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Deslocamentos tecnológicos e artísticos…/ Fernanda Bornancin Santos - Marilda Lopes Pinheiro Queluz
♯10 primer semestre 2017: 61-79
teoria não enfoca a compreensão de processos confinada a uma esfera da ‘cultura afirmativa’, a
do campo artístico, refletimos como o autor razão tem sido reduzida a um instrumento na
encara as relações entre arte e tecnologia a luta contra a escassez”.24
partir de sua leitura contemporânea do conceito
de tecnologia em Herbert Marcuse no texto Para Feenberg, o problema chave centra-se no
Marcuse on Art and Technology.18 status ontológico da experiência vivida, pois
Feenberg argumenta que para Marcuse a não havendo espaço para o erótico e para
estética está profundamente implicada em seu concepções de vida sobre a morte em uma visão
conceito de tecnologia, e que a mudança instrumentalizada da razão, a experiência
tecnológica é de fato uma “práxis” fundamental vivida é crescentemente desvalorizada. Em
que corresponde à sua teoria estética. Feenberg Marcuse, ela é valorizada como um modo de
afirma que Marcuse “introduz uma atípica revelar dimensões de realidade que a ciência,
teoria da sensação baseada em sua quase- em seu modelo atual, não pode apreender.
fenomenológica interpretação dos Manuscritos
de 1844 de Marx”.19 Na visão de Feenberg, hoje estamos mais aptos
a compreender e desenvolver essas ideias do
Para Marx, a estética é invocada em dois que nos tempos de Marcuse devido ao fato de
sentidos, de modo que a prática da sensação que os estudos contemporâneos da tecnologia
envolve tanto objetos ricos em significado decisivamente refutam a noção tradicional de
quanto sujeitos capazes de receber o tecnologia como neutra. Os imperativos do
significado.20 Logo, “sua teoria corresponde ao mercado capitalista estão embasados na
que Adorno se refere como uma teoria da tendência de livrar a tecnologia de seus valores
sensação ‘mediada’ na qual tanto o objeto de ofício/artesanato para um desenvolvimento
quanto o sujeito contribuem para a construção orientado para o lucro. Tendo em vista essa
da experiência”.21 Ao reinterpretar os constatação, Feenberg considera importante
Manuscritos de 1844, Marcuse desenvolve a compreender essa neutralidade de valor não
breve menção de beleza feita por Marx como como um estado já alcançado, “mas como uma
uma característica objetiva do real, quase como tendência com uma história”, de modo que
uma teoria freudiana do erótico. Feenberg “quanto menos tecnologia é investida com
afirma que para Marcuse valores pré-estabelecidos, mais facilmente ela
pode ser adaptada às condições de mudança do
...o impulso erótico é dirigido na mercado”.25
direção da preservação e auxílio da
vida. Não é meramente um instinto ou A partir dessa releitura feenbergniana, podemos
movimento, mas opera no encontro pensar a tecnologia evidenciando suas
sensual com o mundo que o revela em
dimensões estéticas, de valor e experiência, de
sua beleza, o objetivo correlato ao
erótico. Mas esse impulso é reprimido modo que a mediação artística e seus objetos
pela sociedade, parcialmente também devem ser pensados a partir de sua
sublimado, parcialmente confinado à complexidade de valores e de suas
sexualidade. A perda do acesso materialidades como parte integrante de suas
sensorial imediato para o belo dá dimensões.
origem à arte como um enclave
especializado em que percebemos a Como contraponto ao panorama determinista,
afirmação do traço da vida erótica.22 Feenberg apresenta a sua Teoria Crítica da
Tecnologia (Critical Theory of Technology).26
De acordo com Feenberg, Marcuse reivindica Teoria que busca enfatizar o impacto de
que o valor moderno de neutralidade da aspectos contextuais da tecnologia no “design de
racionalidade tecnológica “é uma distorção de um artefato”, que, não raras vezes, são
uma razão de afirmação da vida original”.23 ignorados por uma visão dominante. Feenberg
Nesse sentido, arte e razão não são alienadas trabalha a chave de alteração tecnológica por
uma para com a outra, considerando que, cada meio do conceito de códigos técnicos. Tais
uma a seu modo, envolve a imaginação e revela códigos podem ser compreendidos como
essências. Contudo, para Marcuse, elas têm sido critérios que materializam, dentre uma gama de
separadas pelas pressões da vida organizada em alternativas técnicas, uma meta social em um
sociedade de classe: “enquanto a arte é
Para Feenberg, objetos técnicos possuem duas Para ela, o processo de configuração dos textos e
dimensões hermenêuticas que podem ser sua reflexão sobre a prática do roteiro estão
denominadas como seus significados sociais e relacionados ao gosto pela observação e
seus horizontes culturais. A dimensão de imaginação de histórias, à sua prática de
significado deve ser pensada a partir do comunicação oral desenvolvida no teatro e à
contexto de uso do artefato e também no sentido reflexão sobre a linguagem do roteiro em sua
de que, por mais que haja um uso dominante ou formação em cinema.
