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A grandes traços...1

Josep M. Català
Doutor em Ciências da Comunicação pela
Universitat Autónoma de Barcelona (UAB)
E-mail: josepmaria.catala@uab.cat

Os objetos se tornam musas da memória.


Siri Hustvedt

Em linhas gerais – talvez excessivamente


gerais para a riqueza do tema – podemos di-
zer que há três fases na história da imagem
da era moderna que, por sua vez, dão lugar a
Resumo: Este ensaio propõe um mapeamento dos regimes vi- três tipos de imagem bem diferenciadas. A es-
suais. A fase renascentista da imagem, regida pelas técnicas da tes três tipos, que nos ajudam a compreender
perspectiva, foi seguida pela fase da imagem técnica, represen-
tada pela fotografia. A imagem interfaz é a nova imagem, que a especificidade e a originalidade da imagem
coloca um fim à era das imagens mecânicas. É um espaço de contemporânea, que é a que nos interessa aqui,
relações que muda de acordo com a dialética que se estabelece
entre seus polos, o computador e o usuário.
podemos adicionar ainda um quarto, que não
Palavras-chave: Imagem, fotografia, história, mídia. se pode considerar moderno, mas que nos aju-
da a enquadrar esta modernidade visual com a
A grandes pinceladas...
Resumen: Este ensayo propone un mapeo de los regímenes qual se limita. Me refiro à imagem medieval, a
visuales. A la fase renacentista de la imagen, regida por las téc- que Jérôme Baschet denomina, muito acerta-
nicas de la perspectiva, le sigue la fase de la imagen técnica,
representada por la fotografía. La imagen interfaz es la imagen
damente, imagem-objeto, por ser algo mais do
nueva con la cual se da por terminada la era de las imágenes que uma representação, pois, segundo indica,
mecánicas. Es un espacio de relaciones que cambia de acuerdo “mobiliza potências situadas além dela: é um
a la dialéctica que se establece entre sus polos, el ordenador y
el usuario. objeto ao mesmo tempo imaginário e imagina-
Palabras clave: Imagen, fotografía, historia, medios. do” (2008, p. 40, 43). Trata-se de uma imagem
The great traces...
que pertence a um sistema mental distinto ao
Abstract: This essay proposes a mapping of visual regimes. The que será inaugurado no Renascimento, e que
Renaissance phase of the image, governed by the techniques of
perspective, was followed by the phase of the technical image, 1
Artigo em espanhol traduzido pelo Prof. Ms. José Geraldo
represented by photography. The image interface is the new Oliveira, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbe-
image, which puts an end to the era of mechanical images. It ro e doutorando na Universidade Autónoma de Barcelona, sob
is a space of relations that changes according to the dialectic orientação do Prof. Dr. Josep Catalá. Publicado originalmente
established between its poles, the computer and the user. no livro Puntos de encuentro en la iconosfera: interacciones
Keywords: Image, photograph, history, media. en el audiovisual. Universitat de Barcelona, 2013.

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constitui o marco em cujo interior se desenvol- o fenômeno oposto pelo qual determina-
verá a imagem moderna até nossos dias, quan- das formas continuariam a viver ao longo
do estamos novamente experimentando uma da história, adaptando-se a usos distintos,
ruptura tão transcendental, ou ainda mais, do segundo as épocas. As ressurreições visuais,
que aquela que separou a mentalidade medie- pelo contrário, consistiriam na reaparição
val da renascentista. de antigas ideias visuais através de novas
Mas, por mais drásticas que sejam as configurações. Seriam como o eco do fenô-
mudanças de paradigmas visuais e por mais meno anterior, remodelado segundo os re-
distintas que sejam as imagens que lhes cor- quisitos da nova época.
respondam (os modos de representações, O exemplo mais claro temos na apari-
as técnicas visuais, as formas de ver etc.), os ção, a partir de meados do século XIX, do
sistemas nunca desaparecem totalmente. Por que poderíamos denominar objeto-imagem,
exemplo, hoje em dia, continuam existindo contrapartida da imagem-objeto medieval.
imagens-objetos em nossas igrejas e seguem Marx, no capítulo de O capital dedicado ao
cumprindo, para uma parte da população, fenômeno do fetichismo da mercadoria já
destacava a transformação que estavam ex-
perimentando os objetos naquele momento.
O progresso não é só uma As mercadorias estavam convertendo-se em
“objetos endemoniados, ricos em sutilezas
questão ideológica ou
metafísicas e reticências teológicas” (Marx,
moral, mas também 1980, p. 87), isto é, que elas mobilizavam,
um assunto espacial, como ocorria segundo Baschet com a ima-
de localização no gem-objeto, potências situadas além de si
mundo. É uma mesmas, uma vez que eram, como aquelas,
questão de perspectiva objetos ao mesmo tempo imaginários e ima-
ginados, uma condição que, daí em diante,
apresentaram todos os produtos do design e
da publicidade.
as mesmas funções que cumpriam na Idade A fase renascentista da imagem, regi-
Média, da mesma maneira que o regime mi- da pelas técnicas da perspectiva, é seguida
mético do Renascimento segue informando pela fase da imagem técnica. É com a ima-
grande parte de nossas apreciações sobre a gem técnica, essencialmente representada
representação e continua configurando nos- pela fotografia, que se supõe que come-
sa própria forma de ver. ça a modernidade propriamente dita, um
Entretanto, os regimes visuais tornaram- período derradeiro do que em história se
-se tão complexos que agora devemos des- considera a era moderna, inaugurada pelo
tacar outro fenômeno neste processo, algo Renascimento. Entretanto, e apesar de sua
que poderia relacionar-se com o que Aby evidente novidade, poderíamos dizer que a
Warburg denominava de “sobrevivência”, fotografia não tanto inicia uma época, como
mas que talvez seria melhor qualificar de a termina. É óbvio que a imagem fotográfica
“ressurreições”, já que supõe, não tanto a ilustra as novidadeiras relações que a repre-
continuidade de um estilo ou de uma for- sentação visual estabelecerá, daí em adian-
ma fora do seu tempo, mas o seu regresso te, com a tecnologia, um fato fundamental
substancial sob traços completamente dis- para o que logo será a imagem contempo-
tintos. Fritz Saxl (1989), em seu estudo so- rânea. Mas também é certo que, por suas
bre o que denominava “a vida das imagens”, aspirações miméticas e por seu apego à ob-
destacava, em consonância com Warburg, jetividade, conceito que ela mesma ajudará

