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O Pé, o Pau, a Vara, a Navalha :

violência e opressão em Juçara Marçal

Eron Rafael dos Santos

Se a cena contemporânea da canção popular brasileira é guiada


principalmente por demandas econômicas e projeções de consumo, o disco de
Juçara Marçal, lançado no começo de 2014, parece manter-se firme contra a
corrente dos romances para classe média e das divas tupiniquins montadas tais
quais modelos estadunidenses, fatias aparentemente rentáveis no mercado
atual. Sem o apoio de grandes gravadoras e disponibilizado gratuitamente na
internet, Encarnado é o primeiro disco solo dos longos anos de carreira da artista
paulistana, modulando dicções disfóricas na “expressão de quem busca
ativamente uma saída razoável sem conseguir vislumbrá-la” (LEITE, 2014,
p.225).

Assim, se o conjunto da obra consegue traçar o retrato cru e angustiante


da realidade dos menos favorecidos, é nas faixas “Damião” e “João Carranca”
que os implementos de violência aparecem de forma latente na construção dos
aparatos de poder e dominação nos meios oprimidos . Ambas canções parecem
traçar em sua linha melódica a violência como sedimentação do espaço de
personagens periféricos nas estruturas sociais, revelando as reações e
resultados simbólicos do maquinário de opressão. Este ensaio, portanto, se
propõe a analisar essas duas canções – dois sambas, o primeiro bastante rápido,
abre o disco, e o último, bastante lento, o encerra – em busca de representações
de violência, tanto no seu caráter instrumental, quanto na sua antítese com o
poder reconhecido.

“Damião”
(Douglas Germano/Everaldo Ferreira da Silva)

Dá neles, Damião!
Dá sem dó nem piedade
E agradece a bondade e o cuidado
De quem te matou

Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma.
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não

Sangue e suor pelo vão.


Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão

Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação

Sangue e suor pelo vão


Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar

Dá neles, Damião!
Bate até cansar e quando cansar
Me chama

Em chave-figurativa, “na qual as entoações agem sobre o sentido geral


da mensagem, mas sujeitando-se inteiramente às determinações linguísticas”
(TATIT, 2012, p. 21), a canção “Damião” inicia, sem qualquer introdução
instrumental, exortando a figura de Damião a usar da violência contra eles, os
agentes da violência, a princípio ainda não indicados. Vale ressaltar, pelo
seguinte verso, ainda na primeira estrofe, “E agradece a bondade, e o cuidado
de quem te matou”, que Damião está morto. A ironia sagaz de agradecer o
próprio algoz afasta o personagem do indivíduo histórico Damião Ximenez
Lopes, paciente psiquiátrico morto por maus-tratos na Casa de Repouso
Guararapes em 1999, ao qual a canção é dedicada, e acaba por dar-lhe valor
simbólico, fantasmagórico, de voz dos oprimidos vítimas de uma violência social
cujos responsáveis estão impessoalizados na Terceira Pessoa do Plural, talvez
sugerindo que os agentes materiais que assassinaram Damião Ximenez não são
os únicos agentes de violência criticados pela canção.

Na segunda estrofe, a voz de ordem se repete, “Dá neles, Damião”, na


sua devolução do hematoma e na exortação de que bata até o coma, aliado a
uma linha entoativa que exalta os imperativos “toma” e “coma”, constrói e
intensifica a sensação de revide e da violência estimulada de Damião contra
eles. O uso da Terceira Pessoa do plural pode guiar a um maior entendimento
de como o processo de violência social é formulado dentro da canção. Se Arendt
(2010) fala sobre a burocracia como a mais formidável forma de dominação, em
que o “nenhum homem, nem um único e nem os melhores, nem a minoria e nem
a maioria, podem ser tomados responsáveis” (2010, p.55), não seria também a
dominação do opressor uma violência sem agentes, fruto não de atitudes
individuais, mas de um complexo processo social? Se sim, o “neles” da canção
representa os mecanismos sociais da opressão;os ouvintes, por sua vez,
eventuais cúmplices conscientemente ignorantes desse processo, o que dá à
canção certo ar de denúncia, na sua tentativa de conscientização dos ouvintes.
Dessa forma, surge a “raiva que passa nunca não” como resultado de uma
situação em que “há razões para supor que as condições poderiam ser mudadas
mas não são “ (idem, 2011, p. 81).

