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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


Disciplina: Sociedade e Meio Ambiente

Namoro de Onça
Ensaio sobre a dinâmica das relações entre
Povos Indígenas, Estado e Natureza em
contextos de políticas de gestão
compartilhada de territórios e recursos
naturais
Felipe Nascimento Araujo
Setembro e Outubro/2014

Trabalho inicialmente apresentado à disciplina de Sociedade e Meio Ambiente do curso de Pós-


Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, ministrada pelos professores
Carlos Emanuel Sautchuk e Marc Lenaerts, como requisito para obtenção parcial de créditos.
Visando a publicação, apresentamos novamente este artigo no âmbito da disciplina Oficina de
Escrita Etnográfica, ministrada pela professora Soraya Fleischer, para ser discutido junto às
colegas e aos colegas de Oficina.
Macho vem atrás, caminha légua e mais légua. Vem dois? Vem três? Eh, mecê não
queira ver a briga dêles, não... Pêlo dêles voa longe. Aí, despois, um sòzinho fica com a fêmea.
Então é que é. Êles espirram. Ficam chorando, ’garram de chorar e remiar, noite inteira,
rolam no chão, sai briga. Capim acaba amassado, bamburral baixo, moita de mato achatada
no chão, êles arrancam touceira, quebram galhos. Macho fica zurêta, encoscora o corpo, abre
a goela, hi, amostra as prêsas. Ói: rabo duro, batendo com força. Cê corre, foge. Tá
escutando? Eu – eu vou no rastro. É cada pèzão grande, rastro sem unhas... Eu vou. Um dia eu
não volto.
João Guimarães Rosa, 1969, Meu Tio o Iauaretê

INTRODUÇÃO
A partir da década de 2.000 determinadas comunidades do povo indígena
Yanomamɨ localizadas nos afluentes da margem esquerda do Rio Negro iniciaram a
comercialização das plantas Piaçaba e Cipó-Titica, inserindo-se assim dentro do
complexo extrativista do Rio Negro1. Neste artigo nos propomos efetuar um exercício
teórico para levantar quais podem ser as principais consequências desta inserção no que
tange às dinâmicas nas relações com o Estado e a sociedade brasileira, nas relações
intercomunitárias e nas relações com a floresta. Partimos da premissa de que tanto a
mudança nas relações com o Estado e sociedade brasileira quanto as mudança nas
relações intercomunitárias e com a floresta que os Yanomamɨ envolvidos na atividade
extrativista experimentam são processos deste mesmo fenômeno social: a inserção no
complexo extrativista do Rio Negro.
Aqui nos esforçaremos para estruturar as hipóteses sobre estas novas dinâmicas.
Para tanto revisaremos trabalhos antropológicos realizados com povos indígenas que
experimentaram processos semelhantes. Analisaremos a pesquisa feita por Paul
Nadasdy entre 1995 e 1999 sobre a relação entre o povo indígena Kluane e o Estado
Canadense no Sudoeste do território federal Yukon, Hunters and Bureaucrats – Power,
Knowledge, and Aboriginal-State Relations in the Southwest Yukon, publicada em 2003,
para teorizarmos as possíveis consequências das novas dinâmicas nas relações entre os
Yanomamɨ e o Estado e sociedade brasileira, bem como as possíveis consequências nas
relações intercomunitárias das comunidades envolvidas. Analisaremos o trabalho de
Luisa Elvira Balaunde e Juan Alvaro Echeverri sobre a comercialização do Yoko
(Paullinia Yoko) pelos grupos indígenas airo-pai, da região de fronteira entre Peru,
Equador e Colômbia (região amazônica), para teorizarmos os possíveis impactos sobre

1
Definimos como complexo extrativista do Rio Negro a rede de extração, escoamento e comercialização
de produtos florestais na região da Bacia Hidrográfica do Rio Negro. Grande parte desta produção tem
sua dinâmica orientada pela demanda de Manaus, além de atender as demandas locais dos municípios do
Negro. No entanto há determinados casos onde a comercialização dos produtos florestais extrapola esta
rede, formando redes comerciais de maior amplitude.
o sistema simbólico dos grupos yanomamɨ envolvidos na atividade extrativista em sua
relação com a floresta - “Como un padre que da consejo: Paullinia yoco entre los airo-
pai del Perú”, artigo do livro organizado por Marc Lenaerts e Spadafora Pueblos
indígenas, plantas y mercados – Amazonía y Gran Chaco, publicado em 2008. Veremos
o que há de subjacente nestes dois casos e quais seriam as possíveis hipóteses a serem
tecidas em relação às consequências dos processos analisados em nosso caso específico:
o fenômeno social da inserção de determinadas comunidades yanomamɨ no complexo
extrativista do Rio Negro e as consequentes novas dinâmicas nas relações com o Estado
e sociedade brasileira, nas relações intercomunitárias e nas relações com a floresta.
O delineamento de novas dimensões nesta gama de relações são processos
realizados no âmbito do mesmo fenômeno social e desta maneira estão inter-
relacionados. Analisa-los separadamente será um recurso metodológico. Assim,
características transversais a estes processos serão abordadas ao longo do artigo.