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a formar, a imagem fotográfica implica uma advertência de Heidegger a respeito da era da


ampliação, ainda que em uma zona diferen- imagem do mundo que convertia o mundo
te, das pretenções que a imagem ilusionista em uma imagem, estão assentados sobre esta
da perspectiva vinha mostrando. Mas com premissa cartográfica pela qual a imagem (e
isso, a fotografia dá por finalizado este pa- com ela a realidade, o mundo etc.) fica em
radigma, que daí em diante não terá mais frente do observador, de que se encontra
virtude que a de permanecer como um re- separada por uma determinada distância
ferente imaginário com que se confrontará virtualmente intransponível. É a mesma dis-
a visualidade contemporânea. Assim, por posição mental que faz com que o passado
exemplo, a utopia da Realidade Virtual, que conte somente como referência superada, e o
fez furor nos anos 90 do século passado para futuro não constitua mais do que uma pro-
diluir-se depois, não oferecia outra coisa jeção imaginária do presente.
além da possibilidade de cumprir a promes- A revolução fotográfica é vista assim
sa da pintura realista: uma imagem tão real como uma novidade a partir do que dei-
como a da própria realidade, que dava assim xa para trás: ela é comparada com os parâ-
a impressão de poder ser habitada. metros visuais que se presume que supera.
Mas não por isso a imagem técnica dei- Entretanto, para realmente compreender
xa de ser uma autêntica revolução, como seu alcance, há que situar-se olhando para
indicaram numerosos autores, com Walter ela a partir do futuro, voltando assim a
Benjamin à frente. Entretanto, a dificulda- vista atrás e descobrindo não tanto o que
de para realmente compreender seu alcan- tinha de novo então com respeito ao pas-
ce encontra-se no fato de que esta revolu- sado, como a novidade que mostrava com
ção tem sido contemplada sempre a partir relação ao futuro. Trata-se de modificar
da perspectiva cartográfica do progresso. O nossa estrutura mental para adaptá-la à
progresso não é só uma questão ideológica própria revolução temporal operada no
ou moral, mas também um assunto espacial, início do século XX. Uma revolução muito
de localização no mundo. É uma questão de bem representada pelas teses sobre a his-
perspectiva, e nunca melhor dito, visto que tória de Benjamin, para quem o chamado
essa localização provém precisamente da ab- “anjo da história”, empurrado pelo vento
sorção mental das premissas da perspectiva do progresso, avança de costas para o futu-
pictórica, às que a câmera fotográfica ajudou ro, aterrorizado por aquilo que vai deixan-
a perpetuar. Alguém que pensa por meio da do para trás. Se o progresso era uma ques-
ideia de progresso se situa mentalmente so- tão moral, além de espacial, a dissolução do
bre a linha da história, de costas para o pas- mesmo rompe tão moralmente com uma
sado e olhando para o futuro, da mesma ma- determinada cartografia mental: “O histo-
neira que o fotógrafo foca o que está diante riador benjaminiano tem que poder dizer
da câmera, deixando às suas costas aquilo algo novo sobre o presente para que o futu-
que é descartado, o que, embora seja por um ro não seja prolongamento deste presente.
momento, converte-se na parte de trás da re- O anúncio desta novidade não o torna,
alidade. A pintura privilegia também o que contudo, como os adivinhos do passado,
está diante em detrimento do que fica atrás, esquadrinhando o futuro, mas vasculhando
sobretudo se esta pintura, como é o caso da o passado, resgatando dessa enorme reser-
perspectivista, atrai o olhar mediante a me- va de lixo possibilidades latentes de reden-
táfora da janela através da qual supõe-se ção” (Mate, 2006, p. 141). Isto significa uma
poder ver a realidade. Tanto o conceito, de- concepção ecológica da história de que se
preciativo com o visual, da sociedade do es- beneficiam todos os tempos, integrados e
petáculo, cunhado por Guy Debord, como a mutualmente dependentes.

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Se contemplamos a fotografia a partir sua desmaterialização através de uma novi-


