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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


Instituto de Artes

GERALDO MAJELA BRANDÃO RIBAS

UMA VISÃO INTERPRETATIVA DAS SONATINAS PARA PIANO DE CAMARGO


GUARNIERI A PARTIR DE PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E ANALÍTICOS

UNICAMP
2017
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GERALDO MAJELA BRANDÃO RIBAS

UMA VISÃO INTERPRETATIVA DAS SONATINAS PARA PIANO DE CAMARGO


GUARNIERI A PARTIR DE PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E ANALÍTICOS

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação do Instituto de Artes
da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de
Doutor em Música, na Área de
Concentração: Música: Teoria,
Criação e Prática.

ORIENTADOR: PROF. DR. MAURÍCY MATOS MARTIN

CAMPINAS, 2017

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO


ALUNO GERALDO MAJELA BRANDÃO RIBAS E ORIENTADO PELO PROF. DR.
MAURÍCY MATOS MARTIN.
3

Agência(s) de fomento e n°(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Ribas, Geraldo Majela Brandão, 1964-


R352v Uma visão interpretativa das sonatinas para piano de Camargo Guarnieri a
partir de pressupostos históricos e analíticos / Geraldo Majela Brandão Ribas. —
Campinas, SP : [s.n.], 2017.

Orientador: Mauricy Matos Martin.


Coorientador: Alexandre Zamith Almeida.
Tese (doutorado) — Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Guarnieri, Camargo, 1907-1993. 2. Sonatas (Piano). 3. Música - Análise,


apreciação. 4. Música - Interpretação (Fraseado, dinãmica, etc.). 5. Música -
Execução - História. 6. Prática interpretativa (Música). I. Martin, Mauricy
Matos,1955-. II. Almeida, Alexandre Zamith. III. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Artes. IV. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: An interpretative view of Camargo Guarnieri's sonatas for piano
based on historical and analytical assumptions
Palavras-chave em inglês:
Guarnieri, Camargo, 1907-1993
Sonatas (Piano)
Music appreciation
Music - Interpretation (Phrasing, dynamics, etc.)
Music - Performance - History Performance practice
(Music) Área de concentração: Música: Teoria, Criação e
Prática
Titulação: Doutor em Música
Banca examinadora:
Mauricy Matos Martin [Orientador]
Fernando Crespo Corvisier
Nahim Marun Filho
Carlos Fernando Fiorini
Ângelo José Fernandes
Data de defesa: 23-02-2017
Programa de Pós-Graduação: Música
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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO


GERALDO MAJELA BRANDÃO RIBAS

ORIENTADOR(A): PROF. DR. MAURICY MATOS MARTIN

CO-ORIENTADOR(A): PROF. DR. ALEXANDRE ZAMITH ALMEIDA

MEMBROS:

1. PROF. DR. MAURICY MATOS MARTIN

2. PROF(A). DR(A). FERNANDO CRESPO CORVISIER

3. PROF(A). DR(A). NAHIM MARUN FILHO

4. PROF(A). DR(A). CARLOS FERNANDO FIORINI

5. PROF(A). DR(A). ANGELO JOSÉ FERNANDES

Programa de Pós-Graduação em Música na área de concentração Música:


Teoria, Criação e Prática do Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca


examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

DATA: 23.02.2017
5

AGRADECIMENTOS

Ao concluir este trabalho, quero agradecer a todos aqueles que, de algum modo,
contribuíram para a realização desta tese de doutorado, e especialmente, às seguintes
pessoas e instituições:

- à Universidade Estadual de Maringá através da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Centro de


Ciências Humanas e Escola de Música por permitirem dedicação exclusiva ao curso;

- aos meus colegas da Escola de Música da UEM que me apoiaram a cada renovação de meu
afastamento integral para pós-graduação, a saber, os professores, Bernhard, Goreti,
Hideraldo, Jairo, Marcos, Roberto, Salomão e Solange;

-ao Prof. Dr. Maurícy Matos Martin, por sua orientação tanto na prática instrumental quanto
na parte escrita;

- ao Prof. Dr. Alexandre Zamith Almeida, por sua co-orientação valiosa e pacienciosa,
principalmente no último ano do curso;

- à Profª Dra. Adriana Giarola Kayama, Profª Dra. Denise Gracia e Profª Dra. Yara Caznok e aos
Prof. Dr. Emersom De Biaggi, Prof. Dr. Luiz Amato e Prof. Dr. Achille Picchi pelas disciplinas
ministradas;

- ao Marcos Batistuzzi, músico amigo pelas conversas e conselhos principalmente referentes aos
exemplos musicais editados;

- à minha querida esposa Rafaela por estar sempre comigo e por quem estarei sempre grato por sua
dedicação não só aos inúmeros exemplos musicais editados e nas constantes formatações de textos e
etc, etc, mas também e principalmente pelo companheirismo e por estarmos sempre abertos um para o
outro, incondicionalmente. Eternamente grato.
6

Resumo

O compositor brasileiro Camargo Guarnieri compôs oito sonatinas para piano


num período de 54 anos, entre 1928 a 1982, que abrange boa parte da sua vida criativa. Este
trabalho visa fornecer aspetos históricos e analíticos importantes para a execução
interpretativa destas Sonatinas. Tomando como base o Ensaio sobre a música brasileira de
Mário de Andrade (1887-1945) e nas ideias contidas no texto Análise e (ou) Performance do
pianista e musicólogo John Rink, pretende-se entender as influências históricas e as técnicas
composicionais do compositor para contribuir na construção interpretativa do ciclo das
Sonatinas de Guarnieri.

Palavras-chave: Camargo Guarnieri; Sonatinas para piano; análise; execução interpretativa.


7

Abstract

Brazilian composer, Camargo Guarnieri wrote eight Sonatinas for piano over a
period of 54 years, from 1928 to 1982, that covers most of his creative lifetime. This thesis
provides historical and theoretical information that gives insight into the interpretation of
these Sonatinas. Based on Ensaio sobre a música brasileira [“Essay on Brazilian music”] by
Mário de Andrade (1887-1945) and ideas from Analise e (ou) Performance [“Analysis and
(or) Performance”] by the pianist and musicologist, John Rink, I intend to understand the
historical influences and Guarnieri’s and compositional techniques to help build a
performance of his cycle of Sonatinas.
8

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9

1. AS SONATINAS PARA PIANO DE CAMARGO GUARNIERI .................... 12

1.1. Guarnieri e o Ensaio sobre a Música Brasileira de Mário de Andrade .... 17

1.2. O pianismo nas Sonatinas para piano ....................................................... 32

2. A LINGUAGEM MUSICAL DAS SONATINAS PARA PIANO .................... 41

2.1. Forma ....................................................................................................... 41

2.2. Ritmo ........................................................................................................ 46

2.3. Melodia..................................................................................................... 48

2.4. Harmonia .................................................................................................. 52

2.5. Som - Textura ........................................................................................... 53

3. ANÁLISE MUSICAL E EXECUÇÃO INTERPRETATIVA ........................... 58

3.1. A análise musical para instrumentistas, segundo John Rink .................... 62

4. ANÁLISE DAS SONATINAS E IMPLICAÇÕES INTERPRETATIVAS ........ 65

4.1. SONATINA Nº1 (1928) ........................................................................... 67

4.2. SONATINA Nº2 (1934) ........................................................................... 80

4.3. SONATINA Nº3 (1937) ........................................................................... 95

4.4. SONATINA Nº4 (1958) ......................................................................... 107

4.5. SONATINA Nº5 (1962) ......................................................................... 121

4.6. SONATINA Nº6 (1965) ......................................................................... 139

4.7. SONATINA Nº7 (1971) ......................................................................... 158

4.8. SONATINA Nº8 (1982) ......................................................................... 170

Conclusão ............................................................................................................ 183

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 188


9

INTRODUÇÃO

A realização deste trabalho partiu de uma necessidade que acredito ser comum
entre músicos instrumentistas de procurar sistematizar de alguma forma o processo
interpretativo na nossa relação com o repertório: neste caso especifico, com as sonatinas para
piano do compositor paulista Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), obras que já venho
estudando há algum tempo. Meu interesse pelo estudo do conjunto destas obras se dá pelos
estudos anteriores que realizei no mestrado – sobre as Sonatina no3 e a Sonatina nº6 – e a
intenção de promover uma visão mais ampla por meio de um estudo mais sistemático de todas
as sonatinas, pois a concepção destas obras percorre boa parte da vida criativa do compositor.
Logicamente que este estudo foi acompanhado de uma admiração crescente tanto pela obra
pianística de Guarnieri quanto pelo seu modo peculiar de tratar o instrumento.
Meu primeiro contato com as Sonatinas de Guarnieri, assim como muitas outras
do meu repertório, se deu pelo estudo prático e direto no instrumento através da execução
interpretativa, a partir de uma análise muito superficial e um tanto quanto subjetiva da
partitura, sob o ponto de vista de sua estrutura formal. Este primeiro contato, a princípio,
revelou-se satisfatório sob a perspectiva da prática instrumental, a qual apresenta
particularidades que só ela própria pode responder. Entretanto, este contato foi aos poucos se
tornando limitado quanto a questões mais específicas às relações entre execução instrumental
e a estrutura objetiva da obra. Isso porque acredito que a análise auxilia o intérprete na
detecção de que aspectos musicais salientar em sua execução instrumental.
A partir, então, de uma análise tanto de seu conteúdo estrutural quanto de seu
contexto histórico, pude perceber uma mudança de concepção interpretativa geral que
corroborou e influenciou em algumas decisões interpretativas que haviam se sedimentando
com o tempo de estudo. Certas especificidades do discurso musical do compositor vieram à
tona e deram suporte à interpretação das obras como um todo. A minha concepção geral das
peças, de certa maneira, foi afetada positivamente. Esse tipo de análise me auxiliou em muitas
tomadas de decisões interpretativas práticas, mas, também, em muitas outras coisas que não
se refletem de imediato na execução interpretativa, mas que auxiliam o intérprete no processo
de execução instrumental, tais como saber os tipos de escalas, de acordes e da estrutura
formal.
O objetivo de se fazer um estudo interpretativo extensivo à série das sonatinas
para piano de Camargo Guarnieri é propor uma visão interpretativa destas obras, a partir de
10

pressupostos analíticos e históricos, e que tenha como meta final a proposição de subsídios e
diretrizes para sua execução interpretativa.
Inicialmente, faço uma descrição sumária das sonatinas para piano do compositor
paulista a partir de uma visão geral do seu conjunto, suas características gerais, incluindo
observações de Verhaalen, Mendonça, Bencke e do compositor Lacerda.
Como contextualização histórica e estética (ou poética), abordo as sonatinas tendo
como base o “Ensaio sobre a música brasileira” de Mário de Andrade. Este livro, bem como
a própria figura de Mário de Andrade, foi fundamental para a carreira musical de Guarnieri,
além da figura de Mário de Andrade, como o próprio compositor afirmou várias vezes em sua
vida. Não foi intenção fazer uma análise crítica em relação às referências ao compositor no
Ensaio, mas sim procurar identificar reflexos desta obra do poeta nas composições das
sonatinas para piano. Vale lembrar que a composição da primeira sonatina ocorreu no mesmo
ano que o compositor conheceu o poeta, ano também do lançamento do Ensaio. Busco uma
relação entre Guarnieri e o nacionalismo musical a partir da sistematização, proposta por
Mário de Andrade, da música artística brasileira concebida e desenvolvida através do
“aproveitamento inteligente do nosso populário”, segundo expressão do próprio Mário. No
Ensaio, Andrade estabelece cinco elementos da música que julga importantes para o
compositor: ritmo, melodia, polifonia, instrumentação e forma. Dentro destes elementos,
procuro enfocar o que de mais importante o poeta nos chamou a atenção e que são questões
básicas para o desenvolvimento do discurso musical de Guarnieri nas suas Sonatinas para
piano.
Na sequência, analiso aspectos do pianismo no conjunto das sonatinas e suas
imbricações com o pianístico e a relação de ambos os conceitos com a escrita e a escritura
pianística. Nas análises de cada uma das Sonatinas, veremos que as observações referentes ao
pianismo estão ligadas ao estilo do compositor e à maneira como ele aborda o instrumento.
No capítulo referente à análise musical e execução interpretativa, desenvolvo
algumas ideias a respeito da importância relativa da análise musical para o músico intérprete
visto que nem tudo o que está na grafia da partitura pode ser expresso no ato da execução
interpretativa. Cito considerações de Laboissière, Picchi, Boulez, Dunsby e Whittall a respeito
da relação entre análise musical e execução interpretativa e como cada um pensa essa relação.
Destaco a análise musical para instrumentistas, segundo John Rink, como um dos
enfoques do meu trabalho, pois as análises das sonatinas foram baseadas em parte nos
11

parâmetros analíticos contidos no texto Analysis and (or”?) performance1. Nesse texto, Rink
propõe alguns parâmetros baseados no conceito de temporalidade para a análise
especificamente destinada aos intérpretes instrumentistas. A partir dos parâmetros
apresentados nesse texto, fazemos uma adaptação livre dos conteúdos dos tópicos na análise
do conjunto das Sonatinas para piano, procurando ajusta-la ao contexto das obras e de seu
autor.
Com isso, na medida do possível, procuramos evitar uma abordagem analítica
onde prevalecesse critérios técnicos analíticos somente e que não levasse em conta aspectos
inerentes especificamente às particularidades da execução instrumental propriamente dita.
Destaco três importantes trabalhos que analisam a obra completa e,
especificamente, a coletânea das Sonatinas para piano de Guarnieri e que foram fontes
importantes para meus estudos; “Camargo Guarnieri: Expressões de uma vida” de Marion
Verhaalen, musicóloga estadunidense e amiga pessoal do compositor e de sua família, que fez
uma extensa biografia sobre o compositor. “Camargo Guarnieri – O Tempo e a Música”,
outro importante trabalho biográfico e analítico organizado pelo musicólogo Flávio Silva, o
qual reúne textos escritos por diversos músicos próximos ao compositor, bem como um
estudo sobre a obra pianística realizado pela pianista e professora Belkiss Carneiro de
Mendonça. Mais recentemente, em 2010, a pianista e professora Esther Bencke empenhou-se
em importante pesquisa sobre as sonatinas para piano do compositor paulista resultando em
sua dissertação de mestrado pela Universidade do Estado de Santa Catarina intitulada
“Música e Expressão do Nacional nas Sonatinas para Piano de Camargo Guarnieri”. Essa
dissertação enfoca estas obras sob o ponto de vista histórico do nacionalismo musical
brasileiro e realiza uma análise de cada uma delas onde a estrutura musical é observada à luz
dos elementos musicais importantes aos nacionalistas.

1
Rink, J. Analysis and (or) performance. In: Rink, John (Ed.). Musical Performance:a guide to
understanding. Cambridge: CUP, 2002, p.35-58.
12

1. AS SONATINAS PARA PIANO DE CAMARGO GUARNIERI

Camargo Guarnieri é um dos mais importantes nomes da música erudita do Brasil


e da América Latina. Ferrenho defensor dos ideais estéticos nacionalistas, defendidos ao lado
do escritor, musicólogo e poeta Mário de Andrade, seu principal mentor intelectual, Guarnieri
produziu mais de 600 obras para as mais diversas formações instrumentais e vocais.
Sua produção pianística é igualmente grande e não menos diversificada. Escreveu
para os mais diversos gêneros e formas consagrados pela tradição, tais como valsas, prelúdios
(ponteios) e estudos, e o fez sempre de maneira concisa, quase todas muito curtas (inúmeras
não ultrapassando uma página), mas todas mostrando total domínio no desenvolvimento das
formas.
Segundo Verhaalen, musicóloga e pianista americana, autora de dois livros sobre
o compositor, Guarnieri tinha uma predileção por obras curtas e muitas vezes as agrupava em
coletâneas, como é o caso de seus Ponteios, Estudos, Valsas, Momentos e Improvisos
(Verhaalen, 2001). Essa propensão para obras mais enxutas, mais concisas, se refletiu até no
tratamento que faz da forma sonata: sua predileção por sonatinas ao invés de sonatas o levou a
escrever oito sonatinas e apenas uma sonata para piano, obras em que o compositor parece
levar até as últimas consequências a condensação de suas ideias musicais, ou seja, fazer o
máximo com o mínimo.
Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), pianista e professora, relata em seu
artigo sobre a obra pianística de Guarnieri, uma resposta do compositor a uma pergunta sua
sobre o porquê de considerar as sonatinas como tal e não como sonatas: “Certa vez perguntei
a Camargo Guarnieri o motivo por que assim as nomeara, já que, pela forma e dimensão,
deveriam constar como sonatas. Recebi do compositor a explicação de que seria pelo caráter
da linha melódica. Em seu entender, a sonata deveria ter um tema mais decidido, mais
enérgico...” (Mendonça, 2001).
Segundo o compositor Osvaldo Lacerda, que foi um dos seus discípulos,
Guarnieri escreveu na realidade nove sonatas para piano, querendo dizer com isso que nas
suas oito sonatinas, Guarnieri mantém a força expressiva, originalidade e técnica
composicional tal qual verificado em sua Sonata (Verhaalen, 2001). Tanto nas sonatinas
quanto na Sonata, seu desenvolvimento discursivo relativo ao tratamento da forma sonata é
preciso e sem delongas. As sonatinas de Guarnieri estão longe de serem obras menores, pois
elas se apresentam numa complexidade crescente tanto em relação aos elementos musicais
nelas contido quanto para a execução interpretativa do pianista.
13

O conjunto das oito sonatinas percorre praticamente toda a produção musical do


compositor2. Evidencia a evolução de sua linguagem principalmente no aspecto da harmonia,
pois o tratamento formal no que diz respeito à forma sonata é praticamente o mesmo.
Segundo Mendonça:

A magnífica produção pianística de Camargo Guarnieri mostra um refinamento


artesanal superior, conscientemente elaborado, veículo de admirável sensibilidade.
Apesar das evoluções e aquisições de novos recursos composicionais hauridos com
o correr dos anos, sua música mantém-se homogênea. O modo de sentir e de pensar
conserva-se único; a emotividade é sua linha condutora. Usando a princípio a
harmonia dissonante, dentro do senso tonal, foi empregando cada vez mais o
cromatismo, até sua música tornar-se atonal. Hoje possui uma linguagem própria,
resultante da fusão de três etapas. (Mendonça, 2001)

Essa observação de Mendonça se refere à obra pianística de maneira geral, mas se


encaixa perfeitamente às sonatinas. O emprego da atonalidade pelo compositor não deve ser
interpretado no mesmo sentido da utilizada pelos compositores da segunda escola vienense,
pois muitas vezes Guarnieri apenas trabalha com centros tonais diferentes para determinados
trechos, utilizando muitos acordes de quartas sobrepostas, cromatismos, além de escalas de
tons inteiros ou mesmo octatônicas.
Guarnieri utilizou-se da não tonalidade principalmente nas Sonatina nº2 (1934) e
nas três últimas: Sonatina nº6 (1965), Sonatina nº 7 (1971) e Sonatina nº8 (1982).
Interessante observarmos que na Sonatina nº2, composta quando ainda jovem, o compositor
quebra uma sequencia em relação ao tratamento harmônico que parecia ser lógico em relação
às outras duas que a antecede e a sucede. Segundo Verhaleen: “...Esta segunda sonatina é um
trabalho experimental datado de 1934 quando, segundo Guarnieri, ele estava atravessando um
período de namoro com o atonalismo, experimentando o estilo não tonal...” (Verhaalen,
2001). A dissonância criada por esta obra, muito criticada na época, não desfigura em nenhum
momento o caráter de cantiga modal da linha melódica nos dois primeiros movimentos, muito
característico do compositor.
As Sonatinas nº1(1928), Sonatina nº3 (1937), Sonatina nº4 (1958) e a Sonatina
nº5 (1962) são obras tonais e por vezes modais. A primeira sonatina foi composta no ano em
que o compositor conheceu Mário de Andrade e a ele foi dedicada 3. A terceira contém no
segundo tema do primeiro movimento uma citação direta do folclore nordestino, a Cantiga do

2
A Sonatina nº1 data de 1928 e a sua última nº8 é de 1982.
3
A Sonatina nº1 foi uma das primeiras obras de estreia do compositor e teve crítica muito
favorável tanto de Mário de Andrade quanto de Sá Pereira, renomado professor de música e crítico musical da
época. Segundo o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992), esta sonatina foi a primeira que se
propagou pelo repertório dos concertistas.
14

Cego, construída no modo lídio. Essa citação direta do folclore é a única em todo o conjunto e
uma das raras vezes em que o compositor se utiliza explicitamente de um tema popular.
Podemos observar opinião semelhante em Bencke a respeito da linguagem
harmônica utilizada no conjunto das sonatinas:

A linguagem musical das Sonatinas varia bastante, partindo do tonal (Sonatina n.1),
passando por experiências atonais (Sonatina n.2)¸ afastando-se gradualmente da
tonalidade (Sonatinas n.3, 4 e 5) até uma linguagem diferenciada encontrada nas três
últimas Sonatinas, na qual os elementos de fonte popular são bem menos óbvios que
nas cinco primeiras. (BENCKE: 2010, p.58)

Nesse sentido, Verhaalen e Mendonça são unânimes também em relação ao


desenvolvimento discursivo cada vez mais elaborado do conjunto das Sonatinas: segundo
Verhaalen, o próprio compositor admitiu que as Sonatinas mostram sua evolução musical
desde sua primeira sonatina até a oitava, dissonante e atonal. (VERHAALEN: 2001, p.149).
Por sua vez, Mendonça considerou as cinco primeiras sonatinas mais intimistas e as três
últimas “...mais incisivas, sem preocupação com a tonalidade, com novos elementos
composicionais...Mostram que ele não cessou de evoluir...” (MENDONÇA: 2001, p.406).
Estas observações a respeito da evolução composicional de Guarnieri, relatadas
aqui no conjunto das sonatinas para piano, logicamente entram em consonância com o que
também já muito se falou a respeito da evolução do seu discurso musical observada nas outras
obras do compositor durante sua vida. Essa evolução se dá muito mais no sentido de uma
transformação por que passou seu discurso musical, seu tratamento dado aos elementos
musicais, do que propriamente de uma evolução.
No caso deste conjunto de obras produzidas ao longo de 54 anos, a transformação
de sua linguagem torna-se evidente e cada vez mais complexa. Dentro do contexto histórico
na qual o compositor estava inserido, as Sonatinas não são obras de vanguarda, mas
representam historicamente uma das facetas da nossa música do séc. XX, já que o
nacionalismo musical brasileiro foi, em certo sentido, uma das tendências da nossa música
contemporânea.
Ao longo desta pesquisa, tive acesso a quatro trabalhos analíticos realizados sobre
o conjunto das sonatinas do compositor paulista, todos eles tendo como foco principal o
tratamento dado pelo compositor à forma sonata e o discurso musical desenvolvido por ele de
acordo com os preceitos históricos do nacionalismo musical brasileiro.
A Profª Helena Puglia Freire, da Universidade Federal de Minas Gerais,
apresentou seu doutorado pela Universidade de Indiana em 1984: “The Piano Sonatinas and
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Sonata of Camargo Guarnieri.” Nesta tese, a professora se propõe a uma reflexão sobre as
ideias e o estilo composicional de Guarnieri nas Sonatinas e na Sonata para piano com o
intuito de chegar a algumas conclusões a respeito de seu desenvolvimento estilístico no piano.
Freire analisa as Sonatinas de 1 a 7 baseados nos elementos da melodia, harmonia, ritmo,
textura, forma e tonalidade, além de considerações pianística. Faz um breve estudo sobre o
desenvolvimento das tradições musicais no Brasil e na América Latina e suas diversas
influências. Freire ainda faz um interessante agrupamento das Sonatinas de acordo com certas
similaridades estilísticas e técnicas composicionais, tais como as Sonatinas nº2, 6 e 7 e as
Sonatinas nº1, 3, 4 e 5. A autora contou ainda com a preciosa colaboração do compositor para
a realização de sua pesquisa.
Em 2001, surgiram dois trabalhos importantes sobre a vida e a obra de Camargo
Guarnieri que, por suas extensões, se complementam: “Camargo Guarnieri: expressões de
uma vida” de Marion Verhaalen e “Camargo Guarnieri: o tempo e a música” organizado
pelo historiador Flávio Silva. O primeiro deles se originou da tese de doutorado na
Universidade de Colúmbia, em 1971, por Marion Verhaalen sobre a obra pianística do
compositor. A estadunidense Marion Verhaalen é pianista e professora de piano na Cardinal
Stritch University em Milwaukee, além de compositora e grande pedagoga. Tinha uma
amizade muito próxima com o compositor e sua família e suas pesquisas tiveram total
respaldo de Guarnieri. É uma verdadeira biografia do compositor, com análises de suas
principais obras. Na parte referente às obras para piano solo, Verhaalen faz uma análise
sucinta e muito pessoal das oito Sonatinas e da Sonata para piano, entre outras. Sua análise se
baseia principalmente na estrutura formal de cada uma, além de informações a respeito das
edições existentes, ano de publicação e algumas gravações. O prefácio desta obra é do
musicólogo José Maria Neves.
O trabalho realizado pelo historiador Flávio Silva – “Camargo Guarnieri: o
tempo e a música” reúnem textos de músicos e musicólogos que tiveram amizade com o
compositor. A pianista e professora Belkiss Carneiro de Mendonça (1928 – 2005) foi a
responsável pela obra pianística de Guarnieri neste livro. Também faz uma análise sucinta de
cada uma das Sonatinas do compositor paulista, observando a forma além de aspectos
característicos de cada um dos movimentos. A pianista também teve um contato muito
próximo com o compositor e chegou a gravar várias de suas obras para piano.
O mais completo trabalho realizado da coletânea das sonatinas para piano do
compositor paulista é da pianista e professora Esther Bencke, uma dissertação de mestrado
defendida na Universidade Estadual de Santa Catarina, intitulada “Música e expressão do
16

nacional nas sonatinas para piano de Camargo Guarnieri”. Defendida em 2010, esta
pesquisa foi orientada pelo profº Dr. Acácio Tadeu de Camargo Piedade. Segundo sua autora,
a “...dissertação trata da relação entre discurso nacionalista e prática composicional no
contexto do nacionalismo musical brasileiro...”. Trata-se de uma importante pesquisa da área
da musicologia e da etnomusicologia, com reflexos até nas práticas interpretativas. Bencke
discute as origens e definições do nacionalismo, faz uma análise mais pormenorizada de cada
uma das Sonatinas através de seus elementos estruturais de forma e conteúdo. Aborda
aspectos da harmonia, do ritmo, da melodia, timbre, dinâmica, entre outros, procurando
demonstrar como o compositor desenvolveu seu discurso musical diante a ideologia
nacionalista.
Existem alguns outros artigos acadêmicos que abordam alguma das Sonatinas
específicas de Guarnieri para piano, abordagens essas ora com viés analítico-interpretativo,
ora abordando alguma característica histórica ou estilística. Estes trabalhos estão todos
mencionados na bibliografia.
17

