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Planos privados de saúde:

ARTIGO ARTICLE
luzes e sombras no debate setorial dos anos 90

Private health plans:


light and shadow in the 1990s health sector debate

Ligia Bahia 1

Abstract This paper surveys public-private Resumo Este trabalho examina interfaces pú-
interfaces within the health insurance market blica-privadas do mercado de planos e segu-
in Brazil, seeking to question the relationships ros no Brasil, procurando questionar as rela-
of autonomy and dependence between the sup- ções de autonomia e dependência das empre-
plementary health care enterprises and SUS, sas de assistência médica suplementar com o
as well as some aspects conditioning govern- SUS e alguns dos pressupostos que orientam o
ment regulation. The analysis of this market processo de regulação governamental. A análi-
is referenced on the related literature and on se desse mercado se apóia em referenciais ex-
information provided by official sources, con- traídos da literatura e sobre informações pro-
sulting businesses, health plans and insurances venientes de fontes oficiais, empresas de con-
enterprises and their owners’ accounts. One sultoria, dados de empresas de planos e segu-
suggests the need for broadening the agenda ros e depoimentos de seus dirigentes. Sugere-
on the public-private mosaic structuring the se a necessidade de ampliar a agenda de deba-
Brazilian health system. tes e pesquisas sobre o mosaico público-privado
Key words Private health plans and insur- que estrutura o sistema de saúde brasileiro.
ance, Public-private relationships, Government Palavras-chave Planos e seguros privados de
regulation saúde, Relações entre público e privado, Regu-
lação governamental

1 Núcleo de Estudos de
Saúde Coletiva, Faculdade
de Medicina, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Av. Brigadeiro Trompowsky
s/no, Hospital Universitário,
Ilha do Fundão, 21941-000,
Rio de Janeiro RJ.
ligiabahia@uol.com.br
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Bahia, L.

Introdução (improváveis) do consumo de tecnologias so-


fisticadas, por vezes, albergadas em estabeleci-
Dois enunciados, articulados entre si, explicam mentos públicos. Um dos principais eixos do
usualmente a expansão dos planos privados de debate e da legislação elaborada para regula-
saúde no Brasil. Em uma primeira instância in- mentar o mercado de planos e seguros-saúde
suficiências do SUS são associadas à expansão repousa sobre a idéia de que as ampliações de
da assistência médica suplementar evocando os cobertura “liberam” o SUS do atendimento de
avanços das políticas de corte neoliberal. Essa clientes da assistência médica suplementar.
equação, por sua vez, remete questões tanto às Estudos recentes e mais detalhados sobre os
proposições reformistas universalistas quanto planos privados de saúde se contrapõem espe-
às políticas assistenciais seletivas. Por um lado, cificamente à noção da separação entre merca-
o crescimento das alternativas particulares, do e Estado, ao explorarem outros ângulos da
corporativas e meritocráticas desafia a constru- assistência médica suplementar. Cohn (1998) e
ção de um sistema de proteção social universal Dain (1999) cunharam as expressões “mercado
e redistributivo, por outro, evidencia perspecti- artificialmente expandido” e “desmercadoriza-
vas para a regulação de uma segmentação já ção do mercado”, para sublinhar a estrutural e
consolidada. extensa interface público-privado dos subsí-
Para determinados autores esses esquemas dios governamentais envolvidos com o finan-
assistenciais privados evidenciam os padrões ciamento dos planos privados de saúde.
híbridos das políticas sociais no Brasil e não Todavia restam importantes lacunas para a
expressam meras relações de soma e diminui- reflexão sobre as inter-relações SUS-planos pri-
ção entre partes autônomas. Contribuições co- vados de saúde, entre as quais uma problemati-
mo a de Santos (1987) sobre a cidadania regu- zação sobre a diferença da natureza dos riscos
lada, e mais recentemente de Favaret (1990) a cobertos e redes assistenciais voltadas às clien-
respeito da universalização excludente, de Via- telas com e sem vínculos com as empresas da
na et al. (1999) sugerindo uma americanização assistência médica suplementar. Nesse sentido,
perversa do sistema de proteção social brasilei- este trabalho procura questionar as relações de
ro, até o conceito de cidadania invertida for- autonomia e dependência das empresas de pla-
mulado por Fleury-Teixeira (1994) desautori- nos de saúde com o SUS e conseqüentemente
zam a subscrição de modelos explicativos mui- alguns dos pressupostos que orientaram o pro-
to simplificados. cesso de regulação governamental da assistên-
Contudo, hipóteses considerando apenas o cia médica suplementar.
antagonismo entre o SUS e os planos privados Para tanto se recorre a reflexões como as de
de saúde, como determinante do mosaico polí- Esping-Andersen (1999) sobre a importância
tico-institucional do sistema de saúde brasilei- do poder de mobilização política e ampliação
ro, ainda orientam parte dos discursos e das da esfera pública para a “desindividualização” e
ações direcionadas a regular as relações públi- “desfamiliarização” da carga de riscos. Um ris-
co-privado na saúde. A idéia de que um SUS co considerado individual pode se transformar
“completo” seja inversamente proporcional à em social e vice-versa. Os distintos modelos de
magnitude dos clientes de planos privados e a proteção social resultam de diferentes compo-
admissão de uma complementaridade entre am- sições da gestão dos riscos sociais entre Estado,
bos, restrita a uma parte da atenção de alta com- mercado e famílias. A institucionalização dos
plexidade, é inspirada por uma avaliação da riscos, especialmente os que envolvem pessoas,
pior qualidade dos serviços públicos por refe- ainda quando gerida por agentes privados, é re-
rência àqueles regidos pela lógica do mercado. vestida, obrigatoriamente, por um envoltório
Muitos supõem que a existência de dois sis- social.
temas de saúde é uma realidade tangível. Ex- Os seguros sociais, impregnados por um
pressões, como “só fica no SUS quem não tem caráter mutual/sindical, são distintos daqueles
recursos para comprar um plano” ou mais ela- estabelecidos entre seguradoras e segurados in-
boradas “se quem pode pagar tem plano de dividualmente. Os primeiros emergem da tes-
saúde dá para o SUS cuidar melhor dos pobres”, situra de relações verticais que desvelam con-
denotam uma clivagem praticamente intrans- flitos de interesses. Os seguros individuais per-
ponível entre ambas redes assistenciais. Apa- manecem encobertos por relações nas quais se
rentemente, entre esses dois mundos a única trocam equivalentes baseadas na livre declara-
conexão se estabelece diante de necessidades ção de vontades do direito privado.
