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Infância, educação e neoliberalismo

Ghiraldelli Júnior, P. (1996). Pedagogia e infância em tempos neoliberais. Em: Ghiraldelli Júnior, P.

(Org.), Infância, educação e neoliberalismo. São Paulo: Cortez.

O autor procura fazer uma breve análise da evolução das variadas

perspectivas e ideologias acerca da pedagogia infantil a partir do início dos

tempos modernos[1], refletindo principalmente sobre o contexto neoliberal

contemporâneo.

O texto foi dividido em três partes temáticas para possibilitar uma melhor

compreensão: a época do humanismo liberal clássico, a época das críticas ao

liberalismo e do surgimento dos programas que lhe fizeram oposição, e a época

atual.

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O estudo desse período, que se situa aproximadamente entre o século XVI

e o XVIII, se baseia essencialmente nas idéias de pensadores como Rousseau e

Montaigne, entendidos pelo pesquisador como importantes co-autores das noções

de infância e da pedagogia moderna.

Embora a compreensão da criança como indivíduo, ligada ao próprio

nascimento da noção de infância, já estivesse se delineando durante o século XVI,

é interessante perceber que esse ideário ainda não havia permeado os lares e

pensamentos familiares. Os pais e parentes insistiam em tratar os pequenos

como miniaturas de adultos tal qual na Idade Média. Entretanto, Montaigne afirma
que agora as crianças também eram tratadas como brinquedos[2], sendo

paparicadas e mimadas ao extremo para diversão e deleite dos adultos: “Vocês

(os pais) não são homens modernos na medida que estão presos à ludicidade e

não à razão, tratando as crianças para obter prazer lúdico, não cuidando dos

pequenos por meio de uma disciplina que vise o bem deles para o futuro”.

(interpretação do autor sobre o pensamento de Montaigne, p.15).

Enquanto Montaigne se posiciona como verdadeiro opositor à paparicação,

Rousseau vai enfocar a própria concepção de infância setecentista (século XVIII).

Segundo ele, esse seria um período precioso, no qual ainda não fomos

corrompidos pela sociedade e seus vícios, e que deveria, portanto, ser preservado

a fim de estimular no pequeno indivíduo o cultivo da intimidade, da privacidade;

numa visão tipicamente liberal. Visto como um momento especial a ser protegido,

o mundo infantil se reflete na própria escola. Antes entendido como algo genérico,

o ambiente escolar vai se transformando e se conectando diretamente a esse

mundo da infância, tentando diminuir ao máximo as influências externas: "Assim a

pedagogia que nasce com os tempos modernos, em certo sentido - e insisto no

'certo sentido' -, objetiva apartar a criança do lar, do trabalho, enfim da chamada

realidade" (p.18).

A partir da segunda metade do século XIX, a pedagogia infantil que havia,

até então, seguido os preceitos dos pensamentos humanista e liberal, chega a

uma impasse, pois precisa enfrentar as contradições de uma sociedade em

transformação e influenciada profundamente pela chamada Revolução Industrial,

"a sociedade do trabalho".


A criança que, segundo pensadores como Rousseau, era destinada à

escola, começa a ingressar no mundo da fábrica, com sua ambientação nada

educacional, sua carga horária intensamente desgastante, seus trabalhos

repetitivos e monótonos que em nada lembram brinquedos infantis, enfim no

mundo capitalista em desenvolvimento acelerado. Quando se inicia o século XX, a

escola torna-se, de direito, o lugar da infância, mas não seu lugar de fato[3]. O que

parecia estar no próprio cerne da modernidade se torna problemático e irreal, era

preciso reformular as perspectivas pedagógicas existentes até então: "Não

podendo lutar contra o inimigo, se junte a ele - é o que faz o pensamento

pedagógico na medida em que se propõe a resolver a tensão entre escola e

trabalho; de certo modo, subordina a primeira ao segundo" (p.21).

O ensino caracterizado pelo liberalismo (conceito moderno) é agora

pejorativamente denominado de "ensino livresco", afastado da realidade e do

mundo adulto; e, embora o pensamento pedagógico da época tenha se

fragmentado em linhas diversas, uma certa apologia ao diálogo entre educação e

trabalho é uma característica comum à grande maioria deles (dentre eles

podemos destacar pensadores como Durkheim, Dewey[4] e Gramsci[5]).

