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29/03/2018 Gestão religiosa e trabalho doméstico marcaram presídios femininos – Jornal da USP

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Ciências Humanas - 25/10/2017

Gestão religiosa e trabalho doméstico marcaram presídios femininos


Com documentos inéditos, estudo revela origem das práticas do encarceramento feminino no País
Por Marcella Affonso - Editorias: Ciências Humanas

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O trabalho prisional era essencialmente doméstico – costurar, lavar e passar roupas – e os métodos educativos empregados
reduziam-se à alfabetização, ensino primário e religioso. Na imagem, trabalho no Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo –
Foto: Acervo do Museu Penitenciário Paulista

.
Para mudar a atual situação prisional feminina no Brasil, não se deve tratá-la como resultado do descaso do Estado, mas como efeito de
um projeto de longa data que atende a determinados interesses, sendo necessário, portanto, conhecer suas formas de construção. Esta é
avaliação da historiadora Angela Teixeira Artur, que, através de sua pesquisa, buscou identificar e compreender quais eram, em seu
início, as características fundamentais da execução penal sobre as mulheres infratoras no Estado de São Paulo, sede do primeiro
presídio feminino do País.

Conforme a pesquisa demonstra, o chamado Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo, primeiro estabelecimento penitenciário do
Brasil voltado para a população feminina, foi inaugurado em 1942, atendendo às exigências do então recém-criado Código Penal
brasileiro e ao projeto repressivo-modernizador nacional da época. Sua gestão, contudo, não era laica, tal como ocorre atualmente: tanto
o serviço administrativo quanto os serviços de disciplina e de guarda das sentenciadas foram entregues pelo governo estadual às freiras
católicas da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de Angers, com quem permaneceram por mais de três
décadas.

Vale destacar que a instituição penal não foi a única no estado paulista a ser gerida pela Congregação. De acordo com o estudo, as
freiras do Bom Pastor também foram contratadas para gerir o Presídio Feminino de Tremembé, desde sua inauguração, em 1973, até

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1980, ano em que foi entregue à gestão laica. Como as duas unidades citadas eram as únicas penitenciárias femininas em
funcionamento no Estado de São Paulo até o início da década de 80, os presídios de mulheres do Estado só “conheceriam a
administração laica” a partir de 1977, quando o Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo foi passado à direção leiga.

Entrada do Presídio de Mulheres. Ao ingressar na instituição, nenhuma interna ficava sem definição
profissional -caso não tivesse uma, era rotulada como doméstica – Foto: Acervo do Museu
Penitenciário Paulista

.
Domesticação do regime de execução penal
O Código Penal previa que o cumprimento da pena das sentenciadas deveria ser acompanhado de trabalho e instrução. A pesquisa
demonstra, contudo, que tanto o decreto de criação do Presídio de Mulheres quanto o projeto do Bom Pastor estabeleciam que essas
tarefas deveriam ser voltadas às atividades do lar. Como a historiadora observa, o trabalho prisional era essencialmente doméstico –
costurar, lavar e passar roupas – e os métodos educativos empregados reduziam-se a alfabetização, ensino primário e religioso. Com
isso, as irmãs do Bom Pastor promoveram “a execução de uma verdadeira domesticação do regime de execução penal”, aponta o
estudo.

Mas não era só nas tarefas cotidianas que a ideia de domesticação feminina se materializava. Além do fato do próprio espaço físico da
penitenciária ser uma casa, a pesquisadora chama a atenção para o modo como as sentenciadas eram classificadas ao ingressarem no
local: nenhuma delas ficava sem definição profissional e caso alguma não tivesse uma, era rotulada como doméstica. “Seu lugar social já
estava definido […] e isso o prontuário já denunciava, profissão: doméstica”, afirma a historiadora na pesquisa.

Em defesa dessa domesticação argumentava-se, de acordo com a tese, que o foco era possibilitar a empregabilidade futura daquelas
mulheres, de acordo com o “ambiente” que frequentariam após saírem da prisão. “Criaturas do lar, para o lar voltariam agora na condição
de trabalhadoras”, denuncia a pesquisadora em seu trabalho.

Exemplo de Ficha Qualitativa – Imagem: Acervo da Penitenciária Feminina da Capital

.
Outros interesses
Além do interesse do Estado na contratação das religiosas, a Congregação também tinha interesses na gestão prisional. Como o trabalho
com mulheres infratoras “estava na essência de sua missão religiosa”, conforme a pesquisa aponta, estar à frente da gestão das novas
penitenciárias surgidas no Brasil garantia à instituição reputação e prestígio social. E não só isso: garantia-lhe, também, a remuneração
de seus integrantes e o planejamento e realização de outras atividades da Congregação, uma vez que seu trabalho era realizado por
meio de contrato que previa rendimentos mensais ou anuais fixos.

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Com seu projeto de “recuperar almas perdidas” – especialmente as de mulheres -, as irmãs do Bom Pastor chegam ao Brasil com vasta
experiência de atuação pelo mundo no trabalho com infratoras e “certa influência política”, apresentando-se ao Estado como a melhor
opção para gerir as penitenciárias femininas recém-criadas. “O Estado estava criando uma instituição e não tinha ainda um grupo
formado para geri-la. As freiras chegaram com um longo currículo”, aponta Angela.

Internas com uniformes da penitenciária de Tremembé, nos anos 1960 – Foto: Acervo do Museu
Penitenciário Paulista

.
Novas possibilidades de pesquisa
Além de servir de embasamento para o debate sobre a atual situação penitenciária feminina no País, a historiadora destaca a importância
de seu trabalho para as novas possibilidades de pesquisa que se abrem. “O trabalho traz muitas questões, cujas respostas só podem ser
alcançadas com mais pesquisas na área”, destaca.

Além disso, a pesquisa foi toda realizada a partir de documentos inéditos, alguns dos quais considerados extintos até então. Trata-se dos
documentos produzidos no interior das penitenciárias como, por exemplo, os prontuários das internas do Presídio de Mulheres, tidos
como incendiados durante as grandes rebeliões dos anos de 1980. Mas, como ela demonstra, eles ainda existem e apresentam-se como
novas possibilidades de pesquisa – no trabalho, a historiadora traz detalhes sobre os acervos de cada uma das penitenciárias, ainda que
o de Tremembé seja, de fato, praticamente nulo.

A tese de doutorado Práticas do encarceramento feminino: presas, presídios e freiras foi orientada pela professora Elizabeth Cancelli e
defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. O trabalho na íntegra – com a descrição de fontes
inéditas, a identificação da cronologia legislativa a respeito da execução penal no Estado paulista e no País e a trajetória institucional da
Congregação do Bom Pastor – pode ser acessado aqui.

Mais informações: e-mail angela.artur@gmail.com, com Angela Artur

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