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José William Vesentini

O ensino da Geografia e as
mudanças recentes no
espaço geográfico mundial

a
2 edição ampliada e atualizada
Com encarte a cores: três
mapas atualizados da ex-URSS,
da Europa e do mundo.

EDITORA ÁTICA, 1992


José William Vesentini
P r o f e s s o r d o u t o r d o D e p a r t a m e n t o d e Geografia d a U S P - F F L C H
V á r i o s a n o s de experiência c o m o p r o f e s s o r do ensino público e particular de I °. e 2° grau
A u t o r d o s livros: A Capital da Geopolítica, Sociedade e Espaço, firasil - Sociedade e Espaço e
Geografia Crítica (4 v o l u m e s , em co-autoria c o m Vânia Vlach)
C o o r d e n a d o r da série paradidática "Viagem pela Geografia", da Editora Ática

2a. edição ampliada e atualizada, 1 9 9 2

editora atica
I. Introdução
Questões que surgem
Objetivo deste folheto

Vivemos num período revolucionário

II. A crise do "mundo socialista"


A perestroika: seus objetivos e dilemas

O fim da perestroika e da União Soviética


O golpe de agosto
O problema das repúblicas

A economia planificada e seus problemas


O problema da burocratização

O "modelo soviético" e seu ocaso

III. A nova divisão internacional do trabalho

IV. A nova ordem geopolítica mundial


A ascensão e queda das grandes potências
O novo papel da O N U

V. A redescoberta da complexidade do mundo

V I . Sugestões de leitura e de atividades didáticas


OTAN. Levanta-se inclusive a idéia de um
novo tratado, que começa embrionariamen-
te com a coordenação das tropas militares da
França e da Alemanha, para com o tempo
substituir ou redefinir a OTAN, no sentido
de ampliar o poderio europeu.
A Alemanha Ocidental e a Alemanha
Oriental se uniram em 1990, formando um
único país, fato que até há alguns anos pare-
cia impossível ou extremamente improvável
para este século.
A rapidez desse processo surpreendeu a
todos: a partir da crise do "mundo socialista",
especialmente da Europa Oriental, no final
dos anos 80, tudo indicava que a reunifica-
No início de 1991, elaboramos um fo- ção alemã pudesse ocorrer. Só que os analis-
lheto que destacava as transformações re- tas políticos, os jornais e demais meios de co-
centes e importantes no espaço geográfico municação, inclusive os germânicos, divul-
mundial. Ele resultou de um pedido de pro- gavam uma data mais longínqua, possivel-
fessores de Geografia por ocasião de um curso mente 1997.
de reciclagem que havíamos ministrado. A velocidade das mudanças nestes dois
De fato, a velocidade das mudanças no últimos anos foi realmente impressionante, o
cenário internacional ocorridas nos últimos que entre outras conseqüências acabou de-
anos foi enorme, fato que desatualizou prati- satualizando atlas e livros de Geografia de
camente todos os manuais e atlas geográficos todos os recantos do planeta. Por um lado,
elaborados até aquela data. isso gerou angústias em alguns, pelo fato de
Nos útimos anos, especialmente em 1989, não haver respostas seguras e pelas freqüentes
em 1990 e também em 1991, enormes trans- cobranças feitas pelos alunos ou pelo público
formações ocorreram no espaço mundial. A em geral. Por outro lado, contudo, isso tem
perestroika na (ex-) União S o v i é t i c a - e o seu sido extremamente gratificante pelo renova-
final em agosto de 1991, com todas as suas do interesse que a Geografia vem suscitando,
conseqüências, ainda não completamente de- pela crescente busca de subsídios ou opiniões
finidas - mudou a face desse enorme país, que de geógrafos por parte da imprensa em geral.
se desagregou. A progressiva - ou, em alguns Nunca houve tanta procura pelos conhe-
casos, acelerada - implementação de meca- cimentos ou procedimentos geográficos, por
nismos de mercado nas economias planifi- parte dos principais jornais, das principais
cadas acabou gerando dúvidas sobre a viabili- revistas e pelas principais redes de televisão,
dade ou continuidade nos anos 90 deste últi- como nestes três últimos anos; e isso em todo o
mo tipo de vida econômica. mundo. Noções ou temas que antes eram
A área de influência geopolítica da (ex -) quase que restritos aos meios educacionais ou
União Soviética em grande parte ruiu. O acadêmicos, tais como fronteiras e suas rede-
Pacto de Varsóvia foi extinto em meados de finições, mapas-múndi, geopolítica, nações e
1991, e os europeus ocidentais já começam a territórios, Estados-nações e t c , hoje come-
se sentir incomodados pela presença em seu çam de alguma forma a ser usados na vida co-
continente das tropas norte-americanas da tidiana pelas pessoas e pela mídia.
rapidez das mudanças e da necessidade de um
Q u e s t õ e s que s u r g e m
tempo mínimo (alguns meses ou até cerca de
Nestas condições, é comum que os pro- um ano) para a reelaboração de uma obra já
fessores de Geografia coloquem aos espe- pronta e estruturada nos textos e nas ilustra-
cialistas em Geografia Política, em Geogra- ções, especialmente os mapas.
fia Regional e até em Cartografia, aos profes- Além disso, existe a demora da reflexão,
sores universitários e pesquisadores, dúvidas pois mesmo tendo os dados à disposição, o
e indagações sobre a atual estruturação do es- intelectual ou cientista sempre precisa de um
paço mundial: tempo mínimo para repensar a ordem das
• Existe ainda uma Europa Oriental? coisas, as teorias e as interpretações. Como
• Como ensinar o tema Europa para os afirmou Hegel ainda no início do século pas-
alunos? sado, a coruja da minerva (isto é, a sabedoria) só
• Pode-se falar ainda num Segundo Mun- levanta vôo ao anoitecer, o que significa que
do ou conjunto de países "socialistas" ? existe a necessidade de um lapso de tempo
• Como é ou será a geopolítica interna- entre o acontecimento e a interpretação, as-
cional neste momento de enfraquecimento sim como é preciso que a poeira assente para
ou final da Guerra Fria? se enxergar mais claramente.
• Com o final, ou pelo menos com o visível No momento em que elaboramos a pri-
enfraquecimento da oposição Leste x Oeste, meira versão deste fascículo (primeiros me-
quais as novas contradições que emergem ses de 1991), ainda não havia nenhum livro
com vigor em seu lugar? perfeitamente atualizado em relação a esses
Essas e outras questões semelhantes de fatos relevantes dos últimos anos. Alguns
fato fazem sentido neste momento de in- poucos conseguiram se atualizar desde então,
definições, de rápidas e radicais transforma- mas já neste início de 1992 percebe-se que
ções na ordem mundial gerada pela Segunda novas transformações ou fatos importantíssi-
Guerra Mundial, ordem essa que se manteve mos ocorreram desde o final do ano passado,
de forma mais ou menos estável durante e que não puderam ser incorporados nessas
cerca de 45 anos. Os anos 90 parecem ser de obras. Afinal, para ser adotado no início de
transição entre uma ordem que envelhece e um ano letivo, todo manual costuma ser im-
começa a se transformar rapidamente e uma presso já em agosto/setembro do ano ante-
nova ordem internacional que ainda não rior, para fins de distribuição aos professores
está plenamente constituída, mas que pode que o irão analisar.
ser vislumbrada através de alguns fatos que Só que vivemos numa época excepcio-
descreveremos a seguir. nal, em que poucos meses fazem uma grande
diferença a respeito da nova ordem internacio-
nal e do novo mapa-múndi. Mesmo que os li-
Objetivo deste folheto vros fossem impressos em fevereiro ou março,
por exemplo, também haveria em agosto ou
setembro uma defasagem face às mudanças
O objetivo deste folheto é o de auxiliar
ocorridas desde então. Há alguns momentos
os professores de Geografia na tarefa de en-
da História em que um livro ou atlas pode
tender o mundo de hoje. E claro que ele seria
passar anos ou até décadas sem grandes ou pro-
desnecessário se os livros em geral, especial-
fundas atualizações; são momentos de trans-
mente os didáticos ou paradidáticos, estives-
formações lentas ou quase imperceptíveis.
sem completamente atualizados, contendo
Mas existem momentos nos quais as mu-
estas considerações ou análises que faremos
danças históricas se aceleram, com rápidas
aqui. Isso, contudo, é impossível em face da
redefinições de fronteiras e nas relações eco- tico-diplomáticas e militares (em especial o
nômicas e geopolíticas. Japão e a nova Europa unificada).
Consideramos nossa obra Sociedade e es-
paço em sua nova edição reformulada, de
V i v e m o s n u m período 1992 (mas impressa em setembro de 1991),
revolucionário como o que existe hoje de mais recente e mo-
derno, assim como a coleção Geografia críti-
Desde 1989 vivemos num desses perío- ca, 4 volumes ( I edição de agosto de 1990 e
a

dos revolucionários, no qual pode-se dizer que 3 edição atualizada em setembro de 1991),
3

oconem transformações sem dúvida nenhu- de nossa autoria em conjunto com Vânia R. F.
ma comparáveis àquelas resultantes da Se- Vlach. Todavia, mesmo nestes casos de rápi-
gunda Guerra Mundial ( 1 9 3 9 - 1 9 4 5 ) . Na- da atualização de textos, mapas e informa-
quele momento, em meados do nosso século, ções, também permanece uma pequena defa-
uma velha ordem internacional conheceu seu sagem oriunda do fato de haver um inevitável
fim, com o declínio da Inglaterra e demais lapso de tempo entre a impressão e os meses
potências européias (Alemanha e França) e seguintes, quando novos acontecimentos al-
a ascensão de novas potências hegemônicas teraram mais uma vez o mapa político mundial.
(Estados Unidos e União Soviética), as quais, Este folheto, dessa forma, também em
durante mais de quatro décadas, lideraram nova edição ampliada, visa mais uma vez
seus respectivos campos ou "blocos" (o "mun- suprir uma lacuna aberta pela História atual,
do" capitalista e o mundo do socialismo real). por recentíssimos e relevantes fatos que nos
Neste e nos três últimos anos, estamos as- levam a repensar diversos aspectos da ordem
sistindo à desagregação dessa ordem bipolar econômica e geopolítica internacional.
gerada pela guerra. Julgamos assim ser necessário ainda este
No seu lugar vemos a construção paulati- ano oferecer novos subsídios aos professores,
na, já estruturada em vários aspectos e ainda tanto sob a forma de texto como de orien-
indefinida em alguns outros, de uma nova tação bibliográfica e de atividades didáticas,
ordem internacional multipolar, com o final no sentido de que não se perca o papel da
da oposição capitalismo versus socialismo e a Geografia escolar, que é o de ajudar o edu-
ascensão de novos "blocos" ou potências eco- cando a compreender criticamente o mundo
nômicas, tecnológicas e, possivelmente, polí- em que vive.

