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DOI: 10.1590/1413-81232017227.

02742017 2097

Desigualdades em Saúde: uma perspectiva global

ARTIGO ARTICLE
Health inequalities: a global perspective

Mauricio Lima Barreto 1

Abstract The objective of this article is to pres- Resumo O objetivo deste artigo é o de apresentar
ent health inequalities as a global problem which as desigualdades em saúde como problema global,
afflicts the populations of the poorest countries, que afligem as populações dos países mais pobres,
but also those of the richest countries, and whose mas também as dos mais ricos, e cuja persistência
persistence represents one of the most serious and torna-se um dos mais sérios problemas no campo
challenging health problems worldwide. Two da saúde e desafiante para todos que buscam so-
components of global inequalities are highlight- luções. Diferenciam-se dois componentes das desi-
ed: inequalities between groups within the same gualdades globais: as entre grupos de uma mesma
society, and inequalities between nations. The sociedade e as entre nações. O entendimento de
understanding that many of these inequalities are que grande parte destas desigualdades são injustas,
unjust, and therefore inequities, is largely derived portanto iniquidades, vem dominantemente das
from the inequalities that are identified between existentes entre os diversos grupos sociais de uma
the various social groups of a given society. In- dada sociedade. As desigualdades entre as diversas
equalities between different societies and nations, sociedades e nações, enquanto relevantes e muitas
while relevant and often of greater magnitude, vezes de maior magnitude, nem sempre são con-
are not always considered to be unjust. There sideradas injustas. As soluções propostas têm sido
have been several proposed solutions, which vary várias e variam de acordo com a fundamentação
according to different theoretical interpretations teórica e as explicações adotadas. Em nível global,
and explanations. At the global level, the most a tese mais bem elaborada tem sido em torno da
plausible thesis has focused on improving global melhoria dos mecanismos globais de governança.
governance mechanisms. While that latter are at- Enquanto atrativo e com evidências favoráveis,
tractive and have some arguments in their favor, são insuficientes por não incluírem o entendimen-
they are insufficient because they do not incorpo- to de como o processo histórico de constituição das
rate an understanding of how the historical pro- nações ocorreu e como se dá o posicionamento de
cess of the constitution of the nations occurred and cada país nos circuitos produtivos globais.
the importance of the position of each country in Palavras-chave Desigualdades em saúde, Deter-
1
Centro de Pesquisas the global productive system. minantes sociais da saúde, Iniquidade social, Saú-
Gonçalo Moniz, Fundação Key words Health inequalities, Social determi- de global
Oswaldo Cruz. R. Waldemar
Falcão 121, Candeal. 40296-
nants of health, Social inequity, Global health
710 Salvador BA Brasil.
mauricio@ufba.br
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Barreto ML

Introdução por uma sociedade e, em particular, de como ela


se organiza e das relações sociais e de poder esta-
A sociedade humana, composta pelos mais de belecidas entre seus diversos estratos. Define-se
sete bilhões de indivíduos que habitam o pla- pela história e os modelos políticos adotados e
neta, apresenta claras clivagens em uma série de como o Estado tem redistribuído as riquezas na-
importantes aspectos. Espacialmente, está distri- cionais por meio de sistemas fiscais e de trans-
buída em continentes e nações com diferentes ferência que permitiram gerar distanciamentos
características demográficas e geográficas. Ob- distributivos maiores ou menores entre os gru-
servam-se diferenças nos níveis de desenvolvi- pos sociais existentes. Elementos culturais tam-
mento e de riqueza, além de outras, fenotípicas bém são importantes para amplificar e consoli-
e culturais, que formarão um conjunto diversifi- dar algumas das desigualdades existentes7.
cado de etnias. Muitas destas clivagens são frutos Mais recentemente, foi adicionado o conceito
de processos adaptativos, geográficos e climáti- de desigualdade global (global inequality), o qual
cos, algumas de fenômenos eventuais e outras de envolve os efeitos conjuntos destes dois tipos de
processos históricos, sociais, econômicos e cul- desigualdades8. A desigualdade global é resultan-
turais complexos. Algumas delas, que poderiam te das existentes entre e dentro dos países e, por-
ser apenas diferenças (p.ex homens e mulheres), tanto, é definida pela interação dos determinan-
transformam-se em desigualdades e, com muita tes de cada uma delas. A disponibilidade de da-
frequência, em iniquidades, na medida em que dos internacionais tem permitido realizações de
por relações essencialmente de poder, o acesso e estudos empíricos sobre a questão da desigual-
a posse aos bens, serviços e riqueza, fruto do tra- dade global. Por exemplo, o Índice de Gini, uma
balho coletivo e acumulado através de gerações, das medidas mais frequentemente usadas para
são desigualmente distribuídos1,2. medir a desigualdade social em um país, quando
Estas desigualdades, com frequência, trans- calculado globalmente alcança níveis ainda mais
ferem-se para o campo da saúde, tornando-se altos do que aqueles de nações com os mais al-
visíveis seja nas desiguais condições de saúde tos níveis. Em período recente, os índices de Gini
dos diferentes grupos, seja nos níveis de riscos à de países com mais altos níveis de desigualdades
saúde, seja no acesso diferenciado aos recursos têm ficado em torno de 0.60 (1 = máxima desi-
disponíveis no sistema de saúde. Não por acaso, gualdade e 0 = igualdade total), enquanto o glo-
grande parte das desigualdades observadas no bal aproxima-se de 0.70. O índice de Gini global
campo da saúde está diretamente relacionada captura os extremos dos estratos mais pobres dos
com as observadas em outros planos da vida so- países mais pobres e dos estratos mais ricos dos
cial3-5. As desigualdades na saúde geram desiguais países ricos, o que se traduz em nível de desigual-
possibilidades de usufruir dos avanços científicos dade maior, do que quando medido em cada país
e tecnológicos ocorridos nesta área, bem como separadamente.
