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80 LEWIS CARROLL

CHAMPFLEURY (JULES HUSSON) Enfim, falava-se tanto de Carcassone no bairro, da sua beleza e do seu
talento de retratista, que Balandard, um provinciano recém-chegado,
cismou em surpreender a mulher no regresso a Chaumont com o seu
A Lenda do Daguerreótipo (1863) retrato feito por um processo ainda tão novo.

Em vista disso, o provinciano dirige-se uma manhã ao estúdio de


(A fotografia é o inventário da mortalidade», escreveu Susan Sontag." Lembra-te Carcassonne, que, depois de dar um jeito aos bofes, puxou o cabelo em
de que vais morrer. A magia da imagem técnica dá gradualmente lugar fi lima desordem para trás:
magia negra, inquietante, e a fotografia é agora intrinsecamente vanitas. Do espanto
- Vamos fazer-lhe um retrato admirável, senhor. Nem o reconhecerão.
passamos para a apreensão e o passado cola-se-nos à pele com o realismo da
- E de que serve fazer um daguerreótipo - exclama Balandard - se
prova fotográfica. Nalgumas culturas primitivas acredita-se que o reflexo ou
não me reconhecem?
a sombra de lU11 homem contêm uma parte vital da sua alma. A apreensão eleva-se - É uma maneira de falar, meu caro senhor ... Queira sentar-se e não
a medo: a objectiva eo olho maligno que nos rouba a alma. Em A Lenda do se mexa ... Se me dá licença, vou 'dar-lhe uma penteadela ... Não se
Daguerreàtipo." o escritor francês conhecido como Charnpfleury (1820-1889), mexa ... Não é grande a elegância com que se corta o cabelo lá na sua
mas baptizado como Jules François Felix Fleury-Husson, esboça uma fantasia terra, senhor. .. Não se mexa, estou à procura das tesouras ... Zás-trás, já
urbana que recupera os ancestrais receios tribais. Ainda que num registo mais está. Veja-se aqui ao espelho sem se mexer, por favor. .. Parece ter menos
leve c sardónico do que 11' «(O Retrato Oval» de Poe, a história move-se também dez anos ... Um momento, que vou pôr-lhe um bocadinho de brilhantina ...
na temática do vampirismo artístico. Há um retratista e um retratado. Carcassone Não se mexa.
e Balandard, As sucessivas tentativas para fazer o retrato e a crescente agressividade - E o retrato? - bradou Balandard impaciente.
dos químicos usados para a revelação têm efeitos catastróficos. De exposição - É para já. Só um nada de pó-de-arroz para disfarçar o rubor
em exposição, Balandard dissipa-se, dcscorporiza-se lentamente, e depois de
da viagem, e não se mexa!
- Senhor Carcassonne, por que razão é que não me deixa mexer?
cinquenta provas. dele resta apenas a sombra, que a partir de então persegue
- Para se habituar, a partir de agora, a suportar a imobilidade que a
Carcassone, o vampiro descuidado, por toda a pane. «Sombra», em japonês, diz-se
operação vai exigir ... Tenha paciência, vamos começar. Não se mexa!
«kage». «Retrato» também, E a tradução literal do termo japonês para fotografar ou
tirar uma fotografia, «satsuei», é «tirar uma sombra». Champflcury, Carcassonne trouxe então um enorme daguerreótipo que parecia um
contemporâneo da vaga de japonismo do século XIX parisiense, foi um critico canhão assestado para o modelo.
dessa moda (escreveu mesmo um livro chamado La Mode des Japonaiseriesv
e é plausível que tivesse conhecimento destes pormenores do léxico japonês. - Não pestaneje! Atenção! Não se mexa!
- É realmente uma posição insuportável - pensava Balandard de si
o primeiro retratista a estabelecer-se em Paris, Carcassone de seu I ara consigo alargando os olhos.
nome, era um aprendiz de barbeiro do Midi que, da sua anterior condição, - As mãos quietas! O peito mais para a frente! ... Não mexa mais
conservara apenas o cabelo grande, os punhos compridos e os bofes o resto do corpo - dizia o retratista com a cabeça na máquina.
entufados que lhe serviam de marca distintiva; as suas expressões, porém,
Sai da caixa e vai em direcção a Balandard.
eram as de um homem inspirado e um tanto fatal nos numerosos retrato
dele próprio que se viam à entrada. - Ora aqui está uma mecha de cabelo que produz o pior efeito ... Devia
ler-lhe dado um pouco de ferro. Vá! não se impaciente, vou começar. Não
Os homens que passavam defronte diziam: «Gostava de parecer-me se mexa mais! Um, dois, três! Quieto! Já está!
com o Carcassonne!» As raparigas exclamavam: «Um mocetão! o senhor - Finalmente! - exclamou Balandard levantando-se, feliz por se livrar daquela
Carcassonne.» dura imobilidade e contemplar os seus traços reproduzidos pela luz solar.
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Mas a chapa, mais preta que um preito, não deixava distinguir nem
boca nem nariz, nem olhos nem orelhas. - Não faça caso - comentou Carcassonne. - Isso é o efeito da brilhantina
quando penetra nos tecidos capilares e estimula a raiz do cabelo.
- O senhor mexeu-se - gritou Carcassonne. - Temos de repetir. ..
Vamos lá! para o seu lugar e não se mexa .. Depois das comichões, apareceu na chapa, em toda a sua majestade,
o topete de Balandard.
Balandard tornou a sentar-se na cadeira e por três vezes apareceu
o mesmo irritante quadrado preto na chap.a. Ao nono ensaio, Balandard sentiu umas estranhas picadas na vista
direita, o que o fez fechar o olho esquerdo.
- O senhor não consegue estar sossegado? - dizia o retratista. _ E não
é assim tão dificil ficar quieto! E realmente, só o olho direito apareceu na chapa.

