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Namoro de Onça
Ensaio sobre a dinâmica das relações entre
Povos Indígenas, Estado e Natureza em
contextos de políticas de gestão
compartilhada de territórios e recursos
naturais
Felipe Nascimento Araujo
Setembro e Outubro/2014
INTRODUÇÃO
A partir da década de 2.000 determinadas comunidades do povo indígena
Yanomamɨ localizadas nos afluentes da margem esquerda do Rio Negro iniciaram a
comercialização das plantas Piaçaba e Cipó-Titica, inserindo-se assim dentro do
complexo extrativista do Rio Negro1. Neste artigo nos propomos efetuar um exercício
teórico para levantar quais podem ser as principais consequências desta inserção no que
tange às dinâmicas nas relações com o Estado e a sociedade brasileira, nas relações
intercomunitárias e nas relações com a floresta. Partimos da premissa de que tanto a
mudança nas relações com o Estado e sociedade brasileira quanto as mudança nas
relações intercomunitárias e com a floresta que os Yanomamɨ envolvidos na atividade
extrativista experimentam são processos deste mesmo fenômeno social: a inserção no
complexo extrativista do Rio Negro.
Aqui nos esforçaremos para estruturar as hipóteses sobre estas novas dinâmicas.
Para tanto revisaremos trabalhos antropológicos realizados com povos indígenas que
experimentaram processos semelhantes. Analisaremos a pesquisa feita por Paul
Nadasdy entre 1995 e 1999 sobre a relação entre o povo indígena Kluane e o Estado
Canadense no Sudoeste do território federal Yukon, Hunters and Bureaucrats – Power,
Knowledge, and Aboriginal-State Relations in the Southwest Yukon, publicada em 2003,
para teorizarmos as possíveis consequências das novas dinâmicas nas relações entre os
Yanomamɨ e o Estado e sociedade brasileira, bem como as possíveis consequências nas
relações intercomunitárias das comunidades envolvidas. Analisaremos o trabalho de
Luisa Elvira Balaunde e Juan Alvaro Echeverri sobre a comercialização do Yoko
(Paullinia Yoko) pelos grupos indígenas airo-pai, da região de fronteira entre Peru,
Equador e Colômbia (região amazônica), para teorizarmos os possíveis impactos sobre
1
Definimos como complexo extrativista do Rio Negro a rede de extração, escoamento e comercialização
de produtos florestais na região da Bacia Hidrográfica do Rio Negro. Grande parte desta produção tem
sua dinâmica orientada pela demanda de Manaus, além de atender as demandas locais dos municípios do
Negro. No entanto há determinados casos onde a comercialização dos produtos florestais extrapola esta
rede, formando redes comerciais de maior amplitude.
o sistema simbólico dos grupos yanomamɨ envolvidos na atividade extrativista em sua
relação com a floresta - “Como un padre que da consejo: Paullinia yoco entre los airo-
pai del Perú”, artigo do livro organizado por Marc Lenaerts e Spadafora Pueblos
indígenas, plantas y mercados – Amazonía y Gran Chaco, publicado em 2008. Veremos
o que há de subjacente nestes dois casos e quais seriam as possíveis hipóteses a serem
tecidas em relação às consequências dos processos analisados em nosso caso específico:
o fenômeno social da inserção de determinadas comunidades yanomamɨ no complexo
extrativista do Rio Negro e as consequentes novas dinâmicas nas relações com o Estado
e sociedade brasileira, nas relações intercomunitárias e nas relações com a floresta.
O delineamento de novas dimensões nesta gama de relações são processos
realizados no âmbito do mesmo fenômeno social e desta maneira estão inter-
relacionados. Analisa-los separadamente será um recurso metodológico. Assim,
características transversais a estes processos serão abordadas ao longo do artigo.
2
Thëpë é um sufixo presente em formas pouco distintas nos dialetos da família linguística Yanomami que
caracteriza coletivo (Ferreira, Helder Perri 2011)
3Albert (1986), reunindo diferentes estimativas populacionais (Colchester 1982, 1984a; Lizot 1984a;
Schokolnik 1984; Albert, Zacquini 1979), chegou ao total de 10.248 Yanomami na Venezuela e 8.400 no
Brasil em 1986 – portanto uma população de no mínimo 18.648 indivíduos naquele ano. Assim podemos
estimar uma média anual de crescimento populacional de 2,82% ao ano entre 1986 e 2006 –
compensando largamente os impactos epidemiológicos sofridos desde meados da década de 1970 até o
início da década de 1990.
a invasão garimpeira4 causaram surtos de alta mortalidade por propagação de doenças
infectocontagiosas como malária, gripe e sarampo. Neste quadro o caso mais dramático
foi o da malária5.
