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TEXTO DE APOIO

Curso: CA Técnico de Manutenção Industrial de Metalurgia e Metalomecânica


Turma: CA4B
UFCD: 6667
Designação do Módulo: Mundo atual – tema opcional
Data: 2017/2018
O Docente: Paulo Andrade

Considerada “menor”, a ficção científica tem se mostrado mais realista do


que a “grande literatura”, ao abordar as transformações tecnológicas e
sociais causadas pela informática e pela globalização, tornando o controle
social ainda mais sofisticado Valério Evangelisti

A globalização da economia, o papel hegemônico da informática, o poder de uma


economia desmaterializada, as novas formas de autoritarismo ligadas ao
controle da comunicação, todos estes temas parecem deixar indiferentes os
escritores da “grande literatura”, pelo menos na Europa. Na maior parte de seus
romances, o mundo parece imutável. Predominam as histórias intimistas, que
poderiam ter-se passado há cinquenta anos — ou que poderiam acontecer daqui
a cinquenta anos… Amores, paixões e traições perpetuam seu consumo à luz
de uma vela, num mundo de cores pálidas e cheirando a poeira e talco. Há, é
claro, algumas exceções; mas na maior parte do tempo o cenário geral é
imoderadamente “minimalista”.

O estilo insosso, extenuado, passou a ser considerado como realista. Parece


deter a verdade, a ponto de tornar-se a única forma de literatura nobre. Pouco
importa se o autor, que não tem tempo a perder, digita seu texto num computador
e o envia por correio eletrônico. Pouco importa se o tempo de impressão foi
reduzido em mais da metade graças às novas tecnologias. Essas inovações
vulgares não poderiam refletir-se na história, sob pena de contaminá-la e reduzir

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sua carga de sublime. A prosa “realista” situa-se fora do tempo; o que é ancorado
no tempo não tem valor.

Obediência ao mercado

É lógico que a literatura “branca” arrasta consigo sua antítese, o roman noir.
Aqui, a rua, o conflito, o urbano, o social desempenham um papel importante. Já
as estruturas planetárias do sistema, as evoluções históricas, as mutações
psicológicas e comportamentais que o desenvolvimento tecnológico gera não
têm papel algum, exceto em casos raros. Os acontecimentos se reduzem ao
conflito entre alguns indivíduos animados pelas eternas paixões: ódio, vingança,
amor, sede de justiça. O “maximalismo” do cenário se dissolve no “minimalismo”
do tratamento: policial corrupto, ou dúbio, ou honesto, contra criminoso honesto,
dúbio ou corrupto. Nem sempre, mas com bastante freqüência. E, no entanto, o
sistema é questionado, em seu conjunto. Na realidade, trata-se de um
“minimalismo” mais amplo, ou de um “maximalismo” reduzido. Dois passos à
frente e um passo atrás.

O fato é que hoje, mais do que nunca, o sistema diluiu-se em escala continental
e o controle sobre as vidas individuais se encontra nas mãos de um poder
anônimo e longínquo. Um volume vertiginoso de trocas decide no espaço de um
dia centenas de milhares de destinos: uma fábrica fecha na França, uma revolta
estoura na Indonésia, uma empresa italiana desloca sua produção para a
Albânia, um aventureiro ganha milhões de dólares na Austrália e os perde na
Espanha no dia seguinte; tudo isso escoltado por milhares de dramas que
ninguém se encarrega de registrar… Alguém gostaria de saber quem está na
origem de tantas tragédias? Descobre-se que são acionistas inconscientes que
confiaram suas economias a um administrador de fundos. Este último também é
parcialmente inconsciente: tudo o que ele conhece é o mercado. Ora, o mercado
não é uma entidade física, é um conjunto de equilíbrios gerado por regras. Quem
impôs tais regras? Os governos. Mas os governos também são inconscientes,
pelo menos em parte: tomam decisões em ligação com outros governos mais

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poderosos. A quem obedecem estes últimos? Em teoria, ao mercado, na


realidade, a ninguém…

Estranho código genético

Se procurássemos o elemento detonador, talvez terminássemos por descobri-lo


num professor alcoólatra, numa pequena universidade norte-americana de
província… O qual, em pleno delírio etílico, elabora uma teoria fundada sobre
nada, mas em afinidade total com o que, naquele momento, a política de seu
governo exige… A teoria se mistura à ideologia, o resultado se metamorfoseia
em político, a política se transforma em poder, o poder se faz potência.

Nessa altura, o desempregado já sabe a quem agradecer. Ou talvez não.