diferentes chances de exposição aos fatores que O objetivo deste artigo é de apresentar as de-
determinam a saúde e a doença e por fim as dife- sigualdades em saúde como um problema global
rentes chances de adoecimento e morte. Da mes- que aflige as populações dos países pobres, mas
ma forma que as desigualdades sociais, as da em também aquela dos países ricos, locais em que
saúde têm persistido em todos os países indepen- sua persistência demonstra as raízes históricas e
dente do grau de desenvolvimento alcançado3,4. estruturais deste problema. Apesar de relaciona-
No atual contexto internacional, com os esta- do diferencia-se da discussão sobre a pobreza e a
dos nacionais envolvidos no processo de globali- saúde. Certamente um dos mais relevantes pro-
zação econômica, as discussões sobre as desigual- blemas no campo da saúde das populações e de-
dades distinguem aquelas dentro de uma mesma safiante por todos que buscam elaborar soluções.
nação daquelas entre as nações. As desigualdades
entre os países estão relacionadas com as diferen- Determinantes das Condições de Saúde
ças no desenvolvimento econômico e social al-
cançados, geradas pela posição que essas nações A saúde para muitos é entendida como uma
vêm ocupando em diferentes fases da história no questão restrita a fatores biológicos, para outros
sistema produtivo global. Reflexos da história e um fenômeno complexo e com múltiplas deter-
do ambiente econômico e político internacional minações, que tem suas bases na forma em que
na partilha, de cada país, nos recursos globais e vivemos e nos organizamos. Estas duas vertentes
nas possibilidades de desenvolvimento6. explicativas têm, por muito tempo, construído
As desigualdades dentro de um país são re- argumentos e competido em fornecer expla-
ferentes à distribuição das riquezas acumuladas nações plausíveis sobre as condições de saúde
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das populações humanas9-11. A relevância deste vacinação) têm pouca ação sobre a incidência
debate é que definirá a forma como as sociedades dos eventos de saúde.
se organizam para solucionar seus problemas de Esta disputa tem alimentado longo debate so-
saúde. bre a importância de cada uma destas explicações
O primeiro argumento, fundado no desen- nas condições de saúde das populações humanas.
volvimento das ciências biomédicas e em suas A mais elaborada formulação desta disputa foi
explicações dos mecanismos de doenças e das al- feita por Thomas McKeown que, de 1950 a 1980,
ternativas para a sua correção, trabalha na busca escreveu uma importante e sólida obra científica
do conhecimento detalhado da biologia humana, que centralmente arguia que as tecnologias mé-
na expectativa de que desta exploração saiam as dicas e o sistema de saúde tinham papel secundá-
explicações necessárias para o entendimento dos rio nas importantes e positivas mudanças condi-
distúrbios da saúde humana e suas correções. ções de saúde da população inglesa no decorrer
Ela fundamenta as tecnologias de prevenção, di- do final do século XIX até a segunda metade do
agnóstico, cura e reabilitação disponíveis ou em século XX17,18. Transformações que seriam expli-
desenvolvimento, base do que hoje entendemos cadas pela melhoria dos padrões gerais de vida,
ser um “moderno” sistema de saúde. Este siste- na visão de McKeown, especialmente a dieta e o
ma tem seu desenvolvimento acelerado pelos estado nutricional, resultantes de melhores con-
avanços da biomedicina e das tecnologias resul- dições econômicas. Nesse período, ocorreram
tantes, principalmente a partir da 2ª metade do grandes transformações em várias esferas da
século XX. vida dessas sociedades, em especial nos campos
Com relação à segunda explicação, cujo ar- econômico, social, cultural e ambiental, as quais
gumento precede o desenvolvimento da biome- constituem os principais fatores explicativos das
dicina, existem acumuladas evidências de que al- expressivas melhoras nas condições de saúde das
terações no contexto econômico, social, político, populações. Como a Inglaterra, as condições de
ambiental, cultural ou comportamental afetam saúde em muitos dos países hoje desenvolvidos
as condições de saúde dos indivíduos e das popu- tiveram também seu maior ponto de inflexão,
lações11-13. As concepções da determinação social para melhor, no mesmo período. Durante grande
da saúde e das doenças, amadureceram durante parte deste período não se dispunha da maioria
o século XIX, expresso em trabalhos de impor- dos recursos preventivos, diagnósticos ou tera-
tantes pensadores, localizados principalmente na pêuticos para as doenças e os problemas de saúde
Europa. Estes pioneiros estabeleceram a ideia de hoje existentes, já que tais tecnologias somente
que as condições de saúde das populações estão irão ser concebidas a partir na década de 1930 e
diretamente relacionadas ao contexto em que es- sua produção para uso em massa nos sistemas de
tas vivem e à posição dos indivíduos na pirâmide saúde, terão seu uso iniciado na década de 194019.
social. Destacam-se os estudos de Louis René Esta cronologia é central na tese de McKeown de
Villermé14 na França, Edwin Chadwick15 na In- que as imensas mudanças nas condições de saúde
glaterra ou de Rudolf Virchow16 na Alemanha, que se observam nas décadas finais do século XIX
os quais, em seu conjunto, trazem contribuições e primeiras décadas do século XX dependeram
seminais para o tema da determinação social. minimamente das tecnologias biomédicas.