deste ponto de vista, compreenderemos dade pós-fotográfica, o movimento.
que sua máxima novidade não consiste em O movimento penetra na imagem de
prolongar a ideia da mimesis, aumentan- forma paralela à sua produção técnica, isto
do sua perfeição, nem em fomentar conse- é, fotográfica, mas pouco a pouco, ao longo
quentemente as teses objetivistas, mas que do século, as duas vias irão se fundindo até
se encontra, pelo contrário, em sua alian- confluir no cinematógrafo, em que movi-
ça com a tecnologia que aponta para uma mento e imagem real se juntarão para pro-
desmaterialização da imagem cujo apogeu duzir a imagem fluida, desmaterializada, do
ocorre com a revolução digital da atualida- espaço-tempo cinematográfico, equivalente
de. Para o que a imagem fotográfica aponta, às próprias ideias sobre espaço-tempo da
portanto, apesar de sua utilização contrária ciência e da filosofia do momento, desde
durante mais de um século, é para uma era Einstein até Bergson.
da imaginação que reside basicamente no Só agora, no século XXI, nos damos conta
futuro. Segue mantendo-se de pé a ideia de da verdadeira transcendência da incorpora-
que a fotografia inaugura a modernidade, ção do movimento às representações visuais,
como temia Baudelaire, mas só se levarmos um fenômeno que resulta tão ou mais im-
em conta que, ao mesmo tempo, abre as portante do que a posterior incorporação do
portas à pós-modernidade futura. Suas re- som às mesmas nos primeiros vinte e cinco
lações com o cinema nos dão a chave para anos do século XX. Quando nos confronta-
compreender o fenômeno, uma vez que mos com as realidades virtuais ou aumenta-
é este, o cinema, tão ligado ao paradigma das da atualidade, devemos recordar até que
fotográfico, que inicia a imagem pós-mo- ponto era rígido e sólido o universo anterior.
derna, cujas características principais são a Chomsky descrevia assim há alguns anos o
fluidez, a complexidade e sua aliança tecno- que ele denominava como sentido comum
lógica como operação mental. irreflexivo herdado de Descartes e que ain-
da hoje configura a mentalidade de muitos:
“O mundo está formado por objetos sólidos
Tudo que é sólido se desmancha no ar
que se relacionam por contato direto: se eu
A relação da fotografia com a imagem quero mover uma cadeira que está do outro
pretende ser estática e se relaciona com a lado do quarto, tenho que tocá-la com al-
longa tradição da onda pela qual imagem guma parte do meu corpo ou por meio de
e verdade ficam unidas por meio da ideia uma prolongação do mesmo. [...] Não posso
de contato, como indicam Didi-Huberman mover a cadeira pelo mero fato de levantar
(2008) e Hans Belting (2007) em dois mag- um braço; nem posso ver a cadeira a menos
níficos estudos sobre esse fenômeno que, que uma vareta rígida vá da cadeira ao meu
apesar de suas distintas perspectivas, resul- olho e o faça reagir” (Chomsky, 2002, p. 89).
tam complementários. O que surpreendeu Nada disto é muito certo com os dispositivos
gratamente da fotografia aos primeiros se- virtuais da atualidade. Não é porque agora
guidores da modernidade, e que na verdade não nos relacionamos com os objetos em si
continua atraindo todos os modernos, é o diretamente, mas com suas destilações sim-
fato de que parece confirmar sua compulsi- bólicas. E, neste caso, o movimento deixa de
va propensão em direção ao anti-humanis- ser uma propriedade das coisas e se converte
mo. Mas todas essas particularidades não em uma potência das mesmas e das relações
são mais que epifenômenos de uma trans- que mantêm entre si e conosco.
formação muito mais transcendental que O novo tipo de imagem, que nasce do
afeta a forma da imagem e que conduz até movimento gerado tecnicamente, é uma

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imagem a que podemos denominar de que Marx, em O manifesto comunista, des-


fantasmagórica. Equivale às formas que se crevia perfeitamente ao afirmar que “todo o
desprendem das ideias elaboradas por Aby sólido se desmancha no ar”.
Warburg em torno de uma nova concepção A imagem sólida da fotografia, suposta-
de história da arte, à que a libera do tradi- mente a mais sólida das imagens da realida-
cional positivismo e a conduz até uma con- de produzidas até o momento, começava a
cepção imaterial e complexa. Desta ideia desmanchar no ar ao tomar contato com a
derivam configurações visuais às que Didi- tecnologia e passava a construir fantasmago-
Huberman (2002) não hesita em denomi- rias. Mas não era apenas a fotografia que ex-
nar de imagens fantasmas ou, mais concre- perimentava essa dissolução, mas qualquer
tamente, imagens de uma história da arte imagem que se colocasse em movimento
no tempo dos fantasmas. O cinema é a sín- através dos múltiplos aparelhos que surgi-
tese perfeita desta configuração visual que
ram ao longo do século XIX, desde o simples
marca o início da época das imagens fluidas
fenaquistoscópio de Ferdinand Plateau ao
e deixa para trás, embora não em definitivo,
complicado teatro óptico de Émile Reynaud.
a época das imagens mecânicas.
A fluidificação das imagens, sua conver-
são em uma fantasmagoria que se reflete na
equiparação do cinematógrafo com os so-
O livro de Barthes sobre a
nhos numa época em que estes parecem en- fotografia pode ser lido
trar no âmbito da ciência através de Freud, como uma oração fúne-
está ligada a duas configurações que não têm bre que contrasta o que
sido muito discutidas, apesar de sua pro- esta técnica de captar a
funda significação. Uma é a relação da nova realidade sempre havia
imagem com a morte; a outra é sua conexão despertado nos modernos
com o inconsciente. As duas relações são o
início de um nexo tecnológico da represen-
tação audiovisual com a mente, que irá se es- A técnica do movimento que desembo-
treitando ao longo do século e acabará sendo caria ao cinema dividia, além disso, as ima-
fundamental na atualidade. gens em duas partes: uma básica, produzida
Quando Didi-Huberman fala do tempo
mecanicamente, mas inativa, e a outra que
dos fantasmas, não apenas utiliza uma me-
aparece quando aquela que é tecnicamente
táfora para delimitar o fenômeno da con-
ativada por um projetor ou qualquer ou-
cepção fluida de um imaginário que estava
tro instrumento parecido. Vale lembrar que
se formando no final do século XIX, mas in-
André Bazin iria relacionar mais tarde a fo-
cide também no fato de que, neste momen-
tografia com um processo de mumificação
to, o conceito de fantasma, que provém da
literatura gótica, está na ordem do dia, seja ou embalsamento do tempo, e que o cine-
por meio da popularidade dos movimentos ma se equipararia com uma mumificação
teosóficos, como o espiritismo, por um lado, da mudança. Uma das primeiras relações
ou pela aparição de um novo gênero lite- que o crítico estabelece entre a fotografia e
rário, o dos contos de fantasmas, dos quais a morte tem a ver com a pretensão da cul-
Sheridan Le Fanu e Montague Rodhe James tura egípcia a respeito da possibilidade de
foram os mais notáveis representantes. De vencer o tempo: “ A morte não é mais que a
tudo isso, se desprende uma figura, a do vitória do tempo”, disse o crítico, porque “fi-
fantasma, que personifica determinada ten- xar artificialmente as aparências carnais de
dência cultural em direção a um fenômeno um ser, supõe tirá-lo da corrente do tempo