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Portanto, os planos privados de saúde re- Funcionários do Banco do Brasil (Cassi) e a as-
presentam precipuamente uma alternativa de sistência patronal para os servidores do Insti-
transferência de riscos para instituições priva- tuto de Aposentadorias e Pensões dos Indus-
das e não somente uma opção individual/fami- triários (atual Geap) e mais tarde a inclusão da
liar de consumo. Ou, em outros termos, um assistência médico-hospitalar aos benefícios
processo de “externalização” dos custos sociais oferecidos aos empregados das recém-criadas
consubstanciado em instituições, regras e nor- empresas estatais; 2) no setor privado: os siste-
mas de funcionamento, mediado necessaria- mas assistenciais privados que acompanharam
mente por unidades coletivas e legitimado por a instalação da indústria automobilística, par-
políticas públicas sejam estas de regulamenta- ticularmente das montadoras estrangeiras. Uma
ção ou de renúncia à intervenção. terceira alternativa, em torno da estruturação
Assim, o fio condutor do presente trabalho de sistemas assistenciais destinada exclusiva-
é a conformação do mercado de planos de saú- mente aos funcionários estaduais, não cobertos
de através de movimentos de reorganização da pela Previdência Social, surgiu a partir dos anos
demanda e oferta. Mais especificamente, se exa- 50 configurando a face civil dos serviços de saú-
mina a hipótese da adequação de uma mesma de exclusivamente destinados a servidores pú-
base de provedores de serviços à segmentação blicos com regimes próprios de previdência.
da demanda. Sugere-se que, na prática, uma Esses sistemas particulares possuíam servi-
parte considerável dos mesmos prestadores de ços próprios e/ou adotavam o reembolso de
serviços atenda mais ou menos intensamente despesas médico-hospitalares contraídas por
os clientes financiados pelo SUS e se reagru- seus empregados com provedores de serviços
pem em torno das demandas estratificadas dos autônomos. Os empregados eram atendidos no
planos de saúde. Uma mesma base física de re- interior das empresas pelos serviços médicos
cursos gera inúmeros subsistemas diferencia- das fábricas, em ambulatórios médicos das cai-
dos em função de um gradiente de prestigio xas de assistência e por provedores privados
dos profissionais, hospitais e laboratórios. pagos diretamente pelo cliente, cuja despesa
Esse ponto de partida concorre com a idéia era objeto de reembolso posterior. Os serviços
da existência de uma única linha de demarca- dos Institutos de Aposentadorias e Pensões da
ção no sistema de saúde brasileiro e admite dú- Previdência Social e a rede pública estadual e
vidas sobre algumas das diretrizes da regula- municipal eram utilizados mais ou menos in-
mentação governamental sobre a assistência tensamente em razão da maior/menor abran-
suplementar. Como se movem os provedores de gência de cobertura dos riscos cobertos pelos
serviços em torno das opções de comercializa- esquemas assistenciais das empresas emprega-
ção de planos de saúde e do financiamento do doras. Pode se dizer, de maneira muito simpli-
SUS? Como se organizam submercados diante ficada, que a organização empresarial dos pres-
das possibilidades de remuneração dos diferen- tadores de serviços, em detrimento da prática
tes tipos de planos moldados à feição dos estra- médica liberal e da autonomia de cada estabe-
tos sócio-ocupacionais? Qual o impacto da le- lecimento hospitalar, alterou substantivamente
gislação que regulamenta a operação dos pla- as relações de compra e venda de serviços de
nos de saúde sobre a configuração desses sub- saúde.
sistemas e de seus variados padrões de comple- A partir de meados da década de 1960 as
mentaridade com o SUS? relações entre financiadores e provedores de
serviços foram substancialmente modificadas.
Os denominados convênios médicos entre as
Dimensões do mercado empresas empregadoras com empresas médi-
de planos de saúde cas (cooperativas médicas e empresas de medi-
cina de grupo), mediados pela Previdência So-
Alguns dos atuais esquemas assistenciais cole- cial, estimularam decisivamente o empresaria-
tivos privados, baseados na captação de recur- mento da medicina. Pode se dizer, de maneira
sos de empresas empregadoras e seus emprega- muito simplificada, que da organização empre-
dos destinados ao financiamento de uma assis- sarial dos prestadores de serviços, em detrimen-
tência médico-hospitalar adicional àquela or- to da prática médica liberal e da autonomia de
ganizada pelo Estado, foram criados nos anos cada estabelecimento hospitalar, emergiram as
40 e 50. Exemplos disso são: 1) no setor públi- empresas médicas contando inicialmente com
co: a implantação da Caixa de Assistência aos suas redes próprias (Cordeiro, 1984).
