-se

Renova-se.

Hamilton Araújo
46 | (DI)

Cobra
que
morde
que
tange
que
mata
o
próprio
rabo

Ana Sena
ELIANE TESTA (ORG.) | 47

GIRO SERPENTINA

Oscilação vertiginosa
Tempos antigos
Giros labirínticos
Destino desatino

A serpente que morde


o próprio rabo,
o rabo que morde
a própria serpente

Oro é tua valia


nova vida não virá da desova
Boro é tua sorte
Oroboro, devora a si.

Em círculos a criação
A vida
A morte
A ressureição.

Jannyffer Sousa Almeida


48 | (DI)

TU

Que mata
Feri
Morde
Incita
Destrói

Que é faca
Farsa
Farpa
Força
Fatal

Cobra que engole o rabo,


Venenosa
Traiçoeira
Ardilosa
Tu és cobra?

Davi Gomes
ELIANE TESTA (ORG.) | 49

SERPENTE SUICIDA

Em terras quentes,
asfalto frita ovo,
sol bronzeia a pele,
corpo sua no corpo,
bituca de cigarro queima o mato
e serpente vira ouroboro:
cobra que morde o rabo.

Teu sangue frio, aqueça-o!


Engana a tua fome.
Coma a ti na busca de saciedade.
Sem teu suor para esfriar o teu corpo,
a boca beija a cauda e encontra teu refúgio.

Símbolo de eternidade,
Eterno retorno numa alquimia das mesmas partes.
Renove, recomece, recrie,
Autofecunda a história rastejante da língua bifurcada.

O sabor do rabo mata a fome.


O ciclo mítico.
O sonho de eternidade
e a própria vida.

Willas Santos
50 | (DI)

OROBORO

Círculo da alma
Do fim, o começo
Do começo, o fim
Borós voraz se alimenta
Do velho, cospe o novo

Transforma a alma
Renovando o espírito
Cobra que morde o rabo

Do velho ao novo
Devora a carne
Engole o sopro
Cospe a nova versão
Víbora herdeira.

Kauany Fernandes
ELIANE TESTA (ORG.) | 51

MEU FIM É MEU COMEÇO

Cobra que morde o rabo,


É meu culto solar.
Traga-me luz ou trevas
Seja vida ou morte
Energias yin e yang,
bem ou mal
Devora-se
Cuspa-se
Meu fim é meu começo
Evoca a roda da vida
(quase uma prisão)
Jamais escaparemos de seu giro,
do ciclo da vida
Como deus Apolo
Prova-me com suas profecias
Transforma-se o fim em meu início
Cobra entra no modo ouroboros
como o retorno de saturno.

Elizandra Sousa
Haicais
54 | (DI)

Brilho da escama
Sereia profetiza
Sol morre.

Jannyffer Sousa Almeida

Lua cheia surge


Orvalho sangrento
Garras felinas.

Jannyffer Sousa Almeida

A sobra da sombra
Assombra a sobrancelha
Escrita no olho fechado.

Cristiano Alves

Chuva de verão
Haicai pelo chão
Um arco-íris, no fim.

Cristiano Alves
ELIANE TESTA (ORG.) | 55

O azul do céu
Escreve forte:
Sol/u do norte.

Cristiano Alves

Nuvens densas
Pessoas correm
Tardes cansativas

Juliana Sousa Rocha

Pequena planta
Concreto trincado
Resistência

Juliana Sousa Rocha


56 | (DI)

HAICAIS A DUAS MÃOS

Muralha
Grilos cantam
Jardim secreto

Fim de tarde
Pássaros cantam
Despedida

Pequena flor
Dança ao vento
Carícia

Juliana Sousa Rocha & Cristiano Alves Barros

Manhã de inverno
Lótus abre
Transcende à sombra.