Continuando a análise, a canção apresenta um novo movimento em seu


refrão, ganhando investimentos passionais, em que o “o autor está modalizando
todo o percurso da canção com o /ser/ e com os estados passivos da paixão”
(TATIT, op. cit., p.22). Assim, se os versos “Sangue. Suor pelo vão/Sentir mais
a dor, vingar/ Ver respingar o pavor/ Quem bateu levar” é tomado por tensões
melódicas que exaltam uma “vivência introspectiva do seu estado” (ibidem,p.23),
então a violência exortada à figura de Damião é mais do que simples revide, mas
se constrói ideologicamente como a força dos oprimidos. Em outras palavras,
dentro da justiça natural frisada por Benjamin(1986, p.160), a reação violenta do
oprimido contra o opressor caracteriza um meio necessário a fins justos. Ou,
talvez, frente ao fato de que o opressor não possui rosto ou identidade
específica, a passionalização de uma violência pode ser a única forma de se
encontrar prazer em uma revanche que não possui alvos determinados para que
se cesse a violência. “Quem bateu, levar” parece ser satisfação simbólica de
uma vingança que não encontra meios materiais de realização.

É esse estado de coisas, que torna impossível a localização da


responsabilidade e a identificação do inimigo, que está entre as
mais potentes causas da rebelde inquietude espraiada pelo
mundo de hoje, da sua natureza caótica, bem como da sua
perigosa tendência para escapar do controle e agir
desesperadamente. (ARENDT, op.cit, p.55)
Quando a canção retorna para a parte A, a letra volta a desenvolver-se
a partir do eixo figurativo. Se o verso “dá com pé, com pau, com vara” mostra os
instrumentos propostos à violência praticada por Damião, então os meios dos
oprimidos ficam claros quanto a sua precarização frente ao poder bélico e
socialmente legitimado do opressor. Em “Bate até virar a cara da nação”, a
violência é entendida como meio “para dramatizar queixas e trazê-las à atenção
pública”(Ibidem, p.99). Assim,se a ignorância consciente e coletiva a respeito
das violências sofridas pelos oprimidos parece estar entranhada nos processos
sociais, é apenas por meio da violência que Damião ganharia destaque. A
vingança, aqui, se mostra não apenas como um meio para garantir justiça social,
mas também para sedimentar o espaço dos oprimidos em uma organização
política e social que prefere excluí-los

No desfecho da canção, a violência e a raiva que costuram as tensões


figurativas fecham o revide de Damião. “Bate até cansar e quando cansar/ Me
chama”, brada o eu da canção, demonstrando o poder de uma figura construída
simbolicamente como a voz dos oprimidos, a vítima da crueldade gratuita que se
levanta contra seus algozes e irá interceder por seus iguais. O chamado ao
combate é a resultado da revolta contra uma sociedade desigual, uma
manifestação construída a partir da ilusão satisfatória de que o opressor pode
ser punido a partir dos mesmos meios que usou para oprimir.

Quanto ao ser humano, a ira, por exemplo, o leva às mais


patentes explosões de violência, uma violência que não se
refere como meio a um fim proposto. Ela não é meio, e sim,
manifestação. É verdade que esse tipo de violência tem suas
manifestações objetivas, onde ela é sujeita à crítica. Elas se
encontram, antes de mais nada e de maneira altamente
significativa no mito.(BENJAMIN, op. cit., p.171)
Dado o quadro, é importante compreender algumas forças que originam
a canção dentro do contexto contemporâneo. Mais do que uma canção-
denúncia, “Damião” é um revide simbólico, talvez um grito de guerra, delimitando
a reação do oprimido frente à violência do opressor. Se “o caráter violento de
uma ação não deve ser julgado pelos seus efeitos ou fins, mas apenas segundo
as leis de seus meios“ (ibidem, p. 170), seria de uma ignorância atroz comparar
a violência exortada à personagem Damião com a violência sofrida por ele. O
revide aqui é muito mais do que uma vingança que poderia ser comparada à
barbárie histórica sofrida pelas minorias e por Damião, mas sim um levante, uma
explosão de ira frente a uma sociedade opressora.

