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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

PROMOTORIA DE JUSTIÇA

Autos n. º 0056 13 004108-2


Juízo de Família
Natureza: Negatória de Paternidade c/c Investigação de Paternidade
Parecer pelo Ministério Público

É no futuro de uma criança que repousa uma nação. Ninguém constrói uma
criança. É no processo de existir que ela soma descobertas, experiências e
emoções. Tijolo a tijolo, faz a sua vida. Existimos apenas para ajudar nesse
processo. Pais, parentes, amigos, Estado, sociedade, professores e
autoridades.

Honrado Juiz,

Cuida-se de ação negatória de paternidade c/c ação de investigação de


paternidade ajuizada por __________________, menor impúbere, representado por
__________________ (seu pai), em face de __________________ (seu pai),
__________________ (suposto pai biológico) e __________________ (sua mãe).

A parte requerente, o menor, representado por seu pai, alega que seu pai
registral manteve relacionamento amoroso com a mãe do mesmo, sendo que esta
engravidou e o fez acreditar que seria o pai do menor, razão pela qual o registrou como
filho.

Com o passar do tempo o pai registral teve dúvidas acerca de sua paternidade
com relação ao requerente, efetuando um exame de DNA com resultado negativo.

Deste modo, procurando pelo pai biológico do menor, descobriu que o Sr.
__________________ – requerido também nestes autos quanto à investigação de
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paternidade – também manteve um relacionamento sexual com a genitora do menor na
época em que a mesma engravidou.

Destaca, que desde 2009 não sabe do paradeiro da genitora do menor, sendo que
a mesma deixou o filho, ora requerente, em sua responsabilidade. Alega que não
mantém nenhum contato com a mãe do menor, tampouco com seus familiares.

Requereu seja declarado que o segundo requerido é pai biológico do requerente


(menor representado) procedendo à devida averbação em sua certidão de nascimento,
bem como a retirada do nome de seu pai registral e de seus avós paternos.

Com a inicial vieram os documentos de fls. 08/25.

Não houve a citação dos requeridos.

Vieram os autos ao Ministério Público, tendo em vista a nomeação deste Órgão


como curador especial do incapaz ante a colisão de interesses entre o autor e o réu (pai e
filho).

É, NO QUE INTERESSA, O RELATÓRIO.

Inicialmente, necessário se faz enfrentar a aceitação ou não da nomeação do


Órgão Ministerial no presente feito como curador do incapaz, conforme despacho de f.
25-v que ora se transcreve: “Considerando a colisão de interesses entre o autor e o réu,
seu representado, nomeio o MP como curador especial do incapaz”.

Historicamente, o Ministério Público era o responsável pela curadoria dos


incapazes, réus presos e citados por edital. Esta atribuição foi ultrapassada com o
advento da Lei Complementar que expressamente transmitiu à Defensoria Pública a
função institucional de curador especial.
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O art. 4º da Lei Complementar nº 80/94, com a redação que lhe deu a Lei
Complementar alteradora nº 132/09 estabelece:

Art. 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, entre outras:


(...)
XVI – exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei.

Observa-se que a Lei Orgânica da Defensoria Pública entrou em vigor


posteriormente à Constituição Federal de 1988, deste modo esta Instituição ficou com o
encargo de exercer a curadoria especial, nas comarcas onde não houver representante
judicial de incapazes ou de ausentes, conforme estabelece o art. 9º, do Código de
Processo Civil.

Destaca-se que havendo interesse de menor, como ocorre no presente caso, o


Órgão Ministerial deve atuar como custos legis, de acordo com o disposto no art. 82 do
CPC.

Importante é a diferenciação entre a atuação do Ministério Público como parte e


como fiscal da lei. A respeito, Piero Calamandrei disserta com excelência:

Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o do


Ministério Público. Êste, como sustentáculo da acusação, devia ser tão
parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão
imparcial como um juiz. Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal
é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o
sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento, a perder, por amor da
sinceridade, a generosa combatividade do defensor ou, por amor da
polêmica, a objetividade sem paixão do Magistrado.1

Não há compatibilidade entre a função de fiscal da lei e de representante do


menor, uma vez que o Ministério Público deve ser imparcial e atuar no interesse da

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Calamandrei, Piero. “Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados”.
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sociedade, e não nos interesses exclusivos de um indivíduo, sendo esta, atribuição da
Defensoria Pública e dos advogados.