[Foto ilegível]

Festa de comemoração da união politica e econômica das duas Alemanhas, no dia 3 de outubro de 1990. Nasce daí a
nova Alemanha, com 357 042 km2 e 78 milhões de habitantes, que se constitui hoje no terceiro PNB do mundo, após
os Estados Unidos e o Japão, e o verdadeiro líder econômico e tecnológico da nova Europa unificada.
numa paulatina introdução de mecanismos
de mercado em sua economia planificada. E
a China, desde a morte de Mao Tse-tung e a
ascensão de Deng Xiaoping, em 1976, tam-
bém já vinha abrindo sua economia para o
capitalismo (com um avanço notável em
suas exportações e importações, com a rea-
bertura da bolsa de valores de Xangai, com a
busca de tecnologia ocidental e t c ) .
Nos anos 70 foram inúmeros os acordos
entre os países "socialistas", especialmente a
URSS e algumas nações da Europa Oriental,
com empresas multinacionais capitalistas,
que instalaram filiais nessas áreas: para as
empresas tratava-se de buscar mão-de-obra
V i v e m o s hoje um momento histórico barata e "disciplinada" (pois o direito de greve
em que a experiência auto-intitulada "socia- nesses países só foi conquistado após 1989),
lista" parece estar se esgotando. Talvez nem para essas nações tratava-se de adquirir tec-
seja mais possível falar-se num Segundo nologia e tentar ampliar um pouco o padrão
Mundo, ou "mundo socialista", no século de consumo de suas populações, um padrão
X X I , que já se avizinha. A propriedade priva- baixo quando comparado com o Primeiro
da dos meios de produção - inclusive da terra Mundo. Somente no ano de 1985, por exem-
- foi novamente admitida na ex-União Sovié- plo, já existiam cerca de 140 filiais de empre-
tica, na China e em quase todos os países da sas multinacionais na URSS e na Europa
Europa Oriental. Conseqüentemente, as bol- Oriental.
sas de valores desses países, que foram Mas em 1989 ocorreu uma aceleração
fechadas durante inúmeras décadas, encon- nessas mudanças. Com os ventos liberali-
tram-se agora reabertas. Mecanismos de zantes trazidos pela política da perestroika na
mercado - tais como maior liberdade para as União Soviética, algumas repúblicas re-
empresas tomarem suas decisões, indepen- solveram proclamar sua independência, a
dentemente do plano qüinqüenal em vigor, começar pela Lituânia. Em muitas dessas
os preços oscilando novamente de acordo repúblicas soviéticas, começou novamente a
com a lei da oferta e da procura; o final de inú- ser valorizada a cultura nacional tradicional,
meros subsídios estatais para atividades ou sendo inclusive abolido o idioma russo como
setores econômicos; o final do pleno empre- obrigatório nas escolas.
go para os trabalhadores, com a volta do mer- Na Europa Oriental, milhões de pessoas
cado de trabalho; a falência ou fechamento saíram às ruas exigindo democracia, eleições
de empresas constantemente deficitárias, livres, o fim do monopólio de um só partido
que só eram mantidas por recursos públicos político no poder. Governos foram derruba-
etc. - passam a ser introduzidos nesses países, dos e houve de fato a introdução de radicais
o que diminui o rigor e a centralização da pla- mudanças econômicas e políticas nesses países.
nificação da economia. Quais foram os motivos desses protestos
Apesar de essas mudanças terem se acele- que geraram mudanças?
rado a partir de 1989, não é essa a data inicial Foi a economia planificada um fracasso?
desse processo. A Hungria, desde o início dos O que significou a perestroika e qual foi a
anos 70, já havia pioneiramente ingressado sua importância nessas transformações?
Vamos examinar essas questões nas li- próprio Produto Nacional Bruto do país, tido
nhas a seguir, mas temos que enfatizar o fato durante décadas como o segundo do mundo,
de que essas radicais mudanças no "mundo atrás somente do norte-americano, era às vés-
socialista" não ocorreram isoladamente; elas peras da desintegração (final de 1991) no
constituem na verdade uma parte de trans- máximo o quarto, atrás do produto japonês e
formações globais no espaço mundial. do alemão.
E lógico que esses dados variam de acordo
com a fonte de informações. Afinal, calcular
A perestroika: seus a produção anual de cada nação não é tarefa
objetivos e dilemas fácil.
Há, em primeiro lugar, o problema da
Mikhail Gorbatchev, secretário geral do confiabilidade dos dados, algo gravíssimo em
Partido Comunista e presidente da ex-União especial numa economia centralmente pla-
Soviética, propôs em 1986 a política da peres- nificada, onde os burocratas decidem em seus
troika, palavra russa que significa reestruturação. gabinetes o que "foi produzido" oficialmente,
Em que constituiu a política da perestroika .1
mesmo que esse oficial não corresponda à rea-
Resumidamente, pode-se dizer que ela tinha lidade. Como não há competição nem falên-
como objetivo dinamizar a economia sovié- cias de empresas nessas economias cujos
tica, especialmente o setor civil, constituin- meios de produção foram estatizados, tal proce-
do-se num projeto geopolítico destinado a dimento de colocar nos relatórios produções
manter o país entre as grandes potências do exageradas ou fictícias não ocasiona proble-
século X X I . mas às empresas.
Para compreendermos essa política, te- Apenas os consumidores, os menos aten-
mos que recordar que o mundo sofreu impor- didos numa economia desse tipo, é que serão
tantes mudanças nas últimas décadas e a prejudicados pela carência de bens e pelas in-
própria posição soviética como grande potên- termináveis filas.
cia econômica já nos anos 80 encontrava-se Além desse fato, há ainda o problema de
ameaçada pelo crescimento japonês e pelo expressar essa produção numa moeda interna-
avanço da unificação européia. Do ponto de cional comum, para se poder comparar os
vista econômico, de fato, a União Soviética PNBs. Durante muitas décadas, por exemplo,
já era nos anos 80 uma potência em crise. O o PNB do Japão foi subvalorizado devido ao

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fato de o iene estar com uma cotação muito E por isso que a perestroika foi tanto uma
baixa frente ao dólar. E o contrário ocorreu política interna como externa: para ampliar
com o PNB soviético, que durante muito o consumo da população, incentivando mais
tempo foi supervalorizado em face da co- a economia civil, era necessário enfraquecer
tação do rublo, artificialmente exagerada ou eliminar a guerra fria com os Estados Uni-
frente ao dólar. dos, a constante competição pela renovação
Outro elemento a ser ressaltado é que a de armamentos e por "áreas de influência"
economia soviética - e, nos dias atuais, a (ou de dominação político-militar e às vezes
economia russa - é claramente dividida em até econômica).
duas partes: uma militar, dinâmica e compe- Os acordos com os Estados Unidos e com
titiva, que concorre com o setor armamen- países europeus ocidentais da OTAN foram
tista norte-americano em condições de igual- necessários para aplacar os militares, a chama-
dade; e a outra civil, que sempre recebeu me- da "linha dura". Diminuir os gastos militares
nos recursos humanos e financeiros que a mi- foi uma condição indispensável para ampliar
litar e que acabou dominada por normas os recursos à disposição da economia civil.
burocráticas; esta última é um tipo de econo- E como agilizar a economia civil?
mia que não precisa concorrer com nenhu- Aqui a opção consistiu na introdução
ma outra e que se encontra visivelmente gradual de uma economia de mercado, com
atrasada em relação ao setor militar. empresas estatais ou particulares sendo regi-
Como afirmou Gorbatchev no seu livro das pela competição, com possibilidade de
Perestroika - novas idéias para meu país e o falências ou de elevados lucros. No tocante à
mundo, a União Soviética conseguiu, por um política interna, outro importante aspecto da
lado, enviar astronautas e sondas de pesqui- perestroika foi aglasnost, palavra russa que sig-
sas para a Lua e para Marte, mas, por outro nifica transparência, abertura, e que impli-
lado, não conseguiu fabricar televisores, cou na liberalização política (isto é, maior li-
gravadores ou mesmo simples liqüidifica- berdade para a imprensa, para as pessoas ex-
dores com qualidade e em quantidade com- pressarem suas opiniões, mesmo contrárias às
paráveis à indústria francesa ou italiana (isso do governo etc.). Esta foi uma grande diferen-
para não falar da norte-americana, alemã ou ça da abertura soviética frente à chinesa, que
japonesa). por sinal é anterior: enquanto nesta última só
De um lado, no setor militar, uma econo- houve descentralização econômica e não po-
mia dinâmica e competitiva, que utilizou e lítica (com os protestos e a oposição sendo
ainda utiliza em.parte a melhor tecnologia, reprimidos pelo poder centralizado e autori-
que dispõe dos melhores cérebros do país. E tário que busca permanecer a todo custo), na
do outro lado, no setor civil, uma economia perestroika as duas vieram ao mesmo tempo e
esclerosada, burocratizada, que se caracteriza acabaram se influenciando mutuamente.
até hoje pela carência de bens e pela predo- O grande "calcanhar de Aquiles" da peres-
minância de objetos alheios aos gostos e inte- troika, que levou ao seu final, foi a diversida-
resses dos consumidores (roupas pouco varia- de étnico-nacional dentro da União Sovié-
das, cores simples, padrões comuns e únicos tica. A União Soviética, nome criado em
e t c ) . A famosa "prioridade aos bens de pro- 1922 após um domínio russo sobre inúmeras
dução", tão divulgada pela União Soviética outras repúblicas, sempre foi um país de frágil
desde os anos 1930, na realidade escondeu uma unidade do ponto de vista da nacionalidade.
valorização do setor armamentista. E isso fez E muito mais uma continuidade do império
em detrimento do setor civil da economia, czarista russo, no qual havia uma dominação
ou seja, do consumo da população. russa sobre outras etnias e nacionalidades.

