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Transexualidade – O Judiciário e as questões de gênero

Autor: Murilo Fidelis1

Na semana passada, além da polêmica trazida pela


decisão de um juiz em caráter liminar, que autorizou a “cura gay” no país, um
parecer emitido por um Promotor do Ministério Público do Paraná em um
processo que tramita pela Vara de Registros Públicos de Curitiba, causou
estranheza perante a sociedade e a comunidade jurídica. No caso, um
transexual que havia nascido com o sexo biológico feminino, requereu a
alteração de seus documentos para que os registros oficiais se adequassem à
sua identidade de gênero.

No parecer, o promotor bastante incauto e manifestamente


leigo no tema, afirmou que "O pedido de mudança de gênero feminino para
masculino contraria frontalmente o ordenamento jurídico, sendo juridicamente
impossível, eis que o gênero de cada indivíduo é determinado pelo médico no
momento do nascimento, não sendo passível de alteração posterior".

A posição exposta pelo promotor demonstra o quanto o


tema ainda é carregado de ignorância e preconceito, ficando nítido que o assunto
ainda precisa ser amplamente debatido pela sociedade.

Tratando-se de direitos humanos e minorias, apesar dos


recentes retrocessos, o Brasil já avançou muito no tocante a essas matérias.
Isso se deve, em maior parte, ao Poder Judiciário, pois sabemos que se tais
temas forem deixados a cargo do Legislativo, serão relegados pelas bancadas
conservadoras, que lutam diariamente para impedir legislações favoráveis às
minorias estigmatizadas.

1
Graduado em Direito pela Universidade Positivo. Pós-Graduado em Direito Civil, do Consumo e
Processo Civil pela mesma Universidade.
Assim, viu-se nos últimos anos um protagonismo do
Judiciário, que atuou como legislador positivo nessas temáticas, a fim de
resguardar direitos e atuar onde antes havia uma lacuna legislativa. Como
exemplo, tem-se a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
n° 4277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n°
132, que reconheceu a possibilidade de união entre casais homoafetivos.
Tivemos, aqui, um notório avanço no reconhecimento dos direitos dessa
população, que antes ficava à margem da lei, por não haver uma tutela
específica em nosso ordenamento jurídico.

Com relação aos transexuais, temos em trâmite perante o


Congresso Nacional, o Projeto de Lei João Nery, PL 5002/2013, proposto pelo
Deputado Jean Wyllys, que dispõe sobre o direito à identidade de gênero,
alterando o art. 58 da Lei nº 6015/1973. O projeto, todavia, vem sofrendo
constantes ataques dos políticos conservadores, deixando a população
transexual sem a devida resposta da lei.

No caso dessa minoria, a lei ainda não regulamenta os


procedimentos judiciais, nem mesmo garante seus direitos de forma clara,
cabendo, mais uma vez, ao Poder Judiciário, a garantia da proteção do Estado
a esse grupo. Tal situação, inclusive, encontra-se pendente de julgamento
perante o STF, que no RE 670422, decidirá sobre a matéria aqui em comento.

Em casos como esses, não se pode falar em “ativismo


judicial”, como dizem os mais conservadores, e sim entender que o Judiciário
nada mais faz que o seu papel, ou seja, atua no suprimento de um vácuo
normativo, uma vez que a lei não proíbe a temática, porém, também não a
normatiza. Assim, a crítica que se faz à atuação do Poder Judiciário nesses
casos é incabível, vez que, na ausência de lei, o juiz de igual forma deve
solucionar a lide e dizer qual é o direito da parte.