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As medicinas de grupo se organizaram em Um mesmo hospital poderia destinar aco-


torno de proprietários/acionistas de hospitais e modações diferenciadas para trabalhadores ur-
as Unimed’s surgiram como uma alternativa banos e rurais e ainda quartos particulares e o
heterodoxa, para preservar a prática nos con- acompanhamento de médicos escolhidos pelos
sultórios médicos através da constituição de clientes para os que pagassem “por fora” ou es-
cooperativas de trabalho. Logo essas empresas, tivessem cobertos por esquemas assistenciais
especializadas na comercialização de planos de mais pródigos. O balizador dos valores de re-
saúde, especialmente as medicinas de grupo, muneração dos procedimentos médico-hospi-
ampliaram suas redes de serviços. Essa expan- talares era o valor da unidade de serviço (US)
são decorreu tanto da imposição das normas do INPS. A normatização do seguro-saúde
da Previdência Social sobre coberturas míni- através da resolução 11 do Conselho Nacional
mas, incluindo atendimento ambulatorial em de Seguros em 1976 legitimava a prática: o
determinadas especialidades, quanto pela ne- reembolso das despesas assistenciais deveria ser
cessidade de competir com as Unimed’s que calculado em função “do valor da unidade de
disponibilizavam todos os seus associados para serviço do INPS multiplicado pelo nível de co-
o atendimento dos convênios. bertura”.
Portanto as empresas médicas organizaram No início dos anos 80, a quantidade de
suas redes assistenciais próprias, mas, à seme- clientes de planos de saúde, registrada pela
lhança, ou até pela presença de um financiador Associação Brasileira de Medicina de Grupo
de serviços muito mais poderoso – a Previdên- (Abramge) e pela Federação das Unimed’s (cer-
cia Social – e diante das resistências à perda de ca 15 milhões) era bastante considerável (não
autonomia dos médicos, tornaram-se compra- estão contabilizados os clientes de planos pró-
doras de serviços, através dos credenciamentos prios), sinalizando a persistência e consolida-
de profissionais, laboratórios e hospitais. As ção das empresas de planos de saúde, como al-
Unimed´s complementaram suas redes através ternativas assistenciais para os trabalhadores
do credenciamento de hospitais e laboratórios especializados da região sudeste. Porém, nessa
e as medicinas de grupo por meio da compra época, a visibilidade do mercado de planos de
de consultas médicas realizadas pelos profissio- saúde não correspondia a sua magnitude. As
nais em seus próprios consultórios. razões para esse ocultamento talvez possam ser
Nessa época, muitas empresas empregado- atribuídas à caracterização dos planos empre-
ras, especialmente, as estatais e multinacionais sariais como benefícios, concedidos pelo em-
de grande porte, não “externalizaram” seus sis- pregador, e não como direitos assistenciais e
temas assistenciais, isto é, preservaram seus possivelmente por uma menor dependência
planos próprios (Giffoni, 1981). Mas este sub- dos médicos e hospitais particulares do finan-
segmento não comercial de planos de saúde ciamento da assistência suplementar.
também optou pelo credenciamento de servi- A revelação da existência de um grande
ços, como principal estratégia de organização mercado de planos de saúde, no final da déca-
de redes assistenciais, passando a representar da de 1980, ocorreu simultaneamente a uma
uma alternativa adicional de remuneração aos importante intensificação da comercialização
provedores de serviços. de planos individuais, a decisiva entrada de
Pode-se dizer que a marca das décadas de grandes seguradoras no ramo saúde, adesão de
1960 e 1970 é a constituição de redes de servi- novos estratos de trabalhadores, particular-
ços privados contratadas pelo Estado e aquelas mente, funcionários públicos da administração
em torno do mercado de compradores insti- direta, autarquias e fundações à assistência mé-
tucionais privados, mas não necessariamente dica supletiva e uma inequívoca vinculação da
através de bases físicas e de remuneração total- assistência privada ao financiamento da assis-
mente diferenciadas. Assinale-se, também, a vi- tência médica suplementar.
gência de regimes diferenciados de atendimen- Esse processo de expansão acentuou a or-
to, segundo valores maiores ou menores de re- ganização de sub-redes e atingiu o ápice da frag-
muneração dos provedores de serviços, tanto mentação quando um mesmo hospital além de
no âmbito da Previdência Social que a par da estar conveniado com o SUS e com numerosas
unificação dos institutos mantinha mecanis- empresas de assistência suplementar tornou-se
mos de contratação e financiamento específi- ainda empresa de plano de saúde. Na esteira do
cos para os trabalhadores rurais, quanto nos plano real, a perspectiva do aumento do poder
esquemas assistenciais alternativos. de compra de um expressivo contingente po-
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pulacional e a informalização do mercado de nos coletivos e o restante aos contratos indivi-
trabalho estimularam a comercialização de pla- duais. Por isso as variáveis que apreendam ca-
nos individuais por hospitais filantrópicos e racterísticas coletivas, como o tipo de vínculo
empresas médicas regionalizadas. Tais planos do trabalhador com os estabelecimentos em-
permitem o acesso a um grupo bastante restri- presariais, o ramo econômico, porte e rotativi-
to de serviços ou a um único estabelecimento dade da mão de obra da empresa empregadora,
hospitalar geralmente localizados em periferias estão mais associadas com o acesso a planos de
das grandes cidades ou em municípios de mé- saúde do que atributos individuais.
dio e pequeno porte. Aos planos individuais, resultantes do acio-
namento de estratégias de proteção familiar,
estão vinculados segmentos de trabalhadores
Coberturas autônomos, trabalhadores do mercado formal,
aposentados, donas de casa e crianças que não
Estima-se que o mercado de planos de saúde acessam coberturas nem como titulares e nem
compreenda cerca de 32 milhões de clientes, is- como dependentes dos planos das empresas
to exclui os clientes de esquemas particulares empregadoras/entidades sindicais. Identificam-
administrados diretamente pelas instituições se pelo menos dois subgrupos de clientes de
públicas como os institutos de previdência es- planos individuais. Os vinculados aos planos
taduais e municipais e pelas forças armadas. mais caros que são adquiridos por trabalhado-
Em 1998 foram contabilizadas pela Pesquisa res que se encontram no setor informal, mas
Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad/ que ocupam vagas “externalizadas” pelas gran-
IBGE 9.673.993 pessoas cobertas por planos des empresas através da terceirização, sub-con-
categorizados como “instituição de assistência tratação de mão de obra especializada. O se-
ao servidor público” e 29.003.607 de planos de- gundo subgrupo é integrado por trabalhadores
nominados “empresas privadas”. Contudo, essa não especializados que adquirem planos mais
classificação, pressupondo uma dicotomia, en- baratos.