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As décadas de "socialismo" não esconderam
O fim da perestroika e da U n i ã o
o fato de que os russos sempre tiveram privi-
Soviética
légios na União Soviética: na cúpula do par-
tido oficial e dominante, o PC soviético, nos
Pode-se dizer que a perestroika acabou em
altos escalões das Forças Armadas, na locali-
agosto de 1991, por ocasião de um frustrado
zação das mais importantes indútrias etc. A
golpe militar. Essa política liberalizante na
liberalização no país, mesmo sem o preten-
realidade enfrentava três tipos principais de
der, deu espaços para o ressurgimento de sen-
oposição ou pressão.
timentos nacionais que durante muito tem-
De um lado havia a chamada "linha dura"
po foram reprimidos e abafados. Manter a
ou stalinista, representada pelas camadas do-
unidade do país por meio da implantação de
minantes que se sentiam atingidas pela aber-
um sistema federativo foi um duro desafio
tura econômica e política: alguns militares
para o futuro da perestroika, que afinal ela não
de alta patente e importantes membros do
conseguiu vencer.
Partido Comunista, único a monopolizar o
poder político e até o poder econômico du-
rante quase oitenta anos; essas camadas no
fundo desejavam manter a situação vigente
nas últimas décadas.
De outro lado havia os chamados "pro-
gressistas", entre os quais o nome de Bóris
leltsin sempre era mencionado; os progres-
sistas pressionavam Gorbatchev no sentido
de apressar a política da perestroika e, conse-
qüentemente, as reformas que ela acarreta-
va; criticavam o ritmo tido como demasia-
damente lento da abertura para a economia
de mercado e da vida política.
Mikhail Gorbatchev, último presidente da ex-URSS e Havia ainda os interesses de maior au-
idealizador da p e r e s t r o i k a , que desempenhou um papel
histórico fundamental nas transformações mundiais dos
tonomia (ou, em alguns casos, até de inde-
últimos anos. A partir de agosto de 1991, Gorbatchev pas- pendência total) das diversas repúblicas que
sou a ter pouca importância nos acontecimentos da compunham a União Soviética.
Rússia e das demais repúblicas da ex-URSS.
O setor tido como mais forte era a "linha
dura", pelo menos até agosto de 1991. Tanto
que freqüentemente se aventava a possibili-
dade de um golpe militar comandado por
esse setor, o que realmente acabou aconte-
cendo. Muitos ministros do governo de
Gorbatchev eram desse setor conservador, o
que é um fato bem conhecido, e foram man-
tidos no poder exatamente porque inspi-
ravam um certo temor e respeito. Foi em es-
pecial por esse motivo que o ritmo da abertu-
ra de fato não era muito intenso até 1991.
Havia mais retórica e discursos da perestroika
Bóris leltsin, primeiro presidente da Federação Russa
eleito por voto direto em toda a história dessa nação e per- e da glasnost do que mudanças reais, profun-
sonagem histórico de primeiro plano após agosto de das e irreversíveis.
1991.

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As transformações do final do anos 80 até na Lituânia), fato que paralisou as tropas.
1991 indubitavelmente foram mais intensas Houve um momento em que os soldados
na Europa Oriental que na própria União So- não sabiam se obedeciam aos golpistas, entre
viética. Basta lembrar que até meados de 1991 os quais estava o próprio ministro do exérci-
grande parte dos recursos financeiros do to, ou aos políticos que se opunham ao golpe
Estado soviético ainda era destinada ao setor e contavam com amplo apoio popular. Estes
militar e o Partido Comunista continuava na últimos acabaram vencendo e o resultado do
prática a monopolizar o poder político. Até golpe malogrado foi o contrário do que pre-
agosto de 1991 esse setor da "linha dura" tendiam os golpistas: ao invés de manter a
ainda dominava grande parte dos principais integridade da União Soviética e impedir
cargos políticos e militares no país, mesmo novas aberturas na vida política, consolidan-
convivendo arduamente com a perestroika. do o poder nas mãos do Partido Comunista, o
Naquele momento discutia-se um trata- golpe acabou acelerando a desagregação do
do da União que concedesse mais autonomia país, gerando novas aberturas e provocando
(mas não a independência) às diversas re- o fim do próprio Partido Comunista da
públicas; no fundo o tratado objetivava man- União Soviética.
ter a integridade do país, com algumas con- Com o fracasso do golpe, que contou com
cessões aos interesses das repúblicas, e que o apoio ou a cumplicidade da imensa maioria
estava em vias de ser assinado. dos burocratas do Partido Comunista, as au-
toridades das diversas repúblicas ganharam
mais força. Esses governos sempre foram subor-
O golpe de agosto dinados aos interesses do governo central, o
soviético, mas a reação ao golpe praticamen-
A tentativa de um golpe militar depondo te esvaziou esse poder centralizado e fortale-
Gorbatchev e criando uma junta para substi- ceu as diversas autoridades regionais das re-
tuí-lo, implementada em agosto de 1991, públicas.
visava exatamente impedir a assinatura des- Após a rendição dos golpistas e a liber-
se tratado e a continuidade da política de aber- tação de Gorbatchev, percebeu-se que este já
tura da perestroika. Se fosse bem sucedido, não tinha mais autoridade nem poder. O po-
esse golpe poderia talvez reavivar a guerra der de fato estava com o governo da Rússia,
fria e o papel da superpotência "socialista" da em primeiro lugar, e com o governo das ou-
União Soviética, algo de futuro duvidoso tras repúblicas. Gorbatchev teve um impor-
num momento de ascensão de novas potên- tante papel histórico, mas acabou o governo
cias e de declínio econômico e tecnológico com pouca representatividade popular. Ape-
desse imenso país. sar de seu gênio reformista, na realidade ele
Ocorreu todavia algo que ninguém es- foi o último governante eleito por via indire-
perava: uma rápida e maciça reação do povo ta pelos parceiros do Comitê do Partido Co-
nas ruas se opondo aos tanques. Ao pren- munista. Já os presidentes das repúblicas de
derem Gorbatchev e anunciarem pelos meios uma forma geral, como leltsin da Rússia e al-
de comunicação que havia um novo governo guns outros, foram eleitos por via direta, em
no país, ao enviarem tanques para controlar eleições populares.
os edifícios públicos, os golpistas não espera- E o Partido Comunista da U R S S saiu ar-
vam a manifestação popular, que foi acom- rasado com o fracasso do golpe: edifícios fo-
panhada pela reação de políticos progressis- ram depredados, membros eminentes perde-
tas e de outros políticos ligados aos interesses ram seus cargos e elementos de menor prestí-
nacionais de suas repúblicas (por exemplo, gio se apressaram em repudiar suas antigas

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idéias e adotar novas posições. Daí se afimar a defesa e as Forças Armadas.
que a perestroika foi liquidada com o resulta- Os governantes da Rússia, a maior e mais
do do golpe: ela consistia antes de mais nada populosa república da ex-URSS, evidente-
numa política de reformas que pressupunha a mente desejam recriar esse imenso país sob
liderança desse partido. Era uma política de um novo rótulo. Daí apregoarem a coorde-
abertura "de cima para baixo", conduzida de nação centralizada das Forças Armadas, que
forma controlada, buscando manter a inte- na prática significaria a continuidade do
gridade da União Soviética e a hegemonia des- domínio russo sobre as demais repúblicas.
se partido que tomou o poder em outubro de Outras repúblicas, especialmente a Ucrânia,
1917. Como as radicais transformações no insistem em ter seu próprio exército, inde-
país a partir de agosto de 1991 fugiram do con- pendente da CEI.
trole desse partido, que praticamente deixou de
existir, pode-se dizer que a perestroika morreu.
A partir do golpe começou a era pós- O problema das repúblicas
perestroika.
Foi também o fim da U R S S , tal como ela As repúblicas meridionais (Casaquistão,
existiu desde 1922. Turquemenistão, Uzbequistão, .Azerbaijão, Ta-
Logo em setembro de 1991, as três repú- diquistão e Quirguízia), vizinhas do Oriente
blicas bálticas - Lituânia, Letônia e Estônia - Médio, nas quais grande parte da população
conseguiram a sua independência, fato ime- segue a religião muçulmana, começam a se
diatamente reconhecido pela O N U e pela aproximar do mundo islâmico, em especial
maioria dos países, inclusive a Rússia. As de- do Irã. A crescente expansão do fundamen-
mais repúblicas encontram-se num impasse: talismo religioso nessa região poderá afastar
ou ficam juntas, numa comunidade federa- algumas dessas repúblicas das demais da CEI.
tiva, ou se fragmentam de vez. Desde o final E a "política do liqüidificador" implementa-
de 9 1 , estão associadas na Comunidade de da pelo ditador soviético Joseph Stálin nos
Estados Independentes (CEI), organização su- anos 1930 e 40, que consistia na migração
pranacional inspirada no Mercado Comum forçada de povos de uma etnia para repúbli-
Europeu. cas com outras nacionalidades, visando em-
Deixaram de participar da CEI as três baralhar as inúmeras etnias desse imenso país,
repúblicas bálticas e a Geórgia. Esta, desde de- hoje cobra o seu preço ao jogar algumas
zembro de 1991, vive num impasse entre um nações contra outra>.
governo eleito pelo voto e adepto à total in- A autonomia das inúmeras repúblicas
dependência de país (contrário portanto à não é um processo tranqüilo, em especial
participação na CEI) e revoltosos com amplo pelo fato de normalmente existirem popula-
apoio nas Forças Armadas, que tomaram o ções de outras nacionalidades no território
poder em janeiro de 1992 mas enfrentam fre- de cada uma delas. Veja-se o exemplo da Armê-
qüentes protestos populares e cuja posição é nia e do Azerbaijão, duas repúblicas com
favorável a uma aproximação da Geórgia conflitos de fronteiras: há um território rei-
com as demais onze repúblicas. vindicado pela Armênia, Nagorno-Kara-
Nos primeiro meses de 1992, a CEI já era bakh, no qual hoje existe uma mistura de
uma realidade, só que problemática: para uns povos principalmente dessas duas nacionali-
ela deveria constituir somente uma comuni- dades, que pertencia à Armênia e foi en-
dade econômica, um mercado comum; para tregue por Stálin em 1923 ao Azerbaijão.
outros, deveria ser também uma organização Veja-se ainda a própria Rússia, com seu imen-
político-militar, com a função de coordenar so território: existe aí um predomínio da

12
etnia russa (83 % ) , mas também há a forte pre- do, com um déficit de 25 milhões de mora-
sença, especialmente em determinadas re- dias em meados dos anos 80, com a queda da
giões, de outras etnias que almejam maior produtividade na agricultura, com o progres-
autonomia frente aos russos (tais como tár- sivo aumento nas taxas de mortalidade geral
taros, ucranianos, tchuvachos e outros). Os e infantil, daí advindo uma diminuição na
conflitos étnico-nacionais, dessa forma, ain- expectativa média de vida etc.). Acontece que
da persistem na e x - U R S S e deverão se agra- esses problemas eram escondidos ou censura-
var nos próximos meses ou anos. dos, o que criava em muitas pessoas a ilusão
Não se pode esquecer que a "linha dura" de que tudo ia bem. Com a perestroika e a glas-
foi derrotada em agosto de 1991 mas ainda nost esses problemas vieram a público, sendo
sobrevive, esperando a melhor ocasião para divulgados nos meios de comunicação. Na
tentar novamente ganhar mais espaço. Se verdade, alguns deles até se aprofundaram a
persistir a atual situação de declínio econô- partir da desestruturação da planificação eco-
mico e do padrão de vida da população, so- nômica e a introdução meio atabalhoada de
bretudo com a carência de alimentos, é bas- mecanismos de mercado, o que acabou provo-
tante provável que muitos dos que repudia- cando a falência de empresas, o aumento do
ram o malogrado do golpe conservador de agos- desemprego, inflação etc.
to do ano passado revejam suas posições, ilu- O prolongamento dessa crise poderá for-
didos pela propaganda da antiga superpotên- talecer a "linha dura" e suscitar novas inves-
cia "socialista". Afinal, bem antes da peres- tidas desse setor, mesmo que ele dificilmente
troika os problemas econômicos e sociais so- consiga uma volta completa a um passado em
viéticos já se agravavam (com o declínio eco- grande parte já superado e não mais repro-
nômico e tecnológico frente ao Primeiro Mun- duzível.