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e acomodá-lo à margem da vida” (Bazin, psíquica entre Eros e Tánatos foi muito con-
1983). Mas é preciso acrescentar que à mar- trovertida, mas Mario Praz, em seu livro La
gem da vida a gente regressa, mesmo que seja carne, la muerte y el diablo, tende a conside-
como um espectro. rá-la com um traço essencial da cultura ro-
Curiosamente, na Viena do fim do século mântica que permeia toda aquela época em
produz-se uma confluência muito significa- suas diversas manifestações.
tiva desta dialética entre a vida e a morte que A ideia de relacionar os processos foto-
colocava em destaque as novas tecnologias gráficos e pós fotográficos com a morte não é
de então: na Escola de Medicina da capital nova, como vimos, nem se esgota nesse mo-
austríaca passavam a relacionar, de maneira mento inicial. Não questionava Barthes que
extraordinariamente eficaz, a informação so- “todos esses jovens fotógrafos que se movi-
mentam no mundo, dedicando-se à captura
da atualidade, não sabem que são agentes da
A fotografia divide, pois, morte?” (1984, p. 137). O escritor francês foi
a própria natureza em especialmente propenso a esta associação,
duas partes que não embora também tenha introduzido no con-
separam apenas o junto o problema da ressureição, por exem-
visível e o invisível, mas plo, quando afirmava que “se a fotografia se
torna então horrível é porque ela certifica, se
também o consciente e
assim podemos dizer, que o cadáver está vivo,
o inconsciente enquanto cadáver: é a imagem viva de uma
coisa morta” (1984, p. 118). A atual ideia ci-
nematográfica dos mortos vivos, os zumbis,
parece ter assim a sua origem na fotografia.
bre uma enfermidade obtida “junto à cama” Embora não deixe de nos assombrar a quan-
com aquela alcançada na sala de autópsias tidade de representações que os pré-rafaelis-
(Kandel, 2012, p. 24). Quer dizer, a verdade tas dedicaram ao mito de Pigmalião, isto é, o
sobre determinada doença era obtida combi- da estátua que ganha vida.
nando os ensinamentos da vida e da morte. O livro de Barthes sobre a fotografia pode
Da mesma maneira que o mistério que su- ser lido como uma oração fúnebre que con-
punha a aparição de um fantasma se resolvia trasta com o otimismo que esta técnica de
geralmente ao encontrar sua relação com a captar a realidade sempre havia despertado
vida, tanto na literatura como na realidade nos modernos. Mas o certo é que, se a foto-
(recordemos as famosas sessões de espiritis- grafia está relacionada com a morte, a fase de
mo e sua tendência em vincular as manifes- ressureição das imagens corresponde ao cine-
tações fantasmagóricas com o presente), a ma: em um primeiro momento se embalsama
doença era um mistério que deveria ser re- a realidade, e no seguinte, esse corpo inerte
solvido reunindo a vida no tempo presente volta a viver em uma imagem virtual, fan-
com a morte situada no passado: o cadáver tasmagórica, graças ao movimento insuflado
regressava da morte na sala de autópsias tecnicamente: “Pela primeira vez a imagem
para falar, como nas sessões espíritas, sobre das coisas é também a da sua duração: algo
a vida. Foi seguramente durante esse tempo assim como a mumificação da mudança”, in-
que Freud forjou as ideias que por volta de dica Bazin (1983). Todos vêem na técnica fo-
1920, em Além do princípio do prazer, levou- tográfica o campo de batalha onde se enfren-
-o a definir uma polêmica pulsão de morte tam Eros e Tánatos. Não se sabe muito bem
enfrentada, na consciência humana, a uma por quem os sinos dobram nestes momentos,
correlativa pulsão de vida. Esta confrontação mas o certo é que algum funeral está sendo

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celebrado. Pode ser pelo antropocentrismo, divididas entre um substrato (os fotogra-
que se desmorona por todas as partes. Mas mas) inerte ou morto (embalsamado) e
ao mesmo tempo, está nascendo, em torno da uma manifestação fenomênica, atuada atra-
fotografia e posteriormente do cinema, uma vés de uma técnica que exercia assim a fun-
nova configuração da imagem, acompanha- ção de autêntico médium.
da de uma recomposição do mundo, que só Entretanto este jogo de metáforas que se
poderá ser totalmente compreendida muito movem de um conceito a outro e que se ma-
mais tarde. Pode-se extrair da tecnologia um terializam em determinadas tecnologias ou
novo humanismo não antropocêntrico? É em umas práticas concretas, se decanta para
nisto que estamos patinando. um outro aspecto que é o verdadeiramente
Esta divisão entre o vivo e o morto, en- fundamental. A ressureição do inerte im-
tre o tempo embalsamado e o tempo res- plica, como mostram as ideias freudianas,
suscitado mediante a técnica (um fenôme- numa iluminação, numa demonstração di-
no perfeitamente ilustrado pelo mito de dática do potencial, o que estava latente no
Frankenstein criado por Mary Shelley, so- oculto. Não se trata de que, como indica o
bre uma criatura fabricada artificialmente ditado popular, as aparências enganam, mas
e que volta a vida graças à eletricidade), se o contrário: elas são o caminho para a ver-
materializa à perfeição nas novas imagens dade. Mas a verdade está escondida e só se
em movimento. Mas estas imagens têm ou- pode acessá-la através dos sintomas que se
tra característica não menos significativa, manifestam na superfície.
o fato, já apontado anteriormente, de que Assim Benjamin falará de inconscien-
estão divididas entre um substrato material te óptico para denominar o fenômeno pelo
básico, mas invisível e uma manifestação qual a técnica cinematográfica será capaz de
visível, mas essencialmente fenomênica. captar aspectos visuais que estão além da ca-
Eric E. Kandel, ao estabelecer a correlação pacidade do olho, por meio da câmera lenta
médica entre o vivo e o morto, indica tam- ou da câmera rápida. A câmera se converte,
bém que em Viena estava se consolidando, portanto, em um instrumento de revelação.
através desta função da patologia clínica, Contudo, num primeiro momento se con-
a ideia de que “para descobrir a verdade é siderará simplesmente um instrumento de
preciso olhar debaixo da superfície aparen- constatação, de preservação ou de represen-
te das coisas” (2012, p. 27). Esta noção, que tação: apenas no futuro se compreenderá
estava sendo desenvolvida na medicina para este caráter revelador da técnica cinemato-
aplicá-la ao corpo, provinha do antigo pen- gráfica apontado por Benjamin, quem afir-
samento de Anaxágoras sobre o fato de que mava que “fica perceptível que a natureza
os fenômenos são a expressão visível do que que fala à câmera não é a mesma que fala ao
está oculto, e supunha também uma atua- olho” (1973, p. 48). A fotografia divide, pois,
lização do mito da caverna de Platão, justo a própria natureza em duas partes que não
quando o cinema o materializava de forma separam apenas o visível e o invisível, mas
muito óbvia. Freud tardaria muito pouco também o consciente e o inconsciente, tal
em levar esta ideia ao território da mente como expressa o próprio autor: “Em lugar
com sua teoria do inconsciente, um espa- de um espaço que trama o homem com sua
ço mental que significava o desdobramen- consciência apresenta outro (a câmera) tra-
to do eu em duas partes ao mesmo tempo mado inconscientemente” (1973, p. 48).
complementárias e antitéticas. Mas ambas A fantasmagoria da imagem do século
tendências, a clínica e a psicológica, encon- XIX abre as portas a uma imagem imate-
travam-se materializadas na estrutura inu- rial, susceptível de ser infinitamente com-
sitada das novas imagens cinematográficas, binada como linguagem, mas sem ser uma