Neste sentido, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

“O parágrafo único do art. 9º do Código de Processo Civil não impõe ao


Ministério Público o dever de atuar como representante judicial dos
incapazes. Sua atuação, em processos em que figurarem como parte pessoas
desprovidas de capacidade civil, decorre do art. 82, II da mesma norma. Sua
participação nessa hipótese, todavia, dá-se não como curador especial, mas
2
como fiscal da lei".

Diante dos motivos ora expostos, rejeito o encargo de curador especial do


menor, ora requerente.

Portanto, o Ministério Público se apressa em atuar no presente feito na qualidade


de:

CUSTOS LEGIS.

Trata-se de ação negatória de paternidade c/c com ação de investigação de


paternidade proposta pelo menor impúbere, representado pelo seu pai, com o objetivo
de ser retirado o nome de seu pai registral, inserindo o nome de seu pai supostamente
biológico.

É necessário um esforço intelectual para compreender o pedido, ao nosso sentir,


singular e excepcional. O pai representando o filho menor (nove anos) ingressou em
juízo com ação negatória de paternidade contra si cumulada com investigação de
paternidade em desfavor de terceiro.

2
STJ – Resp 67278 / SP - Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO - DJ 17/12/1999 p. 350 – (trecho do
inteiro teor do voto).
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Verifica-se que foi realizado exame de DNA particular, o qual concluiu o pai
registral não ser o pai biológico do menor.

Entretanto, destaca-se que o menor conta hoje com 9 anos de idade, sendo que
em meados de 2009 a genitora do mesmo o entregou ao pai registral e não mais deu
notícias de seu paradeiro. Ressalta-se ainda que o menor e o seu pai registral, moram na
mesma residência conforme se infere da inicial, formando uma entidade familiar.

Dispõe o art. 1634, do Código Civil:

Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I- dirigir-lhes a criação e educação;


II- tê-los em sua companhia e guarda;
III- conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para se casarem;
IV- nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro
dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder
familiar;
V- representá-los, até aos 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los,
após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o
consentimento;
VI- reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII- exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de
sua idade e condição.

Observa-se que todos os poderes-deveres inerentes ao poder familiar visam a


proteção do menor, o qual deve ser resguardado, tendo em vista sua incapacidade para
praticar os atos da vida civil. Está patente que o menor estuda e rende obediência e
respeito ao pai.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery em sua obra “Código Civil
Comentado” explicam:
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Os pais têm o poder familiar, que significa, a um só tempo, poder-dever e
direito. A expressão “pátrio poder” foi substituída por poder familiar em
razão da igualdade substancial entre os pais na educação dos filhos e na
direção da sociedade conjugal (CF 226, §5º).

Continuam asseverando:

É dever dos pais, em igualdade de condições entre pai e mãe, assistir, criar e
educar os filhos menores (CF 229). O poder familiar é o conjunto de
direitos e deveres que o Estado comete aos pais como munus público, de
velar pela pessoa e bens de seus filhos menores. Os pais têm de zelar pela
formação moral, material e intelectual dos filhos, criando-os em ambiente
sadio. 3

Os menores de dezesseis anos não têm capacidade para exercer os atos da vida
civil, pois se presume que não têm capacidade de entender os fatos, sendo
absolutamente incapazes, conforme determina o art. 3º, I, do Código Civil e o art. 142,
do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Deste modo, seus representantes devem proteger integralmente seus interesses,


agindo em nome dos menores para tanto, sendo esta uma das atribuições do poder
familiar, designada qualitativamente de representação protetiva.

Em uma breve análise histórica acerca da convivência familiar, podemos


perceber que as crianças nem sempre eram alvo de proteção como nos dias atuais, ao
revés, na antiguidade, principalmente na Europa, podiam ser mortas ou abandonadas
sem qualquer penalidade ou indignação social.

Com o advento do Cristianismo, a prática hedionda foi combatida, o que gerou


um aumento da população, entretanto, até o século XIII, muitas crianças eram mortas e
abandonadas ainda que tal ato não fosse legal. Permitia-se, inclusive, fossem esmagadas
as cabeças dos bebês na hora do parto.