A e x - U n i ã o Soviética

Com a desintegração da União Soviética, em fins de 1991, as repúblicas que a constituíam associaram-se na Comunidade de Estados
Independentes - CEI. A Geórgia não aderiu à CEI. Letônia, Estônia e Lituânia se haviam desmembrado em setembro de 1991.
As 1 5 Repúblicas da e x - U R S S ( 1 9 9 0 )
2
República Área (km ) População Etnias dominantes Renda per-capita
(em rublos )
!

Lituânia 65 200 3,7 l i t u a n o s (80%), r u s s o s (8,5%) e p o l o n e s e s (7,7%) 2 147

Letônia 64 589 2,7 l e t õ e s (54%), r u s s o s (32%) e b i e l o r u s s o s ( 5 % ) 2 647

Estônia 45 100 1,6 estonianos(65%), russos(83%) e ucranianos(3%) 2 522

Rússia 17 045 400 147,0 r u s s o s (83%), t á r t a r o s ( 4 % ) e u c r a n i a n o s ( 2 , 8 % ) 2 397

Ucrânia 603 700 51,7 u c r a n i a n o s (74%), r u s s o s (20%), b i e l o r u s s o s ( l % ) e


j u d e u s (1%) 1 896

Bieiorússia 207 600 10,2 b i e l o r u s s o s (80%), r u s s o s (11 %) e p o l o n e s e s (4,3%) 2 355

Uzbequistão 447 400 20,0 u z b e q u e s (69%), r u s s o s (11 %) e t á r t a r o s (4,2%) 1 209

Casaquistão 2 717 300 16,5 r u s s o s (41 % ) , c a s a q u e s (36%) e u c r a n i a n o s (6%) 1 605

Geórgia 69 700 5,4 g e o r g i a n o s (69%), a r m ê n i o s (9%) e r u s s o s (7,5%) 2 063

Azerbaijão 86 600 7,0 a z e r b a i j a n o s (78%), a r m ê n i o s (8%) e r u s s o s (8%) 1 730

Moldávia 33 700 4,3 m o l d a v o s (15%), u c r a n i a n o s (64%) e r u s s o s ( 12%) 1 709

Quirguizia 198 500 4,3 q u i r g u i z e s (41 % ) , r u s s o s (22%) e u z b e q u e s (11%) 1 209

Tadiquistão 143 100 5,2 t a d z i q u e s (59%), u z b e q u e s (23%) e r u s s o s (10%) 1 042

Armênia 29 8 0 0 3,3 a r m ê n i o s (90%), a z e r b a i j a n o s (5,3%) e


r u s s o s (2,5%) 1 938

Turquemenistão 4 8 8 100 3,5 t u r c o m e n o s (13%), r u s s o s (65%) e


u z b e q u e s (8,5%) 1 375

* O valor do rublo em 1990, na ocasião da coleta desses dados, era de 1,6 dólar no câmbio oficial.
No câmbio negro, todavia, que é mais realista, o valor do rublo era somente 15 centavos de dólar.

Constituída até 1991 por 15 repúblicas e p e r capita acima da média da ex-URSS, embora
126 nacionalidades, a União Soviética deixou de abaixo da Rússia), alcançaram sua independên-
existir no final desse ano, num processo ainda não cia em setembro de 1991.
completamente definido de autonomia de algu- Essas três repúblicas banhadas pelo mar
mas repúblicas e tentativas de definir as normas Báltico foram ainda as últimas a serem incorpo-
de uma confederação, a CEI - Comunidade de radas à União Soviética, somente em 1940, e
Estados Independentes. Como se percebe pelo conviveram portanto menos tempo com a expe-
mapa e pela tabela, a Rússia é a verdadeira riência da planificação centralizada da vida eco-
sucessora da ex-URSS, uma imensa república nômica, algo que tornou mais fácil a sua sepa-
com mais de 17 milhões de km e cerca de 147
2
ração das demais repúblicas.
milhões de habitantes (por volta de 76% da área Já as repúblicas meridionais, onde há uma
e 55% da população da ex-URSS). A Rússia na forte presença de muçulmanos, são as mais po-
realidade não é uma república unitária e sim bres, com mais baixa renda per capita A Ucrâ-
uma federação onde há várias regiões e repúbli- nia possui uma renda per capita relativamente
cas relativamente autônomas. As demais repúbli- baixa, mas é uma república com um território
cas via de regra são mais pobres que a Rússia, duas vezes maior que a nova Alemanha ou que o
com renda per capita bem rríõ/s baixa. As duas Japão, com uma população significativa (mais de
exceções a esse respeito são as repúblicas bálti- 50 milhões) e com alguns dos melhores solos do
cas da lituânia e da Estônia, que juntamente com mundo, sendo considerada um "celeiro agrícola"
a Letônia (que também possui uma renda para as demais repúblicas.
. Tanques em agosto de 1991 cercados por populares em Moscou. O golpe da "linha dura' fracassou exatamente porque multidões
cercaram os tanques e impediram que as tropas controlassem os edifícios - sede do poder.

É difícil responder à essa pergunta. Pro-


A e c o n o m i a planificada e vavelmente nem mesmo os economistas e
seus problemas planificadores desses países têm respostas
conclusivas. Não existem certezas seguras
É difícil hoje saber se a experiência da neste caso, mas somente respostas provisó-
planificação centralizada da economia vai se rias que certamente irão se alterando com o
repetir em algum outro país do globo. Por en- tempo, com novas experiências e reavalia-
quanto, essa parece ser uma experiência pra- ções. E provável inclusive que a resposta seja
ticamente esgotada, ao menos na forma em sim e não: a planificação da economia deu
que foi adotada e que teve na União Sovié- certo por um lado e fracassou por outro. Ela
tica o seu grande exemplo. É evidente que as foi melhor para implantar um setor pesado de
coisas não mudam de um dia para o outro, e indústrias de bens de consumo. Ela foi mais
nem o que foi construído durante inúmeras apropriada para desenvolver a atividade in-
décadas desaparece em alguns poucos anos. dustrial do que para a agricultura. Ela fun-
A economia planificada deixou profun- cionou melhor numa época de predominân-
das marcas ou heranças na organização social cia das indústrias consideradas avançadas
e espacial desses países e por esse motivo eles nos anos 50 ou 60 (petroquímica, de cimen-
ainda formam, mesmo que provisoriamente, to, metalúrgica e t c ) , mas parece ter fracassa-
um grupo à parte, um Segundo Mundo que se do totalmente no momento de crescimento
industrializou, total ou parcialmente, através de novos setores avançados da atualidade
de uma planificação da economia e que não (informática, telecomunicações, química fi-
pode ainda ser incluído sem problemas no na, robotização, biotecnologia e t c ) .
Primeiro Mundo nem no mundo subdesen- A União Soviética, por exemplo, conhe-
volvido. A quase totalidade desses países, to- ceu um notável arranque industrial nas déca-
davia, há alguns anos está abolindo a planifi- das de 3 0 , 4 0 , 5 0 e parte da década de 60, mas
cação centralizada, que vai sendo substituída já a partir dos anos 70 esse país passou a per-
por mecanismos de mercado e por formas de der terreno frente ao maior dinamismo das
planejamento capitalistas. economias do Japão, da Alemanha e outros,
A planificação da economia deu certo ou em especial no campo da tecnologia moder-
errado? na. Em meados do anos 80, como já vimos, a

15
União Soviética era um país que lutava para rência entre elas nem falências, podia-se pro-
se manter no "grupo dos grandes" nos anos 90 duzir realmente bem menos que o registrado
e especialmente no século X X I . Daí ter surgi- oficialmente, pois o único prejudicado seria
do a política da perestroika, uma tentativa da o consumidor comum (os "consumidores es-
facção mais esclarecida da elite dominante peciais" , a elite privilegiada da burocracia, dis-
soviética de corrigir os problemas econômi- punha de lojas exclusivas, onde nada faltava).
cos e sociais e reforçar a posição desse país no A ausência de iniciativa e de criatividade
grupo das grandes potências. propagou-se mesmo entre os trabalhadores,
também funcionários públicos e com empre-
go normalmente garantido, sem nenhum in-
O problema da burocratização teresse pelo desempenho da empresa. Caso
uma máquina quebrasse, por exemplo, mes-
Um dos principais problemas encontra- mo se os operários soubessem consertá-la em
dos em toda economia planificada é a burocra- poucos minutos, eles preferiam enviar um re-
tização: como todas as normas vêm de cima, latório ao setor competente, que podia levar
isto é, órgãos de planificação, as pessoas com semanas para providenciar o conserto. Como
cargos de decisão (diretores de empresas, por não existia a necessidade de lucros para ga-
exemplo) acabam perdendo a capacidade de rantir os salários, atitudes desse tipo não al-
iniciativa e a criatividade, pois se acostu- teravam os ganhos dos trabalhadores.
mam a fazer apenas aquilo que está previsto Também a inovação tecnológica (e a in-
no plano em vigor. A centralização da eco- trodução de novos modelos de bens) era de-
nomia não prevê os problemas que podem sestimulada nesse tipo de economia, pois
surgir durante a execução do plano, em fun- como não há concorrência entre empresas
ção das características de cada lugar e de cada nem necessidade de agradar aos consumido-
momento. E como, para enfrentar esses pro- res, as inovações tornam-se desnecessárias.
blemas específicos, são exigidas flexibilidade Para que introduzir um novo tipo ou modelo
e capacidade de adequação, o plano emperra de sapato, ou de calças, por exemplo, se o im-
porque está baseado no centralismo e não na portante é apenas a quantidade (o plano es-
descentralização. tabelece que tal fábrica irá fazer x pares de
Os planos qüinqüenais estabelecem de an- sapatos em 5 anos, não dizendo nada sobre
temão o quê e quanto produzir, de quem e on- modelos, cores etc) e nunca a qualidade ou o
de comprar, a que preços vender e t c , e a gosto do consumidor?
grande preocupação do burocrata nomeado Funcionando dessa forma durante dé-
como diretor de uma empresa é cumprir essas cadas, o sistema de planificação da economia
determinações, para continuar no cargo ou mostrou-se incapaz de oferecer à população a
subir na carreira. Esse burocrata não vai se variedade e qualidade de produtos que as in-
preocupar com o fato de que poderia eventual- dústrias do Primeiro Mundo jogam continua-
mente comprar mais barato as matérias-pri- mente nas lojas de todas as cidades.
mas que utiliza, ou que os produtos que fabri- Para tentar dinamizar suas economias, os
ca não agradam aos consumidores. Sua única países que adotavam a planificação centrali-
preocupação é "cumprir as metas" estabeleci- zada passaram a substituí-la há alguns anos
das para sua empresa, mesmo que para isso por mecanismos de mercado, oferecendo in-
tenha que recorrer à ficção estatística (re- clusive incentivos aos trabalhadores mais
latórios falsos). produtivos, o que passou a ampliar as diferen-
Como numa economia desse tipo todas ças salariais. Concorrência entre empresas,
as empresas são estatais, não havendo concor- descentralização das decisões, propriedade