O alvo da violência representado em Encarnado, porém, nem sempre é


claro, como veremos a seguir em “João Carranca”. Nesta canção, o revide à
violência é realizado de outra maneira

“João Carranca”
(Kiko Dinucci)

Guaraci vadiava e só fazia isso


Foi sempre a rainha da boca do lixo
Mas o tempo passou e ela envelheceu
Usou e gastou o corpo que deus lhe deu

Nunca teve cafetão


Nem leão de chácara

Apenas uma navalha


Banca e sustenta o meninão
Que ainda cheira a leite
E nem tem pelo na cara

Mas tudo desandou depois do dia


Em que ele resolveu causar suspiro nas mocinha
E a velha enciumada
Retalhou o rosto do rapaz
E o que era belo
Agora espanta
E nome dele hoje é João Carranca
Guaraci vadiava e só fazia isso
“Guaraci vadiava e só fazia isso” inicia a última canção do álbum. “João
Carranca” é um samba lento, de entoação predominantemente temática, talvez
por esta ser “um campo sonoro propício às tematizações linguísticas ou, mais
precisamente, às construções de personagens (...) de valores-objetos (...) ou,
ainda, de valores universais (...)” (TATIT, op. cit., p.23). Assim, a letra nos
apresenta Guaraci, personagem nomeada tal qual a deidade Sol da mitologia
tupi-guarani. Segundo a tradição indígena, Guaraci é compreendido como
criador da vida e dos seres vivos, o que poderia indicar uma relação interessante
de como o Sol de uma cultura oprimida nativa acaba tornando-se “rainha da Boca
do Lixo”, zona de marginalidade de São Paulo, dentro dos processos sociais
atuais. Lembra um pouco a figura de Iracema, do samba clássico de Adoniran
Barbosa, no retrato perdido de uma cultura esmagada pela ideologia dominante.

A “rainha da Boca do Lixo”, porém, representa o vigor da personagem


dentro dos espaços periféricos. Essa “propriedade inerente a um objeto”
(ARENDT, op.cit., p.61) fica também explícita nos versos “Nunca teve cafetão/
Nem leão de chácara/ Apenas uma navalha”, mostrando o poder individual de
Guaraci, figura independente de proteções masculinas e capaz de usar seus
próprios meios de manutenção do vigor. A navalha, dessa forma, torna-se seu
instrumento de violência, “posto que os implementos de violência , como todas
as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar
o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam
substituí-lo” (Ibidem, p. 63).

Contudo, “Mas o tempo passou/ e ela envelheceu” indica aquele vigor


em crise. A beleza e a força extirpadas pelo tempo aparecem por meio de um
discurso aparentemente moralista que julga a velha prostituta, que “usou e
gastou o corpo que Deus lhe deu”, nos termos do narrado. O julgamento moral,
aliado à referência cristã, revela que quem canta a história, mesmo
provavelmente dentro do cotidiano da Boca do Lixo, possui um discurso
influenciado pelos bons costumes das ideologias dominantes, do recato, da boa
moral. Mais uma vez a Guaraci de Juçara parece ser o eco contemporâneo da
Guaraci da mitologia tupi-guarani, o resultado da pauperização de uma imagem
que passou a ser julgada e condenada através dos valores e experiências do
seu colonizador. O juízo divino é “golpeador e letal, de maneira não sangrenta”
(BENJAMIN, op. cit. p. 173) e até mesmo a Rainha da Boca do Lixo sofre as
consequências dos usos supostamente desonrosos e abusivos com os quais
gastou o corpo que Deus lhe deu.

Após isso, a letra toma outro caminho ao apresentar uma segunda


personagem. “Banca e sustenta o meninão” fala de alguém sem nome, provável
amante de Guaraci, mantido ao custo de seu trabalho de “vadia”. A mudança do
tempo verbal para o presente deixa viva para o ouvinte uma relação baseada na
posição de Guaraci dentro do ambiente no qual estão inseridos. De um lado, a
velha prostituta que ainda possui certa autoridade na Boca do Lixo e, do outro,
o meninão que “ainda cheira a leite e nem tem pelo na cara” e que goza da
proteção e do pouco conforto que ela pode oferecer.

O vigor juvenil do meninão é usado para “causar suspiros nas mocinha”,


sendo, então, punido pela velha prostituta, que lhe retalha o rosto. Aqui, pode-
se traçar uma comparação ao que Benjamin chama de poder mítico. “Não meio
para seus fins, quase não manifestação de sua vontade, antes manifestação de
sua existência” (Ibidem,p.171) pode ser o real retrato do que parece ser um crime
passional, mas que também é uma forma de manter o vigor, de provar sua
existência, de confirmar sua ascensão e reafirmar sua realeza. Se, assim como
na lenda de Níobe citada pelo autor alemão, a atitude do meninão “conjura a
fatalidade, não por transgredir a lei, mas por desafiar o destino” (idem, ibidem),o
retalhamento do rosto e da identidade do meninão frente ao vigor individual de
Guaraci traça também o retrato de uma sociedade em que o implemento da
violência acaba sendo o meio pelo qual o destino é traçado, principalmente em
regiões em que o abandono (ou a ineficiência de representação) por parte dos
poderes institucionalizados cria guetos, guiados por suas próprias leis e
convenientemente mantidos distantes do resto da sociedade.