Ninguém sabe. Enquanto a “grande literatura” se compraz em ignorar tudo isto,
a literatura do “andar de baixo” fez da época seu objeto de predileção. Aludo à
ficção científica. Não a toda ficção científica, bem entendido, pois há muita
bobagem nesse campo. Mas, por natureza, o gênero é “maximalista” e inclina-
se a tratar vários assuntos: pinta mutações em larga escala, revela sistemas
ocultos de dominação, denuncia efeitos trágicos ou bizarros da tecnologia,
inventa sociedades alternativas. Assim como o spaghetti-western mais pesado
podia incluir momentos de cinema de qualidade, o romance de ficção científica
menos legível pode conter grandes intuições. Mesmo que se perca em aventuras
sem outro fim que elas mesmas, em retratos psicológicos mal-acabados, em
simplificações de historieta infantil. Mas o “minimalismo” nele continua, para
sempre, intolerável. É estranho a seu código genético.

Nem efêmera nem negligenciável

Só a ficção científica apresenta descrições realistas (sim, realistas!) do mundo


em que vivemos. Por exemplo, que outro gênero literário já dedicou um romance
aos mecanismos das crises econômicas? Nenhum. Mas tomemos Depression or
Brust (1974), de Mark Raynolds. Um sujeito cancela sua encomenda de uma

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geladeira, o que leva à falência da concessionária, depois do fabricante e, etapa


após etapa, ao colapso de toda a economia dos Estados Unidos. A história não
tem outro personagem a não ser a crise e a fragilidade geral do sistema. Talvez
não se trate de literatura refinada, mas não se pode relegá-la ao campo do
efêmero ou negligenciável. Os temas são tão fortes que é impossível deixá-la à
margem.

Voltemos atrás, com Hell’s Pavement, de Damon Knight (1955). Uma sociedade
imaginária, relativamente próxima à nossa no tempo, descobre o remédio
definitivo contra o crime. Os criminosos confirmados são condicionados a sofrer
alucinações no momento em que tentarem cometer um delito. A descoberta cai
nas mãos de algumas sociedades multinacionais, que a adaptam a seu próprio
objetivo: o delito mais grave, que provoca alucinações, torna-se a compra dos
produtos das empresas concorrentes. Resultado: O mundo inteiro é dividido em
zonas de influência, onde cada sociedade multinacional exerce sua dominação
impondo aos cidadãos as alucinações que lhes convêm.

Distinguir o verdadeiro do falso

Isso faz você sorrir? Eu não sorrio. Vivo num país — a Itália — onde um
movimento político nasceu de um aceno, graças ao único fato de que seu líder
— Silvio Berlusconi — era o dono de uma rede de televisão…

Ainda no capítulo das alucinações: um autor italiano de ficção científica, Vittorio


Curtoni, escreveu há uns vinte anos uma série de histórias sobre o tema de uma
guerra do futuro. Os protagonistas recorriam a armas psicadélicas, o que gerava
uma humanidade impotente para distinguir o verdadeiro do falso, incapaz de se
considerar como pertencente a um todo solidário…

Os que ainda se lembram da onda de desinformação divulgada pelas fontes mais


confiáveis durante a guerra do Golfo e a guerra do Kosovo compreendem do que
se trata: recém-nascidos arrancados da incubadora pelos homens de Saddam

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Hussein, as 700 crianças kosovares sequestradas para doar sangue aos


soldados de Milosevic… E outras tantas informações falsas, que nos levam a
pensar que a guerra das alucinações já começou.

A falência da democracia

Um último exemplo. Aludi à dificuldade de identificar, hoje, quem maneja as


alavancas do poder. Sobre este assunto, há uma história deliciosa de Jack
Vance, Dodkin’s Job (1964). Numa sociedade de classes rígida, um operário é
perturbado pelas ordens irracionais que lhe são impostas e então tenta descobrir
de quem elas vêm. Depois de uma longa pesquisa, descobre que não vêm de
ninguém…. Melhor ainda, é um velho porteiro dos palácios do poder quem se
encarrega de datilografar um rascunho numa velha máquina de escrever, e
depois o sistema se apodera do rascunho, deforma-o e o transforma em ordens
absurdas.

À primeira vista, não passaria de uma brincadeira. Na realidade, uma parábola


sobre a falência da democracia que se manifesta nas formas modernas da
sociedade, quando o poder se exerce sem controle.

A resistência do cyberpunk

Com a metáfora, a ficção científica soube perceber, melhor que qualquer outra
forma de narração, as tendências evolutivas (ou regressivas) do capitalismo
contemporâneo. Isto lhe permitiu, frequentemente, ultrapassar os limites
habituais da literatura e se expandir para os costumes, comportamentos, os
modos de falar comuns, em uma palavra, a vida cotidiana. A corrente cyberpunk,
ainda ativa há uns dez anos, constitui o exemplo principal. Pela primeira vez na
história, e bem antes do desenvolvimento atual da Internet, muitos escritores
tomavam como tema de seus romances esta forma de relação entre o homem e
a máquina, que é a informática.