1. RELAÇÕES COM O ESTADO, COM A SOCIEDADE


BRASILEIRA E RELAÇÕES INTERCOMUNITÁRIAS
Nesta seção nos propomos a levantar quais podem ser as principais
consequências da comercialização de plantas – o Cipó-Titica e a Piaçaba – por
determinadas comunidades yanomamɨ no que tange às novas dinâmicas nas relações
com o Estado e a sociedade brasileira, e às novas dinâmicas das relações
intercomunitárias. Para tanto efetuaremos um estudo comparativo entre o contexto de
contato entre os Kluane e o Estado Canadense, descrito por Nadasdy (2003) e o
contexto da relação que os Yanomamɨ mantêm com instituições do Estado Brasileiro e
com a sociedade brasileira.
No caso das relações com o Estado Brasileiro, focaremos nas relações com
instituições governamentais responsáveis por políticas em meio ambiente, isto é,
políticas relativas à conservação da natureza e manejo de recursos naturais. A carga
simbólica destes termos utilizados pelo Estado Brasileiro para lidar com elementos com
os quais as comunidades yanomamɨ lidam em outra perspectiva sociocultural diferente
será inclusive um dos aspectos abordados nesta relação. Por fim, faremos breves
considerações sobre as possíveis consequências nas relações comunitárias e
intercomunitárias dos Yanomamɨ envolvidos nesta atividade.
YANOMAMƗ E O ESTADO E SOCIEDADE BRASILEIRA:
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO CONTATO E RELAÇÃO
CONTEMPORÂNEA COM INSTITUIÇÕES ESTATAIS
Primeiramente é importante ressaltar em qualquer caso no qual se trabalhe com
o Povo Yanomamɨ que esta entidade política é uma construção histórica relativamente
recente – aproximadamente a partir da década de 1960 – levada a cabo por lideranças
indígenas, antropólogos e indigenistas de forma mais ampla. Há um discurso político
enunciado tanto por indivíduos Yanomamɨ engajados em atividades políticas de defesa
dos direitos deste povo, quanto por qualquer Yanomamɨ que o instrumentalize na
interlocução com o mundo não-Yanomamɨ (principalmente na interlocução com
instituições governamentais, desde as ligadas às políticas em saúde até instituições de
Ensino Superior). Qualquer Yanomamɨ é um Yanomamɨ em potencial, porém cada
comunidade yanomamɨ age como uma unidade política autônoma e existem diferenças
culturais relevantes entre as comunidades. A comunidade e por extensão o indivíduo
tem uma rede de relações de aliança e um sentimento latente de guerra potencial com
indivíduos de comunidade mais distantes, notadamente aquelas numa distância não tão
grande, com as quais possuam um passado compartilhado de cisão e guerra. Qualquer
evento que una yanomamɨ thëpë2 de regiões de muitas regiões desencadeia (ou ao
menos têm uma potencialidade de desencadear) brigas e acusações de bruxarias.
Os Yanomamɨ perfaziam em 2006 cerca de 33.100 pessoas entre Brasil e
Venezuela (Albert, Milliken 2009). Segundo dados do Distrito Especial Sanitário
Yanomami/Secretaria de Saúde Indígena (DSEY/SESAI: http://portal.saude.gov.br)
para 2011, perfaziam 19.338 pessoas apenas na Terra Indígena Yanomami (TIY, no
Brasil), vivendo em 248 comunidades (o CENSO realizado pelo IBGE em 2010 apurou
25.700 habitantes na TIY)3. A dinâmica do contato com o Estado e sociedade brasileira
durante as obras da Rodovia Perimetral Norte entre 1973 e 1976 (inacabadas) e durante

2
Thëpë é um sufixo presente em formas pouco distintas nos dialetos da família linguística Yanomami que
caracteriza coletivo (Ferreira, Helder Perri 2011)
3Albert (1986), reunindo diferentes estimativas populacionais (Colchester 1982, 1984a; Lizot 1984a;
Schokolnik 1984; Albert, Zacquini 1979), chegou ao total de 10.248 Yanomami na Venezuela e 8.400 no
Brasil em 1986 – portanto uma população de no mínimo 18.648 indivíduos naquele ano. Assim podemos
estimar uma média anual de crescimento populacional de 2,82% ao ano entre 1986 e 2006 –
compensando largamente os impactos epidemiológicos sofridos desde meados da década de 1970 até o
início da década de 1990.
a invasão garimpeira4 causaram surtos de alta mortalidade por propagação de doenças
infectocontagiosas como malária, gripe e sarampo. Neste quadro o caso mais dramático
foi o da malária5.
Aproximadamente cinco mil Yanomamɨ vivem na porção da TIY que abrange o
estado do Amazonas, nos afluentes da margem esquerda do Rio Negro, suas
microbacias hidrográficas e nas serras. Os grupos yanomamɨ que vivem propriamente
no curso destes tributários são a população de contato mais antigo com a sociedade
nacional, na medida em que os contatos travados com a frente de expansão extrativista
remontam ao início do século XX (Albert 1986), quando a maior parte da população
yanomamɨ iniciou seus primeiros contatos a partir dos anos 1970, com as obras da
Perimetral Norte e as invasões de seu território por garimpeiros. Com exceção da região
de Maturaca, alvo de invasões garimpeiras, e da região do Demini, impactada pelas
obras da Rodovia Perimetral Norte, os Yanomamɨ do Rio Negro não sofreram as
implicações epidemiológicas e de desestruturação social vivenciadas em outras regiões
severamente impactadas por estes eventos desde a década de 1970 à de 1990. Apesar
disso as regiões do Rio Marauia e dos rios Araca e Parawaú (os dois últimos na micro-
bacia do Rio Demini) apresentam um dos mais altos índices de casos de malária da TIY
(FUNASA 2005). No caso específico de Araca, esta região é constatada como endêmica
para a malária desde os primeiros registros feitos por cientistas que visitaram a região
(Holdridge 1932).
Desde a década de 1990, com a homologação da Terra Indígena Yanomami em
1992, os desafios passaram a ser outros, vencida a etapa da garantia do direito ao
território. A partir de então, a relação do povo Yanomamɨ com o Estado Brasileiro
começa a tornar-se mais complexa, na medida em que políticas eram elaboradas e
implementadas na Terra Indígena. As principais políticas estavam voltadas para a área
de saúde, educação e combate à invasão garimpeira, e monitoramento da fronteira