3
Nery Junior, Nelson. Nery, Rosa Maria de Andrade. “Código Civil Comentado”. 8ª edição.
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Posteriormente, apenas era permitida a denominada “exposição”, que consistia


em abandonar recém-nascidos nas portas das igrejas. Tal previsão constava do Código
Brasileiro de Menores de 1927, que teve vigência até 1990, quando entrou em vigor a
Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Entretanto, com a CRFB/88
foram revogados tacitamente diversos dispositivos do referido Código Brasileiro de
Menores de 1927, inclusive a permissão da denominada “exposição”. 4

O principio da proteção integral à criança introduziu-se no direito brasileiro com


o art. 227, caput, da Constituição Federal:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

O exercício do poder familiar deve ser feito em observância total ao princípio da


proteção integral ao menor, ratificado pelo art. 1º do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/90), uma vez que os pais são os responsáveis pela criação,
educação e representação dos filhos, devendo sempre resguardar o interesse dos
mesmos.

A respeito do referido princípio, Tarcísio José Martins Costa ensina:

“A proteção integral se baseia, fundamentalmente, no princípio do melhor


interesse da criança, critério consagrado no direito comparado e revelado
nas expressões the best interest of the child do direito norte-americano e no
kindeswohl do direito germânico. Trata-se da chamada regra de ouro do
Direito do Menor, atual Direito da Criança e do Adolescente, acolhida na
jurisprudência de diferentes países. Pode-se proclamar que os interesses da
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ARANTES, Geraldo Claret de. Manual do Operador Sócio-Jurídico, Estatuto da Criança e do
Adolescente Lei 8069/90.
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criança e do adolescente, considerados como sujeitos de direitos são
superiores porque a família, a sociedade e o Estado, todos estão compelidos
a protegê-los, tendo em conta a sua peculiar condição de pessoas em
formação e desenvolvimento. (...) Crianças e adolescentes são sujeitos não
só de direitos fundamentais, universalmente reconhecidos a toda pessoa
humana, mas, principalmente, de direitos especiais derivados de sua
peculiar condição de vulnerabilidade, dependência e contínuo
desenvolvimento revelados pela ciência moderna e contemporânea.” 5

Outra lição destaca:

O princípio da proteção integral de crianças e adolescentes acabou por


emprestar nova configuração ao poder familiar, tanto que o inadimplemento
dos deveres a ele inerentes configura infração susceptível à pena de multa
6
(ECA 249).

A Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – veio regulamentar os


art’s 226 e 227 da Constituição Federal, colocando o menor em um patamar de proteção
máxima e superior aos demais membros da sociedade, haja vista que são seres em
desenvolvimento que precisam do apoio da família e do Estado para um crescimento
físico, mental, espiritual e social, preservando-se sua liberdade e dignidade.

A criança, além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, hoje goza
de todos os meios de proteções previstos ou não em lei, conforme assevera o art. 3º, do
Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em comentários ao indigitado dispositivo Valter Kenji Ishida esclarece:

Tais direitos não destacáveis são inalienáveis, intransmissíveis,


imprescritíveis e irrenunciáveis. Tais características são previstas no Código
Civil, que em seu art. 11 menciona que “os direitos da personalidade são

5
Costa, Tarcísio José Martins. “Estatuto da Criança e do adolescente comentado” – 2004.

6
Dias, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias” – 4ª Edição.
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intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer
limitação voluntária”.
Assim, além dos direitos fundamentais da pessoa humana, gozam a criança
e o adolescente do direito subjetivo de desenvolvimento físico, mental,
moral, espiritual e social, preservando-se sua liberdade e dignidade. 7

Paolo Vercelone também comenta o art. 3º, do ECA:

O termo proteção pressupõe um ser humano protegido e um ou mais seres


humanos que o protegem, isto é, basicamente, um ser humano que tem
necessidade de outro ser humano. Obviamente, este segundo ser humano
deve ser mais forte do que o primeiro, pois deve ter capacidade para
protegê-lo. Como corolário lógico, a proteção pressupõe uma desigualdade
(um é mais forte que o outro) e uma redução real da liberdade do ser
humano protegido: ele deve ater-se às instruções que o protetor lhe dá e é
defendido contra terceiros (outros adultos e autoridade pública) pelo
protetor.
(...)
Certamente, deve-se levar em conta o fato de que todas as decisões mais
importantes são a cargo dos adultos. Mas reconhece-se formalmente que
existe uma categoria de cidadãos – as crianças – que têm seus próprios
interesses específicos, os quais nem sempre coincidem – e às vezes
contrastam – com os dos adultos. Esta categoria não pode proteger-se por si
mesma, não tem força contratual dentro da sociedade, não vota e não
protesta. Por conseguinte, os adultos responsáveis – não só os pais, mas
também, e sobretudo, aqueles que tomam decisões coletivas que envolvem
milhões de crianças (administradores, políticos e aqueles que detêm o poder
econômico) – são investidos da responsabilidade de exercitar os direitos
fundamentais das crianças em seu lugar.
O comportamento destes adultos deverá, portanto, ser avaliado, política mas
também juridicamente, por sua conformidade aos verdadeiros interesses da
criança, por sua adequação à função de representar aquela categoria especial
de cidadãos. 8

7
Ishida, Valter Kenji. “Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência”. 11ª Edição.

8
Vercelone, Paolo – Juiz de Direito na Itália – “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado –
Comentários Jurídicos e Sociais – 8ª edição – Coordenador: Munir Cury.”
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In casu, o menor, ora requerente, conta com nove anos. Como sua genitora
encontra-se em local incerto e não sabido, o exercício do poder familiar, enquanto tal
situação permanecer, é exclusivo de seu pai registral, seu representante legal.

Observa-se que o representante legal do menor ajuizou ação negatória de


paternidade em nome do filho, mas para defender interesse próprio, o que não pode ser
tolerado tendo em vista a particularidade do caso e o princípio da proteção integral à
criança.

Agindo desta forma, o pai registral do requerente adotou conduta com resquícios
da antiguidade, com o intuito de abandonar afetivamente um menor que reside em sua
companhia e por si registrado, em razão de frustação pessoal ao descobrir que seu
relacionamento com a genitora do mesmo não era ‘exclusivo’. Um inocente está sendo
sacrificado por mero capricho e sabe-se que o mal provocado a uma criança é
irreversível, pois nunca existirá qualquer recompensa para os males sofridos na infância.

Sobreleva registrar que o menor impúbere, repetindo, uma criança de apenas


nove anos de idade, foi submetido a um constrangedor exame de DNA extrajudicial
imposto pelo seu representante. Quanta mágoa, dor moral que domina o representante
do menor! É preciso que o mesmo entenda, como a imensa maioria, que pai é aquele
que cria. Necessário é que se abra um espaço no lado amoroso de seu coração e abrigue
seu filho fazendo com que, pouco a pouco, o ressentimento caia no país do
esquecimento. O perdão é da essência do amor, é um ato de nobreza, coragem que só
engrandece o ser humano, ao contrário de muitos que pensam tratar-se de gesto
humilhante.

Notável é perceber que há um forte vínculo afetivo entre o menor e o pai


registral, sendo que o período de convivência entre ambos marcará indelevelmente a
existência desta criança ao longo da vida no sítio emocional, físico e espiritual.
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Destaca-se que o exame genético apresentado é minimizado diante da posse de
estado de filho no meio social.

Sobre a questão trazemos o ensinamento de Paulo Luiz Netto Lobo citado por
Silvio de Salvo Venosa in Direito Civil, v. VI, Atlas, 6ª edição, p. 239:

A verdade biológica nem sempre é a verdade real da filiação. O direito deu


um salto à frente do dado da natureza, construindo a filiação jurídica com
outros elementos. A verdade real da filiação surge na dimensão cultural,
social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído.
Como vimos, tanto o estado de filiação ope legis quanto a posse de estado de
filiação podem ter origem biológica ou não. (in Pereira, 2004:521)

Na mesma esteira seguem orientações de nossos Tribunais:

Ementa: Ação Negatória de Paternidade. Adoção "a brasileira". Paternidade


sócio-afetiva. O registro de nascimento realizado com o animo nobre de
reconhecer a paternidade sócio-afetiva não merece ser anulado, nem deixado
de se reconhecer o direito do filho assim registrado. Negaram provimento.
(7fls). (apelação cível nº 70003587250, oitava câmara cível, tribunal de
justiça do rs, relator: rui portanova, julgado em 21/03/2002).

