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All content following this page was uploaded by Laeticia Jensen Eble on 29 March 2017.
A LITERATURA BRASILEIRA E A
PERMANÊNCIA DO CÂNONE NA
ACADEMIA
Laeticia Jensen Eble
Em junho de 2013, o Itaú Cultural Lattes, que servirá de mote para a discus-
apresentou, na Festa Literária Interna- são pretendida neste artigo, e que, como se
cional de Paraty (FLIP), a pesquisa Movi- verá, mantém relação com a forma como a
mentos Atuais da Literatura Brasileira. A literatura brasileira aparece nos livros di-
pesquisa tinha a intenção de, a partir de ins- dáticos e do Enem.
tantâneos do campo literário – ou seja, do Na obtenção da listagem de autores,
levantamento de dados em diferentes áreas com o auxílio do sistema de busca da Plata-
relacionadas à literatura –, traçar um peril forma Lattes, primeiramente localizei 2.176
de modo que a literatura brasileira pudesse doutores que se identiicavam com a área de
ser contemplada de forma mais concreta, atuação “Letras” e declaravam atuar prois-
em uma miríade de aspectos que geralmen- sionalmente na área de literatura brasileira.
te são de difícil apreensão. Em seguida, procedi à leitura dos currículos
De minha parte, fui convidada para para encontrar os nomes dos autores com
colaborar com a pesquisa1 reunindo in- os quais esses doutores trabalhavam obje-
formações sobre a literatura brasileira na tivamente em suas pesquisas. Foram ex-
academia, nos livros didáticos e no Enem. traídos os nomes dos autores mencionados
Entre os dados levantados, obtive uma lis- nos campos: resumo do currículo; título da
ta com uma espécie de ranking dos auto- tese2; palavras-chave da tese; e projeto de
res brasileiros mais citados nos currículos pesquisa em andamento3.
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TABELA 1
Trinta autores mais citados no currículo Lattes por pesquisadores doutores de literatura brasileira
– Brasil (jun. 2013)
AUTORES NASC.-FAL. N. DE CITAÇÕES
1 Machado de Assis 1839-1908 122
em sua tese de doutorado intitulada Como tins no século XIX – o que deve ter contribu-
Se Faz um Clássico na Literatura Brasilei- ído bastante para sua aceitação pelo público
ra (2012), investiga detalhadamente e com em geral –, e teve suas vendas impulsiona-
generosidade de dados a trajetória prois- das pelo subsequente lançamento do ilme
sional de quatro autores brasileiros: Érico homônimo, dirigido por Nelson Pereira dos
Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Ama- Santos. Apesar de, quando comparado a ou-
do e Raquel de Queiroz. Entre as várias dis- tros autores, as obras de Graciliano Ramos
cussões que propõe, a autora comenta que terem vendido pouco quando este ainda era
a deinição do que seja um best-seller se vivo8, ao completar trinta anos de sua pu-
dá, principalmente, por seu blicação, em 1968, Vidas Se-
alcance de vendas no mer- “(...) o alcance social da cas já atingia um total de 620
cado editorial, e que, em se escola é muito maior que mil livros vendidos no Brasil
tratando de textos de ic- o da crítica especializada.” e no exterior.
ção, a atitude predominan- Constatando a opinião
te da crítica especializada diante dos bes- negativa da crítica especializada sobre
t-sellers é a de considerá-los subliteratura a qualidade de várias das obras de Jorge
ou literatura de massa – provavelmente, Amado e Érico Veríssimo9, e o fato terem
Paulo Coelho seria o autor mais lembrado sido bastante vendidas à sua época, Mello
por esses mesmos críticos para exemplii- (2012, p. 125) conclui que a crítica sozinha
car seu julgamento. não determina a consagração dos autores.
No entanto, se no Brasil um livro que Contudo, em virtude do lugar privilegiado
venda por volta de 10 mil exemplares já que ocupa em relação ao público, são prin-
pode ser considerado um best-seller, auto- cipalmente os críticos que inluenciam a
res como Jorge Amado e Érico Veríssimo escolha das obras a serem adotadas nas
se enquadram perfeitamente nessa cate- escolas. Se, pois, autores que foram cen-
goria. Em 1970, por exemplo, Jorge Amado surados no passado iguram hoje entre os
ocupava a primeira posição entre os mais mais estudados na academia e nos bancos
vendidos, com 2,5 milhões de exemplares6. escolares, veriica-se, então, que a mes-
Érico Veríssimo igurava em segundo lu- ma crítica que recrimina também tem o
gar, ao lado de José Mauro de Vasconcelos. poder de referendar10.