A vedação ao chamado “ativismo judicial” decorre da


separação dos três poderes. Todavia, tal separação ocorreu com um simples
intuito: proteger o cidadão dos abusos estatais. Hoje, no entanto, a intervenção
do Poder Judiciário se faz necessária pelo mesmo motivo, uma vez que o mesmo
Estado estará agindo, por meio de um de seus poderes, no intuito de proteger o
cidadão contra a omissão do próprio Estado que tolhe seus direitos. Clemerson
Mèrlin Clève aponta:

Se é certo que há um consenso no que diz respeito à


atuação dos juízes enquanto legislador negativo, o mesmo
não ocorre quando se está a falar numa atuação análoga à
do legislador positivo. Ou, eventualmente, do
administrador. De outro viés, cumpre verificar se, do fato
de o Judiciário não dispor de um meio de legitimação como
os demais poderes (o mecanismo eleitoral para a
investidura de seus membros), não se poderia deduzir que
está impedido de atuar a partir de determinado limite.
Poder-se-ia, eventualmente, afirmar, para afastar o
argumento, que o Judiciário atua como uma espécie de
delegado do Poder Constituinte para a defesa da
Constituição e, especialmente, dos direitos fundamentais2.

Destarte, o julgador, nesses casos, está apenas


salvaguardando os direitos fundamentais da parte. Nesse caso,
especificamente, o disposto nos art. 1º, III, 3º, IV, e 5º caput e X, da Constituição
Federal. Assim, Alexandre de Moraes Leciona:

"(...) a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos


direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às
personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia
de predomínio das concepções transpessoalistas de
Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A
dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa,
que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida e que traz
consigo a pretensão ao respeito por parte das demais

2
CLÈVE, Clemerson Mèrlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Disponível em
http://www.clemersoncleve.adv.br/wp-content/uploads/2013/04/2003-O-desafio-da-efeitividade-dos-
direitos-fundamentais-sociais.pdf.
pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo
estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao
exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem
menosprezar a necessária estima que merecem todas as
pessoas enquanto seres humanos" (Direito Constitucional.
São Paulo: Atlas, 2009, 24. ed., pp.21/22)

A questão no caso que gerou polêmica girava em torno da


possibilidade de retificação do registro civil para alteração do gênero e prenome,
sem que o autor tivesse se submetido à cirurgia de transgenitalização, o que
recai na proteção à dignidade da pessoa humana.

A transexualidade é, segundo Maria Berenice Dias:

“A falta de coincidência entre o sexo anatômico e o


psicológico (...). É uma realidade que está a reclamar
regulamentação, pois reflete na identidade do indivíduo e
na sua inserção no contexto social. Situa-se no âmbito do
direito da personalidade e do direito à intimidade, direitos
que merecem destacada atenção constitucional” (DIAS,
Maria Berenice. Manual das famílias. Editora RT.São
Paulo, 2010, p.142)

Portanto, visando regularizar a sua situação fática, o autor


buscou o reconhecimento perante o Poder Judiciário.

Sobre a alteração do nome, a lei nº 6015/1973 possibilita


nos arts. 55 e 58 a modificação quando os prenomes forem suscetíveis a expor
ao ridículo, bem como a substituição por apelidos públicos notórios. Trata-se do
que ocorre nesse cenário, vez que o autor, ao apresentar os documentos perante
terceiros, passa por situações vexatórias e discriminatórias constantemente,
sendo desnecessária até mesmo comprovação disso nos autos, vez que tais
situações são fatos notórios que ocorrem diariamente na sociedade, relatados
com frequência por veículos de notícia.
Além de situações de discriminação verbal, a população
LGBTTT também sofre com a violência física por não apresentar os
comportamentos padronizados pela sociedade heteronormativa.

Vê-se, então, que o benefício da retificação do registro civil


terá múltiplas funções, todas resguardadas pela Lei Maior: garantir a dignidade
humana (art. 1º, III, CF), proteger a liberdade (art. 5º, caput), garantir a intimidade
(art. 5º, X), vedar o preconceito (art. 3º, IV, CF), bem como assegurar a
integridade física e moral do autor. Nesse sentido, tal alteração já é reconhecida
pelos tribunais pátrios:

Registro civil. Transexualidade. Prenome. Alteração.