Jannyffer Sousa Almeida & Victor França


CONTOS BREVES
58 | (DI)

SILÊNCIO!
Chega cedo ao trabalho, todos os dias. Naquele dia, esperava
ser especial, aflita trabalha com pressa, sempre na expectativa que a
qualquer momento tocaria seu telefone, e uma bela voz falasse o que
ela queria ouvir.
Não tocou, nem mensagem recebeu. Foi para casa, embora
não quisesse; queria ler alguma coisa, não conseguiu, o celular parado
quieto sem nada a fazer, demonstrava somente as horas que se
passavam depressa. Cansou. Saiu rua abaixo, estação, ônibus bairro da
ribeira, medo, trêmula, com esperança, era agora! Lembrou de sua
chave reserva, abriu a porta, verificou tudo, nada achou, a não ser o
silêncio mórbido e crucial.
Escada acima chegou ao quarto, portas entreabertas, suspiros,
gritos baixos, beijos doces, arfando em delírios, aís prazerosos. Suor
quente; sai chorando em desespero, coração a mil, este punhal que
favor me faz, traspassa o corpo da arfante, e a garganta traidora. Noite
fria, na mente solidão. Bilhete - Se não és meu, de ninguém será teu
coração.
Davi Gomes
O ENCONTRO DA GAROTA DE LINCHTENSTEIN
Papelada pela mesa, bloquinhos de notas néon colados na tela
do monitor, um porta retrato barato com a foto do pai falecido
parado ao lado de um delicado arranjo de mosquitinhos. O ritual
matinal era o mesmo, chegava às 8:00, pontual, despia-se do blazer e
sentava-se para desapertar um nível do fecho do salto preto, os
cabelos cereja levemente bagunçado, rímel e batom sagrados, ligava o
monitor e, então, saudava à todos com um suave e simpático: Bom
dia!
Iniciava sua jornada sempre na companhia de um copo
abastecido de café, sentia-se impaciente ao ler os relatórios, pois,
aguardava uma importante ligação, fazendo tudo com muita
ansiedade, mantendo sempre sua visão fixa na tela do aparelho,
verificando de hora em hora se o celular havia tocado, vibrado ou
acendido. Então, levanta-se e senta-se novamente com o ar de
decepção estampado em seu rosto.
Victor França
ELIANE TESTA (ORG.) | 59

DO OUTRO LADO DA LINHA

No telefonema esperado, outro tipo de resposta: um


silêncio que sentencia tal ligação – o amor já está morto. Sem
mais.

Cristiano Alves

ZERO GRAU

Sua traição custou a perda dos filhos. Saiu de casa nervosa


e trabalhou inquieta. O telefone toca. É a chamada da esperança.
Vê as crianças e as abraçam. Despedida! Como cortes de frango
congelados junto aos frios do seu algoz traído fora encontrada.

Willas Santos

MORMAÇO

A moça aguarda uma ligação. Dia comum. Trabalho


exaustivo. Verifica a todo instante o celular. Não há novas
mensagens. Nem ligações. Querer não é poder, não hoje. Em
casa. Rotina: Sala Silenciosa, iluminação fraca, apartamento
bagunçado, janelas fechadas, poltronas de couro, frio, estomago
vazio, café amargo. A doçura acabou. Telefone mudo. Vazio.
Amanhã é reflexo do hoje. Igual. Finalmente. Telefone toca. E...
Os senhores leitores não saberão quem ligou. Ninguém saberá o
que foi dito naquele dialogo, pois só assim alimenta-se a
expectativa do mais.
Juliana Sousa Rocha
60 | (DI)

PROIBIDO

Era apenas mais um dia comum de trabalho, porém


aquela bela moça estava agindo de forma incomum, toda a
atenção voltava-se a ela que inquieta nem conseguia trabalhar,
pegava o celular esperançosa por uma ligação, mensagem, alguma
luz. Seus olhos brilhavam por qualquer sinal que ali surgia;
infelizmente, àquela luz não correspondia.
Mal sabia todos que a noite dela foi longa e inesperada, os
prazeres da carne dominaram o seu ser daquele mesmo lugar
comum onde ninguém, nem mesmo ela, imaginaria surgir uma
paixão dominadora um amor oculto e proibido.
Sentia culpa, suava frio por algo que não conseguia controlar ela
queria mais, por não poder. Seu pesar não compareceu aquele dia,
sua amiga de todos os dias se tornou amante. Paixão proibida e
inflamadora sem começo e amanhã.