Mello (2012, p. 90) atribui tal desempenho No que se refere ao ensino da Teoria da
a uma estrutura folhetinesca e a caracte- Literatura – e à formação de “espectadores
rísticas de literatura de massa de que esses dotados da disposição e da competência”,
autores faziam uso7. Ginzburg (2004, p. 97) destaca que, nos
Segundo Mello, mesmo fugindo dessas cursos universitários de letras, é comum o
características, o livro mais popular de Gra- percurso formativo com ênfase na análise
ciliano Ramos, Vidas Secas, foi publicado, estrutural e/ou na tipologia textual, entre
primeiramente, na forma de contos nos jor- outras metodologias possíveis, e uma base
nais, a exemplo do que se fazia com os folhe- de periodização literária, além do “inte-
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resse por ensinar autores consagrados da tuição de um corpus de obras canônicas”,
área”. Dominando esses elementos, tem-se cujo valor é reproduzido continuamente
a impressão de que o estudante estaria apto pelo sistema escolar11.
a “ler com rigor” e a “distinguir uma boa Ginzburg (2004) observa ainda que
obra literária”. No entanto, o crítico consi- o ensino de literatura no ensino médio,
dera que a opinião sobre as obras, em geral, e a forma como é cobrado nos vestibula-
é inluenciada por julgamentos anteriores a res, em geral, é resultado dessa atribui-
nós, e “o ensino universitário de atribuição ção de valores propalada pela academia.
de valor não se faz no vazio, mas em meio Mello (2012, p. 139) vai além, airmando
a um campo de referências historicamen- que “o alcance social da escola é muito
te irmadas” (GINZBURG, 2004, p. 98). Ou maior que o da crítica especializada, e tor-
seja, nesse caso, a ixação de obras e autores na-se um dos elementos mais importantes
em obras de historiograia literária estabe- na deinição da consagração ou do esqueci-
lece uma consagração que serve de referên- mento dos livros pelos potenciais leitores
cia para os estudantes. Segundo ele: em formação”.
Por seu turno, o trabalho de Fidelis
A coniguração do ensino de literatu- (2008, p. 163-164) demonstra claramente
ra como reprodução do cânone conigura como os livros didáticos assimilam o dis-
um trabalho que nada tem a ver com o ensi- curso historiográico e se valem desse como
no da relexão sobre o valor; pelo contrário, critério legitimador, ou seja, como o recorte
o componente relexivo é abandonado, em canônico proposto no livro didático é uma
favor de uma pura conirmação esquemá- redução de um corpus mais amplo referido
tica de sistemas de valor que, em muitos pela crítica literária nacional. E esse câno-
casos, não são conceitualmente discutidos ne também exerce inluência deinitiva na
com os estudantes. Estes, desse modo, pas- escola, determinando as opções de leitura
sam a defender que um autor é bom sem para os alunos do Ensino Médio, em detri-
saber por que, ou sem formular opinião mento de outras obras.
própria a respeito dos critérios de valor. Vale citar, ainda, a pesquisa de Diniz
(GINZBURG, 2004, p. 99). (2012), que coletou dados referentes aos
onze livros didáticos de língua portuguesa
Segundo Bourdieu (1996, p. 339), para distribuídos para as escolas públicas por
sair desse “círculo encantado”, é preciso meio do Programa Nacional do Livro Didá-
adotar duas linhas de investigação: por um tico de Ensino Médio (PNLEM/MEC), en-
lado, “uma história da invenção progres- tre 2009 e 201112. Tais dados compreendem
siva da leitura pura”, ou seja, do modo de a classiicação dos textos literários que apa-
apreensão de “obras que exigem ser lidas recem nos livros (3.113 no total) de acordo
(e relidas) em si mesmas e por si mesmas”; com os seguintes critérios: gênero literário,
e por outro lado, “uma história dos pro- época, autoria, relação com o cânone e uso
cessos de canonização que levou à consti- nos livros didáticos.
148 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Gregório de Matos 59
Fonte: Diniz (2012), com base nos livros didáticos distribuídos pelo
programa PNLEM 2009-2011.