tre os esquemas assistenciais de servidores pú- Como é sabido, os esquemas de proteção
blicos civis e militares da administração direta assistencial das empresas são mais efetivos do
e aqueles voltados aos empregados de empre- que os familiares. Martins e Dombrowski (2000)
sas estatais, privadas e compradores indivi- baseados na Pesquisa de Condições de Vida,
duais, exprime apenas uma localização inicial realizada pela Fundação Seade, no município
das clientelas. Na realidade brasileira, parte dos de São Paulo, em 1998, mostram que entre as
servidores públicos da administração direta es- famílias paulistas com pelo menos um mem-
tá vinculada ao segmento comercial do merca- bro no mercado informal de trabalho 50,2%
do de planos e seguros-saúde e, por outro lado, não possuíam plano de saúde enquanto 66,7%
empresas privadas organizam planos próprios das que não contavam com ninguém no setor
sem fins lucrativos. Ou seja, não há uma rela- informal estavam cobertas.
ção unívoca entre a natureza jurídico-institu- Estão disponíveis para o total de clientes de
cional da empresa empregadora e a das empre- planos de saúde cerca de 80% dos médicos com
sas que comercializam/ofertam planos/segu- atividade em consultório particular e mais 50%
ros-saúde. Portanto, parte das pessoas classifi- do total de hospitais Essa profunda discrepân-
cadas pela Pnad como clientes de planos de ser- cia entre as dimensões da oferta e demanda é
vidor público integra o mercado privado de inerente à lógica multiconvenial dos prestado-
planos de saúde. res de serviços e atende um modelo singular de
Grande parte dos planos de saúde origina- estratificação dos planos de saúde. As empresas
se diretamente da inserção dos trabalhadores de assistência suplementar ofertam/comerciali-
em empresas que mantenham a assistência mé- zam planos bastante diferenciados quanto à
dico-hospitalar como um dos itens de suas ces- composição de provedores de serviços e homo-
tas de benefícios ou adquiridos individualmen- gêneos em relação aos procedimentos cobertos.
te através dos orçamentos familiares. Segundo Em outros termos, as coberturas e exclusões são,
os registros, ainda incompletos, da Agência Na- quase sempre, nominalmente semelhantes entre
cional de Saúde Suplementar e de entidades de os diversos tipos de planos de uma empresa, o
representação das operadoras como a Associa- que varia é a possibilidade de acesso às inúme-
ção Brasileira de Medicina de Grupo, entre ras sub-redes de serviços que se organizam para
75% a 80% dos clientes estão vinculados a pla- atender subsegmentos de clientes de planos de
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saúde coletivos e individuais. Segue-se uma ções hospitalares (exclui honorários médicos),
definição esquemática dos tipos de planos. considerando estabelecimentos, no Rio de Ja-
Estes planos obedecem, em geral, regras neiro, com o mesmo perfil assistencial variam,
claramente identificáveis associadas a uma hie- entre CR$7.700,00 e CR$1.150,00 (informa-
rarquização das demandas segundo status so- ções fornecidas à autora por hospitais privados
cioeconômico. Os planos diferem quanto à pos- localizados no Rio de Janeiro). Segundo Luís
sibilidade de escolha do médico e acesso/tipo Fernando Figueiredo, da CRC Consultoria, o
de acomodações em hospitais. Identificam-se valor das diárias (exclui procedimentos e me-
três níveis de planos/seguros: 1) os voltados pa- dicamentos) em hospitais paulistas de linha A,
ra o atendimento dos executivos e clientes in- como o Oswaldo Cruz, é US$300; em um hos-
dividuais com alto poder aquisitivo, que asso- pital B, como o Iguatemi, US$150; e US$80 no
ciam um valor de reembolso compatível com o Alvorada, classificado como C (Bahia, 1999).
acesso a consultas médicas realizadas por pro- A estratificação das demandas em torno dos
fissionais de prestígio – que não estão creden- planos de saúde molda sub-redes limitadas ao
ciados pelas empresas de planos e seguros – atendimento de clientes de um determinado
com a utilização de quartos particulares em status sócio-ocupacional. Tal modelo impede o
hospitais privados de excelência, primeira li- trânsito até de clientes de planos de saúde entre
nha; 2) aqueles destinados aos níveis gerenciais as sub-redes de uma mesma operadora e requer
intermediários que permitem a internação em um intenso e intrincado controle administrati-
quartos particulares de hospitais de “segunda vo da parte dos prestadores de serviços e das
linha” e não prevêem reembolso ou o desesti- operadoras. Por exemplo: os clientes de um pla-
mulam, incitando o atendimento ambulatorial no especial podem não estar cobertos para in-
através da rede credenciada ou própria da ope- ternação em um centro de tratamento intensivo
radora de planos/seguros; 3) os que abrangem de um hospital, o qual está credenciado para in-
o maior contingente de clientes e restringem a ternações clínicas; será negada a internação de
cobertura a uma rede credenciada específica, um paciente vinculado a um plano básico em
centros médicos ambulatoriais das operadoras um hospital credenciado que não tenha vaga na
com acomodações em enfermarias de hospitais enfermaria, ainda que o mesmo disponha de
“mais simples” ou a um único provedor. leitos ociosos em quartos particulares.