1.1. Guarnieri e o Ensaio sobre a Música Brasileira de Mário de Andrade

Neste capítulo situaremos, dentro de uma visão panorâmica, o compositor paulista


e seu conjunto das oito Sonatinas para piano no contexto do movimento nacionalista
brasileiro. Conscientes da dimensão que representa tanto o conjunto das obras em questão
quanto o movimento histórico em que elas estão inseridas, destacamos alguns pontos que
julgamos importantes na relação das obras com seu contexto histórico.
Para isso, nos basearemos principalmente no Ensaio sobre a música brasileira4,
publicado em 1928 pelo escritor e intelectual Mário de Andrade, e que se tornou naquela
época o principal guia para aqueles que quisessem ser de fato representantes da música
brasileira concebida artisticamente, segundo seu autor. Guarnieri, por sua vez, tinha total
consciência das concepções musicais expostas neste livro do poeta, o que torna perfeitamente
possível enxergarmos ao longo da série das Sonatinas as concepções estéticas do poeta no
discurso musical do compositor.
A relação que faremos entre Guarnieri e o nacionalismo musical será a partir da
sistematização, empreendida por Mário de Andrade, da música artística brasileira concebida e
desenvolvida através do “aproveitamento inteligente do nosso populário”, segundo expressão
do próprio Mário em seu Ensaio.
Apesar do reconhecimento de Mário de Andrade como uma das figuras mais
importantes do modernismo no Brasil e a figura central do movimento nacionalista,
lembramos que, na música, manifestações de enaltecimento de temas e ritmos
caracteristicamente nacionais tiveram início nas manifestações musicais da época colonial,
tais com as modinhas e lundus. Posteriormente, o mesmo se deu nas obras dos considerados
precursores do nacionalismo musical brasileiro, tais como Brasílio Itiberê da Cunha (1846-
1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto Nepomuceno (1864-1920), cuja tentativa de
enaltecimento nacional se deu pela exploração de ritmos sincopados de danças brasileiras,
mas com forte inspiração europeia. Segundo o historiador Luiz Heitor Correa de Azevedo,
estas alusões ao nacional observadas nas obras destes compositores da virada do século XIX
para o XX estavam longe de atingir aquela completa integração do compositor no ambiente
musical de sua terra, muito devido à longa permanência destes compositores na Europa por
causa de suas formações musicais. (L. Heitor, Música e Músicos do Brasil, p. 32, 1950)

4
Para este texto, nos baseamos na 3ª edição de 1972 pela editora Martins Fontes.
18

Guarnieri não chegou a liderar formalmente uma escola de composição no Brasil,


mas teve inúmeros discípulos compositores, além de orientar alunos de piano, principalmente
em São Paulo5. Seu legado, não só como compositor, mas como professor e artista,
influenciou uma geração recente de compositores, tais como Almeida Prado (1943 – 2010),
Achille Picchi (1952), Eduardo Escalante (1937), Edmundo Villani-Côrtes (1930). Seus
alunos, a maioria atuando em importantes centros culturais e acadêmicos pelo Brasil,
testemunham a importância deste compositor para a história da música brasileira. Numa visão
retrospectiva, a “Escola Guarnieri” de composição se projeta pelo legado de seus discípulos e
pelas influências destes no meio musical brasileiro.
Guarnieri foi, desde cedo, uma das mais festejadas promessas da música brasileira
da geração que sucedeu à de Villa Lobos (1887-1959), de acordo com relatos de respeitados
musicólogos e críticos musicais por volta de 1930, época em que o compositor iniciava sua
carreira6. Sua formação musical inicial foi: piano com Antônio Leal de Sá Pereira (1888-
1966) e Ernani Braga (1868-1945) e posteriormente composição com o maestro italiano
Lamberto Baldi7 (1895-1979). Como resultado dessas orientações, Guarnieri produziu suas
primeiras obras que considerou boas para publicação: Dança Brasileira e Canção Sertaneja,
ambas para piano. A partir de 1928, o compositor é apresentado a Mário de Andrade. Por
ocasião do seu primeiro encontro com o poeta, Guarnieri apresenta suas primeiras
composições citadas, evidenciando indiscutíveis sinais de sua capacidade e genialidade. Vale
lembrar que já nesse início, Guarnieri possuía uma brasilidade instintiva que o acompanhava
antes mesmo de conhecer o poeta e antes de se tornar um dos seus mais ilustres discípulos.
A partir desse primeiro encontro fica claro a progressiva importância e apreço
com que o compositor passou a ter para com M. de Andrade e este em relação ao compositor,
principalmente no que diz respeito às ideias sobre música e também sobre estética e as artes
em geral. Mas, por outro lado, de acordo com o professor e historiador Jorge Coli 8, Guarnieri

5
Achille Picchi, um de seus alunos, afirma que o próprio compositor chamava de Escola Paulista
de Composição a reunião de seus discípulos: portanto, segundo Picchi “a história e os discípulos consagraram a
“Escola Guarnieri.” (PICCHI: 2012)
6
A. L. de Sá Pereira, pianista, pedagogo, escritor e compositor em artigo de 1929 dizia a época da
publicação da Sonatina de Guarnieri: “(...) No Brasil cabe a Villa-Lobos o título de vanguardista desse
movimento nacional, em que agora, e já completo, se enfileira o jovem C. Guarnieri. (...)”(SÁ PEREIRA, 1929).
O musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo em artigo de 1935 enfatiza a independência criativa de Guarnieri:
“(...) já se nota a sublimação do caráter nacional, tendendo para uma expressão geral e menos
pormenorizadamente popular (...) ele nada tem de comum com o niilismo transbordante de gênio de Villa-Lobos
(...)” (AZEVEDO, 1950).
7
Acrescenta-se ainda Agostino Cantù. Vale lembrar que E. Braga e S. Pereira eram compositores partidários do
movimento nacionalista.
8
Jorge Coli é professor titular em História da Arte e História da Cultura no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
19

já trazia uma sensibilidade como artista desde cedo. Coli, estudioso da obra de Andrade,
afirma a importância simbólica deste encontro, ressaltando a coincidência das obras
apresentadas por Guarnieri com o lançamento de Macunaíma e Ensaio sobre a música
brasileira, duas das obras mais influentes do poeta:

O encontro de Camargo Guarnieri com Mário de Andrade tem um caráter inaugural


na biografia do compositor. Em 1928, é sabido, o jovem músico de 21 anos
submeteu ao grande modernista duas composições: a Dança Brasileira e a Canção
Sertaneja. Sua brasilidade emergente se afirma e se confirma em contato com o
autor de Macunaíma e do Ensaio sobre a música brasileira, obras onde a questão da
cultura nacional se exprime no registro literário e no registro teórico. Ambas datam
também de 1928 – o que colore o encontro entre Mário e Guarnieri de um tom quase
simbólico. Exatamente no momento em que uma orientação vigorosamente
nacionalista se impunha com o Ensaio, o compositor moço – cujos pendores para as
raízes brasileiras e populares já se haviam manifestado – descobre, à sua medida, um
extraordinário mentor. (Coli, 2001)

Sem menosprezar a importância crescente da influência exercida pelo poeta na


formação artística e intelectual de Guarnieri a partir desse encontro, podemos afirmar
também, pela qualidade das obras que apresentou e pelas orientações iniciais recebidas de
seus mestres anteriores, que o compositor já apresentava certa tendência em seu discurso
musical que posteriormente só seriam aprimoradas na convivência com o poeta modernista.
Questões sobre ritmo, melodia, polifonia, instrumentação e forma, apresentadas por Mário de
Andrade em seu Ensaio, em parte, já são observadas em ambas as obras de Guarnieri que
tinha apenas 21 anos, como bem lembrou Coli.
Os acontecimentos que começavam a tomar fôlego na música brasileira na década
de 20 e tendo como marco histórico a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo,
tiveram em Mário de Andrade um dos seus principais articuladores e líderes. Por seus vastos
conhecimentos das artes em geral, sociologia, antropologia, história e estética, suas
convicções nesses terrenos não raro eram acompanhadas por atitudes polêmicas. Em seu
Ensaio especificamente, o poeta defende basicamente uma identidade nacional para a música
brasileira9. Para o poeta, a meta de todo compositor que faz arte nacional seria a utilização do
folclore e da cultura popular na sua produção artística, de forma velada e/ou por assimilação
inconsciente. Talvez seja esse o ponto pelo qual podemos afirmar que o compositor das
Sonatinas mais intuitivamente coincidiu com seu mestre e que estão presentes em toda a sua
criação musical. Como afirmamos anteriormente, Guarnieri tinha suas habilidades natas e,

9
Segundo Mário de Andrade “...os indivíduos como a Arte nacionalizada, tem que passar por três
fases: 1ª a fase da tese nacional; 2ª a fase do sentimento nacional; 3ª a fase da inconsciência nacional. Só nesta
última a Arte culta e o indivíduo culto sentem a sinceridade do hábito e a sinceridade da convicção
coincidirem...”
20

portanto, não deve ter sido nada difícil para ele aprimorá-las através dos ensinamentos de
Mário de Andrade. Aliás, Guarnieri sempre foi considerado pelos estudiosos de sua obra,
inclusive por intérpretes que tiveram um contato pessoal e frequente com o artista10, um
compositor privilegiado, dono de uma intuição artística invejável, com certa independência
dos ensinamentos de seus mestres.
O Ensaio sobre a música brasileira foi publicado em 1928 e constitui-se num
documento no qual o poeta expõe suas reflexões sobre a música brasileira e suas
problemáticas de concepção geral. Constitui-se num livro basilar para compreendermos como,
na prática, o compositor deveria conceber o elemento nacional na sua música, sob o ponto de
vista do carácter, da estética e da prática. Guarnieri conhecia muito bem essa obra e a tinha
como um guia. Numa carta datada de 2 de julho de 1980 endereçada ao musicólogo e
pesquisador Vasco Mariz, Guarnieri confirma:

...No Brasil, o problema do nacionalismo consciente tem a sua base no livro do meu
inesquecível amigo Mário de Andrade, Ensaio sobre a música brasileira, que todos
conhecemos, onde ele, com aquela sua característica premonição, estabelece três
fases...11

Nesse Ensaio, Andrade estabelece cinco elementos da música já citados


anteriormente, a saber: ritmo, melodia, polifonia, instrumentação e forma. Interessante
atentarmos para cada um desses elementos, enfocando o que de mais importante o poeta nos
chamou a atenção e que são questões básicas para o desenvolvimento do discurso musical de
Guarnieri. Trataremos separadamente em um subcapítulo o elemento Instrumentação onde
abordaremos algumas especificidades no modo como o compositor traduz ao piano alguns
preceitos contidos no Ensaio.
Vale lembrar que estes elementos musicais foram concebidos de acordo com uma
visão particular do poeta, sobre sua aplicabilidade e funcionalidade na música brasileira:
questões sobre polifonia e forma, por exemplo, adquirem significados particulares, como
veremos. Em outras palavras, estes elementos da música passam por uma adaptação e por
uma categorização aos ideais estéticos propostos pelo poeta de necessidade de se legitimar um
nacionalismo musical brasileiro.

10
Podemos citar Osvaldo Lacerda (1927-2011) e Marlos Nobre (1939) entre seus alunos
compositores e ainda Belkis Carneiro de Mendonça (1928-2005) e Marion Verhalen (1930) entre as intérpretes
de suas obras que o reverenciavam pelas qualidades de suas obras e de seu inegável talento.
11
Trecho do anexo da carta de Camargo Guarnieri a Vasco Mariz, em “Camargo Guarnieri: o
tempo e a música”, org. Flavio Silva, p.389.
21

Ritmo:
Neste item, M. de Andrade nos chama a atenção para o problema exclusivo da
síncopa. Segundo ele, embora a síncopa seja uma constante em nossa música, ela não é
imprescindível e geralmente chamamos de síncopa o que não é. (ANDRADE, 1972, p.30)
Diferentemente da subdivisão dos compassos que fizeram os europeus, principalmente os
portugueses, em nossa música, “...o cantador vai seguindo livremente, inventando
movimentos essencialmente melódicos...sem nenhum dos elementos dinamogênicos da
síncopa e só aparentemente sincopados, até que num certo ponto...coincide de novo com o
metro...”. (Ibid, p.36) Isso significa dizer que deve existir no ritmo caracteristicamente
sincopado certa flexibilidade de execução da métrica percebida pelo compositor e, de certa
forma, representada graficamente na escrita musical com o intuito de se evitar a banalização,
através de uma grafia rigidamente quadrada e presa à métrica. Denota certa impossibilidade
da escrita em relação à prática (PICCHI, 2012). Avesso à banalização da rítmica brasileira,
principalmente e especificamente na utilização da síncopa, Andrade enaltece a beleza e a
riqueza de possibilidades expressivas e de aproveitamento da síncopa, “...porém desprovidos
de acento, respeitosos da prosódia, ou musicalmente fantasistas, livres de remeleixo (“sic”)
maxixeiro, movimentos enfim inteiramente pra fora do compasso ou do ritmo em que a peça
vai...” (Ibid., p.37) Um dos principais argumentos era o conflito entre o mensuralismo da
música portuguesa frente aos “processos de rítmica oratória” desprovido de métrica quadrada:

...Se deu pois na música brasileira um conflito entre a ritmica diretamente musical
dos portugueses e a prosodica das músicas ameríndias, também constante nos
africanos aqui. E a gente pode mesmo afirmar que uma ritmica mais livre, sem
medição isolada musical era mais da nossa tendencia, como provam tantos
documentos já perfeitamente brasileiros que exponho em seguida a êste Ensaio.
Muitos dos cocos, desafios, martelos, toadas, embora se sujeitando á quadratura
melodica, funcionam como verdadeiros recitativos...(“sic”) (ANDRADE; 1972,
p.31)

Guarnieri utiliza-se de vários recursos para evitar a uniformidade ou a


inflexibilidade métrica, tais como frequentes mudanças de fórmula de compassos, utilizando-
se às vezes de fórmulas diferentes simultâneas (polimetria), polirritmia, diferentes
agrupamentos de notas que ocorrem simultaneamente entre as vozes, entre outros recursos,
dificultando nossa percepção métrica e flexibilizando a linha melódica.
Podemos observar no exemplo a seguir do segundo movimento da Sonatina nº2,
que a linha melódica da mão esquerda (m.e.) é acompanhada pela sequência de colcheias
contínuas da mão direita (m.d.). O acompanhamento da m.d. é formado por sequências de
22

colcheias divididas em duas vozes e agrupadas de 3 em 3 alternadamente para cada voz. Esses
desenhos das colcheias se repetem até o final do movimento:

Exemplo 1 - Sonatina nº2 - II movimento, cc.1-7

Como se não bastasse o deslocamento desses agrupamentos de três colcheias


pelos compassos, há alternâncias de fórmulas de compassos de 4/8 para 6/8. A irregularidade
resultante da linha melódica da m.e. é proporcionada pelo caráter da própria melodia, quase
sem repetição, e também pela alternância das fórmulas de compassos. O desenho melódico da
m.d. reforça ainda mais a irregularidade da linha melódica da m.e. Essa perda de sentido
métrico que percebemos ao ouvirmos a melodia da m.e. está de acordo com a ideia que M. de
Andrade tinha de uma rítmica mais livre, uma rítmica não enquadrada rigidamente numa
fórmula de compasso, mas advinda de uma prosódia que nos remete a canção popular.
Outro exemplo característico de adaptação de uma métrica a uma linha melódica é
a citação direta da Canção do Cego que, como já mencionamos acima, é uma melodia
folclórica nordestina e a única na coletânea das Sonatinas utilizada por Guarnieri, e uma das
poucas de toda sua obra. Trata-se do segundo tema do primeiro movimento da Sonatina nº3.
No trecho que destacamos a seguir, a partir do c. 26, observamos nos três compassos antes da
entrada da linha melódica da canção, as sequências das notas sol em registros diferentes na
m.d. que caberiam perfeitamente num binário composto ante o binário simples (2/2) do
trecho. Essas semínimas pontuadas da m.d. são reforçadas pelas acentuações deslocadas da
m.e., quebrando o sentido métrico do agrupamento de quatro em quatro das colcheias:
23

Exemplo 2 - Sonatina nº3 - I movimento, cc. 26-37

O início da linha melódica da canção, a partir do c.29, onde Guarnieri se utiliza de


quiálteras de três semínimas nas anacruses do tema é acompanhada pela nota pedal de dó
central do piano tocada pela m.e., repetidas e acentuadas também de maneira deslocada da
métrica dos compassos. Embora o compositor tenha se utilizado de figuras rítmicas um pouco
diferentes da canção original como no caso da mencionadas tercinas, por exemplo, e apesar de
que a linha melódica como um todo esteja enquadrada numa métrica, o efeito causado pela
junção da linha melódica da canção com essas notas pedal da m. e. nos dá a sensação de uma
melodia livre de uma métrica. O compositor evita assim a uniformidade rítmica na
apresentação do tema da canção.
24

Melodia:
Segundo Andrade, as especificidades melódicas são mais difíceis do que as
rítmicas ou as harmônicas e “...o compositor deve conhecer quais são as nossas tendencias e
constancias melodicas (“sic”) ...”12. Para ele, todo o problema girava em torno da “invenção
melódica expressiva”. E essa invenção melódica expressiva deveria partir da música popular,
da melódica popular, do folclore. E estabelece: “E não só empregar diretamente a melodia
integral que nem faz frequentemente Luciano Gallet como a modificando num ou noutro
detalhe (processo comum em Villa-Lobos), ou ainda empregando frases populares em
melodia própria (L. Fernandez na “Berceuse da Saudade”)13.
As peculiaridades, as “constâncias melódicas nacionais” que, segundo M. de
Andrade, o músico pode lançar mão para nacionalizar a sua obra, devem partir dos vários
elementos oriundos da música popular ou da música folclórica, tais como os modos escalares,
saltos melódicos de terça, repetição de notas, melodias utilizando-se de movimentos escalares
descendentes que, segundo Andrade, é comum nesse tipo de música.
A “dinamogenia” (“sic”), termo empregado por Andrade, seria então essa
percepção da dinâmica de funcionamento dos elementos musicais contido nas manifestações
musicais populares e que deveriam ser absorvidas através da inspiração e empregadas pelo
músico.
O tratamento da melodia nas Sonatinas de Guarnieri nos leva a perceber uma
preocupação, por parte do compositor, em alcançar a expressividade melódica defendida por
Andrade. Destacamos algumas características que são comuns aos preceitos contidos no
Ensaio. O emprego da melodia folclórica da Canção de Cego como 2º tema do primeiro
movimento da Sonatina nº3 destacado anteriormente, exemplifica uma das maneiras de como
M. de Andrade determinava a utilização de temas folclóricos. O modalismo empregado para
esse tema (dó lídio) é moldado, como vimos anteriormente, pelo deslocamento rítmico
causado pela articulação das notas da m.e. (de 3 em 3) e pela nota pedal (dó central) ainda da
m.e. dando suporte harmônico. O resultado sonoro final não se resume simplesmente ao
emprego de um tema folclórico único e exclusivamente, mas pela elaboração que o
compositor dá na apresentação desse tema, utilizando-se de intervenções pelo ritmo,
harmonia, dinâmica, entre outras, que auxiliam no seu direcionamento e no seu
comportamento.

12
Ibid., p.44.
13
Ibid., p.44.
25

Como elemento melódico brasileiro, M. de Andrade citava duas características,


dentre tantas, que os compositores poderiam se utilizar em suas invenções: 1) a nossa
predileção folclórica às frases descendentes e 2) a utilização das terças. Destacamos a seguir
dois trechos abaixo em que o compositor faz uso desses elementos.
Segundo Andrade, notas rebatidas (repetidas) e as síncopas eram elementos que
poderiam moldar as melodias. No exemplo a seguir, início do primeiro movimento da
Sonatina nº2, vemos a linha melódica descendente iniciada por notas repetidas e a utilização
de síncopas, ainda que de uma maneira comedida:

Exemplo 3 - Sonatina nº2 – I movimento, cc.1-17

O tema, a princípio em ré dórico, contém alterações de notas da escala modal, tal


como aparecem nos c.7 e os Ab do c.9. A partir desse c.9 a linha melódica descendente que se
iniciou com a alteração de lá bemol sofre uma modificação provocada pela sequência de notas
agudas alteradas da m.e. (Bb, Ab, Gb e Fb). Essa linha melódica do tema, assim como no
exemplo anterior, é apresentada em compasso binário com uma articulação ternária na m.e.,
camuflando o seu sentido métrico. Curiosamente, a quantidade de alterações de notas tanto na
linha melódica quanto em outras vozes secundárias revela que o tratamento modal dado a essa
26

sonatina é distorcido pelas dissonâncias provocadas por essas alterações de notas que,
auditivamente, pode nos dar uma falsa ideia de ser uma obra atonal.
Destacamos ainda o tratamento dado aos intervalos de terças, recorrentes em
quase todas as sonatinas. Na Sonatina nº6, II movimento, diferentemente do I movimento da
Sonatina nº4 onde também temos o emprego de terças no segundo tema da obra e entremeada
de ritmo sincopado, este II movimento da Sonatina nº6 apresenta basicamente em sua linha
melódica terças e décimas em ambas as mãos em movimento contrário:

Exemplo 4 - Sonatina nº6 - II movimento, cc.1-16

A pianista Belkiss Carneiro de Mendonça, em comentário sobre as sonatinas para


piano do compositor, afirma sobre esse movimento: ... “Em vez de dar vazão ao seu
sentimentalismo, através de formas brasileiras como o romance, a canção e a modinha,
Camargo Guarnieri [nele] explora os grandes efeitos de ressonância do piano... O ambiente é
vago, espacial...” (MENDONÇA in SILVA, p. 410). Essa citação se dá justamente para
27

evidenciarmos como o compositor se utiliza de certos elementos musicais marcadamente de


inspiração nacionalista, como o caso das terças, para criar uma sonoridade que nos remete
indiretamente, veladamente, às terças paralelas das modinhas e canções. Nesse trecho inicial,
fora de qualquer modalismo, o compositor nos apresenta a linha melódica em terças por
movimentos contrários, opondo terças maiores a menores gerando fortes dissonâncias,
mudanças constantes de fórmulas de compassos, contrastes dinâmicos e a transformação das
terças por distensão em décimas a partir do c.12.

Polifonia:
M. de Andrade alardeava sobre o problema da utilização da harmonia. Segundo
Andrade, o processo de harmonização não poderia ficar refém da harmonização oriunda da
música popular, simplória, apesar das influências externas. A “música artística” requeria um
desenvolvimento erudito desses processos de harmonização. A saída encontrada por ele seria
a utilização da polifonia como um procedimento composicional para a nossa música artística.
Andrade via a polifonia como um direcionamento adequado para os processos de
harmonização de nossa música. Segundo ele, o nosso populário estava repleto do “tonalismo
harmônico europeu herdado de Portugal”. Portanto, a única saída era a polifonia:

Onde já os processos de simultaneidade sonora podem assumir maior caracter


nacional é na polifonia. Os contracantos e variações tematicas superpostas
empregadas pelos nossos flautistas seresteiros, os baixos melodicos do violão nas
modinhas, a maneira de variar a linha melodica em certas peças, tudo isso
desenvolvido pode produzir sistemas raciais de conceber a polifonia... (“sic”)
(Andrade; 1972, p.52)

A ideia de polifonia empregada aqui é um tanto vaga, ou mesmo genérica, pois


não é pensada como uma espécie de alusão ou volta à técnica desenvolvida em fins da Idade
Média e Renascimento, mas como Picchi afirma “... de uma idéia genérica que o autor do
Ensaio, em sua já assinalada misturança conceitual, emprega e junta a um só termo...
contracanto, baixo melódico, variação na linha melódica e contraponto como procedimentos
de polifonia...”14. Ainda, segundo Picchi, pode-se pensar até num “processo de polifonia
livre” a maneira de Mário de Andrade. (PICCHI: 2012, p.40)
Portanto, a subdivisão do acompanhamento em linhas melódicas (vozes) e as
combinações possíveis destas linhas podem gerar melodias independentes, combinando
harmonicamente com a melodia principal e estabelecendo contrapontos.