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linguagem. A duplicidade tecnológica oca- pertencentes a meios muito diferentes com


sionada pela entrada do movimento implica, trajetórias igualmente distintas. As linhas de
por sua vez, a possível concepção de articu- demarcação que haviam mantido cada meio
lações visual-tecnológicas que ultrapassem a separado do resto e, por isso, patrocinavam
simples dialética do material e do virtual, do um tipo de representação visual diverso e
tecnológico e do fenomenológico em que se impermeável, se quebraram e agora nos ve-
divide a operatividade do meio. Estas dico- mos obrigados a examinar cada meio e cada
tomias se convertem, pelo contrário, em ele- forma de representação a partir da ótica de
mentos vertebrados de formas sintático-her- todas as outras. Por outro lado, a própria
menêuticas ou formas retóricas das novas tecnologia patrocina essa dissolução das
visualidades da atualidade. Sem esta disso- fronteiras midiáticas e acaba estabelecendo
lução da materialidade e da imobilidade das canais de comunicação cada vez mais fluidos
imagens operada no século XIX não estaría- entre os distintos meios, os quais, junto com
mos transpondo no século XXI as portas do seus modos de exposição ou enunciação, ex-
novo reino da imaginação que articula nosso perimentam constantes hibridações que ex-
imaginário tecno-visual. cedem a simples articulação multimídia ou
transmidiática: aparecem linguagens híbri-
Os fantasmas da complexidade das ou a possibilidade de mestiçagens audio-
visuais inusitadas.
A imagem hoje, no regime visual da con- A imagem fantasmagórica do século
temporaneidade, é especialmente complexa XIX é a antessala das complexidades atu-
entre outras razões porque em seu âmbito ais, o gérmen da fluidez da representação
se acumulam, e o que é mais importante, se audiovisual contemporânea. O frutífero
ativam, todas as formas visuais anteriores. O conceito do líquido para qualificar os fenô-
computador e em particular a digitalização menos presentes colocados em circulação
fazem com que qualquer forma visual entre com tanto êxito por autores como Zygmunt
em contato com qualquer outra e, portanto, Bauman e outros tem a sua origem em uma
ganhe uma efetividade maior que a simples hibridação primeira entre a imagem e a tec-
imagem de arquivo. A um nível menos ób- nologia que desdobrou as imagens em um
vio, acontece nas macroestruturas visuais o substrato material e outro virtual, ao mes-
mesmo que se sucede em manifestações esté-
mo tempo em que as desmaterializava por
ticas mais particulares, como por exemplo os
meio do movimento.
atuais documentários de formato tradicional
Reparemos, porém, no fato peculiar
ou os de apropriação, nos quais as imagens
segundo o qual as imagens são fantasma-
de arquivo, extraídas do contexto concreto
góricas nesse momento, não só porque a
e colocadas em circulação junto a outras do
introdução do movimento nas mesmas as
mesmo tipo,2 expressam ou destacam valo-
convertem em emanações de uma represen-
res formais, ideológicos ou emocionais que
tação material estática e geralmente frag-
haviam permanecidos em estado latente em
mentária, mas também porque em geral
sua forma e locais habituais. Estas propostas
as coisas perdem consistência e, como di-
de caráter estético se reproduzem em linhas
gerais nos mecanismos pelos que as tecno- zia Marx, se desvanecem no ar. O que isto
logias contemporâneas agrupam, na inter- quer dizer exatamente? Pois nem mais nem
net e em estruturas multimídia, imagens menos que a parte material da imagem, que
antes havia sido substancial – recordemos
2
Nota do tradutor: entre nós, o exemplo mais clássico é o do- as imagens-objeto da Idade Média, e tam-
cumentário Nós que aqui estamos por vós esperamos (1999), de
Marcelo Marzagão, uma colagem de imagens e fotografias ex-
bém a materialidade da pintura e, em ou-
traídas de outras obras. tra ordem de coisas, o valor material das