Kauany Fernandes

O SILÊNCIO

A moça chega, começa a trabalhar, mas toda hora olha o


celular, está à espera de uma ligação, mensagens, qualquer tipo de
comunicação. Faz tudo com muita ansiedade, sem deixar o
celular quieto, toda hora verifica se há alguma mensagem, ela
cansa de esperar, se senta e com o ar de decepção tenta fazer uma
ligação sem êxito. Ninguém atende, volta ao trabalho e sua vida
segue normal, mas sempre ao celular à espera de uma ligação que
até o momento não veio.
Horas se passam, de repente às 17h 30 min o telefone
toca. Seu celular vibrava e tocava ao mesmo tempo, era um
número que ela desconhecia, um sentimento de medo se
apoderou dela. Logo, seu sangue esfriou e os arrepios
começaram, sua garganta ficou seca e por causa disso ela não
conseguia nem falar. Ela atendeu, mas existia um nó na garganta
que a impedia de falar, ela ficou ouvindo, tentava abrir a boca e
forçar as cordas vocais, mas foi em vão. A outra voz falou:
ELIANE TESTA (ORG.) | 61

- Mary, margathe você está aí? Tenho que lhe dá uma


notícia.
Mary continua como uma múmia, parada e imóvel,
somente seus olhos arregalados escorriam lágrimas. A voz
continua:
- Sua mãe não resistiu aos ferimentos e acabou falecendo
neste exato momento, lamento muito!
Mary entrou em desespero, começou a gritar no
escritório, suas mãos tremiam, ela estava incontrolável. Todos do
escritório ficaram preocupados, um trouxe água, outro fazia
massagem, mas quando todos se distraíram, Mary abriu a janela
do vigésimo segundo; e silêncio.
Ana Sena

Chegou em casa. Portas fechadas, o corpo ardendo como


fogo, o ódio a consumia por dentro. Olhos lacrimejados. Um
silêncio. De repente, um barulho. Abre-se a porta
cuidadosamente. Luzes se acendem, lágrimas rolam, sua face é
tomada por um sorriso que enfeita o rosto. O amor à espera
como frases de românticos:
- Eis tu em mim.
- Amo-te.
Hamilton Araújo

Vi o horóscopo dela para hoje e lá dizia que “momentos


tortuosos gerariam decepções de pessoas a quem tanto estima”.
Coitada! Já toda inquieta e nervosa à espera de um telefonema ou
mensagem que até agora não chegou, imagina se lesse o signo. O
chão treme, eu posso sentir da minha mesa e até as paredes
reagem. São as pernas dela que não param. O silêncio é
ensurdecedor e incomoda um coração apaixonado. Oba! Alguém
liga, ela sorri nervosa. Eu ouço algumas palavras:
- Tá, tô muito calma, não esperava que ligasse tão rápido!
- Hum!
- Ei, eu posso ir hoje?
62 | (DI)

- Pode. Mas, seja breve. Eu sei que eles precisam de você.


Aquela alma, que antes da ligação encontrava-se
angustiada, nervosa, quase no auge de vibrações de um “é o tchan,
segura o tchan” em volume máximo, agora se tranquiliza, sorri,
volta ao trabalho. Chega a hora de partir. Ela sai, eu também saio,
vamos juntos. Ela chega ao portão amarelo, eu me despeço, mas,
paro na esquina e observo. Seus filhos a veem e abraça-a, o ex-
marido fecha a cara, mas não se move. O anseio daquela mãe
acabara nos abraços carinhosos, parecia uma despedida o
encontro. Coitada! Seriam os últimos, depois desse dia os jornais
noticiariam:
- Jornalista, 32 anos, é encontrada morta na casa do ex-
marido, dentro do freezer. Junto ao corpo dois bilhetes que
diziam: “Mamãe, o papai disse que na Antártica faz muito frio,
não se esquece de levar um casaco, te amo” e “Mãe, te amo, volta
logo”.
Willas Santos