Possibilidade. Apelido público e notório. O fato de o
recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no
plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo
conhecido por apelido, que constitui prenome feminino,
justifica a pretensão já que o nome registral é compatível
com o sexo masculino. Diante das condições peculiares,
nome de registro está em descompasso com a identidade
social, sendo capaz de levar seu usuário à situação
vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um
apelido público e notório justificada está a alteração.
Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei n. 6015/73 e da Lei n.
9708/98. Recurso provido." (TJRS, AC 70001010784, 7ª
C. Cív., Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, j. 14/06/2000).

O segundo ponto alegado no caso e apontado pelo


promotor nos autos, é a possibilidade do reconhecimento do gênero sem o
procedimento da intervenção cirúrgica. No entanto, primeiro se faz necessário
entender a distinção entre identidade de gênero e o sexo biológico.

O sexo de um indivíduo, segundo a ciência biológica, pode


ser definido, na maioria dos casos, desde o nascimento, com base em seus
cromossomos e sua genitália. A identidade de gênero, por outro lado, atua no
campo psicológico, sendo a maneira como a pessoa se enxerga perante o grupo
social ao qual ela pertence, dentro dos padrões de gênero impostos pela
sociedade, quais sejam, masculino e feminino.

Destarte, se adentrarmos em uma concepção de matriz


biológica, tais comportamentos classificados como “masculinos” e “femininos”
não são parte integrante do ser desde o seu nascimento, mas sim construções
sociais e culturais de uma sociedade.

A partir disso, quando há compatibilidade com sexo


biológico e psíquico, os indivíduos são denominados cisgêneros e, quando não,
transgêneros, como no caso em debate.

Nota-se, assim, que a definição do gênero de um indivíduo


independe de um órgão sexual ou reprodutivo, sendo de suma importância a sua
percepção psíquica para tal definição, que será validada a partir de seu convívio
social e cultural, uma vez que sexo biológico e identidade de gênero são
conceitos distintos, apesar de muitas vezes coincidirem.

Portanto, num caso como esse, denota-se que o


requerente se identifica como sendo do gênero masculino, expressa-se como
homem e quer ser reconhecido como tal, sem a obrigatoriedade da intervenção
cirúrgica, o que deve ser acolhido pelo Poder Judiciário, pois, como se viu, o
sexo biológico e a identidade de gênero não se confundem. Nessa linha,
decidiram os tribunais por todo o país:

APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO


CIVIL. TRANSEXUALISMO. ALTERAÇÃO DO
GÊNERO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE
REDESIGNAÇÃO SEXUAL OU
TRANSGENITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE.
O sexo é físico-biológico, caracterizado pela presença
de aparelho genital e outras características que
diferenciam os seres humanos entre machos e
fêmeas, além da presença do código genético que,
igualmente, determina a constituição do sexo –
cromossomas XX e XY. O gênero, por sua vez,
refere-se ao aspecto psicossocial, ou seja, como o
indivíduo se sente e se comporta frente aos padrões
estabelecidos como femininos e masculinos a partir
do substrato físico-biológico. É um modo de
organização de modelos que são transmitidos tendo
em vista as estruturas sociais e as relações que se
estabelecem entre os sexos. Considerando que o
gênero prepondera sobre o sexo, identificando-se o
indivíduo transexual com o gênero oposto ao seu
sexo biológico e cromossômico, impõe-se a
retificação do registro civil, independentemente da
realização de cirurgia de redesignação sexual ou
transgenitalização, porquanto deve espelhar a forma
como o indivíduo se vê, se comporta e é visto
socialmente.APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA.
(TJ-RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, Data de
Julgamento: 27/05/2015, Sétima Câmara Cível)

Retificação de assento de nascimento. Alteração do


nome e do sexo. Transexual. Interessado não
submetido à cirurgia de transgenitalização. Princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
Condições da ação. Presença. Instrução probatória.
Ausência. Sentença cassada. O reconhecimento
judicial do direito dos transexuais à alteração de seu
prenome conforme o sentimento que eles têm de si
mesmos, ainda que não tenham se submetido à
cirurgia de transgenitalização, é medida que se revela
em consonância com o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana. Presentes as condições
da ação e afigurando-se indispensável o regular
processamento do feito, com instrução probatória
exauriente, para a correta solução da presente
controvérsia, impõe-se a cassação da sentença.
(TJMG, AC 1.0521.13.010479-2/001, 6ª C. Cív., Rel.
Des. Edilson Fernandes, j. 22/04/2014).

REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DE PRENOME E


SEXO DA REQUERENTE EM VIRTUDE DE SUA
CONDIÇÃO DE TRANSEXUAL. ADMISSIBILIDADE.
HIPÓTESE EM QUE PROVADA, PELA PERÍCIA
MULTIDISCIPLINAR, A DESCONFORMIDADE
ENTRE O SEXO BIOLÓGICO E O SEXO
PSICOLÓGICO DA REQUERENTE. REGISTRO CIVIL
QUE DEVE, NOS CASOS EM QUE PRESENTE
PROVA DEFINITIVA DO TRANSEXUALISMO, DAR
PREVALÊNCIA AO SEXO PSICOLÓGICO, VEZ QUE
DETERMINANTE DO COMPORTAMENTO SOCIAL
DO INDIVÍDUO. ASPECTO SECUNDÁRIO,
ADEMAIS, DA CONFORMAÇÃO BIOLÓGICA
SEXUAL, QUE TORNA DESPICIENDA A PRÉVIA
TRANSGENITALIZAÇÃO. OBSERVAÇÃO,
CONTUDO, QUANTO À FORMA DAS ALTERAÇÕES
QUE DEVEM SER FEITAS MEDIANTE ATO DE
AVERBAÇÃO COM MENÇÃO À ORIGEM DA
RETIFICAÇÃO EM SENTENÇA JUDICIAL.
RESSALVA QUE NÃO SÓ GARANTE EVENTUAIS
DIREITOS DE TERCEIROS QUE MANTIVERAM
RELACIONAMENTO COM A REQUERENTE ANTES
DA MUDANÇA, MAS TAMBÉM PRESERVA A
DIGNIDADE DA AUTORA, NA MEDIDA EM QUE OS
DOCUMENTOS USUAIS A ISSO NÃO FARÃO
QUALQUER REFERÊNCIA.DECISÃO DE
IMPROCEDÊNCIA AFASTADA.RECURSOS
PROVIDOS, COM OBSERVAÇÃO (Apelação n.
0008539-56.2004.8.26.0505, 6ª Câmara de Direito
Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator
Desembargador Vito Guglielmi, j. em 18-10-2012).

Ademais, cumpre salientar que cirurgias de adequação de


gênero, em especial as FtM (feminino para masculino), não possuem técnicas
tão avançadas quanto as MtF (masculino para feminino), sendo abusiva a
obrigatoriedade pelo Poder Judiciário da cirurgia ao indivíduo que busca o
reconhecimento de seu gênero perante a Justiça, uma vez que a faloplastia,
neofaloplastia, metoidioplastia e outros procedimentos, não são tão avançados
tecnicamente, possuindo elevados custos. Ainda, é importante lembrar que
cirurgias custeadas pelo Sistema Único de Saúde possuem uma fila de espera
que pode levar mais de uma década para serem realizadas3.

Em casos como esse, a pretensão do autor com a


demanda é meramente o reconhecimento do seu gênero de acordo com sua
identidade psicológica, bem como a retificação do gênero em seus documentos
e de seu prenome, a fim de reconhecê-lo como indivíduo do gênero masculino e
evitar situações vexatórias.

Visando comprovar a situação fática, deve-se trazer à


inicial documentos comprobatórios, como parecer psicológico, fotos, cartões em
que já use o nome social, bem como certidões para demonstrar que não se trata
de uma tentativa de fraude.

Cabe ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, lutarem


juntos sem medirem esforços para que situações assim sejam cada vez mais
raras perante o seio do Judiciário, e que tais populações marginalizadas tenham
o acesso aos seus direitos de forma plena e facilitada, auxiliando esses cidadãos
no exercício pleno de sua cidadania com orgulho e dignidade.

3
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mudanca-de-sexo-demora-ate-12-anos-no-brasil,10000053963

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