Ementa: paternidade. Reconhecimento. Quem, sabendo não ser o pai


biológico, registra como seu filho de companheira durante a vigência de
união estável estabelece uma filiação sócio-afetiva que produz os mesmos
efeitos que a adoção, ato irrevogável. Ação negatória de paternidade e ação
anulatória de registro de nascimento. O pai registral não pode interpor ação
negatória de paternidade e não tem legitimidade para buscar a anulação do
registro de nascimento, pois inexiste vicio material ou formal a ensejar sua
desconstituição. Embargos rejeitados, por maioria. (Embargos Infringentes nº
599277365, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Maria Berenice Dias, julgado em 10/09/1999).

Frise-se que o direito de ação, em sentido constitucional, é o direito não sujeito a


condições de invocar a tutela jurisdicional do Estado (art. 5º, XXXV, CF).
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Este direito, in casu, foi exercitado pelo representante do menor. O direito de


ação abstrato tem sido abusivamente utilizado no Estado Democrático de Direito, a
exemplo do senador Ernie Chambers, do estado de Nebraska que ajuizou um processo
contra Deus em setembro de 2007, acusando-o de todos os desastres naturais e sociais
(furacões, tornados, doenças, fome, desigualdades sociais, dentre outros). O Tribunal
Americano arquivou o processo pela impossibilidade jurídica de notificar Deus. 9

Já em sentido estritamente processual, o direito de ação pode ser definido como


direito subjetivo público de pleitear perante o Estado a satisfação de um interesse
objetivamente tutelado pela ordem jurídica. É um direito a uma sentença de mérito.

O menor, como autor da ação, não tem interesse em desconstituir a paternidade


de seu pai registral, o que equivaleria para ele a destruição dos claros vínculos afetivos,
familiares e comunitários em que está integrado. Assinalando que o menor não tem
contato com sua mãe e com os familiares desta.

O art. 267, VI, do CPC aduz:

Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:


VI- quando não ocorrer qualquer das condições da ação, como a
possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;

Trata-se de um questionamento jurídico sui generis, intrincado, onde se vê uma


verdadeira balbúrdia, confusão entre autor e réu. Lembro-me da música “One”, de Bono
Vox, da banda U2: “Nós somos um, mas não somos os mesmos” (We’re one, but we’re
not the same). Digo eu, uma alma habitando dois corpos. Aplica-se aqui, nesse caso
especialíssimo, o interesse de agir como a única condição da ação rigorosamente

9
CASTRO, José Maria Ferreira de. Deus e Obama – artigo jurídico no site
www.barbacenaonline.com.br, acesso em 23/05/2013.
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defendida por alguns doutrinadores, considerando a legitimidade ad causam quanto à
possibilidade jurídica do pedido, nuances/aspectos do exame do interesse de agir. 10

No presente caso, verifica-se a falta de uma das condições da ação, qual seja, o
interesse processual, que é composto pelo binômio utilidade/necessidade do provimento
jurisdicional.

A respeito, ensinam as doutrinas:

A necessidade da tutela jurisdicional, que conota o interesse, deflui da


exposição fática consubstanciada na causa de pedir remota; 11 a utilidade
do provimento jurisdicional também deve ser examinada à luz da situação
12
substanciada pelo autor da demanda.

As condições da ação, vale dizer, as condições para que seja proferida

sentença sobre a questão de fundo (mérito), devem vir preenchidas


quando da propositura da ação e devem subsistir até o momento da prolação
da sentença. Presentes quando da propositura mas, eventualmente ausentes
no momento da prolação da sentença, é vedado ao juiz pronunciar-se sobre
o mérito, já que o autor não tem mais direito de ver a lide decidida.13

“O interesse de agir é instrumental e secundário, surge da necessidade de


obter através do processo a proteção ao interesse substancial. “(...)”
Localiza-se o interesse processual não apenas na utilidade, mas
especificamente na necessidade do processo como remédio apto à aplicação