Mas de repente, como um súbito fumegante – o celular


vibra. Eis que uma mensagem surge com um número
desconhecido. Por curiosidade, a moça começou a ler:
- Preciso falar com você...
A partir daí que a apreensão começou a tomar conta de
cada pensamento vindo daquela mensagem. De fato, o que
poderia ser? Mas outra mensagem chega com tal espanto:
- Me liga, é algo importante!
O que seria? Perguntava-se a moça, sob uma dose de
introspecção e nervosismo diante dessa situação. Logo remete tal
mensagem “a ele”. Sim! Ele mesmo. A quem ela tanto esperava:
- Será que é ele então? Indagava a moça.
É nesse embate que um ato de coragem toma sua alma e
arrisca – saber e tentar. Eis que a moça retorna a mensagem
através de uma ligação para por fim àquele mistério.
Do outro lado da linha pairava um silêncio conflituoso. A
moça arrisca um alô e nada. Até que uma voz ecoa quase muda,
logo, a moça fica atenta.
ELIANE TESTA (ORG.) | 63

Diante da insistência, o telefone volta a vibrar – mas


agora com uma ligação:
- Será que agora? Ateve-se aos fios ao atender o celular.
Assim sendo, ecoa-se uma voz rouca – pausadamente e
com um simples alô...
Em êxtase, a moça emenda um pergunta em linha direta:
- É você Pedro?
A voz do outro da linha se esconde. Mas volta a voz grave
de forma lenta:
- Bem, sei que é complicado dizer...
A moça preocupada com o clima instaurado, logo
sentencia:
- Diga, diga logo!
Novamente, o silêncio retoma a ligação. A moça mais
nervosa começa a interrogar a voz desconhecida que num susto
reaparece.
- Não sou o Pedro, mas o conheço...
A moça busca um tipo de resposta, porém, em vão.
Mas diante das lágrimas da moça, a voz anônima retoma
com uma sentença:
- Na verdade, só queria avisar da missa de Sétimo Dia do
Pedro. Não sei se poderemos contar com a sua presença...
A voz da moça some. A voz informante tenta justificar os
detalhes do ocorrido. Mas do outro lado da linha nada mais há,
nenhuma resposta da moça ou outro tipo de sinal dela. E ali,
morreu também o telefonema.

Cristiano Alves
CRÔNICAS
UMA CENA URBANA

15 de junho de 2016. Quase uma da tarde. Sol quente.


Céu aberto, sem nuvens. A paisagem de todos os dias daquele
horário. Esquina com a Primeiro de Janeiro lotada de carros. No
restaurante: comida. No meu bolso: dinheiro. No corpo daquela
mulher: sujeira. E então: odor. Sentada junto à parede da
mercearia, ela não deve ter mais de 35, cabelo curto, olhos
escuros, magra, descuidada e com perfume da marginalização e
miséria. Eu que saio do meu conforto, em pleno horário de
almoço, descontente com a “comida seca” e pego uma grana para
um refresco. E aquela mulher, sem nada, sem banho, sem pão e
água. Tristeza bate, reflito, e o que eu faço? Nada. E o caos
retoma ao cotidiano.
Willas Santos

O DESCASCADOR DE LARANJAS

Parado numa rodoviária, observo a seguinte cena: um


vendedor ambulante com suas laranjas. Por mais que seja um ato
comum, algo me chamou a atenção: a máquina utilizada para
descascar laranja. Nada demais até aí, até um cliente se aproxima
curioso para saber como o homem utiliza a máquina. Sem muita
surpresa e com a devida calmaria, o homem vai descascando suas
laranjas. O cliente tenta puxar conversa, mas o vendedor de
laranjas se mantém muito concentrado no seu trabalho. Debaixo
de uma sombrinha e bem calado, ele vai fazendo movimentos
bem costumeiros. Pela sua idade, dá pra perceber que trabalha há
muito tempo com isso. O cliente insiste, pergunta várias coisas
sobre descascar laranja. Contudo, o senhor ignora e continua a
descascar suas laranjas. Parece que ele leva sua vida assim:
descascando laranjas num tom bem silencioso, sem pressa ou
interação com seus clientes.
Cristiano Alves
66 | (DI)