4 No final da década de 1970, após a divulgação dos dados do Projeto RADAM Brasil, que apontaram
para a existência de grandes jazidas de cassiterita e ouro na Serra Surucucus (TIY), houve uma primeira
leva de invasão garimpeira e inclusive de empresas de mineração (Doceogeo, subsidiária da Vale do Rio
Doce). A partir da década de 1980 a invasão de garimpeiros torna-se generalizada, estendendo-se a
diversas regiões da TIY. (Acervo Documental Comissão Pró-Yanomami, Seção de Notícias)

5 Carlo Zacquini, referindo-se à região da Serra de Surucucu na década de 1980, atenta para o fato de
que a malária que impactou as comunidades yanomami da região era excessivamente resistente, pois eram
plasmudium “selecionados”. Ela era transmitida por garimpeiros que se automedicavam. Neste processo
malárias “mal curadas” perpetuavam protozoários cada vez mais resistentes aos medicamentos
disponíveis. (Entrevista. 9/Jun/2013 ainda não publicada)
envolvendo múltiplas instituições do Estado (ver seção “Namoro de Onça: Esforços
para o diálogo no Contexto de Políticas Verticais”).
Na área da saúde houve a terceirização do atendimento, que passou a ser
responsabilidade de Organizações Não-Governamentais, sendo repassados pelo
Ministério do Meio Ambiente, para estas ONGs, os recursos financeiros destinados ao
Distrito Sanitário Yanomami, que teve durante quase duas décadas sua função restrita
ao monitoramento das atividades. Neste período houve iniciativas de cursos de
formação de agentes indígenas de saúde, microscopistas indígenas e outras
especialidades técnicas. Na área de educação, igualmente, além das iniciativas no
âmbito das parcerias efetuadas entre os Yanomamɨ e determinadas ONGs e missões
religiosas, a partir do final da década de 2000 as Secretarias de Educação dos estados de
Amazonas e Roraima iniciaram um processo de incorporação de professores Yanomamɨ
para o nível Fundamental. E, quanto à Fundação Nacional do Índio, através de sua
Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami, houve tentativas pontuais de efetuar a
integração de jovens Yanomamɨ em ações de monitoramento da Terra Indígena.
A sobreposição das Unidades de Conservação à Terra Indígena Yanomami,
assim como a existência de Unidades de Conservação limítrofes à TIY, é uma
conjuntura geopolítica causadora do imperativo da interlocução entre os Yanomamɨ e as
instituições estatais responsáveis por políticas em meio ambiente (veja o Mapa 1 para
contextualização. Um observação: no mapa registramos os nomes das Unidades de
Conservação que estão sobrepostas à Terra Indígena. Existem outras Unidades de
Conservação, limítrofes à Terra Indígena, que estão apenas indicadas. Para informações
mais detalhadas sobre estas UCs ver Albert e Le Tourneau 2004). Ou seja, antes do
início das atividades extrativistas os Yanomamɨ já lidavam com estas instituições por
motivos diferentes. No caso do Parque Nacional Pico da Neblina, as discussões sobre
jurisprudência da região sobreposta – usufruto exclusivo dos índios ou gestão do
Instituto Chico Mendes de Biodiversidade?; e, quanto às Unidades de Conservação
limítrofes, Parque Nacional Serra da Mocidade, Estação Ecológica do Niquiá, Estação
Ecológica de Caracaraí, Estação Ecológica de Maracá, cuja existência é vista por
lideranças indígenas e parceiros como benéfica, pois serviriam como área de
amortecimento de pressões ambientais externas à Terra Indígena como invasão de
posseiros e grileiros, a interlocução se dava de maneira cosmética, com a ocupação de
cadeiras nos Conselhos destas UCs. A relação dos Yanomamɨ com os órgãos
responsáveis pelas políticas em meio ambiente será analisada na última parte desta
seção. Vale ressaltar que a abordagem será feita a partir da conjuntura de inserção de
determinados grupos yanomamɨ no complexo extrativista do Rio Negro.
É importante ressaltar também a presença do Exército Brasileiro na fronteira,
efetuando o monitoramento da Fronteira Norte através da instalação de Pelotões de
Fronteira dentro da Terra Indígena Yanomami, que se encontra inserida na Faixa de
Fronteira (150 quilômetros para dentro do território nacional, acompanhando toda a
fronteira, onde o Exército tem relativa autonomia de ação).

KLUANE PEOPLE E O ESTADO CANADENSE:


PROBLEMAS LEVANTADOS POR NADASDY
Os Kluane têm em comum com os grupos Yawaripë Yanomamɨ, atingidos em
cheio pela construção da Perimetral Norte na década de 1970, o fato de terem
experimentado a intensificação súbita do contato com a sociedade não-indígena a partir
da construção de uma rodovia. Os Kluane experimentaram uma intensificação das
relações com os euro-canadenses com a construção da Alaska Highway em 1942 pelos
militares americanos no contexto da 2ª Guerra Mundial num ato ostensivo contra a
possibilidade de uma expansão japonesa (Nadasdy 2003 p.32). Em poucos anos esta
região subártica no sudoeste canadense habitada pelos Kluane foi integrada ao restante
do país por esta estrada. Os Kluane sofreram impactos epidemiológicos e de
desestruturação social neste processo. A partir da década de 1970 o povo Kluane inicia
seu movimento pela reinvindicação de território e em 2003 logram a firmação do
Kluane First Nation Self-Government Agreement com o Minister of Indian Affairs and
Northern Development, após um longo percurso de negociações.
Antes deste acordo já havia sido firmado o Yukon Umbrella Final Agreement
com o Yukon Minister of Renewable Resources, e é a partir do processo de negociação
deste acordo que vamos analisar os aspectos relevantes da relação entre os Kluane e o
Estado Canadense no que tange ao manejo compartilhado do território. O objetivo desta
análise é nos proporcionar elementos para teorizar as hipóteses sobre as consequências
das novas dinâmica na relação entre os Yanomamɨ e o Estado Brasileiro na conjuntura
de inserção de determinados grupos no complexo extrativista do Rio Negro, no que
tange à regularização das atividades extrativista sob a legislação ambiental vigente – ou
seja, a adequação da atividade extrativista a Planos de Manejo, por se tratar de
exploração de “recursos naturais”. Dois dos aspectos desse processo levantados, o
diálogo de saberes e o papel da caça na vida dos Kluane, terão um tratamento
comparativo com o caso Yanomamɨ na próxima parte desta seção. Por hora vale
ressaltar que o termo Renewble Resources, conceito que também foi incorporado na
dinâmica de políticas ambientais no Brasil traduzido como Recursos Renováveis, é um
conceito forjado no âmbito da ciência ocidental e consequentemente enraizado na
cultura da civilização ocidental.
No âmbito do Yukon Umbrella Final Agreement foram criados Conselhos para
manejo compartilhado do território – Concils to Co-management. O reconhecimento da
existência de um autêntico saber indígena foi um primeiro passo para o manejo
compartilhado (Nadasdy 2003 p.114) e, no contexto Kluane, todo o processo relativo ao
manejo conjunto do território e wildlife perpassa a questão do diálogo entre saberes e a
valorização do conhecimento Kluane - um aspecto que, como veremos, também
mantem determinadas similaridades com o processo de diálogo entre os Yanomamɨ e as
instituições do Estado Brasileiro responsáveis por políticas ambientais. Porém o
funcionamento destes conselhos esteve comprometido pela insuficiência na integração
entre os sistemas de saberes Kluane e o saber dos gestores ambientais. Para Nadasdy a
explicação “oficial” para a falta de inteligibilidade entre os saberes, de que seria uma
questão essencialmente técnica na integração de conhecimentos para uma gestão
compartilhada, é inadequada. A dificuldade da integração dos conhecimentos reside
precisamente na dimensão política desta integração (Nadasdy 2003 p.117). Se o Estado
Canadense aceitasse realmente utilizar o conhecimento Kluane para formular políticas
de manejo, haveria uma renovação, ou melhor, um rompimento de paradigmas. O
paradigma ocidental de Natureza seria substituído por uma visão de mundo muito
diversa, construída e enraizada numa sociedade diferente. Não seria apenas as
instituições do Estado e sua burocracia a serem rompidas, seria rompida a relação de
poder que configura o que Nadasdy aponta como o Quarto Mundo – a opressão dos
interesses das nações aborígenes.
Na tentava de efetuar este diálogo entre saberes haveria, para Nadasdy, uma
compartimentação dos chamados conhecimentos tradicionais – os TEK, Traditional
Ecological Knowledge – dos Kluane e a descontextualização de determinados “dados”
para a pesquisa e gestão compartilhada. O saber Kluane e o saber ocidental têm
características diferentes: enquanto o primeiro é holístico, qualitativo, intuitivo, oral, o
segundo é analítico, quantitativo, reducionista, escrito e relacionado a uma produção
institucionalizada de conhecimento que não corresponde à divisão real do mundo
(Focault 1980; Rabinbach 1990; Said 1978; Worster 1977 apud Nadasdy 2003 p.123).
Outro aspecto da compartimentação do saber aborígene é que todos os aspectos da
realidade dos aborígenes ficam fora das categorias da gestão ambiental (resources
manegement). Colocar no papel o “modo de vida” necessariamente descontextualiza e
destila as práticas e relações sociais que o tornam possível.
Assim, o resultado é que, ao estabelecer-se os acordos de manejo compartilhado,
não-indígenas inseridos nas instituições do Estado ganham o poder de definir o que
constitui o autêntico saber indígena e julgar o comportamento de indígenas. Mas quem
exatamente está efetuando esta destilação, e consequentemente mantendo os interesses
Kluane subordinados aos interesses do Estado Canadense? A resposta a esta pergunta é
paradoxal, e será desenvolvida na próxima seção. Por ora destacamos que, ao mesmo
tempo em que não há uma intencionalidade definida, pois a própria máquina das
instituições do estado, burocratizadas, agencia esta destilação – isto é, os atores
envolvidos (gestores burocráticos, políticos, cientistas, etc) formam um grupo
heterogêneo e desprovido de intencionalidade comum – há também a
instrumentalização desta máquina burocrática por parte de indivíduos (não-indígenas e
indígenas), que as utilizam de maneira a manter ou alcançar interesses privados.