Portanto, demanda e oferta conformam, Na prática, poucas cidades brasileiras pos-
teoricamente, duas pirâmides opostas entre si. suem os três tipos de coberturas e suas corres-
A dos clientes tem como base mais que 50% de pondentes sub-redes. Em outros municípios,
beneficiários de planos básicos e no topo me- com clientes de planos de saúde, as coberturas
nos de 10% dos vinculados aos planos mais disponíveis correspondem aos planos básico e
abrangentes. A dos provedores está assentada especial e os valores de remuneração dos médi-
em uma grande quantidade de serviços dispo- cos são duas vezes maiores para os pacientes
níveis para uma parcela reduzida de clientes e internados em quartos particulares do que os
tem como vértice um menor número de médi- destinados aos hospitalizados em enfermarias.
cos, hospitais e laboratórios para os beneficiá- Além disso, determinadas empresas emprega-
rios dos planos básicos. A conjugação das ca- doras de grande porte, como algumas estatais e
racterísticas da oferta às da demanda das em- multinacionais, adotam como política de re-
presas de planos e seguros-saúde produz pau- cursos um único plano de saúde, em geral tipo
tas de consumo de serviços bastante diferencia- especial ou executivo, para todos os níveis hie-
das bem como um uso complementar dos servi- rárquicos.
ços sob gestão do SUS mais ou menos intenso. Essas coberturas são propiciadas direta-
A “excelência” ou a “simplicidade” dos pro- mente pela empresa empregadora ou por em-
vedores de serviços se traduz através de valores presas especializadas na comercialização de
de remuneração extremamente diferenciados. planos de saúde. Tais alternativas representam
Os tetos de reembolso de consultas médicas cal- respectivamente opções de retenção/transfe-
culados como múltiplos da tabela da Associa- rência dos riscos de despesas médicas-hospita-
ção Médica Brasileira e os honorários médicos lares. Os planos próprios das empresas empre-
correspondentes à internação de um paciente gadoras, denominados autogestão, constituem
de plano VIP podem ser 6 a 8 vezes maiores do o subsegmento não comercial do mercado de
que o previsto para o de um plano básico. Da planos e seguros, enquanto que a transferência
mesma forma os valores médios das interna- dos riscos assistenciais para empresas médicas
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(cooperativas de trabalho médico – Unimed’s, mento para problemas mentais. Suas entidades
empresas de medicina de grupo e seguradoras), de representação (Comitê de Integração de En-
contratada por pessoas jurídicas ou físicas, tidades Fechadas de Assistência à Saúde – Cie-
conforma o subsegmento comercial da assis- fas, e Associação Brasileira de Serviços Assis-
tência médica suplementar. tenciais Próprios de Empresas – Abraspe), cujo
propósito precípuo é fortalecer o poder de bar-
ganha de seus associados na negociação de va-
Modalidades empresariais de planos lores de remuneração de procedimentos médi-
e seguros-saúde cos e hospitalares, defenderam, ao lado dos téc-
nicos do Ministério da Fazenda e do Ministério
Entre as características dos empreendimentos da Saúde, as proposições de ampliação de co-
tipicamente mutualistas podem ser menciona- bertura, a abertura do segmento ao capital es-
das: a retenção do risco, a homogeneidade das trangeiro, o ressarcimento ao SUS e a não apli-
coberturas, mecanismos de financiamento mais cabilidade às empresas com planos próprios de
solidários para o pagamento dos prêmios e co- regras para comprovação de solvência e reser-
berturas mais amplas. A utilização da lógica vas financeiras.
atuarial para o cálculo das prestações dos pla- O subsegmento comercial está integrado
nos e uma seleção de riscos mais rigorosa por por aproximadamente 1.200 empresas – 800
sua vez são atributos inerentes ao subsegmento empresas de medicina de grupo, 360 coopera-
securitário. Sob a ótica dos técnicos de gestão tivas médicas e 30 seguradoras – e responde
de riscos, a autogestão é recomendada apenas pela cobertura de 2/3 do total de clientes do
para estabelecimentos empresariais de grande mercado de planos de saúde. As medicinas de
porte. De acordo com a lei dos grandes núme- grupo, constituídas inicialmente por grupos
ros, as variações no risco de despesas assisten- médicos aliados ao empresariado paulista, são
ciais são menos intensas para um determinado atualmente responsáveis por quase 40% dos
patamar de pessoas cobertas. beneficiários da assistência médica supletiva.
Contudo, as estratégias de determinados As Unimed’s possuem 25% dos clientes de pla-
segmentos sócio-ocupacionais, especialmente nos de saúde e se organizaram, a partir da ini-
do setor público, para obtenção de acesso a ciativa de médicos, em oposição às ameaças de
uma assistência diferenciada subvertem o re- perda da autonomia da prática médica e mer-
ceituário econômico-atuarial. Entre as 300 em- cantilização da medicina, que optaram por se
presas e entidades com planos de autogestão associar a entidades mais afeitas a preservação
que somam aproximadamente 8 milhões de dos cânones liberais. E às seguradoras, vincula-
beneficiários (25% do total) situam-se desde das ou não a bancos, que representam a moda-
grandes indústrias de transformação, como a lidade empresarial mais recente no mercado de
Volkswagen, até entidades sindicais, com um assistência médica suplementar, competem os
número relativamente pequeno de associados planos de 10% do contingente de pessoas co-
que representam categorias com alta capacida- bertas através de planos privados de saúde (Cor-
de de vocalização de demandas, como os audi- deiro, 1984; Bahia et al., 1999 e Abramge, 2000).
tores fiscais. Aproximadamente metade dos Todas as operadoras de grande porte do
planos de autogestão é administrada por insti- segmento comercial disponibilizam ao merca-
tuições sindicais ou por entidades jurídicas pa- do planos coletivos e individuais de tipo execu-
ralelas às empresas empregadoras, como as cai- tivo, intermediário e básico. Contudo apenas
xas de assistência, caixas de previdência e enti- três medicinas de grupo, três cooperativas e
dades fechadas de previdência, integradas por quatro seguradoras possuem acima de 300.000
representantes dos trabalhadores e da parte pa- clientes. A grande maioria das medicinas de gru-
tronal. As demais empresas com planos pró- po e Unimed’s é de pequeno porte e propicia
prios os administram através de seus departa- coberturas contratualmente bastante homogê-
mentos de benefícios/recursos humanos (Cie- neas através de redes de serviços bastante dife-
fas, 1999; Bahia et al., 1999 e Abramge, 2000). renciadas e localizadas. Mais que 60% dos pla-
Os planos de autogestão organizam suas re- nos de saúde registrados pela ANS restringem
des de serviços, fundamentalmente, mediante as coberturas para um único município (11%)
o credenciamento de provedores e provêm, em ou a um grupo de cidades vizinhas (51%).