HAITI
Sopro natural, vindo de longe, chega de mansinho e começa
fazer bagunça, sopra vento, chuva, treme o chão. Estava tudo muito
bem, tranquilo, belas paisagens, campos e cidades, em ruínas!
Levantando do chão como quem renasce, era como a estrela cadente,
que, quando se vê, já sumiu. Vejo de longe os pastores a caminho do
Haiti, como quem vai a ver cristo, pastores vestido de verde, com
armas na mão. Seus presentes? Uma banana, pedaços de pão, sua luta
é pelas vidas, que ora partidas, pelo sopro do vento, que, em vão
momento, fez o castelo ir ao chão; o Herodes, o grande rei, manda
seus homens para socorrer. Sabe que terras como aquelas, mesmo não
sendo as de Vera Cruz, em se plantando tudo dá.
O morador lamenta, chora, grita, faz do sonho a realidade,
pois, em sonhar com um mundo novo, recomeça tudo outra vez; faz
desse povo guerreiros valentes; sabe aquelas histórias de sobrevivência
embaixo dos escombros, pois é não é sonho nem pesadelo, aquela
mãe descabelada, aquele pai a gemer de fúria, a criança, em chão
deitada, suspira, vendo a moça Caetana abraçar-lhe e apagar as luzes.
Tudo treva, dor cosome o lugar, era sonho, tinha vida, o sopro veio,
levou tudo; a sonoplastia natural do ambiente levou tudo que podia,
mas, se é dinheiro, eu pago; se alugar, vou dividir com você, e, água,
eu tenho a dar, mas o vento disse não é nada disso que quero. Quero
apenas devastar, como disse a amiga Caymmi: “batidas na porta da
frente é o vento, e eu sem argumento”. Lembrei-me, amigo, de Ana
Terra, toda vez que sopra o vento algo vai acontecer. Ah!, amigo
Veríssimo, se fosse o vento de Ana, talvez, fossem todos Haiti, mas
não é França nem é Mariana, é Haiti. Sabe o que quer dizer isto? Ei! É
aí ti, esse distante, tão nosso, de casa, não é branco, não fala Francês,
não é do Central Park, muito menos de Nova York; fica do outro lado
do pacífico, em uma terra de pele negra, sangue negro, vidas negras,
belezas negras; vista de longe, como animais, fome e se de
humanidade. Que humanidade? Que ser humano? Barack não foi ,
Temer não foi, e você também não foi ao facebook nem ao perfil e
disse #somostodoshaiti. Lembro-me do profeta judeu, raça de
víboras, são como os sepulcros caiados. Vento tempo, tempo vento, é
tudo descontentamento.
Davi Gomes
OUTROS ESCRITOS
68 | (DI)

EXERCÍCIO POÉTICO: ATEMPORAL

De olhos fechados
percebem-se as dimensões do mundo
O mundo em que vivo
e o mundo que vive em mim
Na linha de divisa
entre
carne
&
alma
liberdade
In
prisão

Juliana Sousa Rocha


ELIANE TESTA (ORG.) | 69

EXERCÍCIO POÉTICO

CA N S A ÇO
CAN AÇO
A N A
A A
A

Cristiano Alves
70 | (DI)

CONTÁGIO

Cristiano Alves
Sob orientação da professora
Dra. Eliane Testa COLAGENS
72 | (DI)

Cristiano Alves
ELIANE TESTA (ORG.) | 73

Elizandra Sousa
74 | (DI)

Elizandra Sousa
ELIANE TESTA (ORG.) | 75

Elizandra Sousa
76 | (DI)

Jennyffer Almeida
ELIANE TESTA (ORG.) | 77

Jennyffer Almeida
78 | (DI)

Juliana Sousa Rocha


ELIANE TESTA (ORG.) | 79

Juliana Sousa Rocha


80 | (DI)