14
PICCHI: 2012, p.38.
28

No Ensaio, Andrade cita, por duas vezes, o andante da Sonatina nº 1 de Guarnieri


como exemplo de processo de simultaneidade sonora a ser explorado pelos compositores. Este
segundo movimento da Sonatina nº1, com a indicação expressiva Ponteado e bem dengoso, é
uma característica modinha com uma introdução, seguido de um A-B-A e terminando com o
mesmo material da introdução:

Exemplo 5 - Sonatina nº 1 – II mov., cc. 9-11

O trecho acima, dividido em quatro partes, mostra uma linha melódica


acompanhada por um contracanto iniciado pela linha do tenor e passando para a linha do
contralto e um baixo dando o apoio harmônico. Mais a frente, ambas as linhas do tenor e do
contralto farão contraponto à linha melódica e o baixo continua como base harmônica. Não é
difícil imaginarmos uma flauta sendo acompanhada por violões ou mesmo um cantor sendo
acompanhado por esses instrumentos. Essa é a ideia de polifonia defendida por Mário, onde
basicamente o acompanhamento estratificava-se em partes ou vozes distintas para se
contrapor à melodia. Logicamente, Guarnieri ultrapassou esta limitação e, nas sonatinas
posteriores, produziu uma polifonia mais trabalhada, com processos imitativos, cânones,
contrapontos, strettos, culminando em duas fugas a duas partes (Sonatinas nº 3 e 6) onde as
seções se apresentam de modo semelhante a uma tradicional fuga barroca.
A polifonia constitui-se talvez no elemento mais característico de toda a obra de
Guarnieri, considerado por muitos como um exímio polifonista.

Forma:
Andrade via as formas consagradas pela tradição, como o allegro de sonata, por
exemplo, com certa inutilidade à música brasileira, pois, neste caso, a forma já se apresentava
saturada e dificilmente poderia o compositor nacional dar alguma nova contribuição. Andrade
critica os compositores brasileiros por não se aproveitarem das formas advindas do populário:
segundo ele, os inúmeros ritmos de danças populares contêm no seu embrião, possíveis
formas autênticas para serem desenvolvidas na nossa música. “Sambas maxixes cocos
chimarritas catiras cururus...Tudo isso está aí pra ser estudado e pra inspirar formas artísticas
29

nacionais.”15. Via na forma variação uma das principais características advindas do nosso
populário e como embrião para a nossa música instrumental de caráter dançante:

Quanto á música pura instrumental possuimos numerosas formas embrionarias. A


forma da Variação é muito comum no populario. O que carece é especificar e
desenvolver nossos processos de variação. Ela ocorre de maneira curiosa nos
maxixes e valsas cariocas sobretudo na maneira de tratar a flauta...Nos cocos a
variação é comum... (“sic”)16.

A Suíte (conjunto de danças muito em moda na música barroca europeia), por não
ser patrimônio de nenhum povo, poderia assumir perfeitamente feições nacionais, segundo
Andrade. Para ele, a métrica binária, os ritmos, o caráter e movimentos variados das formas
de danças isoladas eram ingredientes para uma suíte brasileira. Com isso, segundo Picchi,
“Mário de Andrade propõe a adaptação e conformação do material europeu às necessidades
do nacional...” (PICCHI: 2012, p.44) quando Andrade elege a Suíte de Danças como exemplo
que se adaptaria muito bem entre os nossos compositores.
Concordamos com a crítica que Picchi faz a respeito da vagueza com que Andrade
critica nossos compositores pelo seu poder de criação limitado e por não se aproveitarem do
nosso populário:

...já que Mário de Andrade não estabelece limites claros entre a utilização da forma
clássica e as utilizações retiradas da análise do populário. Onde se constituem os
elementos estruturais fixos? Ou, será que o desenvolvimento pelos compositores dos
motivos dos cocos, parlendas, pregões, etc., enquanto melodias que são do
repositório popular coletivo, levariam à criação formal individual?...(Picchi: 2012,
p.44).

A suíte de danças proposta por Andrade aos moldes da suíte barroca é um espelho
desta, o que confere certo tradicionalismo nos compositores do movimento nacionalista,
incluindo o próprio Andrade, a partir das dificuldades que estes tinham de se desvencilhar da
tradição das formas musicais e da tradição da música tonal. Muitas das nossas danças
folclóricas seguem uma estrutura formal baseada na tradição da música ocidental.
Embora não recomendasse e achasse uma inutilidade o emprego de certas formas
tradicionais, como a forma sonata e seus derivados, Andrade não via problema o compositor
nacional fazer uso delas. Na realidade, o que mais interessava para ele era como o compositor
faria uso das formas tradicionais através daquilo que o populário apresentava. O que seria a

15
Ibid., p.67.
16
Ibid., p.66.
30

suíte de danças imaginada por Andrade e descrita no seu Ensaio senão uma adaptação da
formatação europeia às nossas particularidades?
Andrade cita no seu Ensaio o Trio Brasileiro de Oscar Lourenzo Fernández
(1897-1948) escrito em forma-sonata cíclica. Neste trio, Lourenzo Fernández se utiliza de um
tema popular no qual Andrade tece elogios a maneira como o compositor o distribui dentro do
seu discurso musical, citando que apesar do tradicionalismo formal da obra, ela alcançou uma
“unidade indissolúvel... de lógica admirável”. (ANDRADE: 1972, p.62) Se por um lado o
poeta evitava as formas tradicionais que eram, segundo ele, desvirtuadas, por outro ele não via
problemas se o compositor soubesse utilizar de maneira consciente os elementos musicais
oriundos do populário nas formas consagradas pela tradição.
O que podemos concluir é que embora exista uma preocupação por parte de
Andrade em reestabelecer as bases da criação musical brasileira no que tange as formas
musicais, suas alternativas para a criação a partir do populário nada mais são do que um
aproveitamento do legado da tradição da música tonal adaptado às necessidades do nacional.

Instrumentação:
A Instrumentação, de acordo com o Ensaio de Mário de Andrade, versa sobre o
sentido de adaptação ou aclimatização dos instrumentos como sedimentação do
caracteristicamente nacional na música. Os instrumentos são tanto aqueles oriundos da
tradição sinfônica (os naipes de uma orquestra sinfônica tradicional) quanto aqueles
instrumentos típicos de culturas populares (instrumentos de cordas ou sopros aqui construídos
ou adaptados e os diversos instrumentos de percussão utilizados em aldeias ou povoados).
Esta mimese instrumental que Andrade defende através de uma “transposição”17
instrumental, ou seja, de um instrumento rudimentar, por exemplo, para um instrumento
tradicional não podem ser feitas no intuito de uma simples imitação. A preocupação de
Andrade com a transposição se dá tanto no âmbito da sonoridade quanto no idiomático:

...Porquê é justamente a maneira de tratar o instrumento quer solista quer


concertante que nacionalisará a manifestação instrumental. Nossos sinfonistas
devem de por reparo na maneira com que o povo trata os instrumentos dele e não só
aplica-la pros mesmos instrumentos como transporta-la pra outros mais viaveis
sinfonicamente...Eu tenho sempre combatido os processos tecnicos e o criterio
instrumental que enfraquecem ou desnaturam os caracteres do instrumento e o fazem
sair pra fora das possibilidades essenciais dele...Uma transposição (não falo
propriamente de imitação) da tecnica e dos efeitos dum instrumento sobre o outro
pode ate alargar as possibilidades dêste e pode caracterisar nacionalmente a maneira

17
Logicamente que a palavra transposição, utilizada várias vezes no Ensaio, tem o sentido aqui de
adaptação ou aclimatização e não em relação à harmonia ou à melodia, por exemplo.
31

de o conceber...Ernesto Nazaret soube nalguns dos tangos dele transpor pro piano os
processos flautisticos e a tecnica do cavaquinho sem que perdesse por isso o
pianistico excelente da obra dele... (“sic”) (Andrade; 1972, p.58 e 60)

Ao mesmo tempo em que o poeta nos chama atenção para a adaptação erudita, por
parte do compositor, da maneira peculiar com que o povo trata seu instrumento, ele também
manifesta uma preocupação com os processos técnicos pelos quais essa adaptação se
desenvolve, em uma referência ao tipo de tratamento ou abordagem instrumental que respeite
as características próprias do instrumento.
A ideia de uma orquestra típica é vista com cuidado, pois isso facilmente
incorreria no exótico, mas, ao mesmo tempo, Andrade de certa forma enaltece as
características rudimentares na feitura dos instrumentos de cordas da “orquestrinha” dos
colonos, conforme descrito abaixo:

Numa fazenda de zona que permaneceu especificamente caipira, tive ocasião de


escutar uma orquestrinha de instrumentos feitos pelos proprios colonos. Dominavam
no solo um violino e um violoncelo...bem nacionais. Eram instrumentos toscos não
tem dúvida mas possuindo uma timbração curiosa meia nasal meia rachada, cujo
caracter é fisiologicamente brasileiro...Ora o timbre sinfonico da tal de orquestrinha
coincidia bem, com a sonoridade musical mais frequente dos solistas e dos
conjuntos vocais brasileiros. (“sic”)(Andrade; 1972, p.55)

Aqui, Andrade faz uma analogia ao som anasalado característico dos conjuntos
vocais brasileiros com o timbre produzido na fabricação rudimentar dos instrumentos de
cordas da zona rural, o que equivaleria naturalmente a uma aproximação desses instrumentos
de cordas ao anasalado da voz cantada do povo brasileiro. De certa forma, Andrade deixa
transparecer o exótico quando enaltece essa sonoridade típica da orquestrinha dos colonos que
ele classifica como fisiologicamente brasileira.
Com relação especificamente a utilização do piano como instrumento de
sonoridade nacionalizante, veremos no próximo subcapítulo mais detalhadamente, como se
deu em Guarnieri o tratamento instrumental nas Sonatinas, ressaltando como o compositor
desenvolveu sua escrita pianística, idiomática e o que está por trás desta escrita idiomática,
definida como escritura (pianismo).
32

1.2. O pianismo nas Sonatinas para piano

A “transposição” do idiomatismo dos instrumentos populares para o instrumental


da música de concerto ocidental, na visão de Andrade, era uma das possibilidades que poderia
enriquecer a composição musical caracteristicamente nacional. Como vimos anteriormente,
quando o poeta fala do que ele denomina de instrumentação no Ensaio, as possibilidades
sonoras de um instrumento se tornam ampliadas na medida em que o compositor consegue
assimilar determinado tipo de sonoridade proveniente do populário e, utilizando os meios
técnicos instrumentais adequados, projeta-o para determinado instrumento.
Portanto, esta espécie de assimilação inconsciente de sonoridades musicais
características advindas da música popular e folclórica, tais como um cantador de rua, as
sonoridades de uma flauta ou de um pandeiro numa roda de samba ou de choro, o rasgueado
do violão, entre tantas outras, acaba se tornando fator determinante de interpretação e de
execução para o instrumentista.
Esta “transposição” definida por Andrade implica em dois fatores que estão
relacionados: através de uma escrita típica e utilizando-se dos meios técnicos apropriados para
isso, o compositor transpõe para determinado instrumento um determinado tipo de sonoridade
característico do populário. Esta escrita característica gera uma escritura sugestiva de
sonoridade, expressiva, representativa, tornando-se importante meio à interpretação musical
para o instrumentista. Este processo de escrita que gera uma escritura está implícito
respectivamente na ideia de pianístico e de pianismo. Neste sentido, o conceito de pianístico,
ou seja, como Guarnieri trata o piano funcionalmente, e também o conceito de pianismo, ou
seja, aquilo que está por trás da escrita pianística entram em jogo como processos extensivos e
complementares entre si.
Ambos os conceitos são levantados pelo compositor e pianista Achille Picchi e
são pertinentes aos propósitos deste estudo interpretativo e de execução das Sonatinas:

...falar de pianismo é falar de escrita para piano e sua respectiva escritura pianística,
isto é, aquilo que se esconde por detrás dessa escrita que é o êmulo da execução por
um executante que naturalmente domine todas as técnicas mecânicas de seu
instrumento. Assim, a escrita (grifo do autor) pianística diz respeito à ideia de
escrever de maneira típica, apropriada, idiomática a execução pelo piano,
envolvendo os recursos técnico-instrumentais (toque, dedilhado ao teclado, o uso
dos pedais) como expressivos e decorrentes. Diz igualmente respeito à
exequibilidade dessa escrita, contando com a tradição do instrumento, mesmo que
não paradigmática. A escritura diz respeito à intenção de escrita pianística, isto é, o
que representa de um ponto de vista que vai do instrumental sugestivo (timbres) até
o estilo composicional (uso de clichês, ou constâncias técnicas), além de tentativas
relacionais do instrumento, enquanto escrita, com outras ideias musicais, às vezes
extramusicais. Explicitando melhor, diríamos que escrita está para técnica assim
33

como escritura está para a expressão pianística, de forma que a escrita não
representa exatamente o potencial expressivo do instrumento. Indo mais além
diríamos que a escrita pode ser decodificada sem o concurso da escritura; já para a
escritura é necessário que se realize uma análise. (PICCHI: 2010, p.27 e 28)

Ter pianismo implica em ser pianístico. O pianismo é extensivo ao problema de


ser pianístico. Daí a afirmação de serem complementares, mas ao mesmo tempo distintos:
“...o pianístico como o mecânico e funcional e o pianismo transcendendo à mecânica e indo
da escrita decodificada para a escritura, como recurso estilístico composicional...” (PICCHI:
2010) É possível relacionarmos o pianístico com a escrita e o pianismo com a escritura.
Com o passar do tempo, a escrita pianística acompanhou a evolução do
instrumento, ou seja, os compositores cada vez mais foram incorporando ao teclado recursos
técnico-estilísticos novos, desenvolvendo assim cada vez mais a escrita do instrumento.
Segundo Picchi, os compositores incorporaram cada vez mais o gesto instrumental na escrita,
e assim, ampliando a escritura: ...“a composição incorporava cada vez mais a escritura à
escrita em forma de gesto composicional.” (PICCHI, 2010, p.29) O gesto está ligado à escrita,
ao código, à imagem que se tem da grafia musical:

Pode-se remeter tanto ao gesto físico como ao mental. Sendo o físico basicamente a
expressão do intérprete, isto é, o compositor enquanto intérprete da obra realiza um
posicionamento pianístico, ou um grupo de posições geográficas e a transfere para a
codificação; sendo o mental se remete tanto à referência ao gesto físico quanto ao
caminho sonoro, ou seja, o pensamento propriamente musical ou estilístico musical,
se isto representar uma constância composicional. (ZAGONEL, 1992 apud
PICCHI, 2010)

Dessa forma, pode se estabelecer uma correlação entre o gesto físico com o gesto
mental, ou seja, a escrita com a escritura como complementares: da escrita enquanto
representação surge a escritura enquanto organização do pensamento musical. O pianismo
como processo diz respeito então à ligação entre a escrita (código) e a escritura (pensamento e
intenção).
A observação do fenômeno do pianismo, segundo Picchi, leva em consideração
dois fatores: o estilo do compositor através de costumes de escrita e escritura e, também, pelo
uso funcional da escrita pianística. Estes fatores se traduzem na maneira como o compositor
aborda o instrumento, o qual se pode até distinguir se uma obra para piano foi escrita por um
compositor pianista ou foi escrita por um compositor não pianista.
34

Existe uma maneira ou intenção como Guarnieri trata a sonoridade do piano nas
Sonatinas que valoriza as concepções interpretativas e que eram também importantes como
elemento afirmador de estilo nas obras dos compositores nacionalistas.
No caso específico do tratamento do piano por Guarnieri podemos observar um
compositor pianista escrevendo para o seu instrumento e, portanto, conhecedor da técnica
instrumental pianística e da melhor forma de atingir a sonoridade de que precisava. Vemos,
no conjunto das Sonatinas, uma íntima interpretação do compositor, ora mais explicita, ora
mais velada, dos elementos musicais provenientes do popular e do folclórico no seu discurso
musical. Digamos: uma adaptação de atmosferas dentro de uma unidade formal que é a forma
sonata. Além disso, observamos nesta coletânea uma constância no desenvolvimento do seu
discurso musical traduzindo-se num estilo musical próprio. Tanto as inspirações advindas do
populário quanto o uso de clichês ou constâncias técnicas dizem respeito ao seu pianismo.
Segundo o musicólogo Ênio Squeff, em seu comentário sobre a Sonatina nº6, por
exemplo, enfatiza suas feições nacionalistas veladas:

Esse compositor persiste nos procedimentos que o caracterizam como


“nacionalista”. Mas o caráter “nacional” desta sua Sonatina de número seis, escrita
em 1965, estimula a pensar que o contraponto politonal do processo ideológico dos
outros tempos cedeu a uma textura complexa, onde a feição do “choro” do primeiro
movimento, ainda que indelével (bastando que se atente para as acentuações exatas
no segundo tempo das colcheias), já não é mais tão explícita quanto antes. O
abandono do princípio-primário cedeu, enfim, ao nacionalismo virtual: o nacional
está aqui permeado pelo universo musical contemporâneo. (Squeff apud Verhaalen,
2001)

Esta observação sobre a velada feição de choro do movimento inicial é uma


questão do pianismo implícito numa escrita pianística. Na escrita do trecho inicial da Sonatina
nº6 abaixo, dissonante e a duas vozes em contraponto, podemos observar que, nos
deslocamentos das frases ao longo dos compassos, existem sequencias rítmico-melódicas
sincopadas provocadas pelas sequências melódicas da m.d. com as síncopas da m.e que
sugerem algo familiar ao choro, como nos cc.5-7:
35

Exemplo 6 - Sonatina nº6 - I movimento, cc.1-10

E, ainda neste exemplo, os saltos melódicos seguidos de movimentos


descendentes da m.d. nos c. 8-10, sobretudo pelo fato de o ápice melódico se dar no
contratempo, é uma peculiaridade comum na nossa música popular, como vimos
anteriormente ao falarmos da melodia. No exemplo acima, o choro não explícito, escondido
em uma textura complexa, é também um dos exemplos de assimilação inconsciente a que M.
de Andrade falava em relação à última fase de interiorização do folclore pelo artista.
A fuga da Sonatina nº3 é outro exemplo de adaptação de elementos musicais
provenientes do popular ou do folclórico em uma técnica de composição tradicional, só que
desta vez o compositor o faz de maneira mais explicita. Esta fuga a duas vozes apresenta
seções bem delineadas em relação ao esquema básico de uma fuga: uma exposição seguida de
três episódios e três reexposições intercaladas, uma ponte e uma reexposição final, ou seja, ela
respeita as alternâncias de exposições e episódios e as relações de 5as entre as exposições,
além de outras características. Seu caráter ritmicamente sincopado sugere um choro ou
mesmo algo em torno de um tango brasileiro:
36

Exemplo 7 - Sonatina nº3 - III mov., cc.11-19

Ambos os exemplos citados são detalhes do pianismo existentes em Guarnieri e


que representam o seu estilo composicional e a sua maneira de abordar o instrumento.
Inúmeros exemplos podem ser destacados no conjunto das Sonatinas em que o compositor,
implícita ou explicitamente, cria seu pianismo através de elementos musicais que remetem a
música popular ou folclórica nacional, ou mesmo, constâncias ou costumes de escrita que leva
a uma escritura. Para o pianista, obviamente, estas ambiências sonoras acabam se tornando
um detalhe interpretativo importante, pois irão determinar a sua maneira de execução,
influindo em detalhes, tais como, utilização dos pedais, da dinâmica, do andamento e do
timbre.
A utilização do tresillo18 que, por si só, constitui-se numa rítmica sincopada, é
muito comum na música de Guarnieri e é encontrado abundantemente nas suas Sonatinas para
piano. Este padrão rítmico que é uma característica do seu pianismo está intimamente ligado
às danças e ritmos característicos brasileiros, tais como o tango brasileiro (maxixe), o choro, o
samba, a milonga rio grandense, a catira, o caterete, constituindo-se numa constante no seu
estilo composicional:

18
Fórmula rítmica derivada do ritmo da habanera e especialmente presente na música cubana e
que influenciou um conjunto de gêneros musicais tanto na América central como na do sul. Basicamente
constitui-se da divisão rítmica proporcionada pela proporção 3:3:2.
37

Exemplo 8 - Sonatina nº1 - III mov. cc.13- 14

Exemplo 9 - Sonatina nº3 - I mov. cc. 30- 32

Exemplo 10 - Sonatina nº4 - III mov. cc. 38-41

Os trechos acima são três situações onde o tresillo se manifesta como uma
maneira do compositor pontuar determinado tema, ou seção, constituindo uma forma de variar
e manter a atenção no seu discurso. Unidades de tempo irregulares, como observamos nos
exemplos acima, a utilização de fórmulas de compassos irregulares tais como 5/8 ou 7/8, ou
mesmo subdivisões binárias escritas como se fossem ternárias são elementos constantes da
sua escrita que levam a uma escritura pertinente à dança ou a ritmos característicos, ou
mesmo como elemento dinâmico do seu discurso musical, caracterizando-se como estilo
composicional.
Outra característica de seu pianismo particular é observada na maneira como ele
finaliza muito dos seus movimentos, principalmente os primeiros e terceiros. Guarnieri quase
sempre desloca a acentuação natural do compasso através de acordes ou golpes de oitavas em
regiões extremas do teclado:
38

Exemplo 11 - Sonatina nº2 - III mov., cc. 128-129

Exemplo 12 - Sonatina nº4 - I mov., cc.162-163

Exemplo 13 - Sonatina nº4 - III mov., cc.216-217

Exemplo 14 - Sonatina nº5 - III mov., cc.151-153


39

Exemplo 15 - Sonatina nº6 - I mov., cc. 149-151

Exemplo 16 - Sonatina nº7 - I mov., cc. 123-124

Exemplo 17 - Sonatina nº7 - III mov., cc.116-117

Exemplo 18 - Sonatina nº8 - I mov., cc. 89-90

Exemplo 19 - Sonatina nº8 - II mov., cc.48-49


40

Exemplo 20 - Sonatina nº8 - III mov., cc.55-57

Interessante notarmos, nos exemplos acima, que a tensão nas cadências finais
ou conclusivas dos movimentos, que na sua maioria estão em dinâmicas e tessituras
extremas, é aumentada ainda mais com o deslocamento que estes ataques produzem em
relação às métricas em que estão inseridas. Como podemos observar, estes deslocamentos
são provocados ou por síncopa ou por contratempo ou por mudanças de fórmula de
compasso. O gesto musical provocado pela escrita em stacatto, produzindo uma
sonoridade propositalmente seca, deve ser executado estritamente no tempo para,
justamente, produzir o efeito do deslocamento métrico, como uma quebra definitiva no
discurso musical. Nestes casos, a escrita pianística leva a uma escritura estilística própria
do compositor, cujo efeito está em percebermos a cadência final ritmicamente fora da
pulsação normal do compasso.
41

2. A LINGUAGEM MUSICAL DAS SONATINAS PARA PIANO

De maneira geral, dentro do universo que compõe suas oito Sonatinas para
piano, Guarnieri se mantém coerente quanto à estrutura formal da sonata e apresenta certa
complexidade crescente no tratamento instrumental do ponto de vista técnico e crescente
também principalmente quanto ao tratamento dispensado à melodia e à harmonia, sendo a
dissonância a principal característica destes.
Neste capítulo, abordaremos como se desenvolve a linguagem musical nas
Sonatinas para piano de Guarnieri a partir de cinco elementos musicais: forma, ritmo,
harmonia, melodia e som (textura e dinâmica). Alguns destes elementos já foram
abordados no primeiro capítulo, enfocados de acordo com o Ensaio sobre a Música
Brasileira de Mário de Andrade. Aqui, estes mesmos elementos serão analisados segundo
o entendimento do intérprete de como estes fenômenos influenciam na formação da
concepção interpretativa das obras.
De maneira geral, analisaremos como cada elemento se apresenta ao longo do
conjunto das Sonatinas. O compositor mantém as mesmas características no uso de cada
um dos elementos ou há alguma transformação (evolução) na linguagem musical? Há
alguma padronização ou utilização de elementos comuns em cada uma das sonatinas?
Como se apresentam caracteristicamente estes elementos?
Estas e outras questões mais específicas, referentes a estes elementos da
linguagem musical utilizada pelo compositor no conjunto das 8 Sonatinas, serão
importantes para os aspectos interpretativos e constituem uma introdução ao capítulo
referente à análise das sonatinas propriamente dita.