10
DIDIER, Fredie Jr., Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de
Conhecimento, 12ª Edição.

11
TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no direito processual civil brasileiro, cit., p. 173.

12
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 2 Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v.
1, p. 155.
13
NELSON NERY JÚNIOR - RT 42/201
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do direito objetivo no caso concreto, pois a tutela jurisdicional não é jamais
outorgada sem uma necessidade.14

A verificação do interesse processual é tão importante que a sua falta leva ao


indeferimento da inicial, conforme determina o art. 295, III, do CPC:

A petição inicial será indeferida:


(...)
III – quando o autor carecer de interesse processual;

Cândido Dinamarco explica:

Sem antever no provimento pretendido a capacidade de oferecer essa


espécie de vantagem a quem o postula, nega-se a ordem jurídica a emiti-lo
e, mais que isso, nega-se a desenvolver aquelas atividades ordinariamente
predispostas à sua emissão (processo, procedimento, atividade

jurisdicional).15

O que se vê claramente é uma inversão de valores ético-constitucional. No caso


vertente, o melhor e superior interesse da criança contrastam flagrantemente com o do
pai, ausente, portanto a representação protetiva, conforme se extrai do art. 5º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, norma de sobredireito, artigos 3º e 4º,
caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente e artigos 226, caput e 227, caput da
Constituição Federal.

Verifica-se que o representante legal (pai registral do menor), é o único


interessado na desconstituição da paternidade, haja vista o exame de DNA de fls. 23/25,
por ele provocado. Entretanto, na qualidade de representante do menor, o pai registral
deve defender os interesses do infante, por ser uma das características do poder familiar

14
Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, vol I, pág.59.

15
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 7 ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2000, p. 402.
15

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e não os seus próprios interesses subalternos e que está a merecer repúdio de todo o
ordenamento jurídico nacional e internacional.

Nesta situação fático-social, em que a genitora do menor encontra-se em local


incerto e não sabido e o pai registral é o único representante do menor, é de bom alvitre
que se aguarde a maioridade do requerente, quando não mais precisará de proteção
integral da família, da sociedade e do Estado.

O requerente, hoje com 09 anos de idade, poderá nos quatro anos que seguir a
sua maioridade, impugnar o reconhecimento conforme inteligência do art. 1614, do
Código Civil, in verbis:

Art. 1614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu
consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos 4 (quatro)

anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.

O reconhecimento do estado de filiação é matéria de ordem pública


indissoluvelmente ligada à identidade física e moral da pessoa. A representação
protetiva é uma obrigação decorrente do poder familiar que deve ser cumprida pelos
pais e amplamente fiscalizada pelo Estado, para evitar a consumação de atitudes frias e
irracionais dos mesmos que não respeitam o princípio da proteção integral à criança.

O caso vertente, como já dito, é de excepcional singularidade a não mais poder.


Em justa homenagem ao principio da razoabilidade, que deve presidir todas as relações
inclusive e, principalmente, a jurídica, está a exigir uma decisão prioritária, rápida e
segura para proteger os direitos fundamentais da criança, evitando delongas
desnecessárias e fatalmente constrangedoras de consequências imprevisíveis. Hoje a
criança é um estorvo para o seu pai, do qual quer se livrar deixando-o ao desamparo.
Amanhã, poderá ser a grande solução. São as ironias da vida.
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Está evidenciada a ausência de interesse do representante do menor de residir em
juízo. Ausente, portanto, a utilidade e necessidade de dar curso ao processo com
sentença de mérito. Sua pretensão é intolerável e encontra resistência intransponível nos
mais elementares princípios morais e morais legalizados.

EM FACE DE TODO O EXPOSTO, com apoio na


Constituição Federal, leis ordinárias, na sociologia, na melhor jurisprudência e
recomendação doutrinária, visando, sobretudo, precatar o altaneiro interesse do menor,
o Órgão Ministerial opina pela extinção do processo sem resolução do mérito, com
fulcro no art. 295, III, do CPC e no art. 267, VI, do CPC, tendo em vista a falta de
interesse processual de agir, por ser medida de direito e indefectível
JUSTIÇA!

10 de junho de 2013.

Promotor de Justiça

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