Como vivemos em uma época em que as Embora alguns dos argumentos apresentados
duas explicações coexistem e em que as ciências por McKeown não tenham sido plenamente con-
biomédicas e os serviços de saúde crescem e se firmados, em especial a sua ênfase no papel da
fortalecem, é evidente que estas explicações en- dieta e nutrição, sua tese do papel secundário das
contram-se em competição. Os serviços de saúde, ações do sistema obteve ampla repercussão10,20.
tal como hoje organizados, têm importante papel Nas últimas décadas as tecnologias de saúde ti-
na cura e reabilitação de muitos dos processos veram intenso desenvolvimento, algumas delas
patológicos que sofrem os indivíduos. Adicione- com alta efetividade, porém os argumentos so-
se ações de prevenção mediante, por exemplo, o bre a importância das tecnologias e do sistema de
uso das vacinas e métodos de screening (rastreio) saúde como transformador das condições de saú-
para diagnóstico precoce e redução de danos de de das populações não têm sido empiricamente
processos patológicos já instalados. Porém, dis- demonstrados. Após a introdução massiva das
põem de poucos recursos para atuar sobre os tecnologias biomédicas e a ampliação dos siste-
determinantes sociais e ambientais que estão na mas de saúde este tipo de investigação tornou-se
gênese de muitos dos problemas de saúde que sujeito a confusões interpretativas. No momento
afligem indivíduos e populações. Com limitadas em que os dois efeitos (determinantes sociais e
exceções (em especial as doenças preveníeis por tecnologias biomédicas) passaram a estar atu-
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antes existem claras dificuldades metodológicas Com poucas exceções, a ocorrência das mais
em separar o efeito de cada um deles. Porém, em diversas doenças e problemas de saúde se agra-
reforço à tese de determinação social, neste mes- va entre os grupos sociais que estejam vivendo
mo conjunto de países (desenvolvidos), apesar em situações socialmente desfavoráveis, ou seja,
dos avanços observados nos sistemas e níveis de entre os mais pobres, entre grupos étnicos mino-
saúde, diferenças importantes persistem nas con- ritários ou grupos que sofrem qualquer tipo de
dições de saúde quando suas populações são es- discriminação. Não por acaso, os países pobres
tratificadas por áreas geográficas, grupos sociais apresentam condições de saúde sempre piores
ou étnicos5. Além disso, períodos de crise são quando comparadas aos que são ricos. Da mes-
frequentemente acompanhados de agravamento ma forma, em que um dado país, seja rico ou
das condições de saúde das populações destes pa- pobre, as regiões menos prósperas, as populações
íses. Por exemplo, eventos como a desintegração dos estratos mais pobres ou pertencentes a gru-
da União Soviética ou a crise financeira de 2008, pos étnicos marginalizados, de forma consisten-
que levaram muitos países europeus à recessão te, sempre apresentam piores condições de saúde.
econômica e a implementar políticas de austeri- Outro conjunto de evidências vem da observação
dade, foram seguidos pelo agravamento das con- de que políticas que melhorem as condições eco-
dições de saúde de suas respectivas populações21. nômicas ou fortaleçam a proteção social, quando
O estudo das tendências históricas das con- implementadas em qualquer desses países, têm
dições de saúde das populações continua sendo impactos positivos nas condições de saúde.
uma importante fonte de evidências para a de- Um marco recente e muito importante para
terminação social da saúde e das doenças e os evidenciar a persistência das desigualdades em
diferenciais de saúde entre os países. Nesta linha, saúde nos países desenvolvidos foi o denominado
destaca-se programa de investigação, originado “Black Report”, no Reino Unido23. Em 1977, comis-
nas ciências econômicas e demográficas, a qual são nomeada pelo Ministro da Saúde de um gover-
tem evidenciado fortes relações entre o desenvol- no trabalhista e liderada por Douglas Black, então
vimento econômico dos países e a saúde22. Apesar presidente do Colégio Real de Médicos, foi encar-
de inicialmente centrados em fatores econômicos, regada de analisar a existência de desigualdades em
esta linha de investigação foi sendo modificada saúde, já que o sistema nacional de saúde (NHS)
para incluir no processo de entendimento e de daquele país, que havia sido criado na década de
desenvolvimento os efeitos dos diferentes fatores 1940 estava fundado nos princípios de equidade e
e políticas sociais (educação, saúde pública etc.) de acessibilidade universal. Uma das observações
relevantes desta comissão foi de que no período
Determinantes sociais, desde a criação do NHS haviam ocorrido melho-
as desigualdades e a equidade rias importantes nas condições de saúde da popu-
lação britânica, independente de classe social (em
Como vimos, desde pelo menos o século XIX, verdade classe ocupacional). Porém o encontro
acentuam-se evidências de que as condições de mais inesperado foi que os diferenciais dos níveis
saúde de uma população estão relacionadas com de saúde entre as classes sociais haviam persisti-
características do contexto social e ambiental em do e para alguns problemas tinham se ampliado.