15% 18%
Também no Exame Nacional do Ensi-
no Médio (Enem) – que, apesar de não in-
dicar listas de obras literárias para serem
5% obrigatoriamente lidas pelos estudantes,
1% inclui a literatura entre os objetos de conhe-
TEATRO MÚSICA CARTUM PROSA POESIA cimento da área de Linguagens, Códigos
e suas Tecnologias13 – é possível levantar
Fonte: Diniz (2012), com base nos livros didáticos distribuídos pelo
dados sobre a recorrência de determinados
programa PNLEM 2009-2011. autores. Fischer et al. (2012), por exem-
plo, analisaram todas as provas do Enem
No que diz respeito à autoria, a predo- de 1998 a 2010. Entre os autores que mais
minância do gênero poético se faz reletir aparecem nas provas, Carlos Drummond
também na recorrência de autores. De um de Andrade é o autor mais citado, com 19
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ocorrências, seguido por Machado de Assis avaliação do ensino médio, e agora é de via-
e Manuel Bandeira, com 7 aparições cada. bilizar o acesso ao ensino superior –, a for-
Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues e Ál- ma como a literatura é cobrada nessa ava-
vares de Azevedo aparecem somente uma liação tem a ver com as práticas de ensino
vez cada, apesar de sua tradição nos currí- adotadas nas faculdades de Letras, que, em
culos escolares. Fazendo levantamento se- grande parte, ainda reproduzem uma pers-
melhante para os anos de 2011 e 2012, ob- pectiva historiográica. O que se vê, portan-
servei que Carlos Drummond de Andrade to, é um sistema que se retroalimenta, cujas
continua sendo o autor mais citado, seguido diferentes partes são afetadas e necessitam
por Luís Fernando Veríssimo, Manoel de de uma reformulação combinada diante das
Barros e Noel Rosa. novas políticas educacionais.
De forma análoga à encontrada por Levantando outra problemática, e
Diniz (2012) nos livros didáticos, segundo apoiando-se em Reis (1992) e Coutinho
Fischer et al. (2012, p. 116), no Enem, “po- (1996), Ginzburg (2004), questiona a exclu-
emas e letras de canção, somados, corres- são, por exemplo, de expressões populares
pondem a 42% das questões de literatura, como o cordel e a literatura oral, bem como
enquanto romance, conto e crônica somam a ausência de mulheres e negros entre os
juntos 26,7%, o que revela um peso maior autores consagrados.
para os gêneros líricos em comparação aos Nesse sentido, Schmidt (2008, p. 129)
narrativos”. Em minha pesquisa, conirmei assevera que a imagem do literário tal como
que a relação se mantém em 2011 e 2012, sustentada no meio acadêmico “inscreve
sendo que a poesia ocupa 52,7% da prova, as estruturas de privilégio e exclusão que
enquanto a prosa literária ocupa 36,11%. a constituem em termos do monopólio de
Apesar dessa diferença, a recorrência determinados sujeitos da enunciação/re-
de alguns nomes coincide com os obtidos presentação, assim como da interpretação”.
no levantamento dos autores mais citados Assim também, Reis (1992, p. 73) conside-
por pesquisadores no currículo Lattes. Sa- ra que “não resta dúvida de que existe um
bendo que os proissionais que elaboram os processo de escolha e exclusão operando na
itens para as provas do Enem são, em sua canonização de escritores e obras”, no en-
maioria, professores universitários e ou tanto, simplesmente incluir os segmentos
estudantes de pós-graduação, os textos des- culturalmente marginalizados não resolve-
ses escritores, obviamente, não aparecem ria o problema. Para ele, “o problema não re-
ao acaso nas provas. Naturalmente, os mes- side no elenco de textos canônicos, mas na
mos autores que são objeto de pesquisa dos própria canonização, que precisa ser des-
pesquisadores nas universidades acabam trinchada nos seus emaranhados vínculos
igurando nas provas do Enem. com as malhas de poder”14.
Assim também, apesar de algumas Voltando à lista de autores apenas para
mudanças ao longo da existência do Enem – ilustrar o problema no que se refere ao gê-
como sua alteração de foco, que antes era de nero, observa-se que, por exemplo, entre os
150 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
AVELAR, Idelber. Cânone literário e valor estético: notas sobre um debate de nosso
tempo. Revista brasileira de literatura comparada, n. 15, p. 113-150, 2009.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FISCHER, Luís Augusto et al. A literatura no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Nonada Letras em Revista, Porto Alegre, ano 15, n. 18, p. 111-126, 2012.
REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
verdade, populista” (MELLO, 2012, p. 109). Por sua vez, em 1967, em entrevista
à Clarice Lispector, o próprio Veríssimo classifica Olhai os lírios do campo como
um romance medíocre, e queixa-se que a precariedade de seus primeiros livros
tenha prejudicado a opinião da maioria dos críticos – com algumas exceções – em
relação aos livros que publicou posteriormente (MELLO, 2012, p.114-115).
14 É interessante ainda ressaltar a observação que Reis (1992, p. 75) faz a respeito da
figura do crítico literário, que, segundo ele, é quem com sua autoridade intelectual
em relação ao artefato literário, dissemina “as interpretações que lhe convêm para
leitores e alunos”.