16
privada em inúmeros setores: estas são algu- de objetivos, passando a encaminhar-se na
mas outras modificações que foram sendo in- direção da social-democracia.
troduzidas nesses países nos últimos anos. E interessante registrar que tanto o "mo-
delo soviético" ou leninista como a social-
democracia tiveram origens comuns, oriun-
O "modelo soviético" e das do movimento trabalhista do final do sé-
seu ocaso culo passado e dos primórdios deste. Ambos
buscaram, em grande parte, mesmo que
O modelo seguido pelos países do "socialis- tenham deixado isso de lado a partir de um
mo real" não se limitou "a planificação cen- certo momento, inspiração nos teóricos so-
tralizada da economia. Ele implicava tam- cialistas do século passado, em especial Karl
bém uma vida política dominada por um par- Marx. A separação e até oposição radical
tido único e oficial, que dizia representar os entre essas duas correntes de esquerda ocor-
trabalhadores e que nunca deixava o poder. reu por ocasião da Primeira Guerra Mundial,
Não havia liberdade para outros partidos e devido a diferentes estratégias dos movimen-
menos ainda para eleições periódicas com tos trabalhistas na Europa Ocidental e na
rotatividade nos cargos. O partido oficial, Rússia.
geralmente denominado comunista, se con- Em resumo, podemos dizer que a social-
fundia com o estado e com o governo. E como democracia apregoa mudanças paulatinas
ele apregoava representar os trabalhadores, dentro do capitalismo, um avanço da democra-
as greves eram proibidas por lei. Afinal, cia e da justiça social sem "revolução violen-
como se justificariam greves de operários con- ta" para estatizar os meios de produção. E o
tra um governo (as empresas eram todas es- leninismo, que gerou o "modelo soviético",
tatais) que seria deles próprios? apregoa uma "revolução", dirigida por um
Foi exatamente este o singelo argumento partido político que pretende ser o único re-
utilizado em 1921 por Lênin, o fundador do presentante dos trabalhadores ou do prole-
Estado soviético: o direito de greve só deve- tariado, que significaria o final do capitalis-
ria existir no capitalismo, onde há a proprie- mo e a sua substituição por um novo modelo
dade privada dos meios de produção; com a de economia e de sociedade, o socialismo.
socialização ou estatização dos meios de produ- No primeiro caso temos conquistas gra-
ção, tal direito passaria a ser um crime pas- duais, com uma progressiva melhoria do
sível de prisão e até fuzilamento, uma "trai- padrão de vida (salários, condições e tempo
ção à nação socialista". de trabalho, moradia , participação na vida
Esse "modelo soviético", como era cha- política e nas decisões das empresas, melho-
mado por ter sido introduzido inicialmente rias no meio ambiente e t c ) . No segundo
na União Soviética e posteriormente nos de- caso temos um tudo ou nada, uma ilusão de
mais países "socialistas", começou a mudar mudanças repentinas e radicais: sai o capita-
em 1989. Na maior parte desse países, a lismo (o mal) e entra o socialismo (o bem),
começar pela União Soviética e pelas nações como se as relações cotidianas entre as pes-
da Europa Oriental, o monopólio de um par- soas dependesse de "modelos" sócio-econô-
tido único praticamente já cedeu lugar ao micos, de sistemas que estariam acima dos
pluripartidarismo, o direito de greve é plena- indivíduos.
mente admitido e eleições livres para cargos A social-democracia ganhou terreno na
políticos importantes foram realizadas. A Suécia, na Alemanha, na Dinamarca, na
imensa maioria dos antigos partidos comu- Inglaterra (com o trabalhismo) etc. Ela pro-
nistas ou dos trabalhadores mudou de nome e duziu, durante várias décadas, um "Estado do
bem-estar social" - no qual há seguro-desem- sou o "mundo socialista" desde meados dos
prego, moradia subsidiada para as famílias de anos 80.
baixa renda, excelente serviço médico-hospi- E por esse motivo que tantas estátuas de
talar e previdenciário gratuitos, boa escolari- Lênin, o grande inspirador do modelo sovié-
zação etc. - que hoje serve de inspiração para tico e do socialismo real, foram derrubadas
grande parte do mundo, inclusive para os em Moscou, em São Petersburgo (ex-Lenin-
países que adotaram até há pouco tempo o so- grado), em Praga, em Bucareste e t c , onde no
cialismo real. Existem evidentemente pro- lugar do leninismo entram novas propostas,
blemas na social-democracia, em especial na talvez até ilusórias a longo prazo, em geral
Suécia, mas eles são incomparavelmente me- oriundas dos regimes social-democratas.
nos graves que a profunda crise pela qual pas-

Estátua de Lénin no chão. Lênin, o criador do Partido Bolchevique (depois Comunista), que tomou o poder em outubro de 1917 na
Rússia, é considerado o inspirador do "modelo soviético", tão repudiado apartir de 1989 na Europa Oriental e na ex-URSS. Várias
estátuas de Lênin foram derrubadas por manifestações populares, tanto em São Petersburgo (ex-Leningrado) como em outras cidades
soviéticas e européias.

18
próprio Comecom foi extinto. A Comuni-
dade de Estados Independentes, sucessora da
e x - U R S S , procura desesperadamente se in-
tegrar na Europa e os países europeus orien-
tais começam a ter mais relações com a
Europa Ocidental que com a Rússia, que era
o seu parceiro comercial privilegiado até o iní-
cio dos anos 80.
A antiga Alemanha Oriental, o mais in-
dustrializado dos países "socialistas" da Eu-
ropa, acabou sendo anexada a Alemanha O-
v

cidental. No lugar de uma união ou integra-


ção em bases igualitárias, o que ocorreu de
fato foi uma incorporação de uma parte pela
outra. Praticamente todas as leis da parte
ocidental passaram a vigorar na parte orien-
A t é por volta dos anos 70 o mundo era tal; o marco alemão ocidental tornou-se a úni-
bipolar tanto do ponto de vista político-mili- ca moeda alemã: e as normas econômicas do
tar como no aspecto econômico. Havia de lado ocidental foram ou não introduzidas no
um lado a área ocidental ou capitalista, lide- lado oriental, inclusive com desmanches de
rada pelos Estados Unidos e, de outro lado, a fábricas que não se encaixavam nos padrões
área "socialista", liderada em grande parte (de combate"a poluição, de tecnologia etc.)
pela União Soviética. Existiam na prática do lado ocidental.
dois mercados internacionais: a divisão in- Pouco sobrou do mercado socialista, que
ternacional capitalista do trabalho, onde existiu com seus parceiros e até preços diferen-
havia um centro (Estados Unidos, principal- ciados até o final dos anos 80. Há ainda al-
mente, mas também Europa Ocidental è guns resquícios, como é o caso do Camboja,
Japão, embora secundariamente) e inúmeras do Vietnã, da Albânia ou de Cuba, que mes-
periferias (América Latina, África, Ásia em mo tentando atrair capitais estrangeiros,
geral); e o pequeno comércio entre os países ainda não se adaptaram muito bem a nova v

do Segundo mundo, representado em espe- ordem internacional multipolar.


cial pelo Comecom. Mais de 9 0 % do comér- Cuba, por exemplo, até agosto do ano pas-
cio mundial era realizado por países capital- sado recebia petróleo a baixos preços da
istas, sendo que os países de economia plani- U R S S e vendia açúcar aos países do Come-
ficada eram quase auto-suficientes. com por valores até cinco vezes superiores
Hoje a situação é completamente diferen- àqueles vigentes no mercado internacional
te. Sob o ponto de vista econômico - e tam- capitalista. Só que hoje isso não é mais pos-
bém, em parte, político - , o mundo de hoje sível, fato que vem provocando uma imensa
não é bipolar e sim multipolar. Os Estados Uni- crise de abastecimento nessa ilha. Cuba na
dos continuam sendo um importante pólo realidade foi um modelo explicável pelo
econômico, mas há outros talvez mais impor- contexto da guerra fria e do mundo bipolar,
tantes: o Mercado Comum Europeu, onde se ou seja, uma forma de economia que perdeu
destaca a Alemanha, e o Japão com sua perife- a sua razão de existir.
ria imediata ou países por ele liderados (os "ti- Outra modificação ocorrida na divisão
gres asiáticos", Austrália, Nova Zelândia etc.). internacional do trabalho foi com os países
Não há mais um mercado socialista. O subdesenvolvidos. Eles exportam cada vez