que esta vive. A pobreza, precárias condições de Alem disto, persistiam desigualdades no tocante à
moradia, o ambiente urbano inadequado, con- disponibilidade e uso dos serviços de saúde. Estes
dições de trabalho insalubres são fatores que afe- resultados foram apresentados em 1979, quando
tam negativamente as condições de saúde de uma o governo britânico era então comandado pelo
população. No final do século XIX, com o sur- partido conservador, que não somente resistiu a
gimento das ciências biomédicas, estas passam a sua publicação como, quando o fez, explicitou no
preponderar na explicação dos problemas de saú- prólogo do relatório seu não comprometimento
de e das doenças, ficando os determinantes sociais com os resultados e as recomendações. Apesar dis-
e ambientais em plano secundário. Entretanto, as to, este documento teve um imenso impacto sobre
teorias biomédicas nunca conseguiram explicar as discussões posteriores relativas às desigualdades
adequadamente muitos dos fenômenos existentes em saúde nos países desenvolvidos. Na pesquisa
no interior de uma população (por exemplo, os acadêmica reaquece o interesse na investigação so-
mais ricos têm melhores condições de saúde que bre as desigualdades em saúde e no campo da po-
os mais pobres) ou entre populações de diferentes lítica estimula as ações de governos em torno desta
países (por exemplo, os países mais ricos têm me- dimensão das desigualdades. O relatório explicitou
lhores condições de saúde que os mais pobres). importantes questões de ordem moral vivenciado
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por estas sociedades. Desnuda um aspecto cruel do dêmico em décadas recentes, em todo o mundo.
capitalismo, mesmo no estágio avançado alcança- A disponibilidade de dados provenientes de uma
do nestes países, momento em que seria esperado diversidade de fontes tem desvendado e trazido
que estas sociedades fossem razoavelmente justas novas evidências sobre a extensão das desigual-
para com os seus cidadãos. dades em saúde e, mais do que isto, evidenciando
Neste ponto é importante estabelecer as di- que, em muitos contextos, está em crescimento.
ferenças entre desigualdades e iniquidades em Alguns poucos países (em especial europeus) têm
saúde24,25. Desigualdades referem-se aquelas dife- utilizado tais evidências para introduzir em suas
renças percebíveis e mensuráveis existentes quer políticas de saúde ações centradas nos determi-
nas condições de saúde, quer sejam relacionadas nantes sociais e na redução parcial das desigual-
às diferenças no acesso aos serviços de preven- dades, porém a grande maioria não tem colocado
ção, cura ou reabilitação da saúde (desigualdades este tema entre suas prioridades políticas.
no cuidado à saúde). Iniquidades em saúde, por Em nível internacional, no momento da cria-
outro lado, referem-se às desigualdades conside- ção da Comissão de Determinantes Sociais da
radas injustas ou decorrentes de alguma forma Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS)
de injustiça. Reflete o como são traduzidas as esse tema ganha importância. Esta comissão, de
desigualdades existentes e as diferencia em justas alto nível, foi criada pelo diretor-geral da OMS,
ou injustas, sendo que esta tradução varia entre em 2005, com a missão de organizar as evidên-
as sociedades humanas. Em muitas sociedades, cias sobre as ações necessárias para promover
imensos diferenciais nos níveis de saúde entre a equidade em saúde, em nível global. Em seu
indivíduos no topo ou na base da pirâmide so- relatório final, publicado em 2008, com o título
cial não são percebidos como injustiça. Isto pode provocativo de Fechando o ‘Gap’ em uma Gera-
acontecer em países desenvolvidos, pobres ou em ção26, após análise minuciosa das evidências da
desenvolvimento. Por outro lado, em outras so- importância das desigualdades sociais em saúde
ciedades, diferenças relativamente pequenas nos na determinação de muitos dos problemas de
níveis de saúde são traduzidas em forte percepção saúde, a comissão conclamou a OMS e os go-
publica de iniquidades. Isto acontece, por exem- vernos de todos os países do planeta para que
plo, em alguns países escandinavos. Esta questão envidassem esforços no sentido da redução de
é importante porque enquanto as desigualdades todas as formas de desigualdades em saúde26. A
são objetos de discussões no campo científico e comissão sintetizou suas recomendações em três
diversos métodos têm sido desenvolvidos para pontos centrais: 1) Melhorar as condições de vida
medi-las, facilitando estudos comparativos em do dia a dia; 2) Combater a distribuição desigual
saúde dentro e entre as sociedades, as iniquida- de poder, dinheiro e recursos; 3) Medir a magni-
des, por traduzirem a forma como grupos sociais tude do problema e avaliar o impacto das ações.
as percebem e interpretam, são mais difíceis de O relatório da Comissão foi seguido, em 2011,
serem objetivamente investigadas, embora seja pela 1ª Conferência Mundial de Determinantes
de extrema importância entendê-las. No mo- Sociais da Saúde, convocada pela OMS e realiza-
mento em que desigualdades transformam-se do na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, contando
em iniquidades é que emergem as condições para com a participação de delegados de 125 diferen-
formulações e ações políticas concretas direcio- tes países. O principal produto da conferência foi
nadas a minimizar as desigualdades existentes. a Declaração Política do Rio sobre Determinantes
Em décadas recentes, o crescimento da pers- Sociais da Saúde, em que os delegados afirmam
pectiva neoliberal e o individualismo têm forta- sua “determinação em promover a equidade
lecido a visão de que os acontecimentos em nível social e em saúde através de ações sobre os de-
da sociedade são de responsabilidade dos indi- terminantes sociais da saúde e do bem-estar im-
víduos que o sofrem, retirando o seu caráter de plementadas por meio de uma ampla abordagem
fenômeno social e coletivo. Esta visão de mun- intersetorial”27.
do tem sido o fundamento para que influentes
forças políticas entendam as desigualdades como As teorias que buscam explicar
fruto de problemas individuais e os reneguem as desigualdades em saúde
como expressão das injustiças e, portanto, sem
necessidade de políticas e ações governamentais Os estudos da desigualdade em saúde ao par-
para minimizá-los. tirem de diferentes fundamentos teóricos para
Entretanto, o tema das desigualdades sociais suas investigações empíricas oferecem diferen-
em saúde tem crescido no debate intelectual e aca- tes interpretações e soluções para o problema.