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mercadorias –, hoje perde valor frente a O interessante desse fenômeno é que tenha
uma emanação, ideológica, emocional ou sido produzido precisamente pelo contato
simbólica das mesmas. entre um meio ancestral como o teatro e ou-
Para Marx, as mercadorias estão come- tro absolutamente atual como é o hologra-
çando a constituir a base de um intercâmbio ma. É precisamente esta ponte unindo dois
simbólico mais importante do que a própria mundos distanciados e, de certa modo, con-
troca material das mesmas. O cinema, próxi- trários a se relacionar, que produziu a fagu-
mo a se inventar, constituirá a alegoria deste lha do novo, abundando no fenômeno ante-
processo ao decompor-se em dois níveis: os
fotogramas básicos e a projeção visual, visto
que esta última, que é virtual, fenomênica, O movimento automático
adquire maior transcendência que sua base das imagens dá lugar a
técnica. Mas, ao mesmo tempo, o cinema se
um movimento exerci-
encarrega de projetar ao exterior o que antes
eram experiências claramente internas: ele do pelo corpo humano
objetiva o subjetivo, como indica Panofsky sobre o visual, ativando
em um conhecido artigo a respeito do fe- assim um diálogo entre a
nômeno cinematográfico: “Os filmes têm o mente e a tecnologia
poder, completamente negado ao teatro, de
plasmar experiências psicológicas por meio
de projetá-las diretamente na tela, conse- riormente citado da sinergia entre diferentes
guindo desta maneira que o olho do espec- meios que caracteriza o âmbito da imagem
tador e a consciência do personagem coinci- contemporânea. O cinema assimilou de for-
dam” (1997, p. 100). Esta materialização das ma natural os procedimentos infográficos e
experiências subjetivas, internas, é o equiva- as facilidades transformadoras que lhe ofe-
lente do processo geral de desmaterialização. rece a tecnologia digital. Mas é precisamente
A psique se coloca em primeiro lugar porque por isto, por essa naturalidade que se origina
se sobrepõe ao corpo, ao somático. A vida da contiguidade entre o meio cinematográ-
artificial, adiantando-se em um século ao si- fico e o meio holográfico, que a conjunção
mulacro de Baudrillard, é mais importante não provocou outras surpresas além do au-
que a morte natural. mento da espetacularidade dos mundos e
Mas se o teatro não era capaz de visua- das paisagens que aparecem na tela, além de
lizar nesse momento os estados psíquicos que a enésima proposta do cinema parece es-
com a contundência que fazia o cinema, o tar tomando forma de maneira inusitada. As
certo é que atualmente, graças à confluência possibilidades do processo cinematográfico
com um meio tão recente como as projeções são igualmente imensas, mas é na hibridação
holográficas, ele adquiriu esta capacidade e do real e do virtual que se dá no teatro onde
além disso, conseguiu superar em sutileza o se geram espaços de representação verdadei-
cinema. Como exemplo disso temos as ex- ramente insólitos, que se usam precisamente
periências do chamado teatro virtual holo- para expressar aquilo que Panofsky negava
gráfico, de crescente relevância. Neste tipo ao meio: a externalização do subjetivo, dos
de produção, por exemplo o denominado estados emotivos; a formação de formas
teatro 4D do grupo canadense Lemieux simbólicas, das dobras escondidas do real.
Pilon, consegue uma surpreendente simbio- Tudo isso nos informa também de um
se entre imagem real e imagem holográfica, traço fundamental da representação visu-
abrindo uma infinidade de possibilidades al contemporânea, que é sua relação com
para uma nova dramaturgia da imaginação. a mente. O processo de desmaterialização

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inaugurado no século XIX, iniciava um ca- cinematográfico, a tendência mais clara e


minho em que o mental e o visual iriam se significativa que observamos vai em direção
juntar, primeiro de forma incipiente, pri- de um incremento da duração das toma-
mária, com o cinema, e a seguir, com as tec- das e de uma correlativa síntese dos planos.
nologias informáticas atuais, de uma ma- Situações que no cinema clássico se resol-
neira íntima e definitiva. A imagem atual é viam com três ou quatro planos, nos meados
complexa, além de que por nela confluem dos anos 50 tendem a agrupar-se em uma só
os dois polos do mental e do visual, mas tomada com ou sem movimento de câmera.
porque a esse conjunto se acrescenta um Orson Welles, em Cidadão Kane (1941) foi
terceiro, que é a presença ativa do corpo do um pioneiro deste estilo de encenação, mas
espectador, que se torna um fator de ativa- de uma forma muito peculiar que poderia
ção. O movimento automático das imagens ser chamada de neo-teatral. Mas Renoir já o
técnicas anteriores dá lugar a um movi- havia utilizado antes, e o utilizaria depois, de
mento exercido pelo corpo humano sobre maneira distinta. E o surgimento do plano
o visual, ativando assim um diálogo entre sequência que, em suas diferentes modalida-
a mente e a tecnologia. Esta é a essência do des, irá se impondo com o passar dos anos,
que denominamos interação. até chegar a curiosidades como A arca russa
A fantasmagoria é, pois, a antessala da (2002), de Sokurov, filmado em um só plano,
fluidez, e esta é, por sua vez, o principal in- nos indicam a passagem gradual de uma es-
grediente das íntimas relações entre a repre- tética da fragmentação para uma estética da
sentação visual contemporânea e a mente. fluidez que culminará com a imagem digital.
As consequências desta relação só podem Nesta, os cortes externos poderão ser substi-
ser compreendidas se a situarmos no âmbito tuídos por transformações internas da toma-
da imaginação, quer dizer, se considerarmos da ou registro. A relação metonímica entre
que tanto a tecnologia como a mente ope- planos dá lugar à transformação metafórica
ram através de formas imaginárias plasma- das imagens, um fenômeno em consonância
das na imagem. com o deslocamento da centralidade da lin-
guagem à prevalência da imagem.
Mas mesmo se tomarmos ao pé da letra
O mecânico e o fluido
os estudos estatísticos que destacam a cres-
Apesar de que Bordwell e outros autores cente preponderância da montagem rítmi-
manifestem que a longitude dos planos ci- ca no cinema atual (ou seja, em um tipo de
nematográficos no cinema de Hollywood foi cinema em concreto), devemos lembrar que
diminuindo com o passar dos anos, o certo este aumento do ritmo, conseguido com pla-
é que está apreciação se deve ao fato de que nos de uma mínima duração, não se contra-
nas últimas décadas o cinema de ação bus- diz em absoluto com a tendência à fluidez, já
ca impactar o espectador por meio de uma que chega um ponto em que a fragmentação
montagem rítmica acelerada, em consonân- se contempla, como é o caso dos fotogramas
cia com a estética dos videoclipes e da pu- que formam o substrato da ilusão fílmica,
blicidade. Além do mais, Bordwell (2006, p. como uma continuidade fluida. A fragmen-
121) situa sua análise a partir dos anos 60 tação da encenação no cinema clássico era
e concretamente no cinema de Hollywood, uma plasmação de pontos de vista ligados a
ao mesmo tempo em que reconhece que, operações cognitivas que relacionavam es-
nos anos 1930, sobretudo antes do cinema paço e emoção, enquanto que a montagem
falado, a montagem era bastante rápida. ultra-rápida da atualidade tem uma qualida-
Mas é verdade que, a partir de uma pers- de somática mais destinada a provocar sen-
pectiva geral da evolução histórica do estilo sações do que emoções.