Juliana Sousa Rocha


ELIANE TESTA (ORG.) | 81

Juliana Sousa Rocha


POSFÁCIO
Da linguagem poética em cena: A tessitura de (DI)versos
João de Deus Leite 3
Émile Benveniste, um dos linguistas mais importantes da
Linguística moderna, produziu relevantes teorizações sobre a
linguagem poética. A partir da poética de Baudelaire, tal teórico
salientou que essa linguagem possui algumas especificidades em
relação à linguagem ordinária – aquela que cumpre a função de
comunicação no cotidiano. Benveniste é mais conhecido, no
cenário intelectual, por seus trabalhos sobre a linguagem
ordinária.
Em seu percurso de elaboração, a linguagem ordinária foi
pensada a partir do viés enunciativo da língua. É que, na esteira
de Benveniste, a língua, por ser constituída de formas linguísticas,
permite ao homem colocar-se, no mundo, de diferentes modos,
dados o tempo e o espaço da enunciação. Esse colocar-se de
diferentes modos pressupõe sempre a referência ao outro. O
referir-se ao outro, como condição da linguagem, é o que
Benveniste (2005[1939]) concebe de intersubjetividade. Assim, a
intersubjetividade está na condição do homem. Não
encontramos, no mundo, um homem sozinho e soberano,
inventando a linguagem. Ao contrário, como destacou o próprio
Benveniste (2005[1939], p. 285), é “um homem falando com
outro homem” que há no mundo.
Para além da intersubjetividade, que é inerente ao homem,
Benveniste postula a noção de subjetividade. Esta se refere, por
um lado, à capacidade de o locutor apropriar-se das formas da
língua para se propor como sujeito. É preciso ressaltar que, da
condição de homem para a condição de sujeito, há uma passagem
a ser feita. Essa passagem se estabelece na e pela linguagem,
passando pela condição de locutor. Já se trata, então, de uma
posição na língua, acionada e garantida pelo aspecto linguístico da
pessoa. Por outro lado, a noção de subjetividade pode ser

3
Doutor e Mestre em Estudos Linguísticos, é docente do curso de Letras e do PPGL
da UFT. Atualmente é membro do grupo de Pesquisa e Estudos em Linguagem e
Subjetividade (GELS) e do grupo de Estudo em Linguagem e Psicanálise (GELP).
84 | (DI)

entendida como vinculada ao próprio ato de discurso, pensando


na dimensão da enunciação, de modo mais amplo. Nessa medida,
a subjetividade não estaria ligada somente às marcas linguísticas
que marcam a passagem do locutor à condição de sujeito. A
subjetividade se marca no próprio tempo da instância de discurso.
No cotidiano, por meio do funcionamento da linguagem
ordinária, a enunciação pressupõe um jogo entre
intersubjetividade e subjetividade, de modo a construir uma
referência para a enunciação. A referência, ao contrário de
algumas teorias referencialistas que postulam um referente
externo à linguagem, o qual é aprioristicamente dado, “é parte
integrante da enunciação”, de acordo com Benveniste
(2005[1970], p. 84). No funcionamento da linguagem ordinária, as
unidades da língua, que são os signos linguísticos, produzem uma
referência interna à enunciação, construindo uma mensagem. Os
signos linguísticos, por designarem “ideias” psíquicas,
representam o mundo e/ou transmitem alguma mensagem ao
locutor.
A linguagem poética funciona diferentemente da
linguagem ordinária. É que aquela tem por função evocar uma
emoção, no leitor, conforme podemos perceber em uma das
notas de Benveniste sobre a poética de Baudelaure; trata-se da
nota 12, fº 4/fº 36. Essas notas foram organizadas no livro
“Bauleraire” por Chloé Laplantine em 2011. Se a função é evocar
emoção, um “pathéme”, o signo é alçado à dimensão de ícone. O
signo cumpre a função de imagem, pondo aquele que lê na
condição de co-construtor da experiência de linguagem que a
poesia evoca. A mensagem nunca é a priori, pressupõe a
construção de uma emoção. Na linguagem ordinária, o signo
cumpre a sua função de unidade semiótica, isto é, aquela que
significa por seu valor sistêmico em uma língua.
Se, na linguagem ordinária, o movimento de correferir-se
é peça fundamental, até para que a relação discursiva entre
interlocutores seja acentuada, como ressaltou Beveniste
(2005[1970]), na linguagem poética, estamos no campo da
evocação. Trata-se de uma evocação que é para ser vivida, e não
para ser descrita. Nesse sentido, “o poeta transmite a experiência,
ELIANE TESTA (ORG.) | 85

ele não descreve: dá a emoção, não a ideia da emoção4”