Aproximadamente cinco mil Yanomamɨ vivem na porção da TIY que abrange o
estado do Amazonas, nos afluentes da margem esquerda do Rio Negro, suas
microbacias hidrográficas e nas serras. Os grupos yanomamɨ que vivem propriamente
no curso destes tributários são a população de contato mais antigo com a sociedade
nacional, na medida em que os contatos travados com a frente de expansão extrativista
remontam ao início do século XX (Albert 1986), quando a maior parte da população
yanomamɨ iniciou seus primeiros contatos a partir dos anos 1970, com as obras da
Perimetral Norte e as invasões de seu território por garimpeiros. Com exceção da região
de Maturaca, alvo de invasões garimpeiras, e da região do Demini, impactada pelas
obras da Rodovia Perimetral Norte, os Yanomamɨ do Rio Negro não sofreram as
implicações epidemiológicas e de desestruturação social vivenciadas em outras regiões
severamente impactadas por estes eventos desde a década de 1970 à de 1990. Apesar
disso as regiões do Rio Marauia e dos rios Araca e Parawaú (os dois últimos na micro-
bacia do Rio Demini) apresentam um dos mais altos índices de casos de malária da TIY
(FUNASA 2005). No caso específico de Araca, esta região é constatada como endêmica
para a malária desde os primeiros registros feitos por cientistas que visitaram a região
(Holdridge 1932).
Desde a década de 1990, com a homologação da Terra Indígena Yanomami em
1992, os desafios passaram a ser outros, vencida a etapa da garantia do direito ao
território. A partir de então, a relação do povo Yanomamɨ com o Estado Brasileiro
começa a tornar-se mais complexa, na medida em que políticas eram elaboradas e
implementadas na Terra Indígena. As principais políticas estavam voltadas para a área
de saúde, educação e combate à invasão garimpeira, e monitoramento da fronteira
4 No final da década de 1970, após a divulgação dos dados do Projeto RADAM Brasil, que apontaram
para a existência de grandes jazidas de cassiterita e ouro na Serra Surucucus (TIY), houve uma primeira
leva de invasão garimpeira e inclusive de empresas de mineração (Doceogeo, subsidiária da Vale do Rio
Doce). A partir da década de 1980 a invasão de garimpeiros torna-se generalizada, estendendo-se a
diversas regiões da TIY. (Acervo Documental Comissão Pró-Yanomami, Seção de Notícias)
5 Carlo Zacquini, referindo-se à região da Serra de Surucucu na década de 1980, atenta para o fato de
que a malária que impactou as comunidades yanomami da região era excessivamente resistente, pois eram
plasmudium “selecionados”. Ela era transmitida por garimpeiros que se automedicavam. Neste processo
malárias “mal curadas” perpetuavam protozoários cada vez mais resistentes aos medicamentos
disponíveis. (Entrevista. 9/Jun/2013 ainda não publicada)
envolvendo múltiplas instituições do Estado (ver seção “Namoro de Onça: Esforços
para o diálogo no Contexto de Políticas Verticais”).
Na área da saúde houve a terceirização do atendimento, que passou a ser
responsabilidade de Organizações Não-Governamentais, sendo repassados pelo
Ministério do Meio Ambiente, para estas ONGs, os recursos financeiros destinados ao
Distrito Sanitário Yanomami, que teve durante quase duas décadas sua função restrita
ao monitoramento das atividades. Neste período houve iniciativas de cursos de
formação de agentes indígenas de saúde, microscopistas indígenas e outras
especialidades técnicas. Na área de educação, igualmente, além das iniciativas no
âmbito das parcerias efetuadas entre os Yanomamɨ e determinadas ONGs e missões
religiosas, a partir do final da década de 2000 as Secretarias de Educação dos estados de
Amazonas e Roraima iniciaram um processo de incorporação de professores Yanomamɨ
para o nível Fundamental. E, quanto à Fundação Nacional do Índio, através de sua
Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami, houve tentativas pontuais de efetuar a
integração de jovens Yanomamɨ em ações de monitoramento da Terra Indígena.