geral, coberturas para muitos dos procedimen- A adoção do credenciamento dos mesmos
tos de alto custo e, em alguns casos, atendi- provedores de serviços como estratégia para a
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organização das sub-redes, para cada tipo de butários e planos coletivos empresariais contri-
plano, tem como conseqüência uma homoge- butários), exclusivamente pelos empregados
neização dos produtos que é determinada, na sob uma forma de contratação coletiva (planos
prática, pelos provedores de serviços e não pe- coletivos por adesão) ou ainda contratados in-
las operadoras. Um plano executivo de uma dividualmente (planos individuais). A maior
medicina de grupo é igual ao de uma segura- parte das despesas dos prêmios, mesmo no ca-
dora, de uma cooperativa médica e de uma em- so dos planos contributários, recai sobre o em-
presa/entidade com plano próprio. Como a de- pregador que tem a prerrogativa de considerá-
finição do produto depende estritamente da las como despesas operacionais e deduzi-las pa-
presença/ausência dos provedores de serviços ra fins do cálculo do imposto de renda. Da mes-
na lista de credenciados das operadoras, os ma forma as despesas com planos de saúde de
considerados excelentes adquirem alto poder pessoas físicas podem ser integralmente abati-
de barganha por serem requisitados para com- das dos tributos devidos.
por a sub-rede de serviços de todas as operado- A maior parte dos prêmios arrecadados des-
ras de grande porte. O mesmo ocorre no senti- tina-se à remuneração do consumo de procedi-
do contrário para os serviços qualificados co- mentos médicos-hospitalares e uma pequena
mo básicos. Estes instrumentos de auto-regula- proporção corresponde a despesas administra-
ção introduzem fatores externos às meras rela- tivas, de marketing e de comercialização das
ções quantitativas entre oferta e demanda e operadoras. Não se dispõem de estimativas so-
certamente influenciam os valores dos prêmios bre o impacto do financiamento das operado-
e as formas de financiamento. ras de planos de saúde sobre a remuneração de
médicos, hospitais e unidades de diagnóstico e
terapia. Porém divulgam-se estimativas suge-
Prêmios e financiamento rindo que a remuneração de internações de pa-
cientes financiados pelos planos é 2, 4, 6 vezes
As empresas da assistência supletiva em con- maior do que as financiadas pelo SUS. Segun-
junto, segundo informações da Associação Bra- do Jatene (Folha de S. Paulo, 18/8/ 2000), 58,7%
sileira de Medicina de Grupo – Abramge e Cie- do orçamento do Incor, que atende 85% de pa-
fas, declararam um faturamento de mais de cientes do SUS, deriva de fontes públicas (esta-
R$20 bilhões em 1999, o que significa 625 reais do e governo federal) e 41,4% dos financiado-
per capita por ano, considerando-se 32 milhões res privados (empresas de assistência suple-
de clientes. Isso significa que os valores dos mentar e clientes particulares).
prêmios no Brasil são pelo menos 10 vezes me-
nores do que nos EUA (HIAA, 1999).
Através do faturamento das operadoras de A regulamentação da assistência
planos de saúde estima-se que as despesas men- médica suplementar
sais per capita destinadas ao pagamento de prê-
mios se situem em torno de CR$50,00. Esse va- Em termos gerais, a lei 9.656 de 1998 é avaliada
lor é semelhante ao encontrado por Teixeira et como um importante instrumento para coibir
al. (1999), em um estudo sobre os planos cole- os abusos das operadoras de planos de saúde
tivos em empresas de grande porte no Rio de contra os consumidores. Poucos ousariam de-
Janeiro e sugere, se as informações sobre o fa- fender abertamente a não intervenção estatal
turamento forem fidedignas, a absoluta predo- sobre as operadoras de planos de saúde. Os con-
minância de planos de nível básico no mercado flitos só se manifestam quando se discute qual
de assistência médica supletiva. Já que os prê- é o objeto e a intensidade da regulamentação.
mios correspondentes aos planos de tipo espe- Uma linha de argumentação postula que a
cial e executivo são bem mais elevados. Segun- regulamentação visa corrigir/atenuar as falhas
do o diretor médico da Amil, os clientes de pla- do mercado: assimetria de informações entre
nos de saúde estão concentrados nos segmen- clientes, operadoras e provedores de serviços; a
tos de menor poder aquisitivo: 30% no D e E, seleção de riscos por parte das empresas de pla-
41% no C e somente 29% no A (anotações pes- nos que preferem propiciar cobertura para os
soais, 2001). bons riscos e por parte de clientes que tendem
Os prêmios podem ser financiados integral- a adquirir seguros/planos em razão de já apre-
mente ou em parte pelas empresas empregado- sentarem alguma manifestação do problema
ras (planos coletivos empresariais não contri- (seleção adversa) e consumirem mais serviços
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de saúde em função das coberturas dos planos de cobertura e as ameaças de quebra das ope-
(risco moral – moral hazard). Dessa maneira os radoras de menor porte face às exigências de
temas que se tornaram objeto da regulamenta- demonstração de solvência. O que se discutia
ção, como a ampliação de cobertura e o ressar- era o acerto da dose da regulação governamen-
cimento ao SUS, o registro das operadoras, o tal, o peso da mão do Estado sobre o mercado.