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Seriam romances “fantásticos”, afastados do realismo considerado como a forma


privilegiada da literatura? Permitam-me duvidar. Quando a Internet se impôs, as
obras de William Gibson, Bruce Sterling, Rudy Rucker e outros forneceram à
nova realidade os termos adequados para descrevê-la e um mapa de seus
porvires potenciais. Melhor ainda, mostraram aos oponentes o caminho da
resistência, cultural e prática, diante das ameaças contidas na emergência de
uma rede de comunicação onipresente e capaz de reproduzir as relações de
dominação no terreno enganador do imaterial.

As batalhas dos piratas

Segundo eles mesmos confessaram, militantes da extrema-esquerda européia


criaram, sob a influência de histórias cyberpunk, a rede European Counter
Network (ECN); foram os primeiros a utilizar a velocidade do novo sistema de
informação para coordenar suas ações. Os centros sociais dos jovens revoltados
encheram-se de modems e de computadores, sistematicamente destruídos
durante as batidas policiais. Os piratas da informática empreenderam titânicas
batalhas individuais contra os grandes grupos econômicos, reduzindo a
velocidade de acesso à rede e sua submissão.

Já tínhamos visto a literatura popular influenciar a vida (por exemplo, as novelas


do século XIX ou as recaídas sociais dos romances de Eugène Sue), mas nunca
de modo tão maciço e sistemático. A ponto de o cyberpunk não se ter extinguido
devido à fraqueza, mas por ter-se tornado supérfluo, diante de sua expansão
fora do campo narrativo. Não creio que outras correntes literárias se possam
gabar de fim tão glorioso.

Investindo nos sonhos

Tem-se a impressão que o fantástico, e muito particularmente a ficção científica,


é a única maneira, do ponto de vista literário, de descrever o mundo atual de

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modo adequado. Porque é um mundo onde o imaginário assumiu uma


importância excecional. Se fôssemos reformular a teoria do valor (e como isto
seria necessário!), seria preciso acrescentar a informação aos fatores
enumerados por diversas escolas econômicas. As noções de quantidade de
trabalho contida nas mercadorias, de penúria de bens, de diferença entre a oferta
e a procura não bastam mais. A procura de uma mercadoria aumenta com sua
notoriedade, e seu valor cresce em consequência disso.

O capitalismo tradicional contentava-se com a publicidade. Agora, vai mais


longe: na imaginação, nos sonhos, nas mais íntimas visões do mundo. O
crescimento da comunicação o permitiu, impondo modos de vida, criando
necessidades onde não havia, aumentado a sede de afirmação do indivíduo.
Não se compreende nada da sociedade contemporânea se não se levar em
conta a rápida colonização do imaginário consumada nestes últimos anos.
Antes, desempenhávamos um papel produtivo durante um certo número de
horas por dia, enquanto o resto do tempo era dedicado à diversão e ao repouso,
isto é, a nós mesmos. As atividades de descontração, todas baseadas na
comunicação, prolongaram o campo da produtividade à custa do lazer e do
tempo de repouso. Quase todos os espetáculos televisivos contêm incitações à
compra, seja através de publicidade explícita ou referências a modos de vida
considerados melhores para todos.

Imagens sem contexto

A imagem já causou verdadeiras comoções sociais: a corrida às mercadorias


ocidentais depois da queda do muro de Berlim, a chegada maciça de albaneses
à Itália, atraídos pela fascinação das ondas televisivas captadas além-
Adriático… Mas se a informação é uma coisa, a sua manipulação é outra. Hoje
em dia, a comunicação capitalista visa diretamente o inconsciente. A produção
simbólica, antes ajustada à evolução dos séculos, tornou-se frenética. Incentiva-
se sem pudor a perda de identidade.

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Por outro lado, informação e comunicação, são partilhadas quando os grandes


temas estão em jogo. Imensas tragédias se reduzem a diligentes sequências de
imagens, tão rápidas que delas nada resta. Ver um jornal da CNN é não ver
nada. Sai-se com uma série de noções inutilizáveis, porque ali falta o contexto,
a análise, a reflexão. É verdade que a profundidade é a grande inimiga dos que
controlam os destinos de outros (ainda que de forma anônima). O sistema só
subsiste se os subordinados viverem na futilidade. E daí a exigência de introduzir
em sua intimidade, até na sua psique, falsas informações, falsas representações
para que não percebam sua condição.

As formas bastardas da ficção

A ficção científica, o fantástico, a literatura centrada no imaginário, têm o poder


de reforçar a inventividade contra este gênero de agressões. Elas o utilizam
menos do que seria necessário, e às vezes nem o utilizam. A ficção científica
norte-americana contemporânea é a sombra do que foi: padronizada, pobre,
reduz-se muitas vezes a formas bastardas de vulgarização científica, tão nulas
literária quanto intelectualmente. A renúncia à ambiguidade e à provocação foi,
certamente, fatal. https://diplomatique.org.br/o-espelho-do-mundo-atual/
O espelho do mundo atual, por Valerio Evangelisti, agosto 1, 2000,

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