A sobreposição das Unidades de Conservação à Terra Indígena Yanomami,
assim como a existência de Unidades de Conservação limítrofes à TIY, é uma
conjuntura geopolítica causadora do imperativo da interlocução entre os Yanomamɨ e as
instituições estatais responsáveis por políticas em meio ambiente (veja o Mapa 1 para
contextualização. Um observação: no mapa registramos os nomes das Unidades de
Conservação que estão sobrepostas à Terra Indígena. Existem outras Unidades de
Conservação, limítrofes à Terra Indígena, que estão apenas indicadas. Para informações
mais detalhadas sobre estas UCs ver Albert e Le Tourneau 2004). Ou seja, antes do
início das atividades extrativistas os Yanomamɨ já lidavam com estas instituições por
motivos diferentes. No caso do Parque Nacional Pico da Neblina, as discussões sobre
jurisprudência da região sobreposta – usufruto exclusivo dos índios ou gestão do
Instituto Chico Mendes de Biodiversidade?; e, quanto às Unidades de Conservação
limítrofes, Parque Nacional Serra da Mocidade, Estação Ecológica do Niquiá, Estação
Ecológica de Caracaraí, Estação Ecológica de Maracá, cuja existência é vista por
lideranças indígenas e parceiros como benéfica, pois serviriam como área de
amortecimento de pressões ambientais externas à Terra Indígena como invasão de
posseiros e grileiros, a interlocução se dava de maneira cosmética, com a ocupação de
cadeiras nos Conselhos destas UCs. A relação dos Yanomamɨ com os órgãos
responsáveis pelas políticas em meio ambiente será analisada na última parte desta
seção. Vale ressaltar que a abordagem será feita a partir da conjuntura de inserção de
determinados grupos yanomamɨ no complexo extrativista do Rio Negro.
É importante ressaltar também a presença do Exército Brasileiro na fronteira,
efetuando o monitoramento da Fronteira Norte através da instalação de Pelotões de
Fronteira dentro da Terra Indígena Yanomami, que se encontra inserida na Faixa de
Fronteira (150 quilômetros para dentro do território nacional, acompanhando toda a
fronteira, onde o Exército tem relativa autonomia de ação).
6 A situação de patronagem e escravidão por dívida (aviamento) ocorre na Comunidade Água Viva
baseada na exploração da Piaçaba. Esta comunidade se localiza fora da Terra Indígena Yanomami (TIY),
no alto curso do Rio Preto (sub-bacia do Padauiri). Nela, Yanomami que migraram do Rio Marauia,
situado dentro da TIY, convivem com não-indígenas sob esta situação.
destas plantas, a aceitação da concepção de natureza do Estado passa a ser necessária
para o sucesso do objetivo. Assim, agrega-se às plantas a dimensão de recursos
naturais, produtos florestais, e a visão de natureza subjacente ao léxico
institucionalizado da legislação ambiental passa a coagir as ações dos Yanomamɨ. Uma
coerção autônoma, sem intencionalidade, por um lado – a independência burocrática do
léxico. Por outro uma coerção institucional , realizada na formulação e execução dos
Planos de Manejo cuja função é articular e organizar as etapas da atividade, bem como
sua adequação à legislação, junto aos gestores ambientais das instituições estatais. Os
impactos à floresta na no que tange à pressão sobre o ciclo de renovação destes produtos
deve também ser apontado, porém no atual estágio de exploração não se configurou um
contexto de ameaça à população local de Cipó-Titica e da Piaçaba – enorme se
comparada à magnitude da atividade de extração realizada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao final do artigo com a impressão de que os desafios de tradução
entre dois mundos diferentes, isto é, duas concepções de mundo diferentes, a ameríndia
e a dos Estados Nacionais americanos, mas também as sociedades americanas não-
indígenas como um todo, é o desafio subjacente aos três casos analisados. O diálogo
entre saberes e valores de sociedades tão distintas, seja na formulação, implementação
e realização de políticas, seja no processo de contato comercial é um dos momentos
cruciais nas negociações de direitos, e os três casos analisados têm em comum o
malogro sistemático deste diálogo. Nadasdy, Balaunde, Echeverri, Albert, Lenaerts,
Carneiro da Cunha, Descola, Viveiro de Castro, todos eles pesquisaram a fundo esta
questão. E é para esta questão que este exercício preliminar apontou.
A perpetua mudança experimentada pelos indígenas a partir do contato com os
Estados Nacionais e sociedades não-indígenas apresentam consequências dramáticas.
Acreditamos, a partir de nossas experiências de trabalho junto a este povo, que a saúde e
a garantia da integridade territorial são os dois eixos mais problemáticos nesta relação.
Mas a ideia de desestruturação social atualmente está afastada do povo Yanomamɨ: as
mudanças que ocorrem atualmente são gradativas, e numa dinâmica geracional.
A inserção dos Yanomamɨ no complexo extrativista do Rio Negro é um
fenômeno múltiplo, e o viés das mudanças na relação com o Estado e sociedade
brasileira, mudanças nas relações comunitárias e intercomunitárias e mudanças nas
relações com a florestas formam parte de um extenso leque de consequências, ainda por
ser desvendado em sua integra. Exortamos antropólogos interessados no tema do
contato a investigar este caso instigante e complexo e de grande importância para a
compreensão da realidade amazônica. Estudos sobre este caso trarão grandes
contribuições não somente à etnologia indígena, mas à antropologia social como um
todo e demais outros ramos das ciências sociais.
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