2.1. Forma
Como vimos anteriormente, M. de Andrade via a sonata e todos os seus
derivados (a sinfonia, o concerto, etc) com certa inutilidade para a música nacional devido
ao fato de as formas consagradas pela tradição se apresentarem já saturadas e sem
possibilidade do compositor brasileiro dar novas contribuições. Isso não impediu que
Guarnieri explorasse estas formas à sua maneira nas mais diversas combinações
instrumentais.
Em 1933, Guarnieri compõe a Sonata nº2 para violino e piano. Tornaram-se
conhecidas as cartas de 1934 trocadas entre Andrade e Guarnieri a respeito desta obra
especificamente. Andrade faz duras críticas no que diz respeito a diversos fatores técnicos,
42

de criação, estéticos, de concepção geral, entre outros. Em uma dessas cartas, datada de 22
de agosto de 1934, Andrade critica o compositor quanto a sua maneira de tratar as formas
estereotipadas:

...Você repare agora no seu desleixo formalístico (também a forma por si pode
ser uma criação inspirada, vinda do subconsciente...), suas peças instrumentais
pra piano são todas um dormir na rede duma forma já estereotipada que você
jamais se preocupou de transformar. Um eterno ABA que está na Canção
Sertaneja, como na Toada ou na Dança Selvagem. Pra você um alegro de sonata
tem que ter a forma fixa, e nem ao menos você se amola em sutilizá-la,
transformá-la, de forma que, sendo a mesma de todos, tenha a modalidade sua...
Você dorme nas formas já feitas... (SILVA: 2001, p.217)19

No trecho acima, Andrade se referia ao conjunto da obra que Guarnieri havia


produzido até aquele momento e não especificamente a Sonata nº2 para violino e piano
por ele composta em 1933. Como vimos anteriormente no seu Ensaio a respeito de como
Andrade via a questão da forma musical e como ela deveria ser tratada pelo compositor
brasileiro, aqui fica claro a sua crítica no intuito de propor uma transformação que fosse de
encontro às formas estereotipadas, colocando a necessidade de Guarnieri imprimir sua
própria marca.
O fato de Guarnieri ter escrito nove obras para piano estritamente na forma
sonata (oito sonatinas mais a sonata), sem contar as formas derivadas, atestam que o
compositor preferia partir das formas tradicionais, já que, para ele, o respeito às formas
clássicas era imprescindível à criação.
As Sonatinas para piano de Camargo Guarnieri contêm certas feições
neoclássicas no sentido de obedecer aos princípios de equilíbrio formal através de uma
economia de meios, a citação ou alusão a ambiências sonoras nacionais e a técnicas
composicionais tradicionais, tais como a fuga, a predominância de uma textura polifônica,
entre outros atributos. A tradicional alternância de movimentos rápido-lento-rápido
observadas em todas as Sonatinas demonstra sua preocupação em seguir certa
uniformidade de padrão típico do classicismo. Segundo Verhaalen: “Escrevendo em uma
forma que lhe é tão natural, Guarnieri demonstra toda sua maestria para aliar o conteúdo
nacional às formas clássicas.” (VERHAALEN, 2001).
Na estrutura formal dos primeiros movimentos dispensado às Sonatinas,
vimos que o compositor as desenvolve respeitando a ordem das seções nos primeiros

19
Trecho da carta retirado do livro organizado por Flávio Silva. As palavras em itálico estão
como apresentadas no livro.
43

movimentos, ou seja, exposição de dois ou três temas contrastantes seguido de um


desenvolvimento, uma reexposição e uma coda:

Exposição - A Desenvolvimento - B Reexposição - A

Tema A Tema B Tema A Tema C Tema A Transição Tema B Tema A Coda

01-33 33–61 62-77 78-87 88-104 105-109 109-122 122-138 138-145


Tabela 1 – Sonatina nº1

Exposição Desenv. Reexposição

Tema A Tema B TR Tema A Tema B

01-26 27 - 46 47 - 51 52 - 87 87 - 108 109 - 118


Tabela 2 – Sonatina nº2

Exposição Desenv. Reexposição

Tema A TR Tema B Tema A TR Tema B Coda

01-22 22-29 29-43 43-92 92-114 114-119 119-133 134-139


Tabela 3 – Sonatina nº3

Exposição Desenv. Reexposição Coda

Tema A TR Tema B TR TR Tema A TR Tema B TR

01-27 27-33 33-48 48-51 52-85 86-93 93-119 119-125 125-140 140-143 144-163
Tabela 4 – Sonatina nº4

Exposição Desenv. Reexposição

Tema A TR Tema B Tema A Tema B Coda

01-29 30-33 33-56 56-87 87-106 106-133 133-144


Tabela 5 – Sonatina nº5

Exposição Desenvolv. Reexposição

Tema A TR Tema B Tema A Tema B Coda

01-28 28-32 32 - 57 57 - 90 91-116 116 - 143 143 - 151


Tabela 6 – Sonatina nº6

Exposição Reexposição

Tema A Tema B TR Tema C Tema D TR Tema A Tema B Tema C Tr Tema D Coda

1–15 15–26 26-35 35-46 47–60 60-62 62–81 81-94 94-97 98-101 102-113 114 – 124
Tabela 7 – Sonatina nº7
44

Exposição Reexposição

Tema A Tr Tema B Tr Tema A Tr Coda

01-13 13-19 19-43 44-45 46-75 75-78 78 - 90


Tabela 8 – Sonatina nº8

Como observamos nas estruturas formais de cada um dos primeiros


movimentos, com exceção das Sonatinas nº7 e 8 que não apresentam a seção de
desenvolvimento caracterizada, as demais sonatinas têm a exposição, o desenvolvimento e
a reexposição, seguida de pequena coda. Em suas seções internas, há sonatina com 3 temas
(Sonatina nº7) e sonatinas onde nem todos os temas reaparecem na reexposição (Sonatina
nº8) ou aparecem invertidos (Sonatina nº1). O tamanho dos temas geralmente exige certo
esforço para ser dimensionado, pois suas melodias são contínuas e muito variadas.
Os segundos movimentos, todos em andamento lento, seguem, às vezes, a
estrutura ternária A-B-A (Sonatinas nº1, 4 e 6), um A-A’ (Sonatinas nº2, 7 e 8) ou melodia
que não se repete (Sonatinas nº3 e 5). Quase todas exploram uma melodia acompanhada
(canção) com exceção aos andamentos lentos das Sonatinas de nº 6 e de nº7: a seção B do
segundo movimento da Sonatina nº6 explora a caixa de ressonância do piano através de
acordes dissonantes nas extremidades do teclado em fff com ampla utilização dos pedais,
além de explorar um coral de terças e décimas na seção A. No segundo movimento da
Sonatina nº7 o compositor explora uma linha melódica desprovida de qualquer tipo de
material que caracterize acompanhamento, diferentemente do que ocorrem nos outros
segundos movimentos.

A B C B A Coda
01-08 08-16 16-20 20-28 28-34 34-38
Tabela 9 – Sonatina nº1 – II mov.

A A' Coda
01-19 19-32 32-37
Tabela 10 – Sonatina nº2 – II mov.

A Coda
01-33 33-35
Tabela 11 – Sonatina nº3 – II mov.
45

A B A Coda
01-17 18-37 38-50 51-57
Tabela 12 – Sonatina nº4 – II mov.

A
01-16
Tabela 13 – Sonatina nº5 – II mov.

A B A
01-29 29-56 57-84
Tabela 14 – Sonatina nº6 – II mov.

A TR A' Coda
01-18 19-20 21-37 38-48
Tabela 15 – Sonatina nº7 – II mov.

A TR A Coda
01-15 16-26 27-42 43-49
Tabela 16 – Sonatina nº8 – II mov.

Os terceiros movimentos são mais livres: às vezes inspirados pelo ritmo de


uma dança ritmada (A-B-A), como nas Sonatinas nº1 ou 3, ou fugas, como nas Sonatinas
nº3 e 6, ou ainda obedecendo a um esquema formal de um rondó, como nas Sonatinas nº 2,
4 e 5.

A B A’ Coda
01-32 33-57 58-73 74-83
Tabela 17 – Sonatina nº1 – III mov.

A B A C A Coda
01-25 26-42 43-56 57-94 95-118 119-129
Tabela 18 - Sonatina nº2 - III mov.

Reexp.
Seções Exp. 1º Eps. Reexp.I 2º Eps. Reexp.2 3º Eps. Reexp.3 Ponte
Final
Compassos 01-11 11-19 20-30 30-40 41-52 52-64 65-74 75-81 82-90
Tabela 19 - Sonatina nº3 - III mov. – Fuga
46

A B A' C A’’ B Tr A Coda

01-37 38-62 63-90 90 - 136 137-173 174-191 192-197 198-207 207-217


Tabela 20 - Sonatina nº4 - III mov.

A B A' C A C’ Coda
01-34 34-62 62-78 78-109 109-137 137-145 145-153
Tabela 21 - Sonatina nº5 - III mov.

Reexp.
S Exp. 1º Eps. Reexp.I 2º Eps. Reexp.2 3º Eps. Reexp.3 4º Eps Ponte Coda
Final
Cc 01-11 11-16 16-27 27-35 35-45 45-54 54-64 64-73 74-80 81-97 98-114
Tabela 22 - Sonatina nº6 - III mov. - Fuga

A Tr B A Coda
01-43 44-45 46-89 90-107 108-117
Tabela 23 - Sonatina nº7 - III mov.

A B A Coda
01-17 17-34 34-50 51-58
Tabela 24 - Sonatina nº8 - III mov.

As tabelas acima serão novamente expostas nas análises, ordenadas conforme


seu movimento equivalente. Além disso, serão acrescidas de outros elementos, tais como
subseções de cada tema acompanhadas dos números de compassos e os centros harmônicos
mais importantes.

2.2. Ritmo
A questão do ritmo em Guarnieri está diretamente relacionada mais com a
construção da linha melódica dos temas do que propriamente com o desenvolver um ritmo
de dança característico. Embora haja no conjunto das Sonatinas menção a certos ritmos de
dança e ostinatos rítmicos frequentes, a melodia se desenvolve em pé de igualdade com o
ritmo.20 Com exceção da Sonatina nº1, que apresenta em seus três movimentos certa

20
Na música tradicional ocidental, é sabido que ritmo, melodia e harmonia estão intimamente
relacionados ou conjugados para dar significado ao discurso musical. Neste tipo de música, toda melodia
apresenta um ritmo implícito e, de certa forma, também uma harmonia implícita. Fica claro que a divisão
47

uniformidade métrica, em todas as outras o compositor se vale de vários recursos para


evitar a inflexibilidade métrica dos temas e seus desenvolvimentos, principalmente nos
temas dos primeiros movimentos.
A Sonatina nº2, apresenta de forma bem clara, uma polimetria muito
característica em Guarnieri que se apresenta de forma velada no primeiro movimento e de
forma explicita no último movimento. A polimetria velada ocorre em praticamente todas as
sonatinas para piano, mas este terceiro movimento da Sonatina nº2 é o único em que o
compositor apresenta esta polimetria explicitamente, utilizando-se de duas fórmulas de
compassos, binário simples para a m.d. e ternário simples na m.e.. Abaixo, mostramos um
exemplo de polimetria implícita seguido de outro exemplo com polimetria explicita:

Exemplo 21 - Sonatina nº2 - I mov., cc.1-5

Exemplo 22 - Sonatina nº2 - III mov., cc. 1-3

No exemplo 21, temos, na m.e., agrupamentos de seis colcheias divididas de


três em três, conforme articulação a partir da nota dó, que se repete, formando um ostinato.
O desenho deste ostinato vai de encontro à linha melódica da m.d., onde o desenho em
pares das colcheias obedece à divisão normal do compasso. Já no exemplo 22, a polimetria
apresenta-se graficamente pela utilização do binário da m.d. contra o ternário da m.e..
Mesmo aqui, o compositor ainda utiliza-se de um ternário na m.e. agrupado como se fosse

destes três elementos aqui se dá para fins analíticos, com o intuito de estudar particularidades inerentes a cada
um destes elementos.
48

um binário composto, justamente pela caracterização de um ostinato marcado pelas


semínimas pontuadas dos baixos.
As mudanças frequentes de fórmulas de compassos são também comuns, mas
estas mudanças, de certa forma, são sentidas muito mais no aspecto melódico dos temas,
pois alteram o sentido das frases e geram certa assimetria no discurso das mesmas: o
segundo tema da Sonatina nº4, por exemplo, formado por uma linha melódica em terças,
utiliza-se de 2/4, 3/4, 9/16 e 5/8. O sentido das frases como perguntas e respostas ou
antecedente e consequente acaba sendo mais livre, não encaixando a uma métrica
quadrada. Isso ocorre também logo no início do primeiro tema da Sonatina nº5, onde o
tema é construído em quatro fórmulas de compassos: o compositor se utiliza desse recurso
com muito mais frequência nas três últimas sonatinas.
De modo geral, Guarnieri evita em seu discurso musical a uniformidade
métrica e a utilização banal da rítmica em função de um discurso onde as frases dos temas
apresente flexibilidade no seu desenvolvimento, o que vai se refletir na agógica da
execução instrumental.

2.3. Melodia

Lembramos que a melodia ou a linha melódica não anda sozinha sem o amparo
do ritmo e da harmonia que lhe dê um sentido. Portanto, observações das características da
linha melódica, seus contornos e direcionamentos, não podem prescindir de intervenções
harmônicas ou rítmicas importantes e que dão suporte à melodia.
Nas Sonatinas para piano de Guarnieri a linha melódica de alguns dos temas é
moldada pelas flexibilizações que ocorrem no ritmo. As assimetrias rítmicas
proporcionadas pela polimetria e pela utilização de diferentes fórmulas de compassos
proporcionam uma linha melódica caracteristicamente livre, contínua e quase sem
repetições, o que dá um ar de espontaneidade ao discurso musical.
Com exceção da Sonatina nº1, Sonatina nº3 e parte da Sonatina nº4, que
apresentam linhas melódicas e temas mais padronizados ou dentro de uma métrica
uniforme, onde podem ser identificadas facilmente perguntas e respostas ou frases
antecedentes e consequentes, as demais apresentam assimetrias, como podemos observar
nos exemplos abaixo, onde destacamos apenas as linhas melódicas.
O exemplo 23 mostra o tema em desenvolvimento contínuo, cujas notas não se
repetem, uma sucessão de figuras disposta de maneira variável e alternância dos
49

compassos 4/8 e 6/8. Nestas condições, há uma liberdade discursiva, pois estão ausentes a
repetição ou motivos que se destacam pela repetição:

Exemplo 23 - Sonatina nº2 - II mov., m.e. cc.1-18

Este é o tema do segundo movimento da Sonatina nº2, executado pela m.e. ao


mesmo tempo que se desenvolve na m.d. um ostinato agrupado de maneira deslocada dos
compassos (ver anexos). No exemplo 21 a regularidade métrica do tema inicial desta
mesma sonatina apresenta-se camuflada pelos agrupamentos deslocados da m.e. e no
exemplo 22 o mesmo ocorre na polimetria. Em ambos os casos, na junção das partes, fica
enfraquecida o sentido métrico da linha melódica, deixando o discurso melódico mais
fluído e flexível, nada preso às constâncias métricas rígidas.
No exemplo 24, o tema inicial da Sonatina nº5 há alternâncias de fórmulas de
compasso simples: 5/4, 2/2, 3/2 e 3/4. Essas mudanças constantes de fórmulas de compasso
são utilizadas para acomodar a estrutura das semi-frases, que tem número de notas
desiguais entre si, dentro dos compassos:

Exemplo 24 - Sonatina nº5 - I mov., m.d. cc.1-9

No trecho acima, apresentamos duas frases completas: a primeira abrangendo


quatro semi-frases (cc.1-5) e a segunda duas frases (cc.5-9). Assim, as duas primeiras
semi-frases do tema (cc.1 ao ré do c.3) resolvem nas duas semi-frases seguintes (anacruse
do c.3 até o c.5) formando então a primeira frase. A semi-frase seguinte, uma 4ª abaixo da
50

frase inicial (cc.5-6) tem seu complemento na semi-frase seguinte a partir da nota si
(anacruse do c. 6 até o mi inicial do c.9). Portanto esse padrão irregular de frases e semi-
frases com as constantes mudanças de fórmula de compassos dá uma liberdade ou
espontaneidade que caracterizam o tema, o que deverá refletir na sua execução.
O exemplo 25, referente ao primeiro tema da Sonatina nº6, apresenta uma linha
melódica nos primeiros nove compassos dentro de uma métrica regular, mas a maneira
como o compositor agrupa as notas através de articulações que atravessam a divisão
natural do grupo das quatro colcheias faz com que o sentido métrico se torne algo difícil de
ser notado:

Exemplo 25 - Sonatina nº6 - I mov., m.d. cc.1-13

A partir do c. 10 onde se iniciam as alternâncias de fórmulas de compassos, a


percepção métrica se perde de vez. Logicamente outros fatores entram em jogo aqui, tais
como as articulações de fraseado e o movimento sincopado da m.e. (ver anexo), que não
aparecem no exemplo, o que contribui para a assimetria da linha melódica.
A mesma coisa ocorre na frase inicial da Sonatina nº7, ex. 26. Seu tema inicial
apresenta-se em alternância de diferentes fórmulas de compassos (2/2, 3/2 e 5/4).
51

Exemplo 26 - Sonatina nº7 - I mov., m.d. cc.1-12

Com exceção dos cc. 5-7, onde o motivo inicial é exposto com certa
uniformidade, toda a linha melódica restante é fragmentada e formada por saltos. As frases
irregulares aqui se tornam mais evidentes pelas notas acentuadas e pela destituição de
sentido tonal do trecho.
O mesmo ocorre no exemplo 27 onde os dez primeiros compassos em 2/2
apresenta uma única linha melódica não acompanhada. Esta linha melódica mostra certo
padrão nos quatro primeiros compassos devido ao desenho melódico onde as intervenções
da m.e. ocorrem nas mudanças de compassos. A partir do c.5, a linha melódica passa a ser
agrupada em frases de tamanhos diferentes, com pequenas intervenções da m.e. nos
contratempos:
52

Exemplo 27 - Sonatina nº8 - I mov., cc.1-11

Como vimos, para falar sobre o desenvolvimento melódico nas Sonatinas para
piano de Guarnieri se torna imprescindível levarmos em consideração os aspectos rítmicos
embutidos na melodia, pois esses aspectos dão a natureza irregular, assimétricas das frases,
características de seu estilo. Essas frases assimétricas, de certa forma, coincidem com o
exposto no Ensaio, mencionado no capítulo 1 sobre a ideia de ritmo, onde, segundo Mário
de Andrade, a música popular brasileira ou mesmo a música folclórica tem processos de
rítmica oratória desprovidos de métrica quadrada e, com isso, os compositores brasileiros
deveriam se inspirar na prosódia do canto. Independente deste fato, esta flexibilidade
melódica se torna um fator importante no entendimento de como essas frases deverão ser
executadas pelo instrumentista.

2.4. Harmonia
O desenvolvimento da harmonia nas sonatinas para piano de Guarnieri, ou seja,
as transformações harmônicas verificadas no seu discurso musical sugerem uma ampliação
dos elementos utilizados21 e, consequentemente, um aumento progressivo da dissonância.
Freire (1984) separa sua análise harmônica das Sonatinas para piano em dois
grupos: sonatinas nº1, 3, 4 e 5 onde as relações tonais ainda são mais evidentes, com uso

21
Elementos da harmonia tais como: tipos de acordes utilizados, tipos de escalas, diatonismo,
cromatismo, progressões, entre outros.
53

mais intenso do modalismo e, num segundo grupo22 as Sonatinas nº 2, nº6 e nº7, onde seu
estilo é atonal livre, com muita utilização do cromatismo, mais preocupado com o
desenvolvimento intervalar e para além da funcionalidade harmônica. (FREIRE, 1984,
p.137)
As análises das Sonatinas para piano feitas por Verhaalen (2001), Mendonça
(2001) e Bencke (2010) corroboram a percepção de um distanciamento gradativo da
tonalidade até precisamente a Sonatina nº5, quando o compositor transforma sua
linguagem harmônica através de um atonalismo livre a partir da Sonatina nº6,
acompanhado por uma utilização mais ampla da tessitura instrumental.
De fato, suas três últimas sonatinas apresentam-se mais complexas em termos
harmônicos e estruturais em relação às anteriores: utilização mais acentuada do
cromatismo, de acordes por superposição de quartas e quintas e, também, segundas e
nonas. Isso, de certa forma, faz da dissonância um elemento comum no seu discurso,
permitindo que outros elementos da estrutura musical reforcem pontos culminantes ou de
relativo repouso.

2.5. Som - Textura


O emprego de uma textura polifônica é evidente em quase todos os
movimentos de todo o conjunto das Sonatinas. É uma polifonia ora despretensiosa, livre,
sem a preocupação contrapontística de produzir processos fugados, como no segundo
movimento da sonatina nº8 e no primeiro movimento da Sonatina nº5 apresentados abaixo,
ora mais rebuscados onde podemos presenciar processos imitativos, contrapontos, strettos,
culminando, como vimos, em dois movimentos estritamente fugados nas Sonatinas nos3 e
6.
Onde há melodia acompanhada, por exemplo, esse acompanhamento se dá
como mencionamos acima, por divisão em vozes distintas, como no caso do II movimento
da Sonatina nº8. Aqui, são visíveis as três vozes: baixo sincopado, as mínimas pontuadas e
a linha melódica:

22
A pesquisadora não inclui a última Sonatina de Guarnieri, a de nº 8, provavelmente por
questão de tempo da publicação da obra com a conclusão de sua tese.
54

Exemplo 28 - Sonatina nº8 - II movimento, cc.1-3

De certa forma, essa divisão nas vozes dos baixos deixa mais claro ao
instrumentista a possibilidade de diferenciação de toques para uma hierarquização sonora
do trecho.
Na Sonatina nº5, início do I movimento, temos o tema inicial na m.d.
acompanhado por outra linha melódica independente na m.e.. Esse tipo de escrita a duas
vozes é muito comum entre os movimentos das sonatinas, em que a segunda voz,
normalmente tocada pela m.e, é praticamente um contracanto da melodia principal, além
de dar suporte harmônico a ela:

Exemplo 29 - Sonatina nº5 - I movimento, cc.1-3

Nas Sonatinas nº 3 e nº6 o discurso polifônico se materializa em fugas a duas


vozes nos últimos movimentos de ambas: na terceira o tratamento modal dado à linha
melódica está ancorado por funções harmônicas tonais enquanto que na fuga da sexta
sonatina há uma perda do sentido funcional harmônico devido à própria linguagem
utilizada:
55

Exemplo 30 - Sonatina nº3 - III movimento, cc.1-11

Exemplo 31 - Sonatina nº6 - III movimento, cc.1-11


56

Embora concebidas em períodos distintos dentro da produção do compositor23


e, portanto, sujeitas às diferenças no tratamento dos elementos musicais, estas fugas se
desenvolvem de maneira equilibrada nas alternâncias entre suas seções, ou seja, entre os
episódios e as reexposições.
Os três movimentos da Sonatina nº 2 assemelham-se a invenções a duas vozes,
pois seus temas, principalmente no primeiro e no terceiro movimento, utilizam-se de notas
simples e raramente aparecem blocos de acordes. Os principais temas desta sonatina são
acompanhados por ostinato em uma das vozes.
Em muitos momentos, mudanças na textura passam a ser um elemento de
contraste entre os temas ou entre as seções. A Sonatina nº 4 é um bom exemplo de
mudança de textura para caracterizar seus temas. Se observarmos seus dois temas no
primeiro movimento verificaremos que o tema inicial (cc.1-25) é essencialmente rítmico
enquanto que o segundo tema (cc. 33-48) é melódico. No terceiro movimento desta mesma
sonatina, um rondó, as seções são caracterizadas por fortes mudanças rítmicas entre as
seções intermediárias B, C e D. A seção que se repete, a seção A, inicia-se como melodia
acompanhada, volta como em processo imitativo e reaparece mais uma vez como melodia
acompanhada, mas com modificações.
Dinâmica
De maneira geral, Guarnieri recorre com frequência à utilização de diversos
tipos de sinais de dinâmica e de articulação de notas no desenvolvimento do seu discurso
musical.
Intensidades mais extremas, como pp ou ppp e ff ou fff são encontrados com
mais frequências nas últimas sonatinas, coincidentemente onde o compositor mais se
utiliza das regiões extremas do piano. Nestas Sonatinas estas intensidades extremas
ocupam trechos mais extensos, como é o caso, por exemplo, do segundo tema do primeiro
movimento da Sonatina nº 6 onde o f percorre 25 compassos (cc.32-56) ininterruptos, ou
30 compassos em f ou ff (cc.35-64) do primeiro movimento da Sonatina nº7. Logicamente
que sonoridades intensas ocorrem em todas, mas, no caso das outras sonatinas, ocorrem em
trechos passageiros apenas para destacar pontos culminantes. Longos pp ou ppp ficam
reservados para os movimentos intermediários.
Os sinais de articulação, tais como stacattos, legatos, tenutos (-), marcatos (>),
sforzatos e martelatos (^), além das chaves de aumento de diminuição gradativa de

23
A fuga da Sonatina nº3 data de 1937 e a da Sonatina nº6 é de 1965.
57

intensidade, diferenciam temas, marcam frases e seções, enaltecem pontos culminantes,


destacam determinada nota, grupo de notas ou acorde(s).
Dentre todos esses tipos de sinais de articulação utilizados por Guarnieri o que
mais chama nossa atenção são as ligaduras de fraseados de diversos tamanhos, que podem
abranger de duas notas até uma frase inteira com grande número de notas. Estas ligaduras
são usadas exaustivamente em todas as Sonatinas e é um dos elementos que mais
dificultam a lógica da execução das diferentes frases, pois requer um entendimento textual
da partitura para percebermos a trama das frases interligadas umas com as outras,
moldando certo diálogo entre elas. Além disso, requerem uma coordenação entre as mãos
do pianista, pois geralmente, elas se apresentam assimétricas ou em defasagem umas com
as outras devido à independência das vozes pela escrita polifônica.
58

3. ANÁLISE MUSICAL E EXECUÇÃO INTERPRETATIVA

A execução interpretativa de uma peça musical é para o músico intérprete o


processo final e o objetivo mais importante advindos da sua relação com o texto musical
(partitura) e também resultado de suas decisões interpretativas. Fatores históricos, relações
entre os signos musicais e, ainda, questões próprias referentes à execução instrumental são
facetas que devem também ser levadas em consideração na execução interpretativa.
Laboissière afirma a importância dos signos musicais na reflexão sobre
interpretação:

...o conhecimento dos signos musicais apresentados em forma gráfica ou sonora


– e suas características -, conduz o pensamento por um caminho lógico, se bem
que subjetivado, o que faz a “diferença” na compreensão e na interpretação da
música. Nesse caso não tem como se falar de música somente como “algo
sensível”, mas entender a lógica dessa linguagem, absorver as causas desse “algo
sensível”, os meios para o seu conhecimento e dominar a técnica necessária para
gerar o gesto correspondente à sua expressão. É então que se determinam
momentaneamente a apreensão, a idéia, a crença da completude na realização
interpretativa daquela obra, exatamente pela diversidade que os signos
comportam, em razão de não serem totalizantes e unívocos como significação
musical. (LABOISSIÈRE: 2007, p.46 e 47)