- Que tormentos, santo Deus! - dizia Bala~da~d para consigo,


A verdade é que o antigo aprendiz de barbeiro, ignorante absoluto das
artes do daguerreótipo, usava ao acaso subjstânoias químicas que lhe eram o coração oprimido pelo alvoroço; de facto, que slgmfica~am aquel~s
desconhecidas e o Sol também parecia não se prestar a ajudá-lo. comichões, aquelas picadas, aqueles f0.rmigamentos de?OlS dos ?qu~ls
o pobre homem sentia como que um mmguamento .de SI mesrr:o. Nao
seria perigoso expor-se diante de uma máquina mistenosa que, fnamente,
Durante a quarta tentativa de retrato, B,alandard sentiu uma comichão
extraordináriano nariz e precisou de um grandleautodonúnio para não se coçar. com o seu olho escuro, observava o homem sentado? E que lúgubre
aquele hábito do retratista de estar sempre a cobrir a cabeça com um
-Ah! ah! - exclamou Carcassonne - esta está melhor. grande pano preto!

Possuísse Balandard alguma firmeza e ter-se-ia ido embora do estúdio;


E, triunfante, mostrou ao freguês um nariz delineado na chapa preta.
mas desde que se sentara na cadeira frente ao instrumento, a sua vontade
diminuíra e não conseguia resistir a Carcassonne que de todas as ve~es
- Não mexeu o nariz; por isso é que $aiu tão bem. Ânimo, vamos
conseguir. o obrigava a sentar-se e recomeçava o retrato com o seu eterno gnto:
não se mexa.
Ao sexto retrato, Balandard levantou-se coçando as orelhas como
se tiv~sse sido assaltado por um exército de pulgas. Entretanto, Carcassonne, de tanto praticar, começava a ganhar-lhe
- E extraordinário - dizia Balandard enquanto coçava as orelhas. o jeito, e conseguiu obter uma espécie de retr~to ~astante nebuloso,
- Parecem-me mais pequenas. uma maravilha, no entanto, comparado com os pnmeiros negros.
- Bravo! bravo! - exclamava Carcassonme.
A verdade é que, para chegar àqueles pobres resultados, o re~atista
Desta vez via-se, em toda a sua vulgaridlade, a silhueta das orelhas de enchia as suas chapas de produtos químicos extremamente agressivos.
Balandard.
Durava a sessão havia três horas, e Balandard, enfraquecido, já mal
- Tudo vai bem - diz o retratista. - À. primeira, o retrato aparece tinha forças para limpar a fronte banhada em suor, quando Carcassonne
inteirinho. Não se mexa! soltou um grito de triunfo.

Balandard sentiu então como que uma legião de formigas no cabelo. - Finalmente, aqui está um retrato admirável, não podia estar mais
parecido!
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Àquele entusiasmo, uma voz alterada respondeu:

-Mostre!
- Senhor Balandard, então! onde é que se meteu? - perguntou o retratista.
-Aqui.
- Onde?
- Na cadeira.

Realmente, o som da voz partia da cadeira onde havia pouco o modelo


estava sentado, mas o provinciano deixara de ver-se.

- Senhor Balandard! - gritou o retratista.


- Senhor Carcassonne!
- Vá, senhor Balandard, deixe-se de brincadeiras ... Saia lá do sítio
onde se escondeu.
- Não me vê, senhor Carcassonne? - perguntava a voz.

Depois de procurar em todos os cantos do estúdio, a fatal verdade acabou


por se revelar ao ignorante retratista: usara ácidos tão agressivos que o rosto,
o corpo e as roupas do infeliz burguês de Chaumont tinham sido consumidos.
MILAGRES
Aos poucos, as cinquenta provas sucessivas destruíram inteiramente
a pessoa do modelo. De Balandard, restava apenas uma voz!

Assustado com a eliminação de um cidadão estimável, crime previsto


no Código, Carcassonne abandonou o perigoso ofício de retratista
e retomou a antiga profissão de aprendiz de barbeiro; no entanto, qual
castigo eterno, a sombra de Balandard seguia-o incessantemente por todo
o lado suplicando-lhe que lhe devolvesse a primitiva forma.

E para acalmar essas justas recriminações, Carcassonne só consegue


um momento de sossego quando, coisa que as pessoas atribuem a um
excesso de prudência, diz a quem vai fazer a barba:

- Não se mexa!

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