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A partir da ótica da pintura ou da foto- Esta segunda natureza de que fala o filóso-
grafia, com suas imagens estáveis, absolutas fo corresponde, na atualidade, à gerada pela
e materiais, o cinema sempre apresentou um iconosfera contemporânea: a acumulação de
aspecto fluído, desmaterializado. É sobre esta imagens da realidade, fixas e em movimento,
fantasmagoria que se foram estabelecendo que nossas sociedades tecnificadas tem pro-
os estilos em um princípio fragmentários duzido desde há quase dois séculos, através
e, posteriormente, fluidos. Mas, quando em da fotografia, o cinema, a televisão e o vídeo.
1884, Paul Nipkow inventa o seu famoso dis- Esta segunda natureza de que fala Lukács
co que inicia a era da televisão, a fantasma- desemboca em mundos virtuais como o
goria cinematográfica está sendo superada Second Life, isto é, nos denominados me-
antes mesmo de nascer. taversos3 que provêm da imaginação lite-
Na televisão, a imagem virtual se funde rária de escritores de ficção científica que,
com o aparelho e ambos aparecem como como Philip K. Dick, William Gibson e Niel
uma unidade fantasmagórica. Se desvanece, Stephenson, pensaram antes que ninguém
aparentemente, a divisão material que no nesses mundos tecno-mentais. Constituem
cinema se produz entre imagem-substrato a plasmação mais acertada daqueles simu-
e imagem-fenômeno para dar lugar a uma lacros apontados por Baudrillard no início
unidade no objeto e sua capacidade de des- dos anos 1970. É óbvio, além disso, que a
pertar emoções, transmitir ideias ou mani- economia financeira do capitalismo tardio
pular símbolos. tem criado seus próprios mundos, outra se-
Segundo as palavras de Lukács (é preciso gunda realidade não menos fantasmagórica
recuperar antigos pensadores que com que as representadas pelas novas imagens.
demasiada pressa foram descartados): “O São mundos ou realidades corresponden-
moderno estado da sociedade é um estado tes às grandes corporações multinacionais,
no qual os homens vão destruindo, dissol- à rede de fluxos e fusões que as constituem,
vendo e deixando para trás as vinculações cuja estrutura global, fluida e descentrada é
‘naturais’ irracionais e fácticas, mas ao mes- dificilmente representável, mas que tem nos
mo tempo levantam com a realidade por metaversos e na própria rede de internet suas
eles criada, “autoproduzida”, uma espécie de formações equivalentes. No entanto, o que
segunda natureza que, ao final, os enfrenta realmente alegoriza a transformação dos ob-
com a mesma impiedosa necessidade que jetos, seu processo de feitichização que lhes
as velhas forças irracionais da natureza (ou, confere um caráter metafísico, é o aparelho
mais exatamente, que as antigas relações so- da televisão.
ciais, aparentes como necessidade natural)”. O disco de Nipkow não era mais que
E Lukács acrescenta à sua reflexão umas um estado primitivo desta fusão futura pela
precisas palavras de Marx: “Tem para eles a qual a realidade, como queria Paul Valéry, se
forma de um movimento de coisas, sob cujo transmitiria em domicílio. A imagem televi-
controle se encontram, em vez de controlá- siva foi, no seu início, a imagem fantasmagó-
-los” (1985, p. 62). rica por excelência pois se projetava a distân-
Além do fato, imediato, de que estas apre- cia, aparentemente desmaterializada, ou seja,
ciações nos dizem muito mais sobre a crise desvinculada de qualquer nexo material,
econômica e democrática em que estamos apesar de estar rodeada de uma complexa es-
afundados que toda a verborréia econo- trutura tecnológica. Finalmente esta estrutu-
micista que se escuta na mídia, a partir de ra, que no cinema corresponde ao momento
nossa perspectiva relacionada com a feno- da filmagem (o qual também se distancia do
menologia da imagem, as palavras de Lukács 3
Termo utilizado para indicar um tipo de mundo virtual que
e de Marx não são menos esclarecedoras. busca replicar a realidade por meio de dispositivo digitais.

