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A espiritualidade na cultura moderna

Por: Dom Fernando Mason


Bispo Diocesano de Piracicaba

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Ao fazer um curso de espiritualidade, os professores logo advertem que a


espiritualidade, embora ensinada na Faculdade de Teologia, não é uma ciência no
sentido usual e comum desta palavra. Mas também dizem que não é vivência piedosa ou
devoção. Dizem que não é moral, embora tenha muito a ver com a moral; dizem
também que não é pastoral, embora seja muito útil na pastoral; que é muito educacional,
mas que não coincide com a pedagogia.

Surge então a pergunta: qual o lugar da espiritualidade no universo do conhecimento?

Espiritualidade é algo que não se sabe bem dizer o que é. Este "não saber dizer" não é
ignorância nem indiferença, é antes coisa altamente positiva, pois revela que a
espiritualidade não pode ser explicada a partir de outras áreas do saber, mas somente a
partir de si mesma, como uma experiência originária, algo diante do qual não se é
indiferente porque já se está no seu uso.

Quando esse conhecimento é tematizado, começa a mostrar sua estrutura interna.


Perceber essa estrutura e definila bem, dando-lhe uma rede de explicações, isso se
chama ciência. Espiritualidade é um conhecimento, uma ciência, nesse sentido.

Nossa maneira moderna de entender conhecimento é vaga: só distinguimos


conhecimento como "opinião" (ponto de vista subjetivo) e como "saber" (um saber bem
trabalhado e bem averiguado chamado ciência). As ciências com as quais convivemos
são as naturais, referidas à natureza, e as humanas, referidas ao homem.

Novamente surge a pergunta: a partir dessa compreensão moderna, onde colocar a


espiritualidade? Qual seu lugar no nosso horizonte cultural, pois ela não é ciência
natural, nem humana. Será, então, que é opinião, ponto de vista? Sim, para a cultura
moderna usual a espiritualidade é opinião, ponto de vista, subjetivida-de pura. Mas será
mesmo?

Na raiz do que hoje chamamos ciência, havia na antigüidade uma intuição diferente,
anterior a todo sistema moderno de ciências naturais e humanas, uma intuição que
depois foi esquecida. O melhor modo de entender espiritualidade como ciência é
voltarmos para os antigos gregos, um povo tão forte no intelecto que influencia até hoje
nossa civilização.

Os gregos antigos distinguiam três tipos de ciência: "conhecimento ou ciência física",


uma atitude humana, uma maneira de abordar a realidade, onde a realidade é colocada
diante de si como "fusis", isto é, como natureza no sentido direto e bem amplo do
termo: tudo que nasce, cresce e morre, surge e desaparece, que pode ser analisado
objetivamente; "conhecimento ou ciência ética": é uma outra atitude humana, outro
nível, outro modo de conhecer, inteiramente diferente do anterior; não é um
conhecimento informativo mas participativo, de quem está dentro, como que morando
naquela realidade (a palavra ético vem de "e-thos", que quer dizer morada); o
conhecimento ético, cultivado com seriedade total, leva ao "desespero" do ético, pois
lhe carece sentido último e pleno.

Deste desespero surge uma outra atitude, uma outra busca que é a radicalização da
caminhada ética, busca que ultrapassa o ético e abre, aponta para uma outra dimensão.
A essa nova dimensão os gregos chamavam de "divino", para o qual urgia um outro
nível de conhecimento: o "conhecimento ou ciência lógica, ou ciência do logos".

Esta atitude humana foi chamada "ciência do espírito" ou espiritualidade pela cultura
ocidental.
Para os gregos essa força, que faz brotar cada vez mais o originário, ocupava o primeiro
lugar e por ela reavivavam o conhecimento ético e científico-físico.

Quando o conhecimento de "logos" perdeu vigor, ficou o conhecimento ético e, quando


esse por sua vez decaiu, ficou o conhecimento científico-físico. Neste processo de
"decadência" o conhecimento de logos ficou esquecido, sendo desenvolvida somente a
área científico-física, mais fácil e pragmática.

Se, porém, observarmos bem a história, vemos que sempre houve no Ocidente quem
cultivou a espiritualidade como uma "ciência do logos", como bem aparece na
espiritualidade dos grandes santos, como santo Agostinho, são Bento, são Francisco de
Assis e inúmeros outros. Esses mestres são grande fonte de inspiração para o atual
movimento de redescoberta do "logos", isto é, do divino, movimento não exclusivo da
área cristã, pois na arte, na literatura, na filosofia há este mesmo movimento de retorno.

Quando a humanidade hoje se interessa por Jesus Cristo, por que o faz? Não será que
percebe instintivamente que o cristianismo é toda uma "ciência"? Nos meios laicos se
começa a descobrir, por exemplo, que a religião não é coisa de povos primitivos, mas
uma experiência capaz de resolver os problemas radicais do homem mais do que as
ciências.

O interesse pelo "espiritualismo oriental", o interesse de cientistas, artistas, políticos em


discutir todas as questões ligadas à problemática do humano é uma tentativa de
redescoberta do "logos", feita, no entanto, com jeito de "o-pinião" ou de "conhecimento
físico", num nível intelectual um tanto ingénuo, que deixa as questões abertas demais.

Portanto a ciência do espírito, a espiritualidade, a vida espiritual como experiência


humana de profundidade "divina" pertence à ciência mais profunda, mais exigente, mais
radicalmente humana; pertence à "ciência do logos", do divino, um conhecimento capaz
de orientar a moral, o sentimento, a ação.

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