prescrito, não há algum tipo essencial ou
incorreto de uso. Os diversos modos pelos quais Faz-se importante esclarecer que, no meio
pessoas consomem, domesticam, reconfiguram cinematográfico, o roteiro é comumente
e resistem às tecnologias integram experiências encarado como um texto efêmero que só existe
e produção de significados que alteram tanto o para ser convertido em produto audiovisual,
artefato quanto o sujeito, em processos de co- como afirma o roteirista Doc Comparato.31
construção localizados em diferentes épocas e Enquanto o roteiro tradicional visa descrever o
contextos. Por sua vez, a segunda dimensão maior número possível de detalhes sobre as
hermenêutica da tecnologia refere-se ao seu cenas e se preocupa com o tempo de duração e
respectivo horizonte cultural, ou seja, ao pano leitura das mesmas, os microrroteiros
de fundo de uma sociedade, ao conjunto de propositalmente deixam vários espaços vazios e
suposições culturais com o qual se negociam e mal definidos no texto, não nomeando pessoas,
se impõem algumas regras que orientam as lugares ou pontuando características muito
escolhas técnicas.28 específicas sobre a situação narrada. Laura
Guimarães, ao se reapropriar e relativizar
Logo, as noções de códigos técnicos, radicalmente essa linguagem, a ponto de não
significados sociais e horizontes culturais considerá-la um roteiro, mas uma intenção de
suportam uma interpretação não roteiro, desloca o que é tomado como a
instrumentalizada da tecnologia, na qual objetos ferramenta de um processo para torná-lo o
artísticos também se constituem como centro e a apresentação visual de outro.
estruturas tecnológicas que possibilitam outros
modos de percepção, de linguagem e Em 2008, Laura Guimarães criou o No Passo do
sensibilidade, inclusive para pensar, construir e Roteiro, um diário virtual (blog) para publicar
perceber outras tecnologias, como poderá ser seus textos e buscar o potencial diegético de
observado no objeto dessa pesquisa. situações cotidianas. A artista ressalta que:
...tudo pode ser visto como um roteiro, Fazendo uso da comunicação fragmentada do
né? Música. Nossa, ó a quantidade de tweet, a artista começou a praticar a escrita em
roteiro que tem em música. É até 140 caracteres para desenvolver seus textos
impressionante. Às vezes um quadro, mesmo fora da plataforma digital, fazendo
meu, é um roteiro completo. Sabe uma
anotações na rua, contando os caracteres na
tela, um... E eu brincava muito disso, de
“o que é um roteiro?”.32 mão para medir o uso de letras e criar a
narrativa. Em 2010, pensando em explorar
Destaca, por sua vez, que esse olhar de outras possibilidades do trabalho e de torná-lo
roteirista não é uma exclusividade sua. mais acessível, a artista decidiu desdobrar seus
Comenta que roteiristas profissionais e microrroteiros para a materialidade de rua do
amadores(as) também têm essa característica de lambe-lambe.33
observação. Contudo, o que se sobressai na
prática dos microrroteiros, é o teor de exercício
de descrição/visualização de cenas e de registro
que Laura Guimarães vai materializando e
desenvolvendo com e no espaço público.
uma disposição de signos que respondem a uma Desde os primeiros anos do movimento, seu uso
aplicação das leis da Gestalt segundo a boa esteve associado a uma cultura caracterizada
forma – figuras como o círculo, o quadrado –, como visual. Como escreveu Décio Pignatari em
um modelo que dispõe os signos em uma seu texto nova poesia:concreta, de 1956,
quadrícula no intuito de dispô-los no espaço de
modo regular e pretendendo substituir as uma arte geral da linguagem.