A própria concepção de infância vai gradualmente se modificando,

principalmente com as contribuições de Piaget[6] e outros estudiosos defensores

da noção da criança como um ser ativo. As investigações do mundo infantil agora

permeado pelo trabalho ratificam a idéia da criança que não deve somente

aprender a escutar, mas que também precisa de uma conjuntura propícia à

aprendizagem do fazer e do falar. Segundo Piaget, é necessário, além de


incentivar a criança a agir, tomar decisões, fazer com que ela tome consciência de

seus atos.

No período entre o pós-Segunda Guerra (década de 1940) e os anos 70,

uma observação superficial verificaria a continuação de um tipo de pedagogia que,

de uma maneira ou de outra, estaria ligada ao mundo do trabalho. A "pedagogia

ativa", a "pedagogia centrada no interesse do aluno" e mais diretamente a

"pedagogia do trabalho" são desdobramentos de adaptações ao contexto social

trazido com as transformações capitalistas (para saber mais). No entanto, um

olhar mais atento pode visualizar o surgimento de estudos que divergem dessa

linha de raciocínio e que procuram compreender as mudanças de um mundo que

se concebia como liberal e agora considera válida e até mesmo adota a

planificação, a intervenção do Estado, como modelo social.

Dentre os pesquisadores dessa vertente, encontramos Horkheimer e

Adorno, pertencentes à Escola de Frankfurt (anos 40 e 50). De uma maneira geral,

ambos defendem a idéia da impossibilidade da formação, da existência de

indivíduos na sociedade em que vivem (uma sociedade compelida a visualizar o

mundo com os filtros da racionalidade, da técnica e da ciência) embora admitam

que, sob uma perspectiva pessoal, essa noção de indivíduo persista. Foucault vai

ainda mais longe na análise desse sujeito. Segundo ele, a idéia humanista do

indivíduo não é somente anacrônica[7], mas representa um verdadeiro equívoco: o

indivíduo não é uma parte do todo, um átomo, mas uma rede, atravessado,

permeado pelos outros. Ambas interpretações críticas desse velho conceito nos

levam a indagações mais pertinentes a nossa pesquisa: se a construção do

indivíduo é vista como uma impossibilidade, a própria compreensão da criança


como um ser completo, autônomo, imbuído de individualidade, também é

ameaçada[U1] (o autor aponta que diálogo mais significativo entre a pedagogia e

a filosofia social teria trazido frutos importantes, uma vez que a segunda procura

fazer uma análise mais abrangente da sociedade, o que seria extremamente útil

para a “área educacional”).

Com a crise do Estado do Bem-Estar Social e das metanarrativas, a

proposta neoliberal (desde os escritos de Hayek, Friedman e outros) se apresenta

como “única” alternativa viável. Assim como o ex-indivíduo humanista, a criança é

agora vista como mais um consumidor, a infância passa a ser cada vez mais

permeada e definida pela mídia, perdendo o caráter natural defendido pelos

modernos. Segundo o autor, ao recriar o “ser livre” do humanismo ou o “ser ativo”

da lógica do trabalho, a mídia, na verdade, constrói um pseudo-indivíduo, que é

“mero corpo, mero consumidor. Não um indivíduo, mas simulacro dele”. (p.38)

Baseado nessa análise, o autor chega a um questionamento alarmante:

Uma sociedade que atribui uma função meramente técnica, de adestramento à

pedagogia, não esvaziaria seu sentido de reflexão social e educacional[8]?

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[1] A Era Moderna pode ser aproximadamente identificada como o período a partir

do século XVI, com o Renascimento comercial e cultural.

[2] Montaigne, M. (1987). Da afeição dos pais pelos filhos. Ensaios II. Em:

Montaigne I. (Trad. Sérgio Milliet). São Paulo: Nova Cultural (Os Pensadores).
[3] Ariès, P. (1981). História social da criança e da família . (Trad. Dora Flaksman).

Rio de Janeiro, Guanabara.

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