NAMORO DE ONÇA: ESFORÇOS PARA O DIÁLOGO NO CONTEXTO DE


POLÍTICAS VERTICAIS
A formulação, implementação e realização de políticas voltadas para populações
indígenas por parte do Estado sem o estabelecimento de um diálogo com estas
populações é uma constante experimentada por povos indígenas em todo o mundo. Os
Kluane no Canadá e os Yanomamɨ no Brasil e na Venezuela compartilham desta mesma
experiência (Nadasdy 2003, Albert 1991). Chamamos este tipo de política de verticais
pelo fato de serem impostas aos indígenas pelas instituições do governo, ocasionando
uma tensão entre as agências, na qual a agência do Estado se sobrepõe à agência
indígena. O esforço empreendido pelos povos indígenas para o estabelecimento do
diálogo com as instituições do governo no processo político visa a horizontalização das
políticas, isto é, a possibilidade de formulação, implementação e realização conjunta das
políticas voltadas para estes povos.
O estabelecimento deste diálogo enfrenta múltiplas barreiras. Ao mesmo tempo
em que os interesses dos povos indígenas são antagônicos aos interesses de indivíduos
não indígenas, há ainda a rigidez da maquinaria burocrática do Estado, uma rigidez
quase autônoma, sem agência, ao mesmo tempo instrumentalizada para a manutenção
de conjunturas favoráveis a interesses particulares. Os esforços para o diálogo
empreendidos pelos Kluane junto ao Yukon Minister of Renewable Resources e os
esforços efetuados pelos Yanomamɨ no diálogo com os órgãos governamentais
responsáveis por políticas de meio ambiente, principalmente o Instituto Nacional de
Meio Ambiente (IBAMA), o Instituto de Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), e, no presente caso, a Secretaria de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas (SDS) e o Instituto de Proteção
Ambienta do Amazonas (IPAAM) têm em comum, entre outros, o seguinte ponto: a
inteligibilidade entre duas visões de mundo é obstruída tanto pela burocracia do Estado
quanto pelas diferentes concepções de natureza dos agentes do Estado e dos índios. Os
agentes dos órgãos ambientais - gestores executivos, administradores, pesquisadores ,
etc - atuam sobre uma base diferente de conhecimento e assim a visão que têm sobre a
floresta é outra.
Há sujeitos Yanomamɨ que compõem os Conselhos (sejam de carácter
consultivo ou deliberativo) destes órgãos governamentais, tanto no Distrito Sanitário
Especial Yanomamɨ quanto nos órgãos ambientais, que mantém conselhos gestores em
suas Unidades de Conservação (veja o Mapa 1). Todas as UCs que mantém conselhos
nos quais Yanomamɨ ocupam cadeiras, exceto as “adormecidas” FLONA Amazonas,
FLONA Roraima e PAREST Araca. Assim, há entre a relação dos Yanomamɨ com o
ICMBio e os Kluane com o Yukon Minister of Renewable Resources uma similaridade
quanto à dificuldade de comunicação, e quanto aos motivos desta dificuldade.
Referindo-se às dificuldades que existem neste diálogo entre os Yanomamɨ e o
Estado Brasileiro, o líder Yanomamɨ Davi Kopenawa cunhou a expressão “Namoro de
Onça”. Este termo faz alusão não só à falta de garantias quanto aos acordos firmados
neste diálogo, mas também, a partir de nossa interpretação, à surdez dos atores sociais
destes órgãos para a visão que os Yanomamɨ têm em relação ao seu território e sua
floresta. Acreditamos que a problemática analisada por Nadasdy no contexto Kluane das
negociações e execuções de políticas de gestão compartilhada do território e da wild life
também pode ser sintetizada neste termo.
Sintetizando: o único caminho viável para a horizontalização das políticas do
Estado, isto é, a incorporação plena dos Yanomamɨ na formulação, implementação e
realização de políticas voltadas para eles só poderia ser alcançada através de uma
mudança de paradigmas por parte das instituições executivas e legislativas do Estado –
mudanças na estruturas destas instituições e incorporação efetiva das contribuições dos
Yanomamɨ diretamente envolvidos na interlocução com elas (membros de conselhos,
representantes de associações indígenas, funcionários indígenas destas instituições). A
essa mudança o caso Kluane alerta para as dificuldades nesta interlocução, sejam
técnicas, quanto ao diálogo entre saberes forjados, consolidados e vivenciados em
contextos sociais diferentes (o indígena e o não-indígena), sejam propriamente políticas,
o choque que há entre interesses indígenas e interesses de não-indígenas ou mesmos
indivíduos indígenas inseridos dentro das instituições estatais responsáveis por políticas
em diferentes setores, sejam aspectos como l educação, saúde, proteção e gestão
territorial, meio ambiente.
No que tange às relações com as instituições estatais responsáveis por políticas
em meio ambiente, a inserção dos Yanomamɨ no complexo extrativista do Rio Negro
obviamente a intensificará a interlocução entre estas instituições e os Yanomamɨ,
através de suas associações, seja a Hutukara Associação Yanomamɨ, seja a Associação
Yanomami dos Rios Cauaburis e Afluentes, ou a recém criada Kurikama Associação
Yanomamɨ do Rio Marauia, que se verão diante do desafio do diálogo intercultural para
organizar esta atividade. Assim nossa hipótese, formulada a partir desta comparação
entre os Kluane e os Yanomamɨ é que esta intensificação da interlocução poderá ser
uma via de mão-dupla, onde os Yanomamɨ incorporem determinadas concepções de
meio ambiente, utilização sustentável de recursos naturais e outros conceitos ligados à
concepção ocidental de natureza, ao mesmo tempo que tecendo politicamente a
incorporação de suas próprias concepções de mundo, vida e natureza na elaboração de
Planos de Manejo para a regularização da atividade extrativista. Somente um trabalho
de campo poderá confirmar esta hipótese, e, a partir dela, ir mais além e produzir
conhecimento específico sobre esta questão.