disposições lineares dos versos (sucessivas e propaganda, imprensa, rádio, televisão,
recursivas) às formas geométricas quadriculares cinema. uma arte popular. a
(sintéticas e simultâneas).43 Logo, em Tensão, importância do olho na comunicação
mais rápida: desde os anúncios
Augusto de Campos trabalha com uma variada
luminosos até as histórias em
quantidade de possibilidades visuais das quadrinhos. a necessidade do
palavras – com, som, tensão, também, sem... –, movimento. a estrutura dinâmica. o
assim como suas sonoridades, tendo em vista os ideograma como idéia básica. contra a
diversos elos sonoros e semânticos entre elas. poesia de expressão, subjetiva, por uma
(Fig. 6) poesia de criação, objetiva.45
Além da quadrícula, o ideograma também Fig. 7 Ronaldo Azeredo, Velocidade, 1957. Fonte: Casa das Rosas.
caracteriza um termo que sintetizou, de
diferentes modos, métodos de composição e
forma poética. De acordo com Aguilar, já não se No poema Velocidade, feito por Ronaldo
tratava das qualidades metafóricas do Azeredo em 1957, a lógica do ideograma
ideograma, mas sim o ideograma como o configura seu código estruturante. Azeredo cria
próprio “caminho rumo à materialidade do uma matriz de dez por dez letras a partir do
signo e do espaço, no qual estes signos se número de caracteres da mesma palavra, “que
relacionam”.44 Por meio dele, os poetas dá título ao poema e que é, também, seu próprio
concretos buscaram traduzir aspectos conteúdo”. 46 (Fig. 7) Com essa única palavra,
discursivos da cultura visual, da circulação dos Azeredo alcança um dos objetivos da poesia
textos, da tensão entre utilidade e poesia, e do concreta ao ligar texto e movimento. Velocidade
modo de vincular práticas diversas (design, apresenta uma estrutura dinâmica que se
urbanismo, poesia, pintura). configura como uma quebra brutal da estrutura
do verso. Segundo Aguilar, poderíamos ler esse
poema como uma exposição do moderno
signo como nó material das relações. Visto a microrroteiros, também abrem um possível
lógica do ideograma, a diagramação do texto espaço de diálogo e hibridação da cena que está
pode, muitas vezes, ser traduzida como a sendo lida com outras cenas e materialidades
mensagem do próprio texto. (Fig. 9) presentes no momento e/ou com imagens
mentais, subjetividades, memórias dos(as)
Além disso, nos microrroteiros, essa noção leitores(a), favorecendo o fomento de trânsitos
articulada entre os signos fragmentados é entre um imaginário e outro. Como lembra o
também, em parte, sugerida por meio da prática urbanista Kevin Lynch,50 a nossa percepção da
de escrita de todas as palavras em letra cidade não é íntegra, mas bastante parcial,
minúscula assim como a recorrência de fragmentária, envolvida em outras referências
ausência de ponto final no término dos textos. que podem ser construídas e desconstruídas
Com essas escolhas gráficas, Laura acaba conforme nossas vivências e experiências.
relativizando as tradicionais demarcações de Além dos recursos visuais apresentados, Laura
início e fim de produções textuais, Guimarães também compõe graficamente
problematizando a organização linear e alguns de seus microrroteiros por meio da
hierárquica da informação. junção de diversas páginas coloridas,
geralmente de formato A4. Pelo uso de cores
A intencionalidade do uso de palavras em letra distintas, a artista faz arranjos tipográficos que,
minúscula fica explícita, por exemplo, na além de sugerirem uma leitura da esquerda para
fotografia das colagens que Laura Guimarães fez a direita, também podem sugerir uma leitura
no evento Virada Feminista, ocorrido em por quadros. Com a construção desses textos em
meados de 2015. Na descrição da foto, ela recortes retangulares, vários microrroteiros
escreve: “minha primeira Maiúscula. Sobre um funcionam em um mesmo microrroteiro, como
mulherão que conhecemos no Pari durante o um jogo de quebra-cabeça de variadas ordens e
trabalho com a Casa Latina/Casa Rodante”. sentidos de leitura. (Fig. 11)
Nessa ocasião, o uso que a artista faz da letra
maiúscula não demarca o início de uma frase,
mas codifica tecnicamente um posicionamento
político em relação ao empoderamento do
gênero feminino. (Fig. 10)
Considerações possíveis
Notas