19
mais bens industrializados e comerciam bas- vários países europeus na fila de espera para
tante entre si. Inúmeros países doTerceiro ingressarem nesse mercado bem sucedido (pri-
Mundo são hoje grandes exportadores de meiramente a Suécia, a Suíça, a Finlândia e
produtos manufaturados, que vão desde sapa- outros países da Europa Ocidental, depois
tos até automóveis, passando por aço, produ- as nações da Europa Oriental com maior afi-
tos eletrônicos (inclusive microcomputa- nidade com a economia de mercado, tais
dores), tecidos e roupas etc. Entre esses paí- como a Hungria e a Polônia; há também as
ses encontram-se principalmente a Coréia três repúblicas bálticas da e x - U R S S , por fim
do Sul, Hong Kong, Malásia, Taiwan e a Eslovénia e a Croácia, as duas repúblicas
Cingapura, embora também possam ser in- mais ricas da ex-Iugoslávia e t c ) .
cluídos o México, o Brasil, a África do Sul e Mas há outros mercados supranacionais
outros. E as trocas entre países periféricos importantes: Estados Unidos, Canadá e Mé-
ampliou-se enormemente nas últimas dé- xico já possuem economias bastante inte-
cadas. Há uns 30 anos, por exemplo, menos gradas e discutem os pontos de um novo mer-
de 2 0 % das exportações brasileiras iam para a cado comum da América do Norte. E na
África, o Oriente Médio ou o restante da Ásia se aventa a possibilidade de criação de
América Latina. Hoje essa proporção já um mercado comum com a participação
atinge quase 5 0 % . destacada do Japão e dos "tigres asiáticos".
O mesmo se pode dizer de outros impor- Esses são hoje os grandes centros econô-
tantes países do Terceiro Mundo, que progres- micos, tecnológicos e comerciais do espaço
sivamente passam a exportar cada vez mais mundial: o Mercado Comum Europeu, no
para outros países subdesenvolvidos, de onde qual se destaca a Alemanha, o Mercado da
também estão importando mais produtos. América do Norte, com forte presença dos
Outra forte tendência do mercado mun- Estados Unidos, e a área ao redor do Japão.
dial é a criação de "blocos econômicos" ou A Rússia e as demais repúblicas da ex-
mercados supranacionais, cujo grande exem- U R S S não compõem esse grupo dos três
plo é o M C E - Mercado Comum Europeu. principais centros ou pólos da economia
Este conta atualmente com 12 países-mem- mundial nem têm chances de acompanhar
bros, mas poderá contar daqui a alguns anos esse grupo ainda nesta década.
com 19 e possivelmente até com 23 ou 25: há

20
não encerrou com a possibilidade de uma guer-
ra nuclear, ou de uma terceira guerra mundial.
Os Estados Unidos, por sua vez, pros-
seguem desempenhando seu papel político-
militar com igual ou talvez com até maior
desenvoltura do que antes. E como se atual-
mente houvesse apenas uma superpotência
militar. Em 1989, por exemplo, os Estados
Unidos invadiram o Panamá, destituindo o
dirigente desse país, general Noriega, a pre-
texto de combater o tráfico de drogas (cocaí-
na). E bastante provável que antes da peres-
troika e da política de abertura da União
Soviética e dos países da Europa Oriental, os
Estados Unidos não tivessem coragem de
A ordem geopolítica internacional que tomar uma atitude desse tipo, que ocasionaria
prevaleceu desde 1945 está ruindo. A guerra uma resposta semelhante por parte da super-
fria acabou, ao que parece definitivamente. potência rival.
A partir de 1989, a União Soviética dei- Com a crise do "mundo socialista", os Es-
xou de garantir com suas tropas os regimes tados Unidos parece que se sentiram mais
políticos da Europa Oriental, deixou de cri- "livres" para continuar desempenhando seu
ticar violentamente o capitalismo e a econo- papel de superpotência militar. Em 1990, por
mia de mercado, deixou, enfim, de assumir os exemplo, lideraram um cerco econômico e
papéis que vinha desempenhando desde pelo militar ao Iraque, que tinha invadido o Kuait
menos o final da Segunda Guerra Mundial. em julho daquele ano. Cinco meses depois,
A área de influência geopolítica desse país em j aneiro de 1991, o governo de Washington
desagregou-se vísivel e rapidamente a partir liderou também a ação militar das "forças
de 1989. O Pacto de Varsóvia, poderoso aliadas" contra o Iraque, da qual resultou a li-
instrumento de domínio soviético sobre a bertação do Kuait. Este cerco e a subseqüente
Europa Oriental, foi extinto em 1991. Parece "guerra do golfo" teriam sem dúvida fracassa-
que a própria posição de superpotência mili- do se realizados antes de 1989, pois a União
tar da e x - U R S S - e das repúblicas dela re- Soviética iria fornecer armamentos e outros
manescentes que possuem ainda hoje um bens ao Iraque. No entanto, em 1990 e 1991
forte arsenal de armamentos nucleares, em os soviéticos não tomaram essa atitude típica
especial a Rússia - encontra-se em crise, de- da Guerra Fria porque estavam mais interes-
vendo desaparecer definitivamente. sados, nesta sua nova fase de abertura para a
A própria unidade da Rússia, bem como economia de mercado, nas trocas comerciais
da CEI, é frágil e pode dar margem a novos e tecnológicas com os países do Primeiro
separatismos e mesmo a conflitos sangrentos. Mundo.
Todavia, não podemos esquecer que quatro Com o término da Guerra Fria, inúmeras
repúblicas da e x - U R S S - Ucrânia, Casa- perguntas são colocadas:
quistão, Bielorússia e principalmente a Rús- • Novas superpotências militares sur-
sia - possuem armamentos nucleares estoca- girão?
dos, os quais provavelmente tem um poderio • Cessarão ou diminuirão os conflitos ar-
suficiente para acabar com a vida humana no mados no globo?
planeta. O final da guerra fria, dessa forma, • A nova ordem geopolítica mundial é

21
monopolar (isto é, com uma só superpotên- pecial, a Segunda Guerra Mundial, vieram
cia), como apregoam vários autores, ou se somente confirmar o declínio britânico, colo-
encaminha também para a multipolaridade? cando os Estados Unidos como a nova gran-
de potência capitalista internacional. Fo-
ram, contudo, necessárias duas guerras mun-
A ascensão e queda das grandes diais para substituir uma grande potência por
potências outra.
Hoje isso não é mais possível: uma guerra
Durante os últimos séculos, ou até milê- mundial poderia exterminar a humanidade.
nios, a regra geral é de ascensão e declínio de E convém não esquecer que nas últimas dé-
grandes potências econômicas e militares, cadas as elevadíssimas taxas de crescimento
mesmo que suas hegemonias perdurem du- econômico do Japão e da Alemanha decor-
rante séculos. Tal foi o caso do Império Ro- reram em parte do fato de eles não terem
mano, na Antiguidade, ou, a partir do desen- grandes gastos militares. Suas economias po-
volvimento do capitalismo, das inúmeras po- deriam passar por problemas crescentes caso
tências que tiveram durante algum tempo eles investissem bastante no setor militar.
uma supremacia internacional: Portugal e Para se tornar uma superpotência com ar-
Holanda, nos séculos XV e parte do X V I ; mamentos nucleares no atual nível dos Es-
Espanha no século XVII; Inglaterra nos sécu- tados Unidos e da ex-União Soviética, um
lc - XVIII e XIX; e Estados Unidos a partir da país deveria investir dezenas de trilhões de
Segunda Guerra Mundial. dólares, uma quantia gigantesca, que, se des-
Normalmente uma potência inaugura viada para o setor militar, certamente acarre-
sua hegemonia pelo poderio econômico, se- taria um grande sacrifício da economia civil.
guido pelo militar. Segundo essa norma, o Ja- Os gastos militares são improdutivos mas
pão e a Alemanha deveriam começar a inves- até certo ponto necessários para uma grande
tir no seu poderio militar nos dias atuais, pois potência econômica. Isso porque há um custo
desde os anos 80 superaram a (ex-) União e um risco nos investimentos no exterior;
i ética e estão quase alcançando os Esta- além disso, o fornecimento de matérias-pri-
do? Unidos em poderio econômico e tecnoló- mas ou de combustíveis deve ser garantido a
gico. Contudo, há dois elementos complica- qualquer preço.
dores a esse respeito. Primeiro, vivemos nu- Veja-se a crise recente no Oriente Mé-
ma época em que a humanidade pode se auto- dio, deflagrada pela invasão do Kuait pelo
destruir. Segundo, ficou já evidente que os Iraque. Os preços do petróleo poderiam ter
gast - militares reduzem o dinamismo da disparado e essa fonte de energia é básica
economia. para a economia moderna. Uma potência eco-
Até por volta de meados deste século, o nômica deve ter - e costuma ter, dentro da
declínio de uma potência e a ascensão de lógica dominante há séculos - meios políti-
outra era fato relativamente banal, que co-militares para contornar ou resolver tais
provocava guerras e mortes, porém nunca crises. Os Estados Unidos foram o país que
colocava em risco o futuro da humanidade. enviou mais tropas e instrumentos bélicos ao
A Inglaterra, por exemplo, que era pratica- Oriente Médio - e não se pode esquecer no
mente a dona do mundo no século XIX, que tudo isso implica em termos de gastos
começou - ainda nas últimas décadas daque- econômicos. Sabemos contudo que uma ele-
le século - a perder sua supremacia para vação excessiva do preço do petróleo preju-
outras economias em ascensão, como a nor- dica mais as economias japonesa e alemã do
te-americana e a alemã. A Primeira e, em es- que a norte-americana.