NOVAS DIMENSÕES NAS RELAÇÕES INTERCOMUNITÁRIAS


Nadasdy também se ocupa desta questão, e consideramos que ela seja comum a
todos os povos indígenas que iniciem uma relação comercial permanente com a
sociedade envolvente, no que tange à venda e compra de produtos – a carne de caça
entre os Kluane e produtos extrativista entre os Yanomami.
Levantamos os seguintes impactos observados imediatamente entre os
Yanomamɨ: a monetarização da vida comunitária, as articulações intercomunitárias para
a realização das atividades extrativistas para fins comerciais, e, em determinados casos,
a desestruturação social causada pela inserção de determinadas famílias em situações de
aviamento são consequenciais relevantes da inserção no complexo extrativista do Rio
Negro, e já observadas por nós entre 2011 e 2013, quando trabalhamos junto aos
Yanomamɨ (primeiro na Assessoria Pedagógica ao Programa de Educação Intercultural
e Bilíngue da Associação de Cooperação com o Povo Yanomami e depois na Assessoria
à Hutukara Associação Yanomami através do Instituto Socioambiental). Porém as novas
dimensões da vida comunitária e intercomunitárias são aquelas que mais necessitam de
um campo etnográfico para serem analisadas, pois se dão no âmbito interno da
sociedade Yanomamɨ. Processos organizativos internos, que se realizam dentro da
floresta, estendem-se até os centros de comércio locais mas, principalmente, são
negociados e articulados nas aldeias, em língua yanomamɨ e seguindo lógicas de
relações intercomunitárias que demandam estudo para a compreensão.

2. RELAÇÕES COM AS PLANTAS


Nesta seção nos propomos a levantar quais podem ser as principais
consequências da comercialização de plantas para os Yanomamɨ no que tange às novas
dinâmicas e novas dimensões nas relações com a floresta. Por novas dinâmicas
entendemos as novas práticas: as mudanças experimentadas na dinâmica de organização
comunitária e intercomunitária, agora também orientadas para a extração, escoamento e
comercialização das plantas, além da organização da dinâmica tradicional da relação
com a floresta. Por novas dimensões entendemos a complexificação do sistema
simbólico que orienta a relação dos Yanomamɨ com a floresta. Para tanto efetuaremos
um estudo comparativo entre o contexto da comercialização do Yoko pelos grupos airo-
pai, estudados por Balaunde e Echeverri e o contexto da comercialização da Piaçaba, do
Cipó-Titica pelos Yanomamɨ .

A COMERCIALIZAÇÃO DA PIAÇABA E DO CIPÓ-TITICA PELOS


YANOMAMƗ
Dentre os diversos grupos yanomamɨ que povoam os cursos dos afluentes
Cauaburis, Marauiá, Padauri, Aracá e Demini e suas respetivas micro-bacias
hidrográficas (veja Mapas), estabeleceram-se, na última década, relações comerciais
bastante contrastantes com os centros comerciais locais – alocados nas sedes dos
municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira. Em
grande parte dos casos as atividades de extração, escoamento e comercialização são
desarticuladas, e não são raros os casos nos quais comerciantes não-indígenas agem de
má-fé, o que gera o endividamento destes grupos no comércio local, sua fragilização
dentro do complexo extrativista do Rio Negro e problemas comunitários e
intercomunitários de diversos tipos. Há pelo menos um caso dramático de relação de
aviamento6.
A comercialização de plantas (produtos florestais, recursos naturais...) tem
algumas consequências facilmente observáveis. São elas o incremento das relações
monetárias com a sociedade brasileira e o imperativo do início de uma interlocução com
instituições do Estado responsáveis pela regulação da atividade extrativista. Relações
monetárias já são experimentadas pelo povo Yanomamɨ em quase todas as regiões da
Terra Indígena Yanomami de diversas maneiras: o salário dos professores Yanomamɨ
filiados às secretarias municipais e estaduais de Educação, o salário dos Agentes
Indígenas de Saúde filiados ao Distrito Sanitário Especial Yanomamɨ, a incipiente
entrada do Programa Bolsa Família e comércio de artesanato. Na região do Amazonas,
onde o contato, como visto, é mais antigo, relações monetárias relativas ao comércio de
carne de caça e plantas já eram conhecidas havia mais de cinquenta anos. Porém estas
atividades eram esporádicas e individuais e não representavam uma mudança
significativa na relação com o Estado e sociedade brasileira. Quanto à relação com o
Estado, a inserção no complexo extrativista do Rio Negro acarreta o estabelecimento do
diálogo com as instituições responsáveis pelas políticas em meio ambiente, não só as
executivas (IBAMA e ICMBio), mas também as regulatórias (SDS,IPAAM).
O contato com as instituições estatais brasileiras responsáveis pela execução das
políticas de meio ambiente, a legislação ambiental brasileira e a coerção que a
adequação das atividades extrativista à esta legislação representa é possivelmente um
dos aspectos mais impactantes deste processo. Este processo tem duas faces: enquanto é
coercivo por um lado, garante uma relação mais justa dentro do complexo extrativista
do Rio Negro. Esta inserção, se não incorporar a lógica do Estado para a execução das
atividades, o que implica aos Yanomamɨ a aceitação da concepção de natureza
ocidental, será insegura no que tange ao seu aspecto principal: a monetarização.
Assumindo que o objetivo da comercialização do Cipó-Titica e da Piaçaba é a aquisição
de bens, intermediada pelo lucro monetário e consequente poder aquisitivo com a venda