Na afirmação acima, Laboissière sugere que a compreensão dos signos


musicais é um primeiro passo no qual o intérprete vai se basear para suas decisões
interpretativas já que eles podem conter ambiguidades na sua interpretação de intérprete
para intérprete. Embora os signos possam representar na partitura algo sistematizado,
ordenado, onde os elementos musicais estão dispostos de acordo com as intenções do
compositor, sua realização final acaba sendo subjetivada pelo intérprete. Mas a
decodificação da partitura musical não deixa de ser o começo do processo interpretativo.
Além disso, a interpretação dos signos musicais sofre influências as mais
diversas, pois eles podem surgir contextualizados de acordo com determinada época ou
mesmo estar inseridos a correntes musicais as mais diversas. Segundo o pianista e
compositor Achille Picchi:

O código musical, embora estrito em muitas de suas atribuições significativas, de


certa forma evolui para conceituações contextualizadas. Assim, as idéias
estético-musicais de determinadas épocas ou correntes musicais podem
retransformar sinais dinâmicos, linhas de fraseado, pontos de expressão que,
considerados fora desse universo, se tomam por diferença interpretativa. É o
caso, por exemplo, da ausência de marcação de linhas de fraseado em algumas
obras do período barroco. Intérpretes são levados a pesquisar os modos de
59

execução da época através de relatos e métodos e assim recriar o processo


fraseológico assumido como padrão, que é a base fundamental de
reconhecimento estilístico. O que pode acontecer não só com a época, mas
dentro da obra de apenas um compositor (o caso de Bach, por exemplo, é típico).
A verdade interpretativa é, dessa forma, construída. E essa construção
transforma-se em padrão distintivo do verdadeiro e do falso aplomb da
interpretação da obra. (PICCHI: 2008, p.128)

Fatores históricos e estéticos musicais são elementos que podem perfeitamente


influenciar a maneira como interpretamos os signos musicais, os mesmos signos utilizados
nas diferentes épocas da história da música pelos mais diferentes compositores. Portanto,
interpretação não deixa de ser também uma recriação do texto musical. Mesmo que o
código musical possibilite ao compositor expor suas ideias de maneira sistematizada, sua
realização prática depende de inúmeros fatores extra-musicais.
Com isso, acreditamos que nem tudo de uma obra musical possa ser
explicado ou compreendido através da análise: tanto a obra em si quanto sua interpretação,
e mesmo a execução instrumental passam por questões subjetivas inerentes, entre outras, à
intuição artística. Por outro lado, a partitura musical, como resultado de uma realização
concreta e intencional do compositor e sendo um recurso de expressão o mais próximo e
exato possível do seu pensamento musical, deverá ser sempre um dos pontos de partida
para qualquer tomada de decisão interpretativa. Seja por parte do analista musical ou do
intérprete instrumentista.
Pierre Boulez (1925-2016), conhecido maestro e compositor francês e
também grande pensador musical, escreveu livros e inúmeros artigos sobre os mais
diversos vieses musicais. O compositor expõe sobre a análise musical propriamente dita e
as etapas necessárias ao processo analítico de maneira geral:

[...] os constituintes indispensáveis de um método analítico ativo: deve-se partir


de uma observação tão minuciosa e exata possível dos fatos musicais que nos são
propostos; em seguida, deve-se encontrar um esquema, uma lei de organização
interna que dê conta, com o máximo de coerência, destes fatos; vem, enfim, a
interpretação das leis de composição deduzidas dessa aplicação particular. Todas
essas etapas são necessárias; seria entregar-se a um trabalho de técnico
inteiramente secundário não prosseguir até a etapa capital: a interpretação das
estruturas; a partir daí, e daí somente, poderemos nos certificar de que a obra foi
assimilada e compreendida. (BOULEZ, 1981, p.16)

Boulez fala claramente sob o ponto de vista específico dele como compositor e,
por extensão, do compositor analista, já que um método analítico ativo deve conter “uma
lei de organização interna que dê conta” dos fatos musicais contidos na partitura. Por fim,
segundo Boulez, a interpretação das estruturas musicais seria então o objetivo principal de
60

todo esquema analítico e também de todo o processo analítico. Por outro lado, esta
afirmação de Boulez não contempla o ponto de vista específico do intérprete instrumentista
que, por natureza, apresenta no seu fazer musical questões específicas referentes à
execução instrumental que a análise, por si só, não dá conta, tais como a maneira como
projetamos a sonoridade de uma determinada passagem ou acorde, por exemplo. Questões
acústicas e de performance (gestos de execução, por exemplo) não podem ser
contempladas numa análise, mas influem na execução instrumental como um todo e,
consequentemente, na execução interpretativa.
Sob o ponto de vista do intérprete, reiteramos que acreditamos que essa
interpretação das estruturas musicais promovida pelo processo analítico tenha sua
importância no campo da execução instrumental. Por outro lado, a finalidade da análise
difere entre um analista e um intérprete, ou até mesmo entre um compositor: se para um as
palavras têm que dar conta do resultado de sua análise, para outro o resultado sonoro deve
advir de alguma forma de sua abordagem analítica, ou mesmo, sua análise deve influir
positivamente nas suas tomadas de decisões interpretativas na execução instrumental.
A análise musical em si é uma disciplina autônoma e, por si só, quando bem
realizada e fundamentada, tem sua importância dentro da musicologia. Segundo Dunsby e
Whittall, dois dos maiores especialistas em análise musical da atualidade, a análise
musical:

...não é somente uma disciplina de pleno direito, mas faz parte de um todo maior
chamado musicologia, o estudo sério da música, e porque “estudo” é uma
atividade intelectual, há sempre a impressão de que está sempre na contramão de
certos aspectos da música como uma arte criativa e de performance, com a
inspiração do compositor, com a intuição, estética e recepção crítica do ouvinte,
e com as reações instintivas e interpretativas do executante. Muitos que estão
envolvidos no ensino da música concordarão que os aspectos relativamente
intelectuais e não intelectuais da sua disciplina são aspectos criativos, e de fato
complementares. Necessita-se que não haja conflitos irreconciliáveis, mas sim
uma interação proveitosa... (DUNSBY & WHITTALL: 2011, p.19) 24

Acreditando na autonomia dessa disciplina e enfatizando sua importância, tanto


Dunsby quanto Whittall vêm como necessárias as interações de um trabalho extremamente
intelectual com questões mais instintivas e interpretativas da execução instrumental e até
da composição, entre outras. A experiência sonora da execução instrumental na mente do
intérprete ou mesmo em seu ouvido interno provavelmente vai amparar os rumos de sua

24
Tradução de Norton Dudeque, 2011.
61

análise e vai diferenciar o seu modo de fazer daquele do analista, na qual a sua percepção
sonora da partitura como uma estrutura real estará sujeita às suas técnicas de análise.
Recentemente, a relação entre análise e execução interpretativa enquanto
atividades autônomas têm sido repensada e reconsiderada principalmente por musicólogos
com forte ligação com a prática instrumental e também por músicos instrumentistas que
sentem uma necessidade maior de refletirem de maneira mais sistematizada sobre suas
escolhas interpretativas. Aos poucos, a importância dada à análise musical sobre a
execução interpretativa deixa de ser de subordinação desta em relação àquela: a
constatação de que ambas são atividades igualmente complementares e independentes
permite resultados mais interessantes e criativos oriundos desta importante interação entre
a escrita musical e a execução instrumental.
A “intuição informada”, termo cunhado por John Rink e que deriva de um
engajamento entre análise e execução interpretativa contém dois vieses que são caros a esta
relação: a importância da intuição musical como algo original à criação artística e,
igualmente, a importância da informação contida no texto musical como intenção
composicional.

...Propus igualmente o termo ‘Intuição informada’, que reconhece a importância


da intuição no processo interpretativo e também reconhece que existe
considerável conhecimento e experiência por trás disso – em outras palavras,
que a intuição não necessariamente surge do sentimento e nem de mero capricho.
(RINK: 2002, p.36)25

Para o intérprete o importante é saber lidar com a dinâmica que existe entre a
sua intuição e o pensamento consciente que caracteriza o ato analítico. Neste processo
entre o pensamento intuitivo e o consciente, o histórico de aprendizagem e vivências
musicais e não musicais do intérprete, entre outros fatores, influi positivamente no
resultado de sua execução e na sua lida com os elementos paramétricos de sua análise.

25
“I also proposed the term ‘informed intuition’, which recognises the importance of intuition
in the interpretative process but also that considerable knowledge and experience generally lie behind it – in
other words, that intuition need not come out of the blue, and need not be merely capricious.” Tradução deste
autor.
62

3.1. A análise musical para instrumentistas, segundo John Rink

John Rink, em seu artigo intitulado “Analysis and (or”?) performance”,


explora a análise musical voltada especificamente à execução instrumental, ou seja, ao
intérprete e a dinâmica existente entre pensamento intuitivo e o consciente que
caracterizam o ato da análise em relação a performance. (RINK: 2002, p.35)
Segundo Rink, o contorno (shape)26 e não a estrutura é o mais importante para
o executante, pois ele, apesar de ser algo um tanto quanto vago, é concebido
temporalmente, ao contrário da estrutura (RINK: 2002, p.36). A temporalidade na música é
algo inerente à execução. A música é percebida através do tempo, assim como a forma,
diferentemente da sua estrutura que é fixa. Ainda segundo Rink, “...A temporalidade jaz no
coração da execução e é portanto fundamental à análise do executante. Sua meta principal
é descobrir o contorno da música, tanto quanto os meios de projetá-la, por contraposição a
estrutura...”27
Para Rink, “...a partitura não é “a música”; a “música” não se restringe à
partitura...”28 Assim, os elementos analíticos podem ser influenciados de certa forma por
considerações sobre estilo, gênero, tradição de execução interpretativa, técnica,
instrumento e as qualidades artísticas do intérprete. Portanto, segundo Rink, nem sempre as
decisões impostas pela análise devem ser levadas em consideração e a “intuição
informada” deve guiar ou ao menos influenciar o processo analítico. (RINK: 2002, p.39)
Outro fator importante inerente ao processo analítico diz respeito aos eventos
musicais propriamente dito e a maneira de narrar o que é mais importante, ou o que deve
ser destacado do discurso musical que seja relevante à execução instrumental. Entra em
jogo neste processo uma das coisas mais delicadas e difíceis de realizar que consiste na
escrita da análise propriamente. É muito comum a descrição excessiva dos eventos
musicais ao tomar partido de alguma decisão interpretativa importante.
Rink enfatiza que sem uma descrição gramatical e uma identificação geral ou
específica da função dos elementos musicais dificilmente se teria uma interpretação viável
e isto se dá à primeira vista pela “intuição informada” mencionada acima. Posteriormente,
26
A palavra inglesa shape deve ser entendida aqui como contorno, desenho, como algo que
tem uma forma particular, inerente à própria obra, diferentemente da palavra form que designa algo pré-
estabelecido, como é o caso da forma sonata, por exemplo.
27
“...Temporality lies at the heart of performence and is therefore fundamental to ‘performer’s
analysis’. Its primary goal is to discover the music’s ‘shape’, as opossed to structure, as well as the means of
projecting it... » (RINK : 2002, p.39). Tradução deste autor.
28
“...The score is not ‘the music’; ‘the music’ is not confined to the score...” (RINK : 2002,
p.39)
63

um exame mais pormenorizado de como os vários elementos opera na peça requer algo
além dessa intuição.
De qualquer forma, determinar quais são os aspectos da música que devem ser
destacados ou colocados em evidência e aqueles que devem ficar em segundo plano é a
função básica da análise e, para tanto, deve entrar em jogo a razão, a experiência e a
intuição do intérprete.
Como forma de atender às necessidades dos intérpretes quanto à maneira de
expor o que acontece na música de forma mais consciente e que esteja de acordo ou o mais
próximo possível com a natureza prática da execução instrumental, Rink elenca seis
parâmetros de análise como forma de enriquecer o processo analítico. Estes parâmetros
analíticos estão baseados na temporalidade e no contorno musical como fundamentais para
uma investida analítica:

- Identificação de planos tonais básicos e divisões formais: a forma da musica e


seus alicerces tonais em termos diacrônicos, revelando as principais seções e subseções,
plano tonal e outros aspectos relevantes. O sentido de forma enquanto processo é o que
realmente interessa ao intérprete.

- Gráficos de tempo: gráficos de flutuação de tempo podem ser úteis aos


intérpretes enquanto eles constroem a sua interpretação. Determinar as divisões do tempo
numa peça destacando nuances de aceleração ou ritardandos que ocorrem durante a
execução. Embora seja um tipo de análise um tanto quanto inexata, pelo registro manual do
contorno dos tempos, seria o mais próximo possível de como a música é ouvida pelo
intérprete, uma imagem do processo temporal. Os processos diacrônico e sincrônico
sintetizados nos gráficos estão na maneira como os intérpretes geralmente concebem a
música.

- Gráficos de dinâmica: da mesma forma que os gráficos de tempo, o gráfico de


flutuação de dinâmica é um diagrama onde ambos o diacronismo e o sincronismo,
inerentes à execução, estariam delineados. As principais indicações de dinâmica seriam
dispostas de acordo com os compassos, projetando um contorno no tempo (uma curva de
intensidade) através de uma representação gráfica com pontos culminantes e de declínios.
64

- Análise do contorno melódico e dos motivos / ideias: de certa forma, a ideia


aqui não é detectar motivos ou o conjunto de notas da melodia na partitura. A
representação musical no ouvido interno do intérprete é pouco semelhante à partitura e à
medida que se constrói a interpretação, a notação se transforma numa série de atos físicos
correspondendo a imagens mentais de diversos tipos. O contorno da linha melódica se
desenvolve na mente dos intérpretes como uma linha desenhada num papel, que pode ser
contínua ou não, com altos e baixos de acordo com os registros, que desenham a trajetória
melódica.

- Preparação a uma redução rítmica: Rink sugere aqui uma espécie de técnica
de redução rítmica para auxiliar na percepção relacionada às estruturas de frase, períodos
ou seções. Desta técnica reducionista surgiria um diagrama que mostraria o nível de
extensão, contração, elisão dessas frases, períodos ou seções dentro do discurso musical.

- Renotação da música: consiste de artifícios de se reescrever certas passagens


onde sutilezas rítmicas, nuances de dinâmica, ritmos ocultos, por exemplo, são
especialmente difíceis de serem notadas pela partitura. Até mesmo a distribuição das partes
entre as mãos do pianista, esta notação alternativa pode ser proveitosa.
Por fim, Rink enfatiza que a análise tem sua utilidade, mas também suas
limitações – seja ela realizada de maneira intuitiva ou deliberada – e que a música,
enquanto manifestação artística está acima de qualquer modo de abordagem que tenha por
finalidade única e exclusivamente em compreendê-la. Saber projeta-la é o que importa e o
sucesso da execução instrumental é medido pelo intérprete e a plateia, não tanto pelo rigor
de sua análise ou acuidade técnica, mas por síntese musicalmente coerente e convincente
dos elementos musicais em jogo.
65

4. ANÁLISE DAS SONATINAS E IMPLICAÇÕES INTERPRETATIVAS

A partir de elementos formais básicos em relação às sonatinas, procedemos


nossa abordagem com base em aspectos interpretativos que julgamos importantes como
norteadores de uma visão interpretativa pessoal, levando em consideração particularidades
inerentes à execução instrumental.
As análises apresentadas neste trabalho estão baseadas nos principais tópicos
levantados por John Rink em seu texto intitulado “Analysis and (or?) performance”,
conforme o conceito de temporalidade proposto por esse autor. A partir dos tópicos
apresentados e explicados no sub item do capítulo II (A análise musical para
instrumentistas, segundo John Rink), esta análise promove uma adaptação livre dos tópicos
contidos nesse texto, procurando ajusta-la ao contexto da obra e de seu autor.
Este capítulo está dividido em tópicos pelos quais serão realizadas as
abordagens de aspectos interpretativos de cada um dos movimentos das oito Sonatinas
para piano. São eles: Estrutura Formal, Aspecto Melódico, Rítmico, Tempo, Dinâmica e
Pianismo. Antes das observações relativas a cada um desses itens, apresentamos para cada
uma das sonatinas analisadas, um texto com algumas informações preliminares sobre
aspectos gerais relevantes e que caracterizam a Sonatina em questão como um todo.
Dentro de Estrutura Formal, elaboramos tabela onde delimitamos:
- seções: a exposição, o desenvolvimento e a reexposição e seus respectivos
compassos;
- subseções: estão relacionadas aos temas e seus complementos, a transição
quando houver e a coda e seus respectivos compassos;
- centros: os centros estão relacionados as notas predominantes na subseção ou
seção em que está inserida, de acordo com o conceito de centricidade desenvolvido por J.
Straus em Introduction To Post-Tonal Theory.
Na maioria dos casos, os compassos que abrangem as extensões das seções e
subseções terminam nos mesmos compassos que se iniciam as seções ou subseções
seguintes. Isso se dá por causa do sentido de conclusão das mesmas. Em alguns casos, as
conclusões dessas seções ou subseções se dão nos compassos anteriores ao início das
seções ou subseções subsequentes.
Em relação ao Aspecto Melódico – Rítmico procede-se à análise dos aspectos
rítmico-melódicos de temas, motivos, frases, semi-frases e demais partes complementares
com o intuito de destacar detalhes relevantes entre esses elementos e estabelecem-se
66

relações hierárquicas de importância para a execução interpretativa. Aspectos harmônicos,


quando importantes, podem estar relacionados também a esses parâmetros.
Tempo e Dinâmica – Em relação ao tempo, verificamos como o andamento se
comporta no decorrer de cada um dos movimentos e as principais mudanças que ocorrem
entre as seções e subseções dos temas e entre os temas, bem como se essas mudanças
influenciam os demais parâmetros analíticos. Em relação à dinâmica, averiguamos as
principais mudanças nos níveis de intensidade entre seções, subseções e temas.
Verificamos ainda se há relações entre as oscilações de tempo e de dinâmica e quais outros
elementos musicais podem estar colaborando com essas mudanças.
Pianismo – analisam-se aspectos da escrita pianística que promovem uma
escritura estilística própria do compositor, tais como elementos de influência externa,
constâncias ou costumes de escrita, ambiências sonoras (efeitos) que acabam sugerindo
detalhes de interpretação importantes para o pianista. Esse viés analítico torna-se
interessante e necessário para a execução interpretativa por conter detalhes expressivos que
podem estar por trás da própria escrita pianística, ou seja, determinados detalhes
interpretativos podem ter sua explicação não advinda de uma análise estrutural apenas, mas
através da história ou estilo de uma determinada época ou compositor.
Por se tratar de um conjunto de obras que apresentam basicamente as mesmas
características formais e estruturais, é possível, e até esperado, que este estudo analítico
reconheça particularidades comuns entre as sonatinas. Nesse caso, evitamos a repetição
desses detalhes que já foram motivo de destaque anterior ou, ainda, que não apresentam
relevância aos objetivos propostos nesse trabalho.
Em relação ao cruzamento de informações analíticas entre cada um dos
parâmetros analisados, informamos que particularidades inerentes a um determinado
parâmetro podem ser melhor explicado em outro parâmetro se a relação entre ambos forem
muito próximas: por exemplo, se determinado padrão rítmico estiver forte relação com
questões de dinâmica, esse padrão rítmico pode ser melhor observado sob o ponto de vista
da dinâmica e/ou vice-versa.
67

4.1. SONATINA Nº1 (1928)

Composta em 1928 e dedicada a Mário de Andrade, esta obra inaugural do


conjunto das oito Sonatinas para piano é uma das primeiras obras pianística do compositor,
juntamente com a Dança Brasileira e Canção Sertaneja. De todo o conjunto, esta obra tem
dimensões modestas em relação a todas as outras Sonatinas analisadas.
De maneira geral, as dimensões desta primeira sonatina quanto à tessitura
instrumental e à dinâmica permanecem em torno do Sol1 e Lá5 e entre o p e o f
respectivamente, e em alguns momentos alcançando sonoridades mais extremas como pp e
ff (fortíssimo principalmente no final do terceiro movimento e pianíssimo apenas nos
últimos compassos do 1º e 2º movimentos). Considerando que boa parte do movimento
fica entre p e f, além de mostrar uma preferência por sonoridades mais moderadas e
tessitura reduzida – Guarnieri demonstra equilíbrio na utilização de sonoridades mais
amplas, dadas as características comedidas.
Nos três movimentos predominam diferentes acentos, principalmente
martelatos (^), marcatos (>) e tenutos (-). A variedade e a constante utilização destes
recursos constitui importante meio de expressividade para o compositor diferenciar e
caracterizar seus temas, além de diferenciar vozes. Esta é uma característica geral sua e que
o acompanhará por todo o ciclo das Sonatinas.
Nos primeiro e segundo movimentos especificamente, é interessante
observarmos como o compositor flexibiliza a pulsação da execução através das mudanças
metronômicas frequentes. Além de aumentar as possibilidades expressivas e de contraste
nos movimentos, requer do pianista certo controle na caracterização desses diferentes
estados de ânimo.
Como já mencionamos, em nenhum momento há marcação de pedal nesta e em
todas as outras Sonatinas. As notas pedais, principalmente nos primeiro e terceiro
movimentos, foram um dos parâmetros para a decisão da utilização do pedal tonal e do
sustain (pedal direito). Isto vai servir igualmente na utilização dos pedais nas outras
Sonatinas.
68

(I movimento) - Molengamente

Estrutura Formal

Seções Exposição - A Desenvolvimento - B Reexposição - A

Compassos 01-61 62-104 109-138

Subseções Tema A Tema B Tema A Tema C Tema A Transição Tema B Tema A Coda

Compassos 01-33 33–61 62-77 78-87 88-104 105-109 109-122 122-138 138-145

Desenv.
Centros D-C D-G D-F F escalar de G D-G-C C
tons inteiros

Expressividade molengamente Com alegria molengamente Marcado o canto Com alegria molengamnte

Tabela 25 – Estrutura formal da Sonatina nº1 – I mov.

Este primeiro movimento, escrito na forma sonata, apresenta seções bem


definidas, temas cujas melodias se desenvolvem em pares, ou seja, em frases antecedentes
seguidas por consequentes (perguntas e respostas) e onde os centros seguem basicamente o
sentido tonal modal. Seus dois temas apresentam-se sobre ostinatos ritmicamente
contrastantes entre si: o ostinato será uma característica comum nos acompanhamentos dos
temas das sonatinas de maneira geral. O desenvolvimento apresenta ainda um terceiro tema
contrastante em relação aos temas anteriores. Na reexposição o tema A e o tema B
aparecem trocados em relação à exposição.

Aspecto Melódico – Rítmico


Podemos observar nos exemplos a seguir que os andamentos alterados através
das mudanças metronômicas, o contorno melódico das frases, as diferentes indicações
expressivas entre elas, o uso de sinais de dinâmicas diferentes e a regularidade rítmica do
Tema A em relação ao sincopado dos Temas B e C caracterizam os níveis de contrastes
entre eles: o Tema A tem caráter mais lírico e cantabile em relação ao Tema B que se
apresenta mais marcado e ritmado e o Tema C mais movimentado melodicamente:
69

Exemplo 32 – Tema A - Sonatina nº1 - I movimento, cc.2-9

Exemplo 33 – Tema B – Sonatina nº 1 - I movimento, cc.34-38

Exemplo 34 – Tema C – Sonatina nº 1 - I movimento, cc.78-81

Existem mudanças metronômicas na apresentação de cada tema, como


podemos observar nos exemplos acima. Colaboram ainda para estas mudanças outros
elementos tais como os legatos das frases do Tema A, formados quase exclusivamente por
graus conjuntos. A estabilidade harmônica proporcionada pelo repetido ostinato dão à linha
melódica um caráter mais lírico e cantabile. Nos Temas B e C os marcatos e tenutos
exigem maior vigor na execução, principalmente nas síncopas e contratempos ocasionados
pelos acentos no final de cada compasso do Tema B. Além disso, um ritmo harmônico
mais rápido, ainda nos Temas B e C, faz com que estes Temas sejam mais movidos em
relação ao Tema A.
O aumento do número de vozes que há na apresentação dos Temas B e C em
relação ao Tema A nos permite perceber que, além de colaborar para uma maior
intensidade sonora, exige do pianista um grande controle sonoro para projetar as diferentes
vozes da polifonia, além de um tratamento e planejamento dos planos sonoros.
70

Tempo e Dinâmica
Em relação ao tempo, a mudança na velocidade dos tempos por mudanças
metronômicas entre os temas tem sua importância não apenas por permitir flexibilização na
pulsação, mas também por caracterizar os diferentes estados de ânimo ou de humor entre
eles. Como vimos, essas mudanças estão associadas aos contornos melódicos, às mudanças
na rítmica, aos sinais de dinâmica e às mudanças harmônicas:

Seções Exposição - A Desenvolvimento - B Reexposição - A

Compassos 01-61 62-104 109-138

Subseções Tema A Tema B Tema A Tema C Tema A Transição Tema B Tema A Coda

Compassos 01-33 33–61 62-77 78-87 88-104 105-109 109-122 122-138 138-145

Dinâmica p-mf f mf mf f p-mf p-pp

Tempo  = 63-72  = 96  =63-72  =   = -


Tabela 26 - Tempo e dinâmica da Sonatina nº1, I mov.