acompanhamento de preços pelo governo, obri- Esses conflitos foram reinterpretados pelos mi-
gatoriedade da comprovação de solvência, re- nistros da Fazenda e da Saúde, que se tornaram
servas, técnicas, a permissão para a atuação de defensores respectivamente: de uma regulação
empresas e capital estrangeiro e a proibição da governamental de menor intensidade institu-
unimilitância podem ser compreendidos res- cionalizada através da Susep e da ação mais
pectivamente como vetores de correção da se- efetiva do Estado a ser protagonizada pelo Mi-
leção dos bons riscos pelas operadoras e de pre- nistério da Saúde.
servação da competitividade do mercado. As sombras ocultaram as características
A versão mais vulgar ou abreviada da inter- menos divulgadas da assistência médica suple-
venção do Estado na assistência médica suple- mentar: a estratificação interna, as fronteiras
mentar para corrigir o mercado é defendida ou entre subsistemas assistenciais e seus manda-
atacada por aqueles que julgam que seu propó- mentos ético-financeiros, incluindo a inequí-
sito final é abrir caminho para as empresas es- voca face social do mercado de planos privados
trangeiras. O preceito da abertura para a parti- de saúde. Preservaram ainda as influentes coa-
cipação do capital internacional passa a ser en- lizões de interesses que suportam tais regras de
carado como um meio para revitalizar a opera- auto-regulamentação e, sobretudo, um proces-
ção de planos de planos de saúde ou como es- so decisório pautado pela inversão das relações
tratégia de desmonte do mercado nacional. entre o poder legislativo e executivo.
Para outros, respaldados pela ótica dos di- Assim o debate em torno da elaboração da
reitos dos consumidores e defesa da autonomia lei 9.656 teve o mérito de desvelar um elenco
médica, as políticas governamentais devem es- de abusos das operadoras contra os clientes e
tar direcionadas à garantia do acesso e qualida- remeter devidamente à esfera pública as atri-
de da assistência aos clientes dos planos. O fo- buições de regulação e controle da assistência
co é impedir as restrições ao atendimento e, intermediada pelas empresas de assistência mé-
portanto, a negação da utilização de procedi- dica suplementar. No entanto, não logrou ela-
mentos. Nesse caso, a ênfase não é o controle borar proposições efetivas para a regulação das
da seleção de riscos, que é até aceita pelos con- extensas interfaces público-privadas da gestão
sumidores, desde que incluída com clareza nos dos riscos à saúde.
contratos. A sinergia entre consumidores e mé- Uma breve avaliação dos obstáculos para
dicos decorre antes da defesa da não-interfe- implementação dos preceitos legais contribui
rência das operadoras sobre o consumo de ser- para elucidar a relativa imunidade das intrica-
viços de saúde, ou seja, da liberdade de utiliza- das regras que organizam o mercado de assis-
ção de procedimentos diagnósticos e terapêuti- tência suplementar à intervenção governa-
cos, do que de uma aliança contra a seleção e mental.
menos ainda de críticas ante a distribuição de- Destaca-se em primeiro lugar o recuo das
sigual da exposição aos riscos. hostes governistas no que se refere às amplia-
Esses posicionamentos, embora contraditó- ções de cobertura. Pressionado por grandes se-
rios, convergiram para uma agenda de debates guradoras e entidades de defesa do consumi-
motivada pela necessidade de intervir sobre as dor, o Ministério da Saúde desistiu da obriga-
relações selvagens de competição de um merca- toriedade da adaptação dos contratos antigos
do emergente e autônomo, destituído dos pac- às inclusões das coberturas previstas pela legis-
tos que estruturam a expansão da assistência lação (Medida Provisória 1908-17). As ameaças
médica suplementar. Temas como o financia- de elevação brutal dos preços dos prêmios pe-
mento dos planos de saúde, os modelos já con- rante os requerimentos de ampliação de cober-
solidados de empresariamento da assistência tura, exemplificadas para uma assistência mé-
médica suplementar e, sobretudo, seus meca- dica suplementar constituída exclusivamente
nismos de auto-regulação não foram atingidos por clientes de planos individuais tipo executi-
pelos refletores do processo de regulamentação. vo, legitimaram, na prática, o direito do consu-
Sob as luzes desenhou-se a resistência das midor de “optar” por manter-se vinculado a um
empresas médicas e seguradoras às ampliações plano mais barato, com coberturas restritas.
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Bahia, L.

Isso incidiu diretamente sobre outro pilar parte de seguradoras estrangeiras como a Cig-
da regulamentação: o ressarcimento ao SUS, na e Aetna que estavam associadas com empre-
concebido para desestimular o atendimento de sas nacionais.
clientes de planos de saúde em estabelecimen- O quinto ponto da agenda de debates sobre
tos da rede pública e privada conveniada. À a regulamentação – seu locus institucional – al-
ampliação de cobertura deveria corresponder vo de acirradas disputas interburocráticas en-
idealmente um “ressarcimento zero”. Mas a tre o Ministério da Saúde e o Ministério da Fa-
análise, embora superficial, dos obstáculos à zenda resultou na criação da criação da Agên-
implementação do ressarcimento ao SUS traz cia de Saúde Suplementar (ANS). A ANS, tal
elementos ainda mais esclarecedores sobre a como a Agência de Vigilância Sanitária e suas
imbricação dos provedores de serviços públi- congêneres, instituídas para a regular monopó-
cos e privados. A introdução de uma terceira lios estatais privatizados, possui autonomia or-
tabela para a remuneração dos procedimen- çamentária e decisória. Todas as agências regu-
tos – a Tabela Única Nacional de Equivalência ladoras se assemelham, no que diz respeito à
de Procedimentos (Tunep), concebida com va- estrutura organizacional, às dos setores de tele-
lores intermediários entre os preconizados pela comunicações, energia elétrica e petróleo. Di-
AMB e pelo SUS – provocou reações parado- ferem, contudo, em relação à natureza das
xais. Alguns médicos se recusam a registrar o ações regulatórias. As agências dos setores de
consumo de certos procedimentos, quando os comunicações e energia voltaram-se à forma-
mesmos são melhor remunerados pelo SUS, ção e diversificação dos mercados, enquanto
como despesas das operadoras. De outro lado, que as da saúde surgiram a partir da expectati-
operadoras argumentam que seus clientes op- va de constituição de mecanismos estatais de
tam espontaneamente pelo SUS e por isso esta- fiscalização e controle de preços mais potentes.