“E o que era belo/ Agora espanta/ E o nome dele hoje é João Carranca”,
fecha-se o ciclo e exibe uma faceta do processo de violência como a construção
de uma nova identidade. O meninão, que antes não tinha nome, agora é
batizado por Guaraci através das cicatrizes no seu rosto. A violência aqui, então,
intervém nas relações de poder como instrumento mantenedor da força
individual e da autoridade. A construção de uma nova identidade, deturpada por
uma visão baseada exclusivamente nas feridas do oprimido é, mais do que tudo,
uma forma de dominação, uma representação eterna da posse de Guaraci,
estampada na cicatriz e no novo nome. João Carranca não causa mais suspiros
nas mocinhas, mas as afasta, através do medo e do asco. Assim, como as
carrancas usadas nas embarcações como forma de afastar maus espíritos, as
marcas da violência aplicada por Guaraci também garantem a distância daquilo
que possa ameaçar o seu poder em relação ao meninão. Por fim, “Guaraci
vadiava e só fazia isso” revela no caráter cíclico da canção o reinado mantido e
uma espécie não tão clara de status quo periférico inabalado.

Conclusão:

O poder, no entanto, é questionável. “Poder e violência são opostos;


onde um domina absolutamente, o outro está ausente” (ARENDT, op.
cit.,p.73)parece ser uma definição apropriada tanto a Guaraci quanto a Damião.
Ambas imagens são retratos simbólicos de culturas esmagadas por um sistema
social desigual e discriminatório. A ira e a violência surgem também como forma
de sobrevivência da memória, tanto na cruzada de um Damião morto contra seus
executores, quanto na imagem de Guaraci, o criador da vida da mitologia tupi-
guarani, utilizando apenas uma navalha na manutenção da sua coroa de Rainha
da Boca-do-Lixo.

A comparação entre Damião e o Meninão também parece pertinente. Se


o poder mítico, é “muito mais institucionalização de um direito novo do que a
punição da transgressão de um direito existente” (BENJAMIN, op. cit., p. 171),
fica latente em ambas personagens tal instância do poder. A violência que
retalha o rosto de meninão é a mesma que lhe dá nome, batiza e firma um papel
social. Em “Damião”, por outro lado, o conceito parece ser ideal para construir o
ícone pós-morte de Juçara, já que o caráter não midiático do caso de Damião
Ximenez, diferentemente da canção “Império da Lei” de Caetano Veloso, por
exemplo (em discos lançados próximos um do outro), possibilita a força da
referência religiosa que o nome “Damião” carrega.
Por fim, é também interessante como as duas canções conseguem
trazer a banalização dos atos violentos de opressão. Em “Damião”, esse caráter
é revelado na denúncia, tanto na cumplicidade culposa do “plantão” quanto na
ignorância cínica da “nação”. Em “João Carranca”, a linha entoativa sem marcas
de excepcionalidade fazem do retalhamento do rosto de um jovem uma lenda,
causo, ação cotidiana dos bairros periféricos. A violência parece naturalizada
quando mantenedora das relações de poder e opressão. É o que leva a jornalista
liberal a aplaudir os jovens que prenderam um suposto bandido negro ao poste,
e o deputado de esquerda que acha compreensível a morte do filho de pais
homoafetivos por seus colegas heterossexuais. No final das contas, para
aqueles que não foram apresentados a outras escolhas que não a violência
como construção de identidade frente à opressão do sistema dominante, “Bate
até cansar/ E quando cansar, me chama” parece realmente um convite tentador.

Referências

ADORNO, Theodor W..“A Indústria Cultura: o Esclarecimento como Mistificação


de Massas”. In: ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento.Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 99-138.

ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2010.

BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São


Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.

LEITE, Carlos Augusto Bonifácio. “Sobre o peso de si e maestrias: uma análise


de parte da cena atual da canção popular brasileira”. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, Brasil, n. 59, p. 213-228, dez. 2014. DOI:
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p213-228

MARÇAL, Juçara. Encarnado. Independente, São Paulo, 2014. O álbum pode


ser obtido gratuitamente em http://www.jucaramarcal.com/. Acesso em: Set.
2014.
TATIT, Luiz. O Cancionista: Composições de Canções no Brasil. 2. ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

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