A tabela acima mostra que a única mudança na velocidade do tempo que se


destaca é na apresentação do Tema B. Interessante notar que não existe uma preparação da
passagem do tempo mais lento (Tema A) para o tempo mais rápido (Tema B). Em ambas
as vezes que isso ocorre, precisamente nos c. 33 e 109, o compositor escreve “com
alegria” e, além de mudar a indicação metronômica, ele introduz imediatamente o ostinato
do Tema B, repentinamente mudando o humor do trecho. O inverso, do rápido para o mais
lento, ou seja, no retorno do Tema B para a volta ao Tema A, ocorre sempre por
rallentando.
Em relação à dinâmica notamos que, para os Temas A e C, o nível permanece
em torno do mf e o Tema B em f. Crescendos e decrescendo estão associados à frases
ascendentes e descendentes para qualquer um do três temas. A tabela acima mostra a
movimentação apenas no que se refere aos graus dinâmicos, não mencionando as inúmeras
chaves de aumento e diminuição de intensidade associadas às variações agógicas:
De maneira geral o mf é o eixo dinâmico pelo qual o movimento se desenvolve.
Observamos que a intensidade sonora deste movimento permanece em torno do mf e f,
sendo que o f está relacionado ao Tema B. Na prática, são níveis de sonoridade que são
próximos e, portanto, deve-se cuidar para não criar súbitos contrastes dinâmicos.
71

Pianismo
A utilização de ostinatos na apresentação dos temas A e B desta Sonatina é um
procedimento composicional fundamental ao pianismo deste movimento. Estes ostinatos
têm características comuns, tais como seu movimento quase que ondular, as semínimas
pontuadas na linha superior, além das notas mais graves que caracterizam a linha do baixo
pela qual os centros harmônicos se deslocam. Estas notas mais graves, caracterizando-se
como notas pedal, produzem maior efeito no ostinato do tema B (cc.33-60). Aqui, a
utilização do pedal tonal possibilitaria o prolongamento da sonoridade das notas pedais do
baixo, dando mais liberdade na utilização do pedal sustain nas frases da m.d.,
principalmente no trecho entre os cc. 53-60 onde a m.d. executa duas vozes com
sobreposição de sinais de articulação (marcatos e tenutos):

Exemplo 35 - Sonatina nº1- I mov., cc. 56-60

No trecho acima, o gesto de escrita para piano com os marcatos das notas
pedais e as terças sincopadas, por exemplo, nos remetem a uma escritura que lembra uma
típica escrita violonística, algo com característica de sonoridade de um violão através das
terças caipiras, tão comum ao estilo do compositor.
A partir do c.89, na seção de desenvolvimento, uma mudança repentina de
escrita quebra momentaneamente a textura do movimento como um todo: a textura passa a
ser coral, onde uma variante do tema A é apresentada sob uma escala de tons inteiros.
Existe, portanto, uma interrupção passageira na utilização dos ostinatos dos temas A e B
que são preponderantes neste movimento para a entrada dessa variante de A:
72

Exemplo 36 - Sonatina nº1- I mov. – cc.88-96

A utilização da escala de tons inteiros nessa variante do tema A em textura


coral muda momentaneamente o caráter do movimento, até então marcada pelos constantes
ostinatos de ambos os temas. Repentinamente, por oito compassos, a harmonia com
tendência modal passa para outra em tons inteiros, uma das características peculiares da
música do século XX e, em particular, aos compositores impressionistas que tinham uma
predileção por sonoridades resultantes da melodia baseada na relação escalar de tons
inteiros.

(II movimento) - Ponteado e bem dengoso

Estrutura Formal

Seções A B C B’ A Coda

Compassos 1–8 8-16 16 - 20 20 – 28 28 – 34 34 - 38

Tonalidade e B B B – (C – F) - B e e

Ponteado e Cantando Ponteado e bem


Expressividade
bem dengoso amplamente dengoso
Tabela 27 - Estrutura formal da Sonatina nº1 - II mov.

O segundo movimento foi concebido em típica forma ternária de canção e tem


uma escrita polifônica. A seção A se apresenta como uma introdução e encerramento da
canção com andamento ligeiramente mais movido do que as seções intermediárias, como
veremos mais adiante.
A funcionalidade harmônica está presente em todo este movimento e, sendo
assim, consideramos as notas na tabela acima como tonalidades e não dentro do conceito
de centricidade, como fizemos nos outros movimentos.
73

Aspecto melódico – Rítmico


Este movimento está concebido inteiramente em linhas (vozes): a linha
superior onde a melodia principal é ouvida, a linha do contralto que na maior parte das
vezes faz contraponto com a linha superior, o tenor que complementa as vozes e muitas
vezes, com suas síncopas, provoca apojaturas e retardos na harmonia e os baixos com sua
condução harmônica.
A linha melódica desta canção, apresentada nas seções B, C e B’, tem como
elemento principal o seguinte motivo rítmico-melódico:

Exemplo 37 – Sonatina nº1- II mov. - Motivo rítmico-melódico principal

Anacrústico, este motivo é o elemento motor de expressividade de toda a parte


central deste movimento. Recaem sobre ele dois diferentes sinais de articulação (tenutos e
marcatos) e de dinâmica (mf e ff), reforçando sua importância como elemento condutor de
expressividade da linha melódica.

Dinâmica e Tempo
A extensão dinâmica deste movimento permanece em níveis intermediários,
como no movimento anterior. O ff do c.24 a 25 está associado muito mais a uma
intensidade melódica, de carga expressiva, do que propriamente harmônica, ainda que o
surpreendente dó maior tenha aparecido no c.24, dando novo sentido a melodia. Na tabela
abaixo, expomos o percurso da dinâmica e as mudanças ocorridas em relação ao tempo:

Seções A B C B’ A Coda
Compassos 1–8 8 - 16 16 - 20 20 – 28 28 – 34 34 - 38

Tonalidade e B B B – (C – F) - B e e

Dinâmica p mf mf ff-f-mf p pp
Tempo  =   =   = 
Tabela 28 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº1, II mov.
74

De acordo com a tabela acima, observamos que as mudanças na intensidade


dinâmica estão associadas às mudanças de andamento: nas seções intermediárias B, C e B’
a intensidade dinâmica é ampliada na medida em que o andamento torna-se mais lento,
reforçado ainda pelos rallentandos e fermatas que ocorrem no decorrer das seções. Com
isso, uma grande expressividade da linha melódica torna-se preponderante para a execução
interpretativa dessas seções. Por sua vez, a seção A, com um andamento ligeiramente mais
rápido e uma intensidade mais reduzida, apresenta-se como elemento de introdução e de
conclusão do movimento.

Pianismo
De todos os segundos movimentos das sonatinas para piano de Guarnieri, este
é o mais diretamente saudosista no sentido de conter fortes referências a elementos
musicais oriundos da música popular sem uma eruditização excessiva no tratamento desses
elementos.
O compositor, em uma nota interpretativa escrita na própria partitura sobre este
movimento, esclarece como deve ser concebida a agógica da peça e o seu caráter: “Esta
modinha deve ser tocada sem rigor no tempo, mas bem cantada a melodia, e os
contracantos imitando o bordonejo do violão”.
O próprio compositor menciona como ele quer que soe este movimento, ou
seja, de acordo com uma modinha. Alguns fatores da escrita pianística levam a uma
escritura que nos remete à expressividade característica da modinha ou mesmo de uma
seresta:
- mudança de tessitura melódica: seção A (Si1 ao Lá3) e seções B, C e B’ (Mi3
ao Lá5). Funcionando como uma moldura ao tema da modinha, os cc. 1-8 e 28-38 da seção
A e da Coda respectivamente introduzem e encerram a canção. A execução da melodia nos
graves nesta seção, de acordo com os dizeres “Bem fora o bordonejo”, dá a dica de
diferenciação timbrística em relação à melodia que se inicia no c.8, ou seja, a sugestão de
uma sonoridade violonística dessa seção A deve-se contrapor a cantoria sugerida pela linha
melódica a partir do c.8;
- aumento de linhas melódicas: Seção A (cc.1 a 8) a três vozes e seções B, C e
B’ (cc. 8 a 27) a quatro vozes. Nas seções centrais B, C e B’ as quatro vozes estão
intimamente interligadas entre si. Nestas seções centrais o mais importante de ser
destacado é o diálogo entre a linha superior e os contracantos das vozes intermediárias.
75

(III movimento) - Bem depressa

Estrutura Formal

Seções A B A’ Coda
Compassos 1 - 32 33 - 57 58 - 73 74 - 83
Centros A A-C A A

Expressividade Bem depressa


Tabela 29 - Estrutura formal da Sonatina nº1 - III mov.

Aspecto Melódico – Rítmico


Na seção A, eminentemente rítmica, o tresillo aparece como ritmo motor.
Como vimos anteriormente, este padrão rítmico baseado na proporção 3:3:2 como se
fossem uma alternância de dois compassos de subdivisão ternária com um de subdivisão
binária é comum nas sonatinas. Nos cc.1-4 as quintas e quartas da m.e. marcam o padrão
rítmico do tresillo:

Exemplo 38 - Padrão rítmico, Sonatina nº- III mov., cc.1-4

O mesmo vale para a sequência descendente de quintas entre os cc.5-12 onde


os sfz também destacam o padrão rítmico do tresillo mencionado anteriormente:
76

Exemplo 39 - Padrão rítmico, Sonatina nº1- III mov., cc.5-6

Esse padrão fica ainda mais evidente a partir do c.13 com as terças alternadas:

Exemplo 40 - Padrão rítmico, Sonatina nº1- III mov., cc.13-16

A seção B, a partir do c. 33, o tema principal do movimento se inicia a quatro


partes (vozes): a melodia da parte superior em martelato, a parte intermediária formada
pelas semicolcheias alternadas entre a m.d. e a m. e., as colcheias em tenuto e as quintas em
mínimas do baixo (notas pedal):

Exemplo 41 - Tema da seção B, Sonatina nº1- III mov., cc.35-38

Conforme acima, a hierarquia resultante da junção das três partes mencionadas


é, em primeiro plano, a linha melódica em martelato apoiada as quintas do baixo e as
colcheias em tenuto e, em segundo plano, o pequeno cromatismo das semicolcheias
77

intermediárias misturadas pelo pedal sustain. Esse tipo de sonoridade perdura por toda a
seção B.

Dinâmica e Tempo
Como dissemos anteriormente, este movimento tem características de uma
dança ritmada, parecendo-se até mesmo com uma tocata, por seu caráter fortemente
articulado das semicolcheias ininterruptas. Sua dinâmica, com sonoridade entre o f e o ff,
além dos diversos acentos, acompanha o tempo, que não se altera, como observamos na
tabela abaixo:

Seções A B A’ Coda
Compassos 1 - 32 33 - 57 58 - 73 74 - 83
Centros A A-C A A
Dinâmica f f-ff f ff

Tempo Bem depressa  = 106


Tabela 30 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº1, III mov.

Fora os dois únicos momentos em que há um rall (cc. 17 e 57), o andamento


constante em f imprime certa tensão que não se arrefece até o final, tendendo a um final
brilhante. Neste sentido, é interessante observarmos o que ocorre especificamente entre os
cc.53-57: o gradual aumento no número de vozes neste trecho é equilibrado pela
diminuição súbita da intensidade sonora para p após um sffz no c. 53 seguido de novo
aumento de intensidade. O stretto, a partir do c. 55, inesperadamente desemboca numa
outra diminuição de intensidade com rall que ocorre no c. 57:

Exemplo 42 - Sonatina nº1- III mov., cc.53-57

Contrariando a expectativa de um aumento no volume sonoro no trecho acima,


por causa principalmente dos marcatos, o compositor diminui surpreendentemente o nível
de tensão sonora por duas vezes para a retomada da seção A, no c. 58. Isso produz
78

interessante contraste e permite uma distensão ou afrouxamento no impulso das repetidas


semicolcheias em relação aos marcatos das colcheias. Por isso, um corte de sonoridade
para a retomada da seção A, a partir do c.58, dá um novo folego para um final vibrante de
grande intensidade sonora.
Ainda na seção B, o compositor explora três tipos de acentos: martelatos
(^),marcatos (>) e os tenutos (-), além das semicolcheias repetidas que não levam acento
nenhum. Estes acentos ocorrem simultaneamente em pares, mas nunca os três aparecem ao
mesmo tempo. Por isso, a dificuldade nesta seção B está em diferenciar os níveis sonoros,
como observamos no trecho abaixo:

Exemplo 43 - Sonatina nº1- III mov., cc.49-52

A diferenciação de toque se torna necessária para se evitar que eles se igualem


na execução quando sobrepostos: semicolcheias menos intensas em relação aos martelatos
e marcatos, o primeiro mais marcado que o segundo. Além disso, outro problema surge
para o pianista no trecho acima e em quase toda a seção B: a saturação da sonoridade, pois
o compositor se utiliza amplamente da região central, o que pode anular o efeito dos
diferentes sinais de articulação.

Pianismo
Segundo Bencke (2010, p.73), este movimento sugere uma Catira, dança do
folclore brasileiro de influência sertaneja, onde o ritmo é marcado pela batida dos pés e das
mãos dos dançarinos, ou até mesmo, segundo Mendonça (2000, p.406), um Cateretê
paulista.
Este movimento, pela sua característica regularidade rítmica, é constituído por
pulsos ininterruptos de semicolcheias. Estas semicolcheias produzem uma rítmica
percussiva fortemente acentuada e se apresentam de diversas formas, tais como em quintas
na m.d. e alternâncias das semicolcheias entre a m. e. e m. d. do pianista:
79

Exemplo 44 - Sonatina nº1- III mov – cc.5,13,38

A regularidade destes padrões rítmicos mostrados acima representa o motor


deste movimento: repare que os dois primeiros trechos obedecem ao padrão rítmico
derivado do tresillo que, como vimos, constitui-se numa rítmica sincopada muito comum
na música de Guarnieri e, o terceiro trecho (c.38), o cromatismo das semicolcheias dá
sustentação à melodia sincopada. As notas pedal que observamos nos exemplos ocorrem
em quase todo o movimento: elas podem ser sustentadas com a utilização do pedal tonal,
pois proporciona maior liberdade no uso do sustain para as articulações que ocorrem na
linha melódica e dá condução harmônica ao discurso.
80

4.2. SONATINA Nº2 (1934)

Dedicada à pianista brasileira radicada em Londres Vanya Elias-José, esta obra


é a mais curta sonatina de todo o conjunto. Ela se destaca das suas vizinhas Sonatinas nº1
e nº3 devido ao seu material harmônico e melódico tendendo a um pós-tonalismo: segundo
Verhaalen, neste trabalho experimental o compositor passava por um “período de namoro
com o atonalismo, experimentando o estilo não tonal.” (VERHAALEN: 2001, p.154)
Esta obra é representativa de um período em que Guarnieri flertava com obras
atonais de compositores da segunda escola vienense, entre outros. Numa declaração sua a
musicóloga Marion Verhaalen, o compositor afirmou que por volta de 1934 sentiu que o
atonalismo não lhe interessava e que começou escrever obras livres de sentido tonal, de
tonalidade indeterminada, mas não atonais. Essa Sonatina nº2 dessa época comprova esses
argumentos, pois existem muito trechos em que não é possível estabelecer a funcionalidade
harmônica. Há uma diferença na sua linguagem harmônica em relação à Sonatina nº1 e
também a Sonatina nº3.
Com isso, essa obra apresenta sonoridade típica proveniente de influências
características da música do século XX tais como cromatismo, escalas de tons inteiros,
agrupamentos de escalas octatônicas, centros harmônicos ambíguos, modalismos, além de
compassos irregulares, polimetria e muitas frases assimétricas.
Apresenta-se bastante reduzida em tessitura, pois toda ela está escrita na clave
de sol e também em textura por causa do reduzido número de notas nos três movimentos,
com ausência quase que total de acordes: o primeiro movimento é um diálogo a duas
vozes. O segundo e terceiro movimento apresentam-se a três vozes, mas soam como se
estivessem em apenas duas vozes, pois duas delas aparecem ora alternadas (2º movimento)
ou utilizando-se de mesma nota (3º movimento).
81

(I movimento) Alegre, com graça


Estrutura Formal

S. Exposição Desenvolvimento Reexposição


Cc. 1 – 46 52 – 87 87 - 116
Sub. Tema A Tema B Transição Tema A’ Tema B’ Coda
Cc. 01/26 27-46 47-52 87-108 109-116 117-118
Ce. C G C C C C
Tabela 31 - Estrutura formal da Sonatina nº2 - I mov.

Um dos mais curtos primeiros movimentos de toda a série das oito Sonatinas,
seu caráter breve é sentido pelo número reduzido de notas, projetada apenas em duas linhas
e por uma diminuição no tamanho das seções em relação a outras Sonatinas. Este
movimento apresenta dois temas contrastantes: o tema A marcado pelo ostinato da m.e e o
tema B, a duas vozes, de caráter mais movido e apresentando uma polifonia se comparado
ao tema anterior, homofônico. A seção do desenvolvimento trabalha processos imitativos
de material proveniente do Tema A e apresenta quase sem modificação o Tema B numa
região mais aguda sem desenvolvê-lo. A reexposição é ainda mais breve: os dois temas são
reapresentados incompletos.
De maneira geral, as dimensões reduzidas desta obra, inclusive no aspecto da
dinâmica, com níveis sonoros em torno do p e f e os andamentos rápidos impostos ao
primeiro e terceiro movimentos, respectivamente  - 144 e  - 152, dão certo caráter de
leveza a obra como um todo, devendo o interprete evitar maiores contrastes dinâmicos e
até mesmo de andamento entre as seções como um todo.

Aspecto Melódico - Rítmico


O tema A é composto de seis frases que se correspondem em pares como
pergunta e resposta ou antecedente e consequente: para cada frase o compositor estabelece
os níveis dinâmicos. O ostinato que acompanha estas frases do tema A determina o centro
em dó pela repetição desta nota por todo tema A e, além disso, esse ostinato projeta
agrupamento de notas em tons inteiros: si-lá-sol-fá e sib-láb-solb-fáb. Estas notas
superiores do ostinato irão coincidir em diferentes pontos das frases da linha melódica,
gerando, de maneira implícita, uma polimetria em relação às frases do tema A. Existe aqui
o contraste entre a subdivisão ternária do ostinato com a subdivisão binária do tema:
82

Exemplo 45 - Sonatina nº2- I mov., cc.1-27

A partir do c.21 as notas superiores do ostinato projetam também um


cromatismo que culmina na nota sol do c.27: é o novo centro da harmonia do tema B.
Portanto, é muito importante que estas notas superiores do ostinato sejam ouvidas
juntamente com a linha melódica do tema A pois elas terão relação com o tema B, onde as
notas si-lá-sol-fá serão ouvidas ora alteradas em bemol, ora não, como veremos a seguir.
Ainda no exemplo acima, é interessante notar a quebra no desenho do ostinato
que ocorre nos cc. 8 e 9: o mib e o réb fazem parte da linha descendente em tons inteiros
do ostinato, mas, também, este gesto melódico descendente e acentuado guarda
semelhança com o que ocorrerá no tema B nos c.35-38, m.d.. Portanto, é importante
destacar na execução essa quebra na regularidade do ostinato.
83

O tema B, um contraponto a duas vozes, com centro em sol, contrasta com o


anterior não apenas por sua textura, mas também pela dinâmica um pouco mais forte. É
apresentado a partir do c. 27 em duas partes: um par de frases de quatro compassos cada e
um par de frases de seis compassos cada:

Exemplo 46 - Sonatina nº2- I mov., cc.27-46

O que caracteriza as duas primeiras frases é sua centricidade em sol e a relação


enquanto frases complementares entre si: além do fá#, notas da tríade de sol aparecem em
pontos importantes da estrutura. O segundo grupo de frases tem como característica
principal as terças melódicas entre ambas as mãos: cada uma delas começa por uma
imitação e termina em notas contíguas em movimento contrário. Aqueles agrupamentos de
notas em tons inteiros apresentado pelo ostinato do tema A (si-lá-sol-fá e sib-láb-solb-fáb)
aparecem aqui entre as duas vozes e constituem materiais escalares que se opõem.
A transição, a partir do c. 47, é um trecho de seis compassos aonde o desenho
de três colcheias descendentes vai se ampliando em tamanho até se transformar em um
desenho de oito colcheias descendentes acompanhadas por mudanças métricas a cada
compasso. O importante nessa transição é o efeito tanto sonoro quanto de suspensão
84

métrica ante a entrada da seção de desenvolvimento. A utilização do pedal sustain em toda


essa transição, sem interrupção, no sentido de se fazer misturar propositalmente a
sonoridade das escalas seria uma sugestão como efeito de passagem da seção expositiva
para a seção de desenvolvimento.
Prevalece, na seção de desenvolvimento, um processo imitativo a duas vozes
onde estão em jogo elementos do tema A. As dissonâncias intervalares de sétimas e
segundas maiores e menores e os motivos rítmico-melódicos em tons inteiros constituem o
material sonoro mais importante a ser destacado até o c.76. O tema B, a partir do c. 77,
reaparece em p somente, incompleto e em uma oitava acima, sem desenvolvimento.

Tempo e Dinâmica
Existe um gradativo crescendo de intensidade sonora que perpassa toda a seção
expositiva e culmina no desenvolvimento nos cc.71-76 em ff, a parte mais intensa do
movimento. Na reexposição ocorre outro crescendo de menor intensidade que vai do tema
A para o tema B, subitamente terminando em ff na Coda de dois compassos, conforme
tabela:

S. Exposição Desenvolvimento Reexposição


Cc. 1 – 46 52 – 87 87 - 116
Sub. Tema A Tema B Tr Tema A’ Tema B’ Coda
Cc. 1-26 27-46 47-52 87-108 109-116 117-118
Exp. Alegre, com graça dolce
Tp.  = 
Din. p-mf p-f mf-ff-p p-mf f p-f-ff
Tabela 32 - Tempo e Dinâmica - Sonatina nº2, I mov.

Portanto, esses são os dois únicos momentos de maior contraste: o compositor


utiliza-se de cedendo e accelerando para reforçar contrastes dinâmicos antes das
reexposições do tema B em p (c.77) e em f (c.109) respectivamente.
Outra sugestão de utilização do pedal sustain seria enfatizar o cresc. e
accelerando sempre que há entre os cc.103-107: o efeito do aumento gradativo da
velocidade e da intensidade sonora no desenho cromático tanto da m.d. quanto da m.e.
seria valorizado pela utilização desse pedal:
85

Exemplo 47 - Sonatina nº2- I mov. – cc.103-110

Ademais, a sonoridade desse cromatismo proporcionado pelo contorno das


notas de ambas as mãos prolongado pelo pedal sustain daria um efeito de cluster e
reforçaria o súbito silêncio da fermata e a retomada do tema B em f a partir do c.109.

Pianismo
Um aspecto rítmico importante nesta Sonatina como um todo é que seus três
movimentos contém ostinatos. Neste primeiro movimento, vimos que as notas superiores
do ostinato, na apresentação do tema A, projetam escalas em tons inteiros e cromatismo
que nos remetem a um tipo de sonoridade característica da música do início do séc.XX (ver
exemplo 45). Além disso, a linha melódica do tema é modal. A utilização do pedal sustain
auxiliaria na projeção da sonoridade dessas notas superiores do ostinato para destacar as
escalas de tons inteiros e o cromatismo junto à linha melódica das frases da m.d..
Utilizamos o trêmulo de meio pedal para não misturar as notas da linha melódica e para
que as notas superiores do ostinato saiam mais ligadas. Portanto, as escalas de tons
inteiros, o cromatismo e o modalismo presentes na seção do tema A são elementos
importantes para ser evidenciados na execução.
Na transição, cc.47-51, existe, a cada compasso, uma mudança nas fórmulas de
compassos para acomodar um gradativo aumento no número de notas da escala de dó,
provocando momentaneamente a perda do sentido métrico do trecho. Aqui a utilização do
pedal sustain, da mesma forma que na apresentação do tema A, estaria de acordo com o
tipo de sonoridade difusa que se quer na execução das escalas descendentes.
86

(II movimento) Ingenuamente

Estrutura Formal

S. A A’ Coda
Cc. 1-19 19-32 32-37
Ce. A A A
Tabela 33 - Estrutura formal da Sonatina nº2 - II mov.

Esta é uma “cantilena expressiva”, segundo Mendonça (2001). Tendo como


centro o lá, seu tema é uma linha melódica contínua que se desenvolve por 18 compassos.
O ostinato da m.d. que acompanha todo o desenvolvimento melódico também é contínuo e
imutável no seu gesto rítmico-melódico. A ausência de uma seção contrastante imprime
serenidade ao caráter do movimento.

Aspecto Melódico - Rítmico


O maior problema deste movimento está em dar significado à linha melódica
da m.e. pois, por se tratar de uma melodia contínua, quase sem repetições, torna-se difícil
estabelecer pontos de apoio ou de referência para dar sentido musical. O ostinato da m.d.,
além das alternâncias das fórmulas de compassos 4/8 e 6/8 que ocorrem por todo o
movimento colaboram na percepção dessa linha melódica vaga. Mas, se observarmos bem
no contorno da linha melódica da m.e. podemos estabelecer pontos de apoio que dê sentido
a ela e que reflita na inflexão das notas na execução instrumental. De acordo com a tabela
acima, a nota lá é o centro do tema e é por meio dela que podemos estabelecer frases para
essa linha melódica, ou seja, o lá deve ser o ponto de referência para que sintamos os
inícios ou os finais dessas frases. Repare nos trechos abaixo que as notas lá no final de
cada trecho são antecedidas por semitons, atingem o primeiro tempo dos compassos e têm
o valor maior ou igual as que suas vizinhas:

nº 1

nº 2
87

nº 3

nº 4

nº 5

nº 6 Início da seção
A’

Exemplo 48 – Sonatina nº2- II mov. – cc.1-18


(apenas m.e.)