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Enquanto tenham prioritariamente focado em e favorecendo aqueles que já acumulam, provo-


explicar as desigualdades entre grupos sociais de cando a ampliação das desigualdades sociais. Esta
uma mesma nação, fundamentos teóricos simila- tendência pode ser contida ou amenizada por
res podem servir de base para interpretação da- políticas distributivas, quando estas são eventu-
quelas entre as nações e as globais. Brevemente, almente adotadas.
podemos dizer que estas teorias se organizam em
explicações tanto de base individual como estru- Novos cenários das desigualdades sociais
turais5,28. em saúde
As explicações de base individual têm tido
grande quantidade de adeptos entre os autores Em um mundo em intensas transformações,
anglo-saxônicos, no entanto se agregam em di- alguns processos sociais se amplificam com a
ferentes tendências e se destacam aquelas que globalização, crescendo em importância por suas
focam nas dimensões materiais da vida, em espe- implicações nas desigualdades em saúde. Pela sua
cial a forma que a riqueza da sociedade está dis- atualidade, relevância e implicações, das desi-
tribuída entre seus membros; aqueles que focam gualdades em saúde dois aspectos serão aqui des-
as dimensões cuturais-comportamentais (estilos tacados: a urbanização e as migrações.
de vida); e outros que enfatizam as psicossociais,
ou seja, como os indivíduos interpretam a sua Urbanização e a importância das cidades
posição na hierarquia social e os vínculos desta
percepção e fenômenos biológicos subsequentes Em 2014, 54% da população mundial resi-
(p.ex. os mecanismos de stress) com seus poten- diam em áreas urbanas. Em 1950, esse percentual
ciais efeitos patogênicos. A teoria psicossocial era de apenas 30%, estimando-se que em 2050
tem sua origem nos trabalhos seminais do John excederá os 70%. As mais altas taxas de urbaniza-
Cassel, na década de 1960 e 197029,30. Porém, uma ção observam-se na América do Norte, (82% da
linha de trabalho posterior, iniciado por Richard população) e as menores na África (40% da po-
Wilkinson, constituiu uma nova e interessante pulação). Enquanto a América Latina e o Caribe
evolução da teoria original31,32. Wilkinson elabo- apresentam 80% da sua população concentrada
rou a ideia de que as desigualdades não somen- em áreas urbanas35.
te determinam diferenças no mundo material e A urbanização intensa deveu-se à maciça
desta forma explicando patologias ligadas a ca- transferência da população rural para áreas ur-
rência diversas (p.ex. fome, habitação ou sane- banas. O conceito de urbano pode abranger des-
amento precário, renda insuficiente para cobrir de aglomerações com alguns poucos milhares de
os custos necessário da reprodução), porém as habitantes até megacidades, com vários milhões
desigualdades em si geram complexos fenôme- de pessoas. Em áreas relativamente restritas, estes
nos psicossociais que se expressão em fenômenos centros aglomeram uma grande quantidade de
patogênicos, ou seja, as desigualdades sociais te- pessoas. Essas aglomerações criam uma série de
riam propriedades patogênicas. Mais tarde, este problemas e desafios com repercussões na esfera
conceito foi expandido para explicar (pelo me- da saúde e que tendem a ser desigual e injusta-
nos parcialmente) desigualdades existentes entre mente distribuídos no espaço e entre os grupos
outras formas de estratificação e discriminação, sociais.
como, por exemplo, entre gêneros e etnias33. Os padrões de desigualdades existentes nas
As explicações estruturais focam na ideia de sociedades transparecem nestes espaços restritos.
que os determinantes sociais geradores das de- Tornando possível visualizar de maneira muito
sigualdades na saúde são moldados pelos que clara as mazelas geradas pelas desigualdades so-
estão na superestrutura da sociedade: a política, ciais e seus efeitos deletérios na saúde humana.
a organização produtiva, etc. As definições po- Se já no século XIX, Villermé mostrou em Paris
líticas para a organização do Estado levarão as como as diferenças sociais e ambientais entre os
opções também políticas que irão favorecer ou bairros (arrondissements) refletiam-se em taxas
reduzir as desigualdades. Reforçando esta teoria, de mortalidade14 desiguais, esta situação, ainda
e em contrário àqueles que ainda acreditavam que em menor escala e com menos visibilidade,
em possibilidades distributivas e na consequente persiste nos dias atuais36. Em muitos dos países
redução das desigualdades no marco do capita- pobres e em desenvolvimento com altos níveis
lismo, evidências empíricas recentes a partir dos de desigualdades sociais, a urbanização transfor-
estudos de Piketty34 mostram que a acumulação ma-se em sinônimo de exclusão, em todas as suas
capitalista tende a ser diferencial. Sendo maior formas.