(BENVENISTE apud LAPLANTINE, 2011, p. 136).
Com base nessas teorizações de Benveniste, deparar-se
com a obra (DI)versos, organizada pela Professora Eliane Testa,
coloca-nos no campo da evocação. É que as palavras-imagens,
para usarmos os termos de Laplantine (2008), que encontramos
nesta obra não buscam um movimento de correferir-se com os
escritores, mas, sim, de co-construir a emoção. Desse modo, na
linguagem poética, o ato criador escapa ao artista de modo mais
acentuado. Sendo assim, podemos dizer que a arte e a criação
literária são únicas e singularmente constituídas na relação com o
outro. É do (des)encontro com o outro que alguma manifestação
pode ser edificada. Cada artista que participa desta coletânea de
escritos com suas obras dá o testemunho do caráter
intersubjetivo da linguagem que os impelem a escrever.
Neste ponto, é possível nos perguntar: de onde vem essa
criação literária? No caso de (DI)versos, considerando as
condições de produção dos escritos, percebemos que a escrita
colaborativa entre os artistas pressupôs um laço. Não se tratou de
uma demanda (im)posta a eles. Ao contrário, o princípio que
sustentou o grupo foi o tempo da escrita, que é diferente do
tempo crônico. A experiência humana na linguagem passa,
obrigatoriamente, pelo tempo do corpo, pelo tempo do
(des)encontro com o outro em que a escrita é sustentada por um
desejo.
Os (DI)versos fundam um outro modo de se fazer arte
com a palavra-imagem. Os artistas, na condição de grupo e se
sustentando como grupo, são enlaçados pela sincronia e pela
diacronia da escrita. Há laços sincrônicos, porque eles estão
sintonizados com questões que atravessam o grupo, como, por
exemplo, as palavras-imagens desencadeadoras do processo de
escritura. Há laços diacrônicos, porque o tempo de escrita é de
cada um. Não são tempos coincidentes. Cada um lidou de modo
diferente com a instância da criação. A escrita em ato, suportada

4  Le poète transmet l’expèrience, il ne la décrit pas:/ il donne l’émotion, non l’idée de


l’émotion.
86 | (DI)

por um corpo, é referida ao próprio artista; ele é sujeito da


linguagem que, com o desejo, faz o corpo (não) produzir. A
escrita é referida, também, ao público; há tempos diferentes e
percursos de linguagem distintos. Não são jamais coincidentes.
Para finalizar, é preciso registrarmos a relevância desta
obra no seio da academia, pois ela dá mostras de como produzir
um artista. A professora Eliane Testa, em conjunto com os
acadêmicos participantes do grupo, viram-se capturados pela
tessitura da escrita colaborativa. Eles, em reuniões frequentes,
fizeram uma travessia no desconhecido da escrita, buscando
(des)cobrir os meandros da criação literária. O savoir-faire da
criação literária é contingente, contudo é certo que, do
(des)encontro com o outro, é que nasce a (im)possibilidade de
edificação de uma obra. (DI)versos sabe dá o testemunho do
(des)encontro com o outro.

Referências

BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: _______.


Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes,
2006 [1939].

BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In:


_______. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP:
Pontes, 2006 [1970].

BENVENISTE, Émile. Baudelaire. Preséntation et transcription de


Chloé Laplantine. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.

LAPLANTINE, C. Émile Benveniste: poétique de la théorie.


Publications e transcription des manuscrits inédits d’une
poétique de Baudelaire. Tese (Doutorado). Ecole Doctorale
Pratiques et théories du sens. Université Paris 8. Saint-Denis.
2008.

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