22
Até quando os Estados Unidos vão con- Normalmente a influência político-mili-
tinuar atuando como o cão de guarda do tar de uma nação corresponde mais ou menos
"mundo ocidental ou capitalista", numa épo- ao seu poderio econômico e tecnológico, que
ca em que não há outro mundo e o poderio implica no fato de que o enorme e despropor-
econômico dessa superpotência não mais cor- cional papel dos Estados Unidos na defini-
responde ao excessivo papel político-militar? ção da nova ordem internacional deverá ser
Já faz alguns anos que as autoridades disputado ou repartido com uma maior pre-
norte-americanas pressionam o Japão no sen- sença da Europa e do Japão.
tido de que esse país amplie seus gastos mili-
tares e passe a cuidar de sua própria segu-
rança e talvez até das áreas vizinhas no O novo papel d a O N U
oceano Pacífico. E os países europeus da
OTAN, com a nova conjuntura internacio- Outro aspecto a assinalar com o final da
nal e com o final do Pacto de Varsóvia, já guerra fria e da bipolaridade é o reforço da
começam a se sentir incomodados com as O N U e do grupo dos países mais industriali-
tropas norte-americanas em seu continente. zados do Primeiro Mundo, os chamados "sete
Eles já começaram a falar num novo tratado ricos" (EUA, Alemanha, Japão, Grã-Bre-
militar europeu, que excluiria os países de tanha, França, Itália e Canadá). A O N U
fora (isto é, os Estados Unidos). nunca desempenhou um papel muito ativo
Enfim, este é um momento de mudanças nos conflitos internacionais porque o poder
e de indefinições a esse respeito. O mais pro- de veto no Conselho de Segurança dos Es-
vável para os próximos anos, entretanto, é tados Unidos e da União Soviética (além da
que o atual poderio político-militar e diplo- China, da Inglaterra e da França) sempre fez
mático norte-americano acabe sendo repar- com que nenhuma decisão realmente dura
tido com uma crescente influência da nova ou importante pudesse ser sancionada. Com
Europa e do Japão. o final da oposição Leste x Oeste, que deu
Há uma ordem econômica multipolar, origem a tantos impedimentos da O N U
embora aparentemente a ordem geopolítica desde sua criação até 1989, percebe-se que
seja monopolar, mas isso é um fato provisó- há um novo e mais ativo papel para essa or-
rio, gerado pela rapidez da decadência sovié- ganização internacional.
tica. A Europa e o Japão, acostumados du- Pela primeira vez desde que foi criada, a
rante mais de quatro décadas a seguir a lide- O N U em 1990-1991 autorizou uma ação de
rança dos Estados Unidos em face do "perigo natureza militar ofensiva: a libertação do
socialista", vivem neste momento uma fase Kuait por um conjunto de forças liderado
de redefinição de sua política externa e de pelos Estados Unidos e integrado também
busca de maior influência para contrabalan- por tropas italianas, inglesas, sauditas,
çar a liderança norte-americana, que já não egípcias etc.
tem mais fundamento. Afinal, com o fim da O grupo dos "sete ricos", por sua vez, vem
Segunda Guena Mundial e o advento do mun- ampliando a sua importância econômica e
do bipolar, os Estados Unidos sozinhos pos- até política no cenário internacional devido
suíam um volume de produção econômica ao enorme poder de investimentos que pos-
maior que toda a Europa Ocidental e o Japão sui (grande parte do PNB mundial localiza-
somados. Hoje isso mudou substancialmen- se nesses sete países) e devido também à crise
te, com um enorme declínio relativo dos Es- dos países "socialistas" e dos países endivida-
tados Unidos frente ao fortalecimento do Ja- dos do Terceiro Mundo. O final da oposição
pão e dos países europeus ocidentais em geral. Leste x Oeste, dessa forma, vem reforçar

23
ainda mais as disparidades entre o Norte vos atores entraram em cena, aproveitando o
rico, especialmente esse grupo de sete países, vazio deixado pelo congelamento da Guerca Fria.
e o Sul pobre e menos industrializado. Houve, por exemplo, casos de governantes
Quanto aos conflitos armados, o que se de países do Terceiro Mundo que invadiram
vem notando desde 1989 é que a paralisação territórios vizinhos ou ainda que procuraram
da Guerra Fria não os diminuiu. Talvez até ou procuram desenvolver armamentos nu-
mesmo os tenha aumentado. Com o apogeu cleares, visando possivelmente uma situação
da Guerra Fria e a divisão do mundo em futura de potências regionais. E provável
"áreas de influência" dos Estados Unidos e da aindaqueo "clube atômico", isto é, o conjun-
União Soviética, ocorriam guerras, mas não to de países que possuem bombas nucleares,
de maneira tão intensa. Isso porque as duas su- se amplie consideravelmente nas próximas
perpotências sempre procuravam evitar con- décadas.
flitos que pudessem gerar uma crise mundial. Tudo isso vem produzindo um mundo mais
Afinal, a Guerra Fria não era somente uma instável e menos previsível. Por um lado, isto
competição ou oposição, mas também uma é positivo, pois surgem novas possibilidades e
forma implícita de cooperação ou coni- opções, que eram obstaculanzadas pela Guer-
vência, uma política de tentar controlar os ra Fria. Mas, por outro lado, essa situação
demais países e as oposições internas. encerra perigos de violentas guerras ou con-
Nos últimos anos o que se nota é que no- flitos armados internos.

[Foto ilegível]

Reunião dos sete grandes e ou sete ricos (Itália, Alemanha, França, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Japão). A nova ordem interna-
cional em grande parte vai sendo definida pelas politicas - de ajudas, renegociações de dívidas, reconhecimentos de novas nações etc -
desses países mais industrializados.

24
O M U N D O B I P O L A R DE I 945 A T É OS A N O S 80

M U N D O CAPITALISTA

M U N D O SOCIALISTA
Areas satelizadas pela
superpotência "socialista"
O M U N D O MULTIPOLAR DOS A N O S 90

ÁREAS AINDA INDEFINIDAS

/ . C E I - C o m u n i d a d e d e E s t a d o s Independentes ( e x - U R S S ) . 2. C h i n a Pode ser periferizada pelo Japão ou toma-se 3. Oriente Médio. Área de disputa entre os três pólos ou centros importantes, com vantagem momentânea para
Por um fado, pode vir a tomar-se uma periferia da Europa; por outro lado, uma nova potência. os Estados Unidos; pode também vir a ser uma região original pela união dos povos e Estados
pode ocorrer a incorporação das Repúblicas meridionais c islâmicas ao islâmicos, com tendência a não se alinhar preferenúalmente em nenhum dos três centros.
Oriente Médio. Pode também vir a ser um mercado comum efetivo, menos
importante que os três principais.
mo", como faziam alguns até há pouco tem-
po), das culturas ou civilizações, das especifi-
cidades nacionais e até regionais.
E do lado dos que defendiam o "modelo so-
viético" (mesmo que tenham em Cuba seu
grande exemplo), já não há mais um "paraí-
so" a ser apontado como exemplo para o fu-
turo sob o capitalismo. A economia planifi-
redescoberta da cada e o partido político de inspiração leni-

complexidade
nista (o partido que se pretende único, guar-
dião dos dogmas marxistas-leninistas, ex-

do mundo tremamente centralizado e burocratizado,


mas que diz representar os trabalhadores) fra-
cassaram em todas as partes onde vigoraram.
Nessas condições, há uma redescoberta
da complexidade do mundo. A questão das cul-
A Guerra Fria possuía uma ideologia, turas - vide a importância do islamismo no
que consistia na supervalorização da opo- Oriente Médio, por exemplo, ou do hinduís-
sição entre capitalismo (para uns sinônimo mo na índia e do confucionismo na China -
de opressão, para outros de liberdade) e socia- passa a ser revalorizada. Os projetos políticos
lismo ou comunismo (para uns sinônimo de que muitas vezes redefinem as condições
paraíso na Terra, para outros de totalitaris- econômicas - como o da unificação européia
mo). E como se não houvesse outras opções - voltam a ser também valorizados.
ou vias, mas somente duas: uma simbolizada Enfim, redescobre-se a pluralidade de ca-
pelos Estados Unidos e outra pela União So- minhos e opções que existem ou que podem
viética. Como se o século XX pudesse ser in- ser criados. O dogmatismo do "caminho úni-
terpretado como a luta ou oposição entre es- co" está em baixa e a nqueza cultural da plu-
ses dois sistemas sócio-econômicos ou "mo- ralidade e da diversidade ganha espaços nas
dos de produção". teorias e explicações do mundo. Isso, a nosso
Essa ideologia, felizmente, já se encontra ver, é enriquecedor para o ensino da Geo-
superada. Podemos até encontrá-la, sob diver- grafia. E enfrentando desafios e refletindo
sas roupagens, em inúmeras obras dogmáti- sobre as mudanças que se desenvolvem o
cas; mas essa interpretação simplificadora e raciocínio e a criticidade.
falsa já não faz mais adeptos nem tem base de Uma das variantes da ideologia da Guer-
sustentação na realidade empírica; não tem ra Fria, que chegou a ter alguma importância
futuro, afinal. na Geografia humana, foi a filosofia deter-
Do lado dos que defendiam o modo de vi- minista da história baseada na sucessão de
da norte-americano ou do capitalismo já não etapas ou" modos de produção": comunidade
há mais o "inimigo", o "outro lado" a ser com- primitiva, escravismo, feudalismo, capitalis-
batido. O que começa a surgir com clareza é o mo e socialismo. Trata-se de uma vulgariza-
fato de que "capitalismo" não explica tudo, ção do marxismo operada em especial pelo
que esse sistema sócio-econômico existetan- stalinismo e que dá ênfase à economia, e à
to na Suécia como na índia, realidades ex- produção. E como se houvesse "leis da his-
tremamente diferenciadas. tória" que levassem necessariamente a está-
Redescobre-se a importância das lutas so- gios e, no seu final, ao socialismo e ao comu-
ciais (não confundir com "lutas pelo socialis- nismo (com etapa posterior do socialismo).

27
Mesmo essa variante hoje se encontra em tos e as novas idéias.
crise. Até os grandes teóricos-historiadores, O final da bipolaridade e da oposição Les-
filósofos ou sociólogos russos, tchecos, polo- te x Oeste cede lugar a novas contradições e
neses etc. - que procuravam fundamentar tensões.
esse esquema evolucionista estão revendo suas Em primeiro lugar, a disparidade Norte x
idéias e reelaborando suas obras e suas inter- Sul, com o agravamento do abismo entre os
pretações sobre o mundo com uma crítica des- países líderes da economia e da tecnologia
se economicismo de inspiração stalinista (e modernas e o pelotão de retardatários da
que era tabu nesses países até alguns anos; era Africa em geral, do sul e sudeste da Ásia e da
uma espécie de "teoria científica oficial"). América Central. O Terceiro Mundo apare-
Não precisamos nomear o futuro. Sabe- ce cada vez mais como complexo e heterogê-
mos que as conquistas sociais - quaisquer que neo, com situações bem diferenciadas. A
sejam: reforma agrária, redistribuição mais idéia de periferia hoje se diversifica, podendo
igualitária da renda nacional, normas de de- se reconhecer pelo menos três situações
fesa dos consumidores, menor poluição nos principais.
rios ou na atmosfera, moradia para os sem te- Em primeiro lugar temos a periferia ime-
to, seguro-desemprego etc. - sempre resul- diata ou privilegiada de um centro ou pólo
tam de lutas sociais, de reivindicações popu- econômico e tecnológico importante, países
lares que se tornam vitoriosas. E isso é válido que são incorporados em mercados comuns e
em qualquer parte do mundo: também nos conhecem uma grande melhoria nos padrões
países do Primeiro Mundo o elevado padrão de vida. Neste caso temos o México na Amé-
de vida para os trabalhadores resultou de rica do Norte, Portugal e Grécia na Europa (e
conquistas populares. talvez até futuramente a Europa Oriental e
Não é portanto necessário nenhum rótu- repúblicas da ex-URSS), os "tigres asiáticos"
l o - s e j a "socialismo", seja "comunismo", seja no Extremo Oriente.
modelo cubano" ou seja "modelo norte- Em segundo lugar temos a periferia inter-
americano" - para se nomear uma sociedade mediária, os países que se industrializaram e
mais justa e igualitária. Somente as mentes exportam bens manufaturados mas que estão
autoritárias é que precisam de certezas pré- à margem dos principais mercados suprana-
vias, de definições já prontas quanto ao fu- cionais. Aqui entram o Brasil, a Argentina, o
turo, de perspectivas bem delineadas e es- Uruguai, a Venezuela e inúmeras outras na-
quematizadas. E por isso que o "modelo so- ções, que são dependentes tecnológica e fi-
viético" foi extremamente autoritário e repres- nanceiramente dos centros internacionais
sor: mesmo carregando boas intenções (a so- da economia mas nunca meros fornecedores
ciedade igualitária), a atitude de pretender de matérias-primas. Em muitos casos eles
representar as" leis da história", a dialética ou tentam criar mercados regionais, como por
"verdade do social" acaba conduzindo à in- exemplo o Mercosul.
transigência em relação a todos os que pen- Por fim, temos a periferia mais pobre e
sam de forma diferente. dependente, constituída pelos países que não
A atitude mais democrática é sempre a de ingressaram no processo de modernização e só
aprender continuamente, de se abrir para dispõem de minérios, produtos agrícolas pou-
novas experiências, de aceitar a pluralidade e co variados e valorizados e mão-de-obra ba-
a complexidade do mundo. Não precisamos rata (e cada vez menos necessária na econo-
de nenhum esquema teórico que nos dê (e aos mia informatizada e robotizada). Este é o cha-
alunos) certezas quanto ao futuro, mas ape- mado "quarto mundo", o mundo dos países
nas de abertura para os novos acontecimen- africanos, centro-americanos e de partes (sul