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Migrações e os limites As condições globais de saúde
dos movimentos humanos – ampliam-se as desigualdades

Por razões diversas e desde épocas remotas, Em nível global, indicadores das condições
observa-se contingentes de uma população ou de saúde da população mostram, em geral, ten-
mesmo toda ela, eventualmente, se deslocarem dências positivas. Porém, as observações mais
para novos locais. Em 2013, estimava-se que 232 detalhadas das evidências existentes mostram
milhões de pessoas – 3,2% da população mun- que esse quadro é bem mais dinâmico. Há a
dial – viviam fora de seu país de nascimento e persistência de problemas de saúde ou doenças
que outros 700 milhões são migrantes internos35. que deveriam estar erradicadas ou controladas,
Os padrões e os motivos desses movimentos mi- ou emergência de problemas de saúde ou doen-
gratórios têm se modificado muito no decorrer ças não esperadas. Persistem e, em muitos casos,
do tempo. Porem, é evidente que a maioria dos aumentam as desigualdades nos níveis de saúde
migrantes que atravessa fronteiras nacionais o entre nações, ou entre regiões, grupos sociais ou
faz em busca de melhores oportunidades eco- étnicos de uma mesma nação.
nômicas e sociais. Em décadas recentes, as dis-
paridades exacerbadas entre nações, a expansão Um breve sumario das desigualdades
da economia global, as transformações geopolí- entre as nações
ticas, as guerras, os desastres ecológicos e muitas
outras ocorrências têm tido profundo impacto Estima-se que cerca de 800 milhões de pes-
sobre a decisão das pessoas de mover-se para ou- soas em todo o mundo esteja cronicamente com
tra nação, e provavelmente continuarão a ter. O fome, uma em cada seis crianças nos países em
fenômeno recente da massiva migração da popu- desenvolvimento está abaixo do peso e mais de
lação de alguns países árabes para a Europa é um um terço das mortes entre crianças menores de
exemplo das possibilidades explosivas e descon- 5 anos são atribuíveis à desnutrição37. O acesso
troladas que a questão migratória pode assumir insuficiente a alimentos seguros e nutritivos exis-
(https://www.socialeurope.eu/focus/europes-re- te a despeito do fato de que a produção global
fugee-crisis/). de alimentos seja suficiente para cobrir 120% das
A questão migratória traz um ponto impor- necessidades dietéticas globais.
tante no debate das desigualdades. Estimativas A expectativa de vida ao nascer é um mar-
mostram que as desigualdades sociais entre os cador importante das condições de saúde e na
países explicam uma parte maior das existentes chance da sobrevivência de uma população. Na
em nível global do que as dentro dos países. En- média global, a expectativa de vida ao nascer de
quanto as desigualdades dentro das nações estão um indivíduo em 1990 era de 64 anos; em 2013,
muito mais relacionadas às questões das classes e esse número foi acrescido de sete anos, passan-
a outros processos de estratificação social, a exis- do para 71 anos. Como médias, entretanto, esses
tente entre as nações traz à tona a questão do local valores escondem uma série de desigualdades.
de nascimento, ou o que tem sido denominado de Por exemplo, em 2013, a expectativa de vida ao
“prêmio da cidadania” (citzenship premium) rela- nascer médio dos países variava de um mínimo
cionado à história e ao processo global de desen- de 46 anos (38 em 1990), em Serra Leoa, para 84
volvimento das nações6,7. Se voltarmos à questão anos (79 em 1990), no Japão. Até 2013, a expecta-
da expectativa de vida apresentada acima, veremos tiva de vida aumentou em ambos os países, e em-
que uma criança nascida em Serra Leoa, em 1990, bora a diferença tenha se reduzido ligeiramente
tinha, somente pela sua condição do nascimento, (de 41 para 38 anos), ainda se mantêm em níveis
a expectativa média de viver 38 anos menos que inaceitáveis38.
aquelas nascidas no Japão no mesmo ano (46 anos As crianças formam um grupo especialmen-
versus 84 anos). Portanto, a clivagem de nasci- te sensível às adversidades sociais e ambientais.
mento torna-se um aspecto importante e o mo- Apesar de avanços que ocorreram nas últimas
vimento migratório define-se por esta tentativa de décadas, estima-se que 6,3 milhões de crianças
mudar aquilo que de certa forma foi estabelecido menores de cinco anos de idade morreram em
pelo local e momento de nascimento. Porém, em 2013, a maior parte por causas evitáveis nos pa-
um mundo globalizado, em que circulam o capi- íses pobres ou em desenvolvimento. As crianças
tal, as mercadorias e os seres humanos, há sérias da África subsaariana têm 15 vezes mais chan-
limitações de movimentação, principalmente, ce de morrer antes de completar cinco anos do
quando se refere aos deslocamentos entre nações. que as das regiões desenvolvidas do planeta. Em
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2015 a mais alta taxa de mortalidade foi obser- (como a DPOC e asma) e diabetes. Outras, como
vada no Afeganistão (115 óbitos por 1.000 nas- as doenças mentais e neurológicas, incluindo as
cidos-vivos) e a menor em Mônaco (1.8 óbitos diversas formas de demência, apesar de contri-
por 1.000 nascidos-vivos)39. De 1990, quando se buírem para a alta carga da morbidade (menor
estabeleceram as Metas de Desenvolvimento do na mortalidade), não têm sido priorizadas nos
Milênio, até 2015, a taxa global de mortalidade planos globais. DCNTs estão aumentando rapi-
infantil caiu de 62 para 32 óbitos por 1.000 nasci- damente nos países em desenvolvimento, onde
dos-vivos. Apesar dessa redução substancial, em impõem grandes custos humanos, sociais e eco-
torno de 50%, não foi atingida a meta estabele- nômicos, muito dos quais poderiam ser evitadas
cida, qual seja de reduzir para 2/3 o nível obser- com intervenções conhecidas e que se demons-
vado em 1990. tram custo-eficazes e viáveis. Apesar de, em um
Em dias atuais, as doenças infecciosas conti- primeiro momento, terem sido associadas com a
nuam a ser a principal causa de morte de crianças riqueza, as evidências mostram que cerca de 80%
e uma das principais em adultos. Globalmente, das mortes por DCNTs ocorrem em países em
três, entre as 10 principais causas de óbitos, são desenvolvimento. Mesmo nas nações subsaaria-
por doenças infecciosas. Estas também respon- nas, nas quais as doenças transmissíveis, as causas
dem por 16% das mortes, ocorridas a cada ano. A maternas e perinatais e as deficiências nutricio-
maioria dessas mortes acontece em países pobres nais, em conjunto, ainda são mais importantes,
e em desenvolvimento e é atribuível a doenças estas apresentam tendência de redução, ao passo
evitáveis ou tratáveis, tais como diarreia, infec- que as DCNTs crescem rapidamente. Esse quadro
ções respiratórias, HIV/Aids, tuberculose e malá- permite, por exemplo, projetar que por volta de
ria. Embora tenha havido avanços significativos 2030 as DCNTs serão a causa mais frequente de
em intervenções para prevenir e tratar a maioria óbitos no continente africano41.