Todos os trechos acima estão na clave de sol. As frases nº 1, 2, 3 e 5 terminam


em lá, o que dá a elas uma ideia de conclusão, já que o lá é o centro. Além disso, elas estão
em um decrescendo, o que reforça seu sentido de completude. Já as frases de nº4 e de nº6
não terminam em lá, precisando das frases seguintes para se completarem. Além disso, elas
estão numa região pouco mais aguda do que as suas complementares, o que reforça a ideia
de antecedente e consequente: a frase nº5 na região mais grave reforça a ideia de frase
complementar, ou consequente, à frase anterior nº4, que tem suas notas mais agudas. A
frase nº6 por si só é conclusiva de toda a seção A, pois ela termina na nota inicial do
retorno da primeira frase (seção A’). Dessa forma, a nota lá deve estabelecer a agógica na
execução da linha melódica do movimento e, com isso, tem sua importância como
norteadora na interpretação dessas frases assimétricas.
88

Tempo e Dinâmica
A dinâmica em sempre pp contribui com o caráter estático deste movimento,
reforçado ainda pelo andamento. O mais importante aqui para o pianista está em manter a
regularidade do ostinato da m.d. em pp ao mesmo tempo que a linha melódica na m.e. em
p oscila entre pequenos crescendos e decrescendo, de acordo com o sentido das frases
destacadas acima de acordo com seu contorno melódico. Uma pequena oscilação no tempo
pode ser evidenciada pelos cedendo que existem nos cc.18 e 31, respectivamente
auxiliando na articulação das seções.

Pianismo
Como sugestão, este pequeno movimento, muito próximo a uma cantilena,
como bem lembrou Mendonça, pode ser melhor interpretado utilizando-se do pedal sustain
para auxiliar principalmente na projeção da sonoridade de tons inteiros da m.d.
Para se evitar que as frases da m.e. sejam prejudicadas pelo excessivo uso deste
pedal, o trêmulo ou até mesmo o meio pedal faria com que o cromatismo das notas mais
agudas da m.d. (em tenutos) sejam projetadas e ressoem por mais tempo, já que essas notas
são levemente mais destacadas que as demais. A correta articulação destas notas culmina
no c.35 onde a última colcheia da sequencia (si4) é sustentada até o acorde final,
concluindo, então, o desenho cromático projetado por tais notas. Além do cromatismo esse
ostinato da m.d. projeta também uma sonoridade proveniente do agrupamento de notas em
tons inteiros o que está de acordo com um dos tipos de sonoridade que caracteriza a música
feita no séc.XX.

(III movimento) Depressa, Espirituoso

Estrutura Formal

S. A tr B A’ tr C A tr Coda
Cc. 1-23 24-25 26-42 43-52 53-56 57-94 95-116 117-118 119-129
Ce. C D e F# C G G C C
Tabela 34 - Estrutura formal da Sonatina nº2 - III mov.29

29
Determinamos que a contagem dos compassos deste movimento seja feita pela pauta
superior da m.d. por causa das duas fórmulas de compasso utilizadas simultaneamente.
89

Este movimento apresenta-se como um Rondó polimétrico, sendo a única vez


nas Sonatinas para piano em que Guarnieri se utiliza de duas fórmulas de compassos
diferentes de maneira sincrônica, embora sejam compassos com unidades de tempo
idênticas.
Os cc.24-25, cc.53-56 e também cc.117-118 podem ser considerados como
pequenas transições justamente porque estes trechos quebram o desenho rítmico-melódico
que vinha sendo desenvolvido nos compassos anteriores e servem para anunciar a entrada
da nova seção, já que também eles se utilizam do mesmo desenho rítmico-melódico dela.
Para o pianista essas transições podem servir como pontos de flexibilização no andamento
justamente para a preparação à nova seção, devendo, com isso, serem destacadas através de
discreto rallentando: um leve ralentando no c.24 na preparação para a entrada da seção B,
no c.56 antes da seção C e no c.118 antes da Coda, respectivamente.
As seções A e A’ caracterizam-se pelo ostinato da m.e.. As seções B e C
apresentam praticamente o mesmo tema variado. Na coda, a partir do c.119, reaparece o
tema da seção C em acordes seguido do tema inicial da seção A.

Aspecto Melódico - Rítmico


Para o pianista, o mais importante nas duas primeiras seções deste movimento
(seções A e B) está em tentar delimitar suas frases e relaciona-las umas as outras em
termos hierárquicos, dado a natureza fragmentária das linhas melódicas, como veremos
abaixo. No caso da seção B, esta delimitação de frases se dá com mais facilidade, pois a
própria sequência das notas permite sua identificação.
A seção A deste rondó apresenta polimetria entre ambas as mãos: um binário
na m.d. contra um ternário na m.e.. Estas métricas geram instabilidade na linha melódica
formada por saltos e por sequências em graus conjuntos. Devido à natureza fragmentada
dessa linha melódica não é possível entende-la formalmente em frases. Com exceção dos
quatro primeiros compassos que reúne as características formais de uma frase, a linha
melódica da seção A, a partir do c.4 foi dividida em trechos de acordo com seu gesto
rítmico-melódico, ou seja, separamos a linha melódica de acordo com seus movimentos
ascendentes, descendentes, saltos e sequencias em graus conjuntos. Com isso, considerei a
seção A subdividida em 7 pequenos trechos. A primeira frase é composta por duas
semifrases que delimitam a nota dó como principal centro do movimento:
90

Exemplo 49 - Sonatina nº2- III mov. cc.1-3

O segundo trecho se constitui de saltos ascendentes de 7ª seguidos de


movimentos descendentes de 2ª, atingindo o sol5 no c.13, nota mais aguda da seção:

Exemplo 50 - Sonatina nº2- III mov. cc.4-13

O terceiro trecho é formado por saltos descendentes de 4ª:

Exemplo 51 - Sonatina nº2- III mov. cc.13-14

O quarto trecho caracteriza-se por graus conjuntos descendentes:

Exemplo 52 - Sonatina nº2 - III mov. cc.15-16

O quinto trecho é semelhante ao terceiro trecho (saltos descendentes de 4ªs):

Exemplo 53 - Sonatina nº2 - III mov. cc.17-19


91

Os dois últimos trechos misturam saltos ascendentes e descendentes com graus


conjuntos: no exemplo abaixo, o trecho da esquerda é descendente e o da direita,
ascendente:

Exemplo 54 - Sonatina nº 2- III mov.


cc.19-21 e 21 a 23

Portanto, nos trechos acima, onde destacamos somente a m.d., nos orientamos
dividindo os trechos de acordo com suas configurações melódicas. Assim, procuramos dar
um sentido fraseológico para a execução de toda essa seção, caracterizada, como vimos,
pela fragmentada linha melódica e também pela polimetria entre ambas as mãos. Delimitar
esta seção a partir do desenho melódico desses trechos permitiu uma interpretação
fraseológica mais clara.
A seção B tem como centros o ré na m.d.(que não aparece no exemplo abaixo)
e o fá# na m.e.. Este fá# será o referencial para a demarcação das frases da linha melódica
da m.e.. As cinco frases desta seção estão divididas da seguinte maneira:

frase 1 frase 2

frase 3 frase 4 frase 5

Exemplo 55 - Frases da Sonatina nº2- III mov., cc.20-35 (m.e.)

As frases 1 e 2 começam e terminam em fá#. A frase nº5 também termina em


fá# e é a repetição da frase nº1, dando o sentido conclusivo à seção.
A característica principal desta seção em relação a seção anterior é a inversão
da linha melódica para a m.e. enquanto que a m.d. passa a realizar um desenho arpejado.
92

Como na seção anterior, deve-se hierarquizar a condução das vozes: m.e. em evidência e
em f ; as semínimas pontuadas da m.d. (tenutos) em segundo plano; como pano de fundo as
colcheias arpejadas da m.d.
A seção C apresenta-se sem a intervenção da polimetria, em compasso binário
simples. Esta seção se desenvolve a partir dos elementos temáticos já apresentados nas
seções anteriores. O tema principal desta seção está na m.e.. Guarda semelhança com a
frase inicial do segundo movimento e com o tema da seção B:

Exemplo 56 - Sonatina nº2- III mov., cc. 57-61

Esta seção é contrastante por sua regularidade métrica em relação às seções


anteriores, embora o compositor descaracterize alguns compassos binários através de
acentos deslocados. As colcheias em staccato imprimem leveza às frases da seção.

Tempo e Dinâmica
Neste terceiro movimento o nível de intensidade na dinâmica gira em torno do
f, principalmente entre as seções B e C onde aparecem sff em algumas notas e ff apenas
onde aparecem os trinados, contrastando com a seção A, em p e mf. O andamento, bem
mais rápido que o primeiro movimento, não oscila em nenhum momento: interessante
notar que alguns compassos antes dos retornos do tema da seção A (c.43 e c.95 contados
pelos compassos da m.d.) há um crescente aumento na atividade melódica e na dinâmica,
principalmente os trinados antes do c.95 sem nenhuma indicação de flexibilização na
pulsação. O mesmo ocorre na Coda (cc.119-129), onde um crescendo sempre, compassos
antes do final, termina em sfff. Essa não oscilação no andamento imprime dinamismo ao
movimento como um todo e caracteriza bem a indicação expressiva Depressa, Espirituoso.

Pianismo
Em que pese o fato da agógica ser muitas vezes uma questão interpretativa
pessoal do intérprete, a ausência de rall. ou riten. ou qualquer outros sinal de flexibilização
93

da pulsação faz com que a ideia de se manter um andamento ou pulsação regular do início
ao fim do movimento seja importante para a execução. Sugerimos anteriormente uma
relativa flexibilização nos compassos de transição (cc.24-25, cc.53-56 e também cc.117-
118) como forma de destacar ou preparar a entrada das diferentes seções. Portanto, com
exceção desses compassos de transição, a ausência de qualquer sinal que modifique o
andamento nas demais seções do andamento, demonstra a necessidade de uma execução
sem sublinhar ou fazer sobressair qualquer outra passagem ou gesto de escrita, mesmo as
de maior ímpeto, como é o caso do exemplo abaixo. Trata-se especificamente das
passagens para os compassos cc.43 e 95, ou seja, final das seções B e C respectivamente,
para o retorno da seção A:
B

______________________

Exemplo 57 - Sonatina nº- III mov. cc.39-45 e 90-97


94

Em ambas as passagens existem um movimento melódico ascendente em


direção ao dó do início do tema da seção A. Há também um aumento do nível sonoro. A
chegada abrupta do tema da seção A sem nenhuma preparação, torna-se fator importante a
ser levado em consideração na execução instrumental: deve-se ser executado sem quebra
no andamento. Aqueles compassos de transição de que comentamos acima seriam,
portanto, os únicos momentos de flexibilização da pulsação na execução.
Outra característica do pianismo neste movimento diz respeito em como estão
distribuídas as vozes, ou seja, a textura. Embora em muitos momentos, é apresentada a três
vozes, o seu efeito soa quase como se fosse a duas vozes. Isso se dá pelo fato de que nos
momentos onde as três vozes aparecem, duas delas se utilizam quase das mesmas notas,
como podemos notar nos trechos que destacamos a seguir:

Exemplo 58 - Sonatina nº2- III mov. – cc.1-4 e cc.26-31

Portanto, embora a escrita apresente vozes a serem destacadas, o resultado


prático para a execução instrumental corresponderia a um movimento a duas vozes, salvo
em um único momento onde podemos observar realmente três vozes distintas, como é o
caso dos cc.81-94, onde aparecem os trinados. Isso possibilita uma execução mais ágil e ao
mesmo tempo mais leve, sob o ponto de vista da execução instrumental.
95

4.3. SONATINA Nº3 (1937)

Dedicado ao pianista Alonso Anibal da Fonseca e estreada pelo pianista


Arnaldo Estrela (1908-1980) na Escola de Música da UFRJ em 24/04/1941, esta Sonatina
(in the G-clef – como caracterizada pelo compositor) se comparada com a anterior, retorna
a uma linguagem tonal com fortes traços de modalismo. Foi composta pouco antes de o
compositor fazer sua primeira grande viagem de estudos para a França, onde estudaria com
Charles Koechlin, em 1938.
Em alguns aspectos, esta obra apresenta semelhanças com a anterior: toda
escrita na clave de sol, o registro instrumental predominante é médio e agudo (fá2 a sol5) e
uma escrita não sobrecarregada. As articulações de notas e estruturas rítmicas sincopadas
conferem a ela uma atmosfera característica do nacionalismo musical brasileiro.
Existe homogeneidade entre os valores rítmicos utilizados nos movimentos da
Sonatina: no 1º movimento predominam as colcheias e no 2º e 3º, quase que totalmente
colcheias e semicolcheias, proporcionando uma execução mais fluída.
Com relação à dinâmica, a obra como um todo se situa predominantemente
entre p e f oscilando frequentemente por sonoridades intermediárias e raramente atingindo
extremos tais como pp e ff.
O terceiro movimento é uma fuga a duas vozes onde as seções se apresentam
de modo similar a uma tradicional fuga barroca. O compositor voltará a usar esta técnica
composicional na Sonatina nº6, como veremos mais adiante.
De maneira geral, esta Sonatina estabelece a nota fá como eixo central nos três
movimentos: o 1º e 3º movimentos oscilam entre fá maior e fá lídio, o 2º movimento
caracteriza-se pela tonalidade homônima menor, estabelecendo-se como o movimento
contrastante.
Lembramos que esta sonatina utiliza-se no segundo tema do primeiro
movimento no modo lídio, uma Cantiga de Cego, tema folclórico nordestino contido no
Ensaio de M. de Andrade.
96

(I movimento) Allegro

Estrutura Formal

S. Exposição Desenvolvimento Reexposição


Cc. 01/43 43-92 92-133
Sub. Tema A TR Tema B Tema A TR Tema B Coda
Cc. 1 – 22 22 - 29 29 - 43 92 – 114 114 - 119 119 - 133 134 – 139
Ce. F G C lídio F – G – Eb - C F G-C F lídio F
Tabela 35 - Estrutura formal da Sonatina nº3 - I mov.

Este movimento apresenta dois temas contrastantes: o tema A formado


basicamente por colcheias em staccato, fortemente rítmico e o tema B é uma melodia
acompanhada (canção de cego). No desenvolvimento, este mesmo tema reaparece na m.e.
entre os cc. 66-77 em novos arranjos e novas harmonizações e também a partir do c.82. A
reexposição, a partir do c.92, é uma repetição quase que literal da seção expositiva, com
pequenas modificações e a Coda anuncia o motivo arpejado da fuga do terceiro
movimento.
De maneira geral, a pulsação da execução instrumental deste movimento é
dada pelas repetições das colcheias que ocorrem por todas as seções. O único material
contrastante será a execução do tema B (canção do cego) e suas variantes na seção de
desenvolvimento e na reexposição por causa dos fraseados da linha melódica da canção
que quebra a repetição contínua das colcheias.

Aspecto Melódico - Rítmico


De maneira geral, o pianista precisa cuidar de alguns aspectos que são muito
importantes neste movimento: a pulsação, marcada pela articulação constante das colcheias
que prevalecem em todo o movimento; a textura, onde o número de linhas ou vozes varia
constantemente; a dinâmica e quatro tipos de articulação de nota que se interagem: legato,
stacatto, tenuto e marcato.
O tema A se constitui de uma frase curta inicial (cc.1-2) que é base para todo o
restante da subseção (cc.1-22):
97

Exemplo 59 - Sonatina nº3- I mov. – cc.1-2

Observamos no trecho inicial que há uma preocupação com as articulações de


notas, pois não há uma nota em que o compositor não tenha especificado sua articulação. O
mais importante está em diferenciar principalmente os marcatos, mais fortes, dos tenutos,
menos forte e estes dos stacattos, mais leves. Articulações ocorrem também
simultaneamente, como no exemplo abaixo a partir do c. 12, por onde a textura passa de
duas para quatro vozes:

Exemplo 60 - Sonatina nº3- I mov.- cc.12-15

Esta subseção do tema A é formada pelo desenvolvimento melódico do tema


inicial e se constitui em progressões ascendentes e descendentes derivadas da frase inicial:
elas ocorrem entre os cc.3-5, 8-11, 12-15, 16-19. Elas se constituem no principal gesto
rítmico-melódico do discurso musical desta subseção, ou seja, pequenos crescendos e
decrescendos deverão estar de acordo com as progressões ascendentes e descendentes
respectivamente.
A subseção do tema B, por sua vez, contrasta com a anterior principalmente
porque o fluxo das constantes colcheias é interrompido na m.d. para dar lugar a uma
cantiga (Cantiga de Cego), embora as colcheias continuem constantes na outra mão:
98

Exemplo 61 - Sonatina nº3- I mov.- cc.29-33

Neste tema, todo ele a três vozes, um dos aspectos interessantes a ser destacado
é a relação rítmica dos dós (nota pedal) com a melodia: além de a nota dó ser o centro da
harmonia, ela acaba quebrando a relação métrica de quatro colcheias por unidade de tempo
estabelecida desde a seção anterior. Com isso a execução da linha melódica da canção se
torna mais flexível ou menos monótona em relação a sua métrica.
Outro aspecto a ser levado em consideração diz respeito ao contraste deste
tema B em relação à subseção do tema A no que diz respeito às notas em legato,
principalmente na voz intermediária e na linha melódica do tema.
Na seção de desenvolvimento (cc.43-92), o importante está em diferenciar a
sonoridade que caracterizou o tema A do tema B e que foi apresentado na seção da
exposição. Desse modo, o pianista deve ressaltar os diferentes sinais de articulação nas
ininterruptas colcheias que caracterizam o tema A do cantabile do tema B que ocorre com
nova roupagem harmônica e rítmica, especificamente entre os cc.66-77 onde novamente os
legatos estão em evidência.

Tempo e dinâmica
A dinâmica permanece entre o p e o f por todas as seções da Sonatina.
As diferentes articulações de notas muitas vezes incidem também sobre a
métrica dos compassos, mudando suas características. Abaixo mostramos um trecho onde
essas articulações quebram o sentido métrico dos compassos:

Exemplo 62 - Sonatina nº3- I mov. – c.58 e 59


99

Observamos no exemplo acima o quanto as articulações de notas, incluindo os


acentos, modificam as características métricas do compasso, sendo o principal fator a se
levar em consideração na execução interpretativa. Muitas vezes essas articulações induzem
a uma rítmica oculta que acaba se tornando importante na execução de determinados
trechos. No exemplo acima, a uniformidade na articulação de notas do c.58 é quebrada
pelas diferentes articulações do compasso seguinte. Existe uma rítmica implícita
importante a ser destacada provenientes das acentuações alternadas da m.e. com a m.d. no
c.59:

Acentuações que deslocam o sentido métrico do grupo de quatro colcheias,


como exemplificado acima, são muito comum nesse primeiro movimento e se constituem
importante elemento de contraste às ininterruptas repetições dessas figuras.

Pianismo
Na Cantiga de Cego do tema B o compositor sugere na escrita pianística uma
sonoridade que lembra um canto de lamento, característico dos cânticos de pedir esmolas,
cantigas tristonhas e monótonas (ALVARENGA, 1950). A nota pedal que aparece
repetidamente no baixo (dó na exposição e fá na reexposição) é uma clara alusão a
instrumento de corda, no caso provavelmente a um bordão de viola caipira, ligeiramente
acentuada: na partitura essas notas são marcadas em tenuto:
100

Exemplo 63 - Sonatina nº3- I mov. – cc.26-33

No trecho acima, antes da entrada do tema da Cantiga de Cego, vemos a partir


do c.26, as sequências das notas sol em registros diferentes na m.d., algumas delas em
apojaturas. Essas apojaturas sugerem também sonoridade caracteristicamente violonística
como que introduzindo a entrada da cantiga: além disso, ambas, tanto a nota sol da m.d.
quanto o dó a partir do c.30 da m.e., pontuam os centros harmônicos do trecho.

(II movimento) Com tenerezza

Estrutura Formal

S. A Coda
Cc. 01/33 33-35
Ce. F F
Tabela 36 - Estrutura formal da Sonatina nº3 - II mov.

Como no segundo movimento da Sonatina anterior, este segundo movimento


da Sonatina nº3 apresenta uma linha melódica contínua, só que desta vez esta linha
melódica está amparada fortemente por um acompanhamento que dá o suporte harmônico.
O centro situa-se em fá, mas com clara alusão a tonalidade de fá menor devido aos
acidentes característicos desta tonalidade que persistem por todo o movimento: sib, mib,
láb e réb.
101

Aspecto Melódico - Rítmico


A característica deste movimento está na linha melódica e o seu desenrolar
contínuo de frases que não se repetem. Esta linha melódica continuada é caracterizada
predominantemente por saltos ascendentes (considerando as apojaturas), seguidos por
movimentos descendentes, como podemos observar no seguinte trecho:

Exemplo 64 - Sonatina nº3- II mov. – cc.1-13 (m.d.)

Para o intérprete, a expressividade dessa linha melódica está justamente nesses


desenhos melódicos descendentes antecedidos dos saltos: como afirmava Mário de
Andrade, é uma peculiaridade este constante movimento descendente da linha melódica na
nossa música popular ou folclórica, como já mencionamos anteriormente. Guarnieri tinha
uma predileção por frases descendentes que se materializou muito claramente neste
movimento. Portanto os desenhos melódicos descendentes se constituem no elemento mais
importante para ser explorado enquanto elemento expressivo da melodia.

Pianismo
Uma modinha com nostálgicos devaneios, afirma Verhaalen (2000, p.158): esta
afirmação representa bem o caráter deste segundo movimento. Guarnieri capta na sua
escrita pianística, no que diz respeito ao modo como são divididas as vozes, uma
sonoridade que lembra alguns instrumentos de uma roda de choro, como, por exemplo,
uma flauta e um violão: a maneira como estão escritos as partes de cada uma das claves do
piano faz lembrar uma flauta e um violão, respectivamente a clave de sol e a de fá.
Principalmente a escrita da m.e., dividida em duas vozes, é caracteristicamente
violonística. Portanto, a sugestão dessas sonoridades instrumentais torna-se fator
interpretativo importante, advindo de sua escritura particular, para a execução
instrumental.
102

(III movimento) Bem rítmico (two-part fugue)

Estrutura Formal

Reexp.
S. Exp. 1º Eps. Reexp.I 2º Eps. Reexp.2 3º Eps. Reexp.3 Ponte
Final
Cc. 01-11 11-19 20-30 30-40 41-52 52-64 65-74 75-81 82-90
Ce. F- C D-A C-G Bb - F F
Tabela 37 - Estrutura formal da Sonatina nº3 - III mov.

O terceiro movimento constitui-se de uma fuga a duas vozes em andamento


moderadamente rápido e apresenta seções bem delineadas: uma exposição seguida de três
episódios e três reexposições intercalados, uma ponte e uma reexposição final. De maneira
geral, a utilização de diferentes articulações de expressão entre sujeitos, contrassujeito e
episódios enriquece a interação contrapontística entre ambas as vozes da fuga e possibilita
variações no fluxo melódico. A ênfase nessas articulações de expressão e também na
dinâmica, como veremos a seguir, serão importantes elementos a serem evidenciados na
execução instrumental, pois irão caracterizar as seções entre si e estabelecer o diálogo entre
elas.

Aspecto Melódico – Rítmico


O mais importante nesta fuga é dar a devida diferenciação entre o tema
(sujeito) e os episódios intercalados a ele. O tema da fuga é apresentado numa sucessão
quase que ininterrupta de semicolcheias em staccato e disposto de tal maneira que
podemos ouvi-lo como uma grande e única frase. No trecho abaixo, o sujeito da fuga é
apresentado pela m.d.:
103

Exemplo 65 - Sonatina nº3- III mov. – cc.5-11

As sucessivas reexposições temáticas são invariáveis quanto à maneira


como são reexpostos sujeito e contrassujeito. No exemplo acima podemos observar que o
contrassujeito, executado pela m.e., é articulado em pequenos grupos de notas em legato.
Por sua vez, são os episódios que dão os elementos de maior contraste ao
discurso das seções entre si. Os episódios aliviam a rigidez provocada pelo ritmo das
sucessivas reexposições temáticas. No exemplo abaixo, destacamos trecho do primeiro
episódio:

Exemplo 66 - Sonatina nº3- III mov. – cc.13-16

O primeiro episódio se destaca pelo diálogo entre as vozes: a rítmica


sincopada que aparece na voz superior no c.13 completa-se com os contratempos
provocados pelas colcheias na voz inferior do c.14. Ambas devem ser destacadas das
demais.
O segundo episódio desenvolve basicamente a estrutura rítmica anacrústica
das quatro semicolcheias iniciais do tema. Este episódio se destaca pela alternância e o
contraste de articulações de notas entre staccato e legato:
104

Exemplo 67 - Sonatina nº3- III mov. – cc.30-35

O terceiro episódio deve-se destacar o resultado rítmico proporcionado


pelos saltos da linha melódica da voz superior em sequência que ocorrem nos cc.53, 55 e
57. Estes saltos reforçam os efeitos de síncope proporcionados pelas notas mais agudas. No
exemplo abaixo, destacamos essas notas colocando as hastes para cima, evidenciando a
estrutura rítmica sincopada:

Exemplo 68 - Sonatina nº3- III mov. – cc.52-54

Portanto, devemos ressaltar na execução o caráter distensivo, ou seja, de


diminuição de tensão e, consequentemente, de leveza dos episódios, em oposição às
sucessivas reexposições temáticas, mais incisivas.

Dinâmica
Na fuga, a dinâmica apresenta-se de maneira escalonada, estendendo-se
gradativamente do p ao ff final: a elevação de intensidade dinâmica se dá a cada nova
reexposição do sujeito:

ff

f reexp. Final

mf reexp.2 reexp.3

p reexp.1

exp.

Tabela 38 - níveis dinâmicos da fuga da Sonatina nº3


105

Esta escala crescente de intensidade provoca um aumento no nível de tensão entre


as seções, principalmente a cada nova reexposição do sujeito. Embora os episódios
acompanhem essa gradação de intensidade, seus elementos rítmicos, melódicos e de
articulação, como vimos, colaboram para que essas seções sejam as seções contrastantes da
fuga.