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momento da projeção), se condensa em uma imaginativo, das mesmas. A ética pragmáti-


caixa (na atualidade, uma tela cada vez mais ca que necessitamos forma parte também do
fina) que é ao mesmo tempo objeto mate- âmbito da imaginação que há de reger a nova
rial e a representação visual. Um objeto que epistemologia. É este necessário componente
fala de si mesmo por meio do discurso dos ético ativo o que fecha o círculo da complexi-
outros. A televisão foi chamada de “a caixa dade contemporânea, já que terá de incorpo-
tola”, mas na realidade é o primeiro objeto rar a todas as tarefas do conhecimento.
inteligente de uma série deles que vai desde o
antigo rádio aos atuais smartphones, e que se Forma e pensamento interface
vê sublimada pelos computadores e os iPads.
As imagens estão a ponto de libertar-se É fácil compreender a relação da
do marco em que estavam confinadas desde tecnologia contemporânea com a mente, se
a invenção do quadro: me refiro às múltiplas nos ativermos ao fato de que a psicologia
telas, herdeiras dos quadros, de que falava cognitiva e as neurociências converteram
Lipovetsky (2007, p. 16) em um livro mais ou o computador em um acervo de metáforas
menos recente. Estas estão a ponto de desa- para esclarecer seus conceitos. Por outro
parecer para dar lugar às imagens holográfi- lado os partidários da inteligência artifi-
cas e às técnicas de realidade aumentada que cial extraem das mencionadas disciplinas
misturam ou se sobrepõem com a própria da mente suas próprias metáforas. O com-
realidade. As contínuas emboscadas entre a putador como a mente e a mente como o
realidade e a ficção que caracterizam a cul- computador, parece ser o mantra contem-
tura contemporânea, desde o documentário porâneo, que corre o risco de ser tão famoso
à literatura ou a televisão, começam a exis- e, tão escassamente frutífero, como aquele
tir com estes dispositivos. Com isto vai para cunhado por Simônides e que não cessou de
os ares a ética normativa que, parafraseando atormentar os pensadores ao longo de milê-
Benjamin, podemos afirmar que se enfrenta nios.4 Me refiro ao “ut pictura poesis”: a po-
não já uma ação tramada conscientemente esia como a pintura e sua possível contra-
pelo homem, mas organizada inconsciente- partida: a pintura como a poesia. Isso tem
mente pelos dispositivos, que parecem tudo algo a ver com a dicotomia contemporânea
permitir. Devemos substituir, portanto essa com a clássica, no sentido de que em ambas
a imagem funciona como interface.
ética normativa por uma ética pragmática
Mas eu estou me referindo a uma relação
que, no lugar de grandes proibições, exami-
mais complexa entre a mente e a tecnolo-
ne e normatize sobre casos particulares de
gia, uma relação que está atravessada por
enorme sutileza e complexidade.
uma imagem de novo cunho. A tecnologia
Mas não é bem verdade que os disposi-
contemporânea não só segue o rastro dos
tivos teçam inconscientemente a nova natu-
primeiros meios de massas, que se encarre-
reza. A verdade é que estes dispositivos vão
garam de exteriorizar a subjetividade, mas
sendo bordados conscientemente pelas ideias
também converte esta exterioridade de algo
de homens, como dizia Flusser. Acontece que
que sempre tinha sido experimentado como
na transferência de um lugar para o outro, se interior em uma série de dispositivos capa-
perdeu a consciência de sua existência ide- zes de atuar em ambas as direções. As téc-
ológica. Mas isso não impede que as novas nicas holográficas da realidade aumentada
imagens e sua fusão cada vez mais íntima constituem o protótipo desta confabulação,
com a realidade e com a nossa mente der-
rube antigas proibições e nos desarme, por- 4
Atribui-se a Simônides de Ceos (556-468 Antes de Cristo) a
tanto, frente o uso algumas vezes perverso, frase “A pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pin-
mas também outras vezes extraordinário e tura que fala”.

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pois não apenas tendem a superpor sobre visuais-conceituais. Hermenêuticos porque


o real imagens informativas e conceptuais, as ações do usuário são perguntas que se
mas ainda ativam a mente por meio des- executam sobre atos da tecnologia que im-
tas imagens. Tudo isso através de um fluxo plicam respostas. Desta maneira, o funciona-
contínuo e mutante. mento mental do usuário fica inscrito sobre
A imagem contemporânea é uma o espaço da interface mediante metáforas
imagem fluida, complexa e imaginária. visuais que são recolhidas, processadas e
Imaginária porque suas formas têm a ver correspondidas pelo programa interlocutor.
com a metáfora visual que funciona como O espetáculo se dilui através da interação
interface entre a realidade e o pensamen- ao mesmo tempo em que esta deixa de ser
to. A imagem interface, que se desenvolve uma simples ação incidente sobre um espaço
especialmente nos vídeogames, mas que inativo (como uma página ou uma tela em
constituem a forma de relação por excelên- branco) e se converte em criadora de um
cia entre o computador e os usuários, é a mundo compartilhado quando menos pelo
verdadeira nova imagem que coloca um fim instrumento tecnológico mas também pos-
definitivo à era das imagens mecânicas. sivelmente por outros usuários. Essas execu-
A imagem interface é um espaço de re- ções, por mais racionais que possam ser, se
lações que muda de acordo com a dialética movem no terreno da imaginação e seguem
que se estabelece entre seus polos, o compu- suas próprias regras, que são tão fluidas
tador, ou o dispositivo correspondente, e o como as da própria imagem que a representa
usuário. Esta imagem pode ser realista, abs- no espaço interface.
trata ou conceitual (acolhendo em seu seio Há ainda muito por fazer e investigar
as maiores linhas das vanguardas artísticas nesse terreno, mas é óbvio que mudamos
do século XX), mas em todos os casos im- o paradigma visual, o que implica também
plica processos dialéticos e hermenêuticos em uma mudança de paradigma mental. As
de caráter uníssono. novas imagens não apenas nos propõem no-
Dialéticos porque a configuração visual vas formas de pensar, mas em realidade nos
varia de acordo com as ações e reações do obrigam a encontrá-las.
usuário e do programa, produzindo sínteses (artigo recebido ago.2016/aprovado nov.2016)

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