dessas doenças, tais intervenções nem sempre Estima-se que mais de cinco milhões, ou 9%,
estão disponíveis para as populações que delas dos óbitos que ocorrem globalmente estão rela-
necessitam. Tomando-se o exemplo da tubercu- cionados às diversas formas de violências. Apro-
lose, uma doença profundamente vinculada às ximadamente um quarto desses óbitos resulta de
condições em que vivem as populações afligidas suicídio e homicídio, e os acidentes de trânsito
e cuja ocorrência modifica-se rapidamente quan- são responsáveis também por outro quarto deles.
do as mesmas mudam. Em 2013, estimou-se que Os diversos tipos de violência variam nas dife-
9 milhões de pessoas ficaram doentes com tuber- rentes regiões do mundo, porém, em geral, suas
culose no mundo, sendo que a maior parte desses taxas são sempre mais altas nos países pobres e
casos (56%) ocorreu no sudeste da Ásia e no do em desenvolvimento42.
Pacífico Ocidental. No entanto, a África teve as
maiores taxas de incidência, com 280 casos por As desigualdades em saúde crescem:
100.000 habitantes. Dos casos, em torno de 0,5 soluções possíveis
milhão foi causado por bacilos da tuberculose re-
sistentes a múltiplos medicamentos (MDR-TB), A construção de um mundo mais equânime
os quais, além de provocar doenças mais severas, tem sido aspiração de diferentes movimentos po-
aumentam em muitas vezes os custos do trata- líticos, os quais entendem que a redução das de-
mento, tornando-os proibitivos para grande par- sigualdades nas diversas esferas da vida humana
te dos doentes, que vivem em situação de pobre- é essencial e garantia para a existência e sustenta-
za. No mesmo ano, o número estimado total de bilidade da sociedade humana. As desigualdades
óbitos por tuberculose foi de 1,5 milhão. Dessas em saúde desnudam uma das facetas das desi-
mortes, mais de 95% ocorrem nos países em de- gualdades prevalentes entre os seres humanos, os
senvolvimento, apesar de a taxa de mortalidade efeitos cruéis e danosos sobre a própria existên-
ter caído 45% entre 1990 e 201340. cia, refletido nas imensas diferenças na expectati-
As doenças crônicas não transmissíveis va de vida ou na carga de doenças e sofrimentos.
(DCNT), em conjunto, são responsáveis por As evidências sobre a importância dos deter-
uma importante parte da carga de enfermidades minantes sociais na explicação das desigualdades
existentes no mundo, estando associadas a quase observadas na saúde são sólidas. E embora haja
dois terços dos óbitos em nível global (36 dos 57 claros posicionamentos acadêmicos e políticos
milhões de óbitos, em 2008). Os principais agra- que favorecem a implementação de ações sobre
vos à saúde nesse grupo são: doenças cardiovas- os determinantes das desigualdades em saúde,
culares, cânceres, doenças respiratórias crônicas políticas para as amenizar têm sido escassamente
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implementadas como parte das políticas públi- mais avançada para superar este dilema tem
cas dos governos nacionais e, menos ainda, para surgido em alguns países europeus, nos quais o
atenuar as desigualdades existentes entre as na- desenvolvimento mais recentes da ação política
ções. As dificuldades e as barreiras para esta falta no campo das desigualdades em saúde tem sido a
de motivação política são várias, porém formam criação e a implementação do conceito de “saúde
alguns dos aspectos que têm sido recorrentes na em todas as políticas”44. Esta estratégia visa in-
literatura sobre desigualdades em saúde. cluir considerações sobre a saúde na formulação
Um primeiro aspecto a considerar é a con- de políticas em diferentes setores, tais como tra-
solidação de um sistema de saúde fundado no balho, agricultura e uso da terra, habitação, se-
conhecimento biomédico e nas tecnologias deles gurança pública, educação, transporte, proteção
resultantes, associados a fortes setores industriais social, etc.
e de serviços. Estas forças tendem a gerar e con- No rastro das repercussões do “Black Re-
solidar sistemas de saúde pouco afeito conceitual port”23 e de outros estudos importantes que se
e estruturalmente a se adequar ou favorecerem seguiram, alguns países desenvolvidos, princi-
ações direcionadas aos determinantes sociais da palmente europeus, promoveram experiências
saúde. de ações governamentais coordenadas no campo
As diferenças conceituais, morais e políticas das desigualdades em saúde25. Todos esses países
existentes com relação às desigualdades entre os têm sistemas de informações e analistas capazes
grupos sociais de uma mesma nação entre as na- de interpretar os níveis de desigualdades de saúde
ções não podem deixar de serem consideradas. A existentes, porém apenas alguns, em geral entre
primeira é mais frequentemente entendida com aqueles com os menores, foram os que imple-
iniquidade do que a segunda. Isto fica explicito, mentaram políticas focadas nessa questão. Esta
por exemplo, na obra do influente filosofo moral observação chama atenção para a importante
John Rawls. Enquanto em sua Teoria de Justiça42 discussão entre desigualdades e iniquidades. A
ele estabelece os princípios de justiça que devem existência das desigualdades e sua magnitude não
ser estabelecidos entre indivíduos e grupos de imediatamente explicitam imperativos morais
uma mesma sociedade, ele não considera isto re- nem geram ações políticas em uma sociedade.