28
e sudeste) da Ásia, inclusive muitos dos oriun- a humanidade - e países do Primeiro Mundo
dos da dissolução do "mundo socialista" em especial, sempre na vanguarda do conhe-
(como Vietnã, Camboja, Moçambique, Laos cimento científico - percebeu desde os anos
etc). 70 que a vida moderna e seus efeitos (po-
As contradições ou tensões políticas (em luição, armamentos nucleares, destruição da
especial a oposição democracia e autoritaris- paisagem natural etc.) pode destruir a vida
mo), étnico-nacionais, culturais-religiosas e humana no planeta e também que a biodi-
até ambientais se reforçam e ganham uma versidade é positiva e necessária para o avan-
renovada importância nos destinos do mun- ço da qualidade de vida.
do. A luta pelos direitos humanos - e, em A preservação de patrimônios ecológicos
muitos casos, pela sua extensão ou ampliação (e também culturais) e o controle da polui-
no sentido ambiental, das crianças, das mi- ção passam assim a ser condições sine qua non
norias etc. - está mais do que nunca na or- para manter ou até elevar os benefícios do
dem do dia. As nacionalidades oprimidas no progresso, que sempre se concentraram em
interior de Estados-nações dominados por poucas áreas. A definição do que seja
outras etnias (veja-se o caso representativo "patrimônio da humanidade" (ecossistemas,
da ex-Iugoslávia, dos curdos no Iraque, dos heranças da história etc) será com certeza um
tibetanos na China, dos chechenos na Rús- dos grandes pontos de disputa e conflitos
sia etc.) cada vez mais se organizam e reivin*- entre nações nos próximos anos.
dicam, às vezes até pela luta armada, a sua au- Por fim, não se pode negligenciar o
tonomia. avanço do racismo, que infelizmente deverá
E a importância das culturas ou civiliza- prosseguir. Este mundo cada vez mais inter-
ções, que em muitos casos possuem um forte dependente, com um notável acréscimo a
componente religioso (especialmente no caso do cada ano das trocas de mercadorias e ser-
mundo islâmico), novamente vem se opor ao viços, do turismo e das migrações interna-
processo incompleto de ocidentalização do cionais, convive com o agravamento das dis-
planeta. paridades entre países ricos e pobres.
E a questão ecológica ou ambiental no sen- Milhões de "bárbaros", como são chamados
tido amplo ganha a cada ano mais evidência, na imprensa do Primeiro Mundo, todos os
constituindo seguramente uma das mais im- anos deixam seus países na África, na
portantes frentes de lutas dos anos 90 e do América Latina e na Ásia, em busca do
início do século X X I . Daí se discutir tanto Primeiro Mundo, das economias centrais
sobre o papel da ecologia na nova ordem in- que hoje não necessitam de tanta força de
ternacional, sobre a Amazônia, a Antártida, trabalho barata como nos anos 60 e 70
o efeito-estufa, a biodiversidade etc. (graças ao avanço da robotização e devido à
A questão ambiental deixou de ser um crise da Europa Oriental), fato que desembo-
elemento secundário, como foi no mínimo ca no racismo contra esses imigrantes que
até os anos 60, e passou a representar um dos possuem outros costumes e muitas vezes mal
temas mais candentes e polemizados na im- falam o idioma do país onde se encontram.
prensa em geral e até na vida política. E que

29
A Iugoslávia é um pais que praticamente que dificulta a separação entre elas. A Sérvia, por
deixou de existir nos últimos anos, assolado por exemplo, argumenta que há numerosos sérvios na
uma guerra civil que sempre prossegue após al- Croácia e no Kosovo e se opõe violentamente a
guns períodos de tréguas. Esse país na realidade uma verdadeira autonomia dessas áreas. Desde
foi uma criação artificial a partir da Primeira Guer- meados de 1991, o exército federal iugoslavo, que
ra Mundial e só se manteve unido durante várias na realidade é controlado pelos sérvios, invadiu e
décadas devido ao contexto internacional da guer- continua ocupando enormes áreas na Croácia,
ra fria e ao carisma do legendário líder Joseph Tito, onde ocorrem violentos combates, e também no
morto em 1980. Com a morte de Tito, as repúbli- Kosovo, embora sem tantos conflitos. A Iugoslávia
cas criaram um sistema político que implica na ro- na realidade não existe mais. O principal objetivo
tatividade do poder entre as várias nacionalida- da Sérvia com essas invasões é anexar mais terras
des. Com a crise do "mundo socialista" e da Eu- à sua república, criando uma "grande Sérvia" que
ropa Oriental, a partir do final da década de 80, as disporia de mais recursos numa desagregação to-
contradições entre as etnias desse país se agrava- tal desse país. E bastante provável que teremos
ram. A Eslovénia e a Croácia, as repúblicas mais uma Eslovénia e uma Croácia independentes, em-
ricas e industrializadas, almejavam sua indepen- bora neste último caso perdendo trechos de terras
dência, o que era contrariado pela Sérvia, a mais para a Sérvia, e grande parte das regiões rema-
populosa das repúblicas e que sempre dominou a nescentes poderão criar uma espécie de mercado
federação iugoslava pelo maior número de políti- comum, ou de federação, algo ainda a ser definido
cos, de militares, de destinação de verbas etc. Tam- nos próximos meses e anos. (Até março de 1992,
bém aqui a mistura parcial de nacionalidades den- Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina e Macedó-
tro do mesmo território ou região é um elemento nia haviam declarado sua independência).

30
DARENDORF, Raif. Reflexões sobre a
revolução na Europa. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1991.

GORBATCHEV, Mikhail. Perestroika -


Novas idéias para meu país e o mundo.

Sugestões 5
U- edição, São Paulo, Best Seiler, 1987.

de leitura e de HAESBAERT, Rogério. Blocos


internacionais de poder. São Paulo,
atividades Contexto, 1990, col. Repensando a

didáticas
Geografia.

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das


grandes potências. Rio de Janeiro,
Por enquanto nada é mais recente e atua- Campus, 1989.
lizado do que os jornais e as revistas, que am-
pliaram consideravelmente as informações e LlPIETZ, Alain. Audácia - uma alternativa
mapas sobre o espaço mundial, sobre as rede- para o século XXI. São Paulo, Nobel, 1991.
finições de fronteiras e as mudanças ou novos
rumos da ordem econômica e geopolítica in- . Miragens e milagres.
ternacional. Eles acompanham de perto os Problemas da industrialização no
acontecimentos e a cada dia trazem os novos Terceiro Mundo. São Paulo, Nobel, 1989.
fatos. Por isso, uma boa atividade didática
com os alunos é orientá-los para recortarem NAISBITT, J. e ABURDENE. P
notícias e reportagens sobre a e x - U R S S , a Megatrends 2000. São Paulo, Amanakey,
ex-Iugoslávia, o MCE, o Oriente Médio, o 1990.
mercado da América do Norte etc. e depois
elaborarem um trabalho escrito e um jornal NOVE, Alec. A economia do socialismo
mural na escola. possível. São Paulo, Ática, 1989.
Quanto aos livros de reflexão, existem al-
guns que fornecem valiosos subsídios para se POMERAZNZ, Lenina (org.). Perestroika -
entender as transformações recentes na or- desafios da transformação social na
dem mundial e as perspectivas futuras. URSS. São Paulo, Edusp, 1990.
Podemos mencionar:
VESENTINI, J.W. Geopolítica e problemática
ecológica. In: Geografia, natureza e
ASH, T.G. Nós, o povo. A revolução de sociedade. São Paulo, Contexto, 1989,
1989 em Varsóvia, Budapeste, Berlim e col. Repensando a Geografia.
Praga. São Paulo, Companhia das Letras
1990. WORLD MEDIA. A nova desordem
mundial. In: Folha de S. Paulo, de 19, 20 e
CASTORIADIS, Cornélius. A criação 21 de dezembro de 1990, encarte especial.
histórica e o projeto da autonomia.
Porto Alegre, Livraria
Palmarinca, 1991.

31
OS QUINZE NOVOS PAÍSES ORIUNDOS
DA DESAGREGAÇÃO DA UNIÃO SOVIÉTICA

A União Soviética durou cerca de setenta anos, de 1922 até dezembro de 1991, ocasião em que se consolidou a
tendência de separatismo que existia desde o final dos anos 80 nas quinze ex-repúblicas que a formavam e que
2
atualmente são países independentes. Esse imenso país (com 22 400 000 km e cerca de 250 milhões de habitan-
tes) foi um dos dois Estados mais importantes do século XX, juntamente com os Estados Unidos. Todavia, a
União Soviética foi sempre um Estado multiétnico e multinacional, com diferentes etnias e nacionalidades que
2
sempre se queixavam do domínio russo. A grande herdeira da União Soviética, a Rússia (com 17 075 400 k m e
cerca de 147 milhões de habitantes), também é um imenso Estado multinacional, embora predomine amplamen-
te a etnia russa: em algumas de s u a s regiões ou repúblicas existem etnias ou nacionalidades que querem a
autonomia.

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