riam desobrigadas de ressarcir tais despesas. Qualquer avaliação sobre os impactos da ANS
Embora qualquer previsão sobre possíveis des- sobre o mercado de planos e seguros-saúde de-
dobramentos do ressarcimento ao SUS seja ve ser precedida por estudos mais específicos e
precipitada, em função do estágio inicial da aprofundados. No entanto, cabe adiantar inter-
operacionalização da legislação, existem indí- rogações sobre certos pressupostos que orien-
cios relativos à inocuidade de medidas eminen- taram sua constituição.
temente tecnocráticas sobre os tradicionais me- A criação da ANS, ao lado da Agência Na-
canismos de transporte de clientes entre o pú- cional de Vigilância Sanitária, a despeito dos
blico e o privado. questionamentos sobre adequação de seus mo-
Dois outros temas, mais afetos às tentativas delos regulatórios aos objetos da ação governa-
de alteração do padrão de competição entre as mental na saúde, é expressão institucional do
operadoras – a abertura do segmento ao capi- alargamento das atribuições setoriais. A mu-
tal estrangeiro e as regras econômico-financei- dança radical da imagem de um ministério
ras voltadas à comprovação de reservas e sol- combalido, pedinte de recursos, para a de pala-
vência – sinalizavam as intenções de estimular dino da defesa dos direitos do consumidor de
a reorganização do mercado através das em- planos de saúde e medicamentos se corporifica
presas de planos e seguros de maior parte, in- em novas instituições, livres dos vícios da bu-
clusive estrangeiras. Contextualizada pela mu- rocracia intervencionista tradicional. Ao mes-
dança na legislação sobre o acidente de traba- mo tempo a ANS corporifica, reverbera concei-
lho e previdência complementar e quebra do tos e acolhe iniciativas conflitantes com as di-
monopólio estatal do resseguro, a reconfigura- retrizes de universalização, eqüidade e descen-
ção empresarial do mercado de planos de saú- tralização. A incorreta, mas legitimada, expres-
de envolve promessas de estruturar sistemas de são saúde suplementar parece condensar as di-
seguridade integrados no âmbito privado, co- ficuldades para a formulação e implementação
mo um plano de saúde acoplado ao seguro de de políticas públicas para a regulação do mer-
acidente de trabalho. Por enquanto, os efeitos cado de planos de saúde.
dessas normas legais não provocaram mudan- De todo modo a escolha da ANS como lo-
ças radicais nem na origem do capital ou na cus regulatório da assistência médica suple-
natureza jurídico-institucional das operadoras mentar vem sendo poupada de críticas radi-
e nem no número das empresas de planos e se- cais. Os conflitos em relação às normas legais
guros-saúde de menor porte. Observa-se, in- gravitam em torno da intensidade e oportuni-
clusive, um movimento em direção oposta por dade das ações regulatórias. Deduz-se, portan-
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to, que a regulamentação avançou mais veloz- cessário esmiuçar e rever painel de seleção de
mente no plano político-intitucional do que na riscos utilizado pela base unificada de prove-
implementação das regras legais. dores de serviços de saúde e torná-lo mais per-
As razões de tal descompasso são atribuí- meável às demandas e necessidades dos clien-
das, quase sempre, às resistências das operado- tes do SUS e dos planos de saúde.
ras perante a legislação. Afinal de contas, ape- Por enquanto a divisão dos riscos de assis-
sar de todos concordarem em tese com a regu- tência à saúde entre Estado e mercado resulta
lamentação, as divergências entre as operado- no estabelecimento de iniqüidades superiores
ras de planos de saúde e a ANS ainda não fo- as que seriam observadas sem o aporte de re-
ram suficientemente dirimidas e se transfor- cursos da sociedade aos planos de saúde. A car-
mam em acirradas disputas judiciais. ga de riscos de despesas com saúde das famílias
Sob o ângulo de exame deste trabalho, os de clientes cobertos por planos empresariais ti-
desafios para transformar a regulação do mer- po executivo não contributário é totalmente
cado de planos em um processo voltado à me- externalizada enquanto que as despesas dos
lhoria das condições de saúde, implicam a am- clientes de planos básicos contributários, espe-
pliação da agenda de debates sobre as relações cialmente os que prevêem o co-pagamento do
entre o público e o privado na saúde. A atual consumo dos serviços, são consideráveis.
legislação não reconhece a base social do finan- Apesar disso a divisão entre sistema públi-
ciamento da assistência médica suplementar, co e privado segue baseada na idéia de clientes
bem como o mosaico público-privado estrutu- pagantes e não pagantes. Outras dimensões co-
rante do setor saúde e por isso é incapaz de redi- mo a organização e o financiamento da oferta
recionar os recursos envolvidos com o mercado de serviços dos subsistemas privados ainda não
de planos de saúde. Como adverte Viana (2000), foram suficientemente estudadas. O desenvol-
as tarefas regulatórias fundamentadas no pres- vimento de pesquisas sobre a assistência médi-
suposto um reordenamento da produção pri- ca suplementar é fundamental para o aprofun-
vada à lógica da gestão de bens públicos não damento do conhecimento sobre o sistema de
podem se descolar das políticas direcionadas ao saúde brasileiro e certamente contribuirá para
provimento e distribuição dos serviços públicos. repor os sentidos do conceito de saúde que, no
A regulação pública dos planos privados de âmbito da assistência suplementar, foi reduzi-
saúde requer a construção de novas relações de do a um rol de procedimentos médico-hospi-
compartilhamento de riscos à saúde entre Es- talares.
tado, empresas empregadoras e famílias. É ne-

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