levante quando a questão refere-se às desigualda- Em algumas sociedades, relativamente pequenos
des entre as nações43. No tocante às desigualdades níveis de desigualdades em saúde têm gerado
sociais em saúde, algo similar também ocorre. A fortes ações políticas para reduzi-las (p.ex. paí-
investigação e a literatura relativa à desigualdade ses escandinavos), enquanto outras com amplos
em saúde focam-se predominantemente nas exis- níveis de desigualdade em saúde, não tem havido
tentes entre grupos sociais de uma mesma nação. motivações para amenizá-las (p.ex. vários países
As comparações entre as nações (ou outros tipos da América Latina).
de organização territorial) têm sido relevantes Nos países pobres e em desenvolvimento,
em linhas de pesquisa, como a desenvolvida por onde as desigualdades em saúde são de maior
Wilkinson e que demonstram a centralidade dos magnitude, existem escassos exemplos de que
níveis de desigualdades social dos países nas con- esta questão tenha entrado entre as prioridades
dições de saúde de suas populações31,32. Porém, das políticas públicas. O Brasil, por exemplo,
alguns estudiosos da questão desigualdades em um país com imensas desigualdades sociais e
saúde continuam a arguirem que estas formam em saúde45, seguindo a criação comissão de de-
um tema restrito a grupos de indivíduos em uma terminantes sociais em saúde da OMS, montou
mesma sociedade5. O programa de pesquisa es- sua comissão nacional, a qual após dois anos de
tabelecido por Wilkinson e outros é classificado trabalho produziu um relatório, o qual, entretan-
por estes como sendo em “ecologia social” e não to, em grande parte não foi assimilado nas ações
em desigualdades em saúde. governamentais46. Entretanto, em muitos dos pa-
Outro aspecto é que as intervenções sobre íses em desenvolvimento a implementação, nas
os determinantes sociais em saúde exigem ações últimas duas décadas, de políticas redistributivas
coordenadas sobre vários aspectos da vida das como transferência de renda e microcréditos47,
sociedades, o que em termos governamentais im- políticas não direcionadas à saúde, têm trazido
plica em ações multissetoriais, as quais, mesmo efeitos positivos no que concerne às desigualda-
quando desejadas, são sempre difíceis de coor- des em saúde48.
denar e implementar no ponto de vista político No tocante às desigualdades entre os países,
e técnico. Entretanto, esforços para superar esta as propostas e as ações têm sido ainda mais tími-
questão têm sido apresentados. A experiência das. Por exemplo, o relatório final da Comissão
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de Determinantes Sociais em Saúde da OMS26 vemos mais considerar a saúde apenas como uma
coloca grande ênfase nas desigualdades dentro de questão técnica biomédica, porém reconhecemos a
uma mesma sociedade e menos na existente en- necessidade de ações e justiça multissetoriais e glo-
tre as nações. Tem um capítulo dedicado à ques- bais nos esforços para lidar com as desigualdades
tão das desigualdades em saúde na sua dimensão na saúde49.
global, focando na necessidade de fortalecimento Concluindo, pode-se destacar que enquanto
da denominada “governança global” e explicitan- o interesse pela questão das desigualdades em
do a necessidade de coordenação entre as várias saúde tem crescido no ponto de vista acadêmi-
agencias intergovernamentais. Parte destas ideias co, o seu uso tem sido limitado no tocante à sua
terá desdobramento em ações como as Metas de introdução nas políticas públicas direcionadas à
Desenvolvimento do Milênio (MDGs), focadas melhoria da saúde das populações. As desigual-
na erradicação da extrema pobreza entre 2000 e dades sociais em saúde são um problema global
2015, e no seu sucedâneo, as Metas de Desenvol- que, em maior ou menor grau, aflige todas as
vimento Sustentável (SDGs) que adiciona a as- sociedades humanas. A sua compreensão vem
piração do desenvolvimento sustentável em suas dominantemente das desigualdades existentes
três dimensões – econômica, social e ambiental, entre os diversos grupos sociais de cada socieda-
para o período 2016 a 2030. de. As desigualdades entre as diversas sociedades
Mais recentemente, outro grupo (The Lan- e nações, enquanto relevantes e muitas vezes de
cet – University of Oslo Comission on Global maior magnitude, nem sempre são consideradas
Governance for Health)49 avançou na compre- injustas e como tal estão sujeitas a ações políticas.
ensão e em propostas de ações no tocante às Para sua solução a tese mais bem elaborada tem
desigualdades globais. O documento final deste sido em torno da melhoria dos mecanismos de
grupo, intitulado “The political origins of health governança global, desde que incluam o enten-
inequity: prospects for change”, assume o desejo dimento de como o processo histórico de cons-
de transmitir uma mensagem forte à comunidade tituição das nações ocorreu e como se dá o posi-
internacional e a todos os atores que exercem influ- cionamento de cada país nos circuitos produtivos
ência nos processos de governança global: não de- globais6.
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Artigo apresentado em 28/08/2016


Aprovado em 28/11/2016
Versão final apresentada em 03/02/2017

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