6 A situação de patronagem e escravidão por dívida (aviamento) ocorre na Comunidade Água Viva
baseada na exploração da Piaçaba. Esta comunidade se localiza fora da Terra Indígena Yanomami (TIY),
no alto curso do Rio Preto (sub-bacia do Padauiri). Nela, Yanomami que migraram do Rio Marauia,
situado dentro da TIY, convivem com não-indígenas sob esta situação.
destas plantas, a aceitação da concepção de natureza do Estado passa a ser necessária
para o sucesso do objetivo. Assim, agrega-se às plantas a dimensão de recursos
naturais, produtos florestais, e a visão de natureza subjacente ao léxico
institucionalizado da legislação ambiental passa a coagir as ações dos Yanomamɨ. Uma
coerção autônoma, sem intencionalidade, por um lado – a independência burocrática do
léxico. Por outro uma coerção institucional , realizada na formulação e execução dos
Planos de Manejo cuja função é articular e organizar as etapas da atividade, bem como
sua adequação à legislação, junto aos gestores ambientais das instituições estatais. Os
impactos à floresta na no que tange à pressão sobre o ciclo de renovação destes produtos
deve também ser apontado, porém no atual estágio de exploração não se configurou um
contexto de ameaça à população local de Cipó-Titica e da Piaçaba – enorme se
comparada à magnitude da atividade de extração realizada.

A COMERCIALIZAÇÃO DO YOKO PELOS GRUPOS INDÍGENAS AIRO-PAI


Diferentemente do Cipó-Titica e da Piaçaba, o Yoco (Paullinia Yoko)
comercializado pelos grupos airo-pai da região de Secoya, Peru, já possuía e possui um
uso cultural determinado, o qual é exposto por Belaunde e Echeveri em seu artigo
“Como un Padre que da Consejo”, e sobre o qual nos deteremos apenas no que seja
estritamente necessário para o desenvolvimento de nosso argumento. É importante frisar
que a informação de que não há um uso específico destas duas plantas foi nos dada por
um Yanomamɨ colega nosso de trabalho quando prestávamos assessoria à Hutukara
Associação Yanomamɨ entre 2012 e 2013. Como já foi dito, por ainda não termos feito
um campo etnográfico na região, esta informação carece de uma verificação empírica, e
devemos assim tratá-la como uma hipótese, mais do que como um dado etnográfico, em
razão de uma postura científica (no âmbito da nossa ciência ocidental) e de uma ética
discursiva e analítica para com os interlocutores alvos deste artigo – acadêmicos,
pesquisadores, ativistas políticos e gestores de políticas públicas sejam indígenas ou não
indígenas. Em todo caso é necessário ressaltar que não presenciamos práticas rituais
com estas plantas nem termos ouvido qualquer relato de uso ritualístico destas plantas
em nossas entradas Terra Indígena Yanomami.
Os grupos airo-pai pertencem à população de falantes do Tukano Ocidental, os
Ingá e Kametsá, habitantes da área do refúgio Pleistocênico Napo-Putumayo-Caquetá,
fronteira amazônica entre Peru, Colombia e Equador. O Yoko tem e teve, desde tempos
remotos, um papel preponderante na vida dos grupos airo-pai, fazendo parte do
quotidiano deste grupo e ocupando um lugar central num dos momentos mais relevantes
da vida quotidiana da tribo: o momento de diálogo entre gerações. Belaunde e Echeverri
descrevem com riqueza de detalhes o modo como ele é utilizado e de que maneira é
levada a cabo sua função. O fato é que, em tempos recentes – o artigo foi escrito em
2008 e podemos inferir que são processos contemporâneos a inserção dos Yanomami no
complexo extrativista do Rio Negro e o inicio e intensificação da comercialização do
Yoko entre os airo-pai – o Yoko, descrito por Schultes como “a mais importante planta
não-nutricional na economia nativa” (apud Balaunde e Echeverri), com múltiplas
propriedades, como medicamento antimalárico, anti-helmíntico, febrífugo, e outras, se
tornou uma commodity no mercado internacional, usado para a produção de pílulas de
emagrecimento. Porém segundo o artigo de Balaunde e Echeverri, até 2008 ainda não
haviam sido feitos testes farmacológicos e clínicos que sustentassem as propriedades
ativas. Neste contexto, o de pesquisas farmacêuticas de maneira geral, diferentemente
do contexto Yanomamɨ e a extração da Piaçaba e Cipó-Titica, outro processo poderia
ser analisado: os direitos autorais sobre o conhecimento, propriedade intelectual coletiva
e legislação. Mas não será este o foco de nossa análise.
Há todo um aspecto técnico, social e cósmico do manejo, cultivo, extração e
classificação que os airo-pai efetuam desta planta. O que vamos ressaltar aqui são as
mudanças que os airo-pai experimentaram na relação com esta planta, que, além de um
papel central na vida comunitária, agora ganha uma nova função, a comercial, e assim,
ao lidarem com esta planta nesta nova dimensão, se inserem num complexo de relações
econômicas que afetam a relação simbólica com esta planta. Os materiais comerciais
adquiridos pelos airo-pai vêm da região de Putumayo e são adquiridas pelos indígenas
por intermédio dos “cacheros” e até onde sabem Balaunde e Echeverri a única fonte de
Yoco para a comercialização é silvestre, e não existem planos de manejo ou reposição
das plantas extraídas. Se trata de um comércio irregular, manejado através de
intermediários informais que compram em uma zona até esta esgotar o recurso para
então buscarem outras zonas.
O cenário no qual se pode dar a inserção econômica de uma planta silvestre é
traçado pelos autores: a atribuição a essas plantas de propriedades que satisfazem uma
demanda de produtos, ausência de estudos farmacêuticos e clínicos que sustentem a
atribuição destas propriedades, desconhecimento da ecologia e biologia da espécie que
permita estimar seu potencial produtivo, e finalmente, a extração e o comércio apoiado
no sistema de aviamento ou endividamento por intermediários locais, desconhecimento
do uso e significado da espécie para as populações que a utilizam tradicionalmente. O
caso do Yoko é paradoxal, pois a empresa farmacêutica – Laboratório Labfarve - que
produz um dos produtos mais vendidos a base desta planta – o Yoko Plus+ - efetua a
propaganda de ser o primeiro laboratório em investigação de plantas medicinais na
Colômbia, apesar de, segundo o levantamento dos autores, até 2008 não haver efetuado
pesquisas com a planta Yoko.
O Yoko comercializado pelos airo-pai e a Piaçaba e Cipó-Titica comercializados
pelos Yanomamɨ têm propriedades muito distintas e atendam a demandas muito
diferentes – o primeiro é explorado para fins farmacológicos, e consequentemente a
dimensão comercial de sua exploração é o suprimento de empresas farmacêuticas para a
produção de fármacos (no caso, as pílulas para emagrecimento, a despeito de toda a
potencialidade medicinal que apresenta); a exploração dos segundos é motivada por
uma demanda local, quando muito regional, de matéria prima para a confecção de
objetos e não acarreta a interface com grandes corporações de fármacos. Apesar disto,
há consequências comuns aos dois casos: o aviamento, o endividamento com
comerciantes locais é um deles. A agregação de novas dimensões da relação com a
planta é o outro.

AGREGANDO NOVAS DIMENSÕES NA RELAÇÃO COM A FLORESTA


Agora é o momento de introduzirmos a palavra yanomamɨ urihi. A tradução
desta palavra para o português é um grande desafio: o conteúdo conceitual urihi é
expressado e compreendido dentro de um contexto cultural diverso da cultura ocidental,
no sentido mais amplo que o conceito ocidental possa ter: a civilização ocidental, com
sua múltipla história, suas múltiplas sociedades e suas múltiplas línguas, que formam o
corpo do que hoje chamamos de Ocidente. O Ocidente que só pôde ser o que é pela
experiência colonial e imperialista de países europeus na América, África, Ásia e
Oceania. Davi Kopenawa, em seu esforço de efetuar um diálogo entre dois mundo,
explorou a polissemia desta palavra urihi: o território e a floresta. A terra que pertence
aos Yanomamɨ e o sopro da floresta que dá a vida. A floresta é a urihi, viva e povoada
de espíritos benéficos e malignos. A floresta, a urihi, tem uma dimensão física e uma
dimensão espiritual.
Desde tempos imemoriais é na relação com a floresta que os Yanomamɨ vivem.
É nela que se busca o alimento, a caça, a pesca, a colheita dos frutos, os locais para
fazer roça. É nela que se buscam os materiais para construir o xapono, a casa em forma
circular, típica morada yanomamɨ. Nela se buscam remédios, por ela os caminhos para
chegar a outras aldeias. Há dimensões da vida quotidiana as mais diversas que são
experienciadas na floresta.
Com o início da atividade extrativista, descrita acima, delineia-se uma nova
forma de relação com a floresta. Balaunde e Echeverri mostraram como a relação com o
Yoko se tornou mais complexa entre os grupos airo-pai. Cremos que a relação com a
floresta, entre os Yanomamɨ, também se tornará, já está se tornando mais complexa. Isto
é: uma nova dimensão se somou às outras dimensões anteriormente vivenciadas. Que
implicações isso pode ter, só um trabalho de campo poderá revelar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final do artigo com a impressão de que os desafios de tradução
entre dois mundos diferentes, isto é, duas concepções de mundo diferentes, a ameríndia
e a dos Estados Nacionais americanos, mas também as sociedades americanas não-
indígenas como um todo, é o desafio subjacente aos três casos analisados. O diálogo
entre saberes e valores de sociedades tão distintas, seja na formulação, implementação
e realização de políticas, seja no processo de contato comercial é um dos momentos
cruciais nas negociações de direitos, e os três casos analisados têm em comum o
malogro sistemático deste diálogo. Nadasdy, Balaunde, Echeverri, Albert, Lenaerts,
Carneiro da Cunha, Descola, Viveiro de Castro, todos eles pesquisaram a fundo esta
questão. E é para esta questão que este exercício preliminar apontou.
A perpetua mudança experimentada pelos indígenas a partir do contato com os
Estados Nacionais e sociedades não-indígenas apresentam consequências dramáticas.
Acreditamos, a partir de nossas experiências de trabalho junto a este povo, que a saúde e
a garantia da integridade territorial são os dois eixos mais problemáticos nesta relação.
Mas a ideia de desestruturação social atualmente está afastada do povo Yanomamɨ: as
mudanças que ocorrem atualmente são gradativas, e numa dinâmica geracional.
A inserção dos Yanomamɨ no complexo extrativista do Rio Negro é um
fenômeno múltiplo, e o viés das mudanças na relação com o Estado e sociedade
brasileira, mudanças nas relações comunitárias e intercomunitárias e mudanças nas
relações com a florestas formam parte de um extenso leque de consequências, ainda por
ser desvendado em sua integra. Exortamos antropólogos interessados no tema do
contato a investigar este caso instigante e complexo e de grande importância para a
compreensão da realidade amazônica. Estudos sobre este caso trarão grandes
contribuições não somente à etnologia indígena, mas à antropologia social como um
todo e demais outros ramos das ciências sociais.
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