Pianismo
As articulações de notas que ocorrem nos episódios, principalmente legatos e
staccatos, além de estruturas rítmicas sincopadas, imprimem um ritmo gingado
característico a esta fuga.
De acordo com o âmbito de registro desta Sonatina que utiliza apenas a clave de
sol, a fuga está construída dentro da reduzida extensão que abrange fá2 e dó5, o que lhe
confere um caráter leve e alegre. Portanto, sua escrita sincopada leva a uma escritura
caracteristicamente típica da música brasileira.
Destacamos ainda uma particularidade inerente ao próprio tema da fuga que
pode muito bem ser levado em consideração na execução instrumental: como vimos, no
exemplo 64 o tema da fuga é formado, quase na sua totalidade, por ininterruptas
semicolcheias em staccato. Em alguns pontos, podemos sentir certos padrões rítmicos
subjacentes à sequencia de semicolcheias proporcionados pelos saltos da linha melódica do
tema. Estes saltos delineiam certas estruturas rítmicas sincopadas que são típicas da música
brasileira. No exemplo abaixo, destacamos essas estruturas rítmicas implícitas colocando
as hastes para baixo nas notas equivalentes:
106

Exemplo 69 - Sonatina nº3- III mov. – cc.1-6

No c.5 as ligaduras entre as notas descendentes por grau conjunto também


destacam estruturas rítmicas ocultas das sequencias de semicolcheias de tema. Os saltos
intervalares colaboram para dar uma diferenciação rítmica às reiteradas semicolcheias.
Embora não estejam na partitura, essas estruturas subjacentes deveriam ser levadas em
consideração na execução interpretativa.
107

4.4. SONATINA Nº4 (1958)

Esta Sonatina foi dedicada ao maestro Italiano Tabarin (1897-1992) e foi


estreada pelo pianista Gilberto Tinetti (1932) no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 10
de outubro de 1961.
Pouco mais de duas décadas separam esta Sonatina da anterior. Em termos
pianísticos, esta obra, mais extensa que as anteriores, apresenta maior dificuldade técnica
nos movimentos rápidos. Há passagens rápidas nos primeiros e terceiros movimentos que
exigem maior precisão rítmica entre ambas as mãos do pianista: o entrosamento da rítmica
da m.e. com as da m.d. no tema A primeiro movimento e os saltos em movimentos
contrários a partir do c.181 do terceiro movimento.
Prevalecem em todas as seções dos três movimentos figurações melódicas
descendentes, as quais, como vimos nas Sonatinas anteriores e também no subcapítulo
referente ao compositor e o Ensaio de Mário de Andrade, é uma constância melódica em
todo o conjunto e uma das principais características do tratamento melódico em Guarnieri.
Principalmente no primeiro e terceiro movimentos, a linha melódica é essencialmente
modal.
Em relação à textura, esta Sonatina ainda que tenha um tratamento linear como
as anteriores, apresenta um discurso um pouco mais homofônico, ou seja, o discurso
polifônico observado até aqui dá lugar a uma predominância melódica da m.d. sobre a
m.e.. A m.e. assume o papel de complemento ao discurso realizado pela m.d. em quase
toda a obra.
De maneira geral, apresenta oscilações de andamento, principalmente no
primeiro movimento, onde estão associadas à mudança de caráter dos temas. A extensão
dinâmica aparece mais ampla do que nas obras anteriores, principalmente no segundo e
terceiro movimentos (pp e ff).
A tessitura utilizada também é mais ampla e a clave de fá aparece nos três
movimentos. Lembramos que as Sonatinas nos2 e 3 são totalmente escritas em clave de sol.
Mesmo assim, nesta Sonatina nº4 o compositor utiliza-se muito mais da região média
aguda do piano do que da região mais grave: os três movimentos iniciam-se na clave de
sol. Com isso, a maneira como Guarnieri trata o instrumento sugere até aqui certo
comedimento quanto ao uso da técnica pianística ou mesmo no tratamento sonoro do
piano, longe ainda dos gestos de escrita das Sonatinas posteriores, onde a utilização das
extremidades do teclado se faz com mais contundência.
108

(I movimento) Com Alegria

Estrutura Formal

S. Exposição Desenv. Reexposição

Cc. 1-48 52-85 93-140

Sub. Tema A Tr Tema B Tr Tr Tema A Tr Tema B Tr Coda

Cc. 1/27 27-33 33-48 48-51 86-93 93-119 119-125 125-140 140-143 144-163

C. C D G G Cm-Ab-D G C D C G C
(Tempo I)
Poco Com alegria - (Tempo I) Poco (Tempo I)
Esp. Com alegria
meno Com Alegria meno Com Alegria
Poco meno
Tabela 39 – Estrutura formal da Sonatina nº4 – I mov.

O compositor reitera neste movimento a forma sonata, com seus temas e seções
bem definidos. Basicamente uma mudança expressiva de andamento vai diferenciar as
características entre os temas A e B, como mostra a tabela acima: Com Alegria para o tema
A e Poco Meno para o tema B. A indicação metronômica de  = além de estar
relacionada a subseção do tema A é a principal pulsação que caracteriza o movimento
como um allegro de sonata.
Além da mudança de andamento que está ligada mais a mudança de caráter dos
dois temas, outros elementos entram em ação na diferenciação deles nesta Sonatina e que
são importantes para a execução: o fluxo de semicolcheias da linha melódica da subseção
do tema A dando a essa subseção um forte caráter rítmico, contra a melodia em terças da
subseção do tema B mais cantabile, como veremos.

Aspecto Melódico - Rítmico


O tema A tem forte apelo rítmico se comparado ao o caráter melódico-
expressivo do tema B: as frases do tema A são acompanhadas por intervenções
ritmicamente sincopadas da m.e.. Por isso, o importante para a execução deste tema A será
enfatizar o entrosamento da rítmica da m.e. com as frases da m.d. as quais sugerimos, pelo
seu desenho melódico, destacar as notas mais agudas. No exemplo abaixo, destacamos a
parte do piano e a rítmica implícita no desenho melódico da m.d. e da rítmica da m.e:
109

Exemplo 70 - Sonatina nº4- I mov. – cc.1-5

No exemplo acima, ambas as linhas abaixo da escrita do piano representam um


padrão rítmico implícito na escrita pianística: na m.d. destacamos a primeira nota de cada
grupo de semicolcheias. O movimento descendente de cada grupo de quatro semicolcheias
gera um padrão rítmico implícito sentido pela nota mais aguda de cada grupo. Na m.e. o
padrão rítmico implícito surge da primeira de cada grupo de duas semicolcheias, já que
para a sua execução naturalmente existe um apoio maior para a primeira do que para a
segunda semicolcheia. No andamento rápido, como é o caso aqui (semínima = 120), esta
rítmica implícita fica ainda mais evidente.
No trecho seguinte, podemos estabelecer outro entrosamento das rítmicas
implícitas de ambas as mãos que ocorre entre os cc.11-15. Assim como no exemplo
anterior, na m.d. esta rítmica é estabelecida pelas notas mais agudas dos grupos de
semicolcheias e na m.e. através do ritmo sincopado da m.e.:

Exemplo 71 - Sonatina nº4- I mov. – cc.11-15


110

No último trecho a seguir, ainda fazendo parte do tema A, temos a rítmica


implícita mais claramente evidenciada por causa dos saltos da m.d. com as estruturas
rítmicas da m.e.:

Exemplo 72 - Sonatina nº4- I mov. – cc.17-21

O primeiro padrão rítmico que destacamos acima (ex.69) repete três vezes,
entre os cc.1-8. O segundo (ex.70) duas vezes seguidas (cc.11-15) e o terceiro padrão
(ex.71), quatro vezes (cc.16-24), formando assim, estruturas rítmicas reincidentes.
Destacamos esses padrões implícitos na escrita como importantes para a execução
instrumental porque por mais que executemos as sequencias de semicolcheias com o
mesmo peso, as notas mais agudas se destacam, principalmente no trecho onde os saltos
são mais evidentes, como no exemplo 71 acima.
O pianista tem nesses padrões rítmicos destacados a motilidade, ou mesmo um
guia, para a execução das semicolcheias da m.d. junto às intervenções sincopadas da m.e..
A precisão e o equilíbrio na execução dessas estruturas rítmicas que se formam são
importantes, pois existe uma dificuldade na execução dessas passagens por causa
justamente do entrosamento das semicolcheias, principalmente em uma pulsação rápida,
como é o caso do início deste movimento.
O tema B, por sua vez, mais lírico, apresenta-se em terças, as características
terças caipiras do compositor. Aqui o mais interessante são as relações dialógicas entre o
motivo rítmico-melódico ascendente com as semi-frases em terças descendentes que
seguem ao motivo. Destacamos as sete frases curtas onde, em cada uma dela, existe a
relação antecedente – consequente ou pergunta – resposta:
111

frase 1

frase 2

frase 3

frase 4

frase 5
112

frase 6

frase 7

Exemplo 73 - Sonatina nº4- I mov. – cc.33-48

Conforme a divisão acima, o diálogo é estabelecido entre um motivo rítmico-


melódico que se repete e os desenhos das terças descendentes. As mudanças frequentes de
fórmulas de compassos fazem com que ouçamos as respostas de maneira diferente das
perguntas: algumas são mais longas e outras mais curtas.

Pianismo
O caráter sincopado do tema A, como vimos acima, proveniente da escrita das
semicolcheias, gera uma escritura onde está implícito o jogo rítmico oriundo da interação
de ambas as mãos do pianista, sendo um importante elemento interpretativo. O destaque
das notas mais agudas evita que as ininterruptas semicolcheias da m.d. sejam executadas
com o mesmo peso, mesmo que o compositor não tenha utilizado acentos nessas notas
mais agudas. Portanto, acreditamos que tais destaques devem ser encarados de maneira
natural na execução.
No caso do tema B, o pianismo de Guarnieri aparece implícito em uma escrita
que gera uma escritura expressiva que nos remete às terças caipiras, comentadas
anteriormente no subcapítulo 1.1: o uso das terças para criar uma sonoridade de inspiração
nacionalista que nos reporta indiretamente às terças paralelas das modinhas e canções. As
mudanças métricas constantes na linha melódica das terças do tema B conferem a elas
flexibilidade de execução, a qual deve se refletir na expressividade da própria execução
113

instrumental. Portanto, uma leve flexibilização da pulsação na execução dessas terças do


tema B enfatizaria maior expressividade ao trecho.

Tempo e Dinâmica

S. Exposição Desenv. Reexposição

Cc. 1-48 52-85 93-140

Sub. Tema A Tr Tema B Tr Tr Tema A Tr Tema B Tr Coda

Cc. 1-27 27-33 33-48 48-51 86-93 93-119 119-125 125-140 140-143 144-163

 = Accel.

Tp. = 120 Dim. e rall. Poco meno Accel. Poco  = Accel.  =
a poco
Poco meno

Din. p – mf - f mf p p p – f – mf - p p-f f - ff

Tabela 40 - Tempo e Dinâmica da Sonatina nº4, I mov.

De acordo com a tabela acima, além de observarmos a diferença de andamento


entre o tema A e o tema B, existe maior contraste na dinâmica no tema A (p ao f ) em
relação ao tema B (p).
Há uma utilização maior de subseções transitivas entre os temas e entre as
seções, conforme podemos notar na tabela acima. As transições desta Sonatina são
utilizadas para conectar as diferenças de andamento que existem entre os dois temas,
através de rallentandos ou accelerandos. Portanto, cabe a essas transições o momento de
mudanças de caráter que o executante deve imprimir à execução para diferenciar as partes
deste primeiro movimento.
As lacunas na tabela acima significam a ausência de marcações tanto de
andamento quanto de dinâmica na partitura. Por se tratar de partes equivalentes, as
indicações da seção de Exposição são as mesmas para a Reexposição.

(II movimento) Melancolico

Estrutura Formal

S. A B A’ Coda
Cc. 01-17 18-37 38-50 51-57
Ce. F C F F
Tabela 41 - Estrutura formal da Sonatina nº4 – II mov.
114

De acordo com Mendonça (2001) este movimento é um “romance sem


palavras”, enfatizando seu caráter terno e nostálgico. Assim como na Sonatina nº1,
Guarnieri volta a explorar aqui a forma ternária da canção, ou seja, um A-B-A’. Seu centro
harmônico gira em torno de F. Embora a tonalidade de fá maior se faça presente, ela é
camuflada e não expressa na armadura de clave.

Aspecto Melódico - Rítmico


Como vimos nas Sonatinas anteriores, mudanças de fórmulas de compassos e
de métrica proporcionam maior flexibilidade ao discurso musical e, consequentemente,
melodias e rítmica menos regulares ou menos simétricas.
Interagem neste movimento três tipos de fórmulas de compassos: 4/8, 3/4 e 3/8,
ou seja, métricas quaternárias alternando-se com ternárias. Na execução das frases, a
interação dos compassos quaternários com os ternários, tanto na seção A quanto na B,
contribui para um discurso mais livre, o que pode sugerir uma interpretação com
características próximas a uma improvisação, já que auditivamente o discurso musical não
fica refém da rigidez de uma única métrica.
A influência que as mudanças métricas exercem sobre o discurso das frases
fica evidenciada na seção A. Existe uma relação entre os cc.1-4 com os cc.9-13. Eles se
assemelham como mostra o exemplo abaixo:

Exemplo 74 - Sonatina nº4- II mov. – cc.1-5; cc.9-13


115

Podemos observar que esta semelhança se dá por correspondência de notas e o


sentido harmônico é ligeiramente modificado. Seria como se o compositor reescrevesse ou
readaptasse as frases dos quatro primeiros compassos de cc.1-4 para os cc.9-13,
expandindo-os em cinco compassos. Este é um exemplo onde as mudanças métricas junto
com variações melódicas podem ser traduzidas na interpretação através de uma execução
mais flexível, já que disfarçam uma rigidez na pulsação: embora o trecho deva ser
executado dentro de uma pulsação, esta é disfarçada pela mudança métrica e variações na
linha melódica. Com isso, poderia o executante se aproveitar da interação entre esses
elementos que entram em jogo no discurso musical para simular uma maior liberdade na
agógica.

Dinâmica

S. A B A’ Coda

Cc. 01-17 18-37 38-50 51-57


pp – mf –
Din. p-f ff – f – p - p–f pp - ppp
pp
Tabela 42 – Dinâmica da Sonatina nº4, II mov.

De acordo com a tabela acima, a seção B apresenta maior contraste dinâmico


em relação às seções A e A’. Embora não seja mostrado na tabela, a seção B (cc.18-37)
apresenta também maior densidade de notas em relação à seção A’, evidenciando assim o
caráter mais expansivo dessa seção intermediária.

(III movimento) Gracioso

Estrutura Formal

S. A B A' C A'' B' Tr A Coda


Cc. 01-37 38-63 63-90 90 - 136 137-173 174-191 192-197 198-207 207-217

G–B C–E

Ce. C-D A# - C B-D D - Eb C D-F F-C C C

G# - B
Tabela 43 - Estrutura formal da Sonatina nº4 – III mov.
116

O rondó contém seções com características distintas. Em cada uma de suas


seções, Guarnieri explora elementos musicais comuns ao seu estilo, tais como, o
tratamento polifônico, os intervalos de terças e o tresillo, sendo estes elementos que criam
contrastes entre as seções.
A textura predominante é apresentada em três vozes em quase todo o
movimento. As vozes abaixo da linha melódica desenvolvem-se como acompanhamento,
dado seu caráter repetitivo e também como suporte harmônico a melodia, exceto na seção
B onde ocorre o inverso: neste caso a m.d. funciona com a linha melódica e
acompanhamento ao mesmo tempo e a m.e. desenvolve uma segunda voz à melodia.
As terças caipiras, recorrentes em quase todas as Sonatinas, são transformadas
em décimas na seção B, resultado das notas agudas da m.d. com as notas dos baixos da
m.e. (c.38 e seguintes). Na seção B’ (c.174 e seguintes) essas terças estão dispostas entre
os polegares do pianista.
O tresillo, padrão rítmico formado por duas subdivisões ternárias com uma
binária (3-3-2) é encontrado ainda na seção B e B’: ambas as seções desenvolvem a mesma
melodia, mas são variações uma da outra.
A seção C tem caráter fortemente rítmico e sugere a rítmica do baião.
Se o fluxo constante de semicolcheias foi uma das características marcantes do
primeiro movimento, neste terceiro movimento as colcheias irão determinar a velocidade
da execução, pois elas são predominantes em todas as seções.

Aspecto Melódico - Rítmico


O principal elemento a ser destacado na seção A (cc.1-37) é de natureza
rítmico-melódica: trata-se de intervenções de desenhos melódicos deslocados dentro dos
compassos e também de deslocamento de frases nos compassos. Nos trechos a seguir, o
desenho rítmico-melódico da m.d. agrupada de três em três quebra a divisão das quatro
colcheias da m.e.:
117

Exemplo 75 - Sonatina nº4- III mov. – cc.8-10; cc.32-35; cc.70-72

No segundo e terceiro trechos acima, ambas as mãos desenvolvem desenhos de


três colcheias articuladas em legato com defasagens entre elas. Dessa forma, os trechos
assinalados acima constituem momentos de movimentação rítmico-melódica diante da
regularidade rítmica que caracteriza o tema dessa seção A.
Na seção B (cc.38-62) destacamos as notas agudas da m.d. com as da m.e.,
formando os intervalos de décimas que depois, se transformam em terças na segunda
repetição da seção (cc.174-191), executadas pelos polegares de ambas as mãos. Em ambas
as seções, que são equivalentes, a rítmica do tresillo, como já comentamos, é amplamente
explorada. A seção B está dividida em três frases de oito compassos cada. Estas frases se
iniciam a cada novo centro harmônico, de acordo com a tabela 43 da estrutura formal: a
primeira frase se inicia no c.38 com centro em sol, a segunda a partir do c.46 com centro
em lá# e a terceira frase no c.54 com centro em sol#:

início da 1ª frase
118

início da 2ª frase

início da 3ª frase

Exemplo 76 - Sonatina nº4- III mov. – cc.38-39; cc.45-47; cc.53-55

Estes compassos que iniciam cada uma das três frases acima são importantes
pontos de referências da seção, já que elas sinalizam cada um dos centros e estabelecem o
ritmo harmônico e são realçados ainda pelo nível da dinâmica como podemos observar nos
crescendos que antecedem o início de cada frase.
A seção B’ é caracterizada pelo movimento contrário a partir das terças
executadas pelos polegares. Tem a mesma configuração fraseológica da seção B. O que
podemos acrescentar nesta segunda versão da seção B é o rall que antecede a frase iniciada
no c.182 em Poco meno:

Exemplo 77 - Sonatina nº4- III mov. – cc.181-183


119

Com a densidade de notas aumentada em relação a sua seção B


correspondente, a diminuição do andamento como indicado aqui se faz necessário devido
aos saltos de notas empreendidos pela m.e. do pianista.
A seção C, dividida em duas partes (cc.90-111 e cc.112-136), é marcada pela
rítmica do ostinato que predomina em toda a seção:

Exemplo 78 - Sonatina nº4- III mov. – cc.90-92

Como podemos observar acima, existem três vozes com articulações distintas
entre si e onde se lê bem ritmado: a linha melódica, a nota pedal em ré que dura apenas um
tempo do compasso e a rítmica das colcheias em stacatto. Estas vozes se estendem até o
c.110.
A partir do c.112 a segunda parte da seção C mantém a mesma rítmica e a
seção passa a se desenvolver numa região mais grave se comparada a primeira parte da
seção. As três vozes aqui se desenvolvem de maneira diferente: as duas primeiras formam
uma polifonia quase em contraponto entre si e a voz inferior estabelece a rítmica e a base
harmônica. A seguir, destacamos um trecho desta segunda parte da seção C:

Exemplo 79 - Sonatina nº4- III mov. – cc.120-124

Pelo tipo de textura apresentada nessa seção C onde existem vozes com
articulações diferentes, a não utilização do pedal sustain é importante, principalmente se
120

ele já estiver sendo utilizado nas seções anteriores. Uma sonoridade mais seca e que
privilegie os staccatos e sua rítmica deve ser considerada na execução.

Pianismo
Algumas observações referentes ao pianismo são importantes neste terceiro
movimento, principalmente quando nos remete a sugestões interpretativas importantes para
a execução instrumental. É o caso, por exemplo, das apojaturas da m.e. logo no início do
movimento. Estas apojaturas são constantes na seção A (cc.1-37), pois incidem na nota
pedal, que é o centro da harmonia da seção:

Exemplo 80 - Sonatina nº4- III mov. – c.1

As reiteradas aparições da apojatura sobre o dó podem nos remeter ao mesmo


efeito das apojaturas utilizadas antes da entrada do tema B do primeiro movimento da
Sonatina nº3 analisada anteriormente. Lá sugerimos que a nota pedal que aparece repetidas
vezes no baixo, é uma alusão ao bordão de viola caipira. O mesmo pode-se dizer das
apojaturas do início deste terceiro movimento. Essas apojaturas sugerem sonoridade
caracteristicamente violonística e, portanto, devem ser destacadas juntamente com as notas
da melodia, realçando o efeito do semitom entre as notas si e dó.
Outro aspecto do pianismo a ser evidenciado seria o padrão rítmico do tresillo
através da linha melódica formada por intervalos de décimas e terças, intervalos
equivalentes, respectivamente nas seções B e B’, inspirações advindas do populário e
empregadas aqui como material contrastante entre as seções do rondó.
A rítmica do baião sugerida na seção C é mencionada também por outros
estudiosos desta obra confirmando um tipo de escritura que nos remete ao folclore
nordestino.
Assim, o compositor em um único movimento explora vários elementos na sua
escrita pianística portadores de sonoridades sugestivas que nos remetem a tipos de
escrituras que nos dão novas possibilidades de leitura dessa escrita.
121

4.5. SONATINA Nº5 (1962)

Dedicado ao pianista norte-americano Joseph Richard Battista (1918-1968),


esta Sonatina foi escrita como peça de confronto para o III Concurso de Piano Eldorado de
1962.
Esta obra é uma das mais longas de todo o conjunto das Sonatinas e apresenta
uma dissonância pouco mais acentuada em relação às Sonatinas anteriores de números 1, 3
e 4. O uso de intervalos mais dissonantes, tais como segundas maiores e menores, sétimas,
acordes alterados, com nonas, faz com que esta Sonatina esteja a meio caminho da
atonalidade livre desenvolvida nas três Sonatinas posteriores. A tonalidade assim como a
modalidade são ambíguas, ou seja, muitas vezes podemos identificar determinados acordes
mas não sua funcionalidade para o trecho onde está inserido. Os modos escalares são
muitas vezes misturados.
Guarnieri volta a desenvolver aqui um discurso mais linear se comparado com
a obra anterior, com mudanças muito mais frequentes de fórmulas de compassos em seus
três movimentos, a utilização mais extensa do teclado e amplitude dinâmica igualmente
mais ampla.

(I movimento) Com Humor

Estrutura Formal

S. Exposição Desenv. Reexposição

Cc. 01/56 56-87 87-133


Tema
Sub. Tema A TR Tema B Tema B Coda
A

Cc. 01/29 30-33 33-56 87-106 106-133 133-144

Ce. A B A A A

Dolce
Com
Esp. Com Humor dolce ma
Humor
sonoro
Tabela 44 - Estrutura formal da Sonatina nº5 - I mov.

O primeiro movimento desta Sonatina nº5 apresenta-se formalmente um pouco


mais desenvolvido do que as Sonatinas anteriores, pois tanto o tema A quanto o tema B
apresentam-se mais extensos.
122

Em termos interpretativos, o caráter melódico da subseção do tema A se


manifesta na linearidade das frases de ambas as mãos que se dialogam em oposição a
subseção do tema B onde o caráter mais ritmado, principalmente pelo desenho repetitivo
do acompanhamento da m. e. faz lembrar o tresillo. Mesmo com tais diferenças na
caracterização de ambos os temas, esta obra, talvez por sua linearidade pouco mais
proeminente, tenha um apelo melódico maior, exigindo do intérprete uma ênfase na
expressividade das linhas melódicas de ambos os temas e também na interação entre frases
da m.d.com a m.e..
Outro aspecto que deve ser levado em consideração na execução instrumental e
que está intimamente ligado ao contorno melódico das frases e semi-frases está na
utilização do pedal sustain em alguns trechos e sua não utilização em outros, de acordo
com a linearidade intrínseca contida no discurso musical. Por causa disso, veremos que o
pedal assume nesta obra papel importante, principalmente como elemento de contrastes
entre temas e/ou subseções.

Aspecto Melódico – Rítmico


A subseção do tema A (cc.1-29) se destaca por sua linearidade, onde a linha
melódica da m.d. se desenvolve paralelamente ao contracanto da m.e.. Esta interação entre
ambas as mãos é importante para a execução interpretativa do trecho. Abaixo destacamos
separadamente as três principais frases do tema A. As duas primeiras frases começam e
terminam nas mesmas notas: a primeira frase tem a nota lá como início e término e a
segunda tem a nota mi. A primeira é constituída por quatro semi-frases e a segunda por
duas semi-frases:
123

1ª frase

2ª frase

Exemplo 81 - Sonatina nº5- I mov. – cc.1-9

Independente das semi-frases da m.d., as articulações de notas ligadas da m.e.


respeitam desenhos descendentes, sempre a partir da nota mais aguda, conforme
observamos no exemplo acima. Se estabelece então uma importante interação entre as
semi-frases da m.d. com as articulações da m.e. que devem ser ouvidas independentes uma
das outras. Lembramos que este contracanto da m.e. é também o suporte harmônico para as
semi-frases da linha melódica e, no caso do trecho destacado, está claramente em lá maior.
A terceira frase (cc.9-12), quase idêntica à primeira, uma oitava mais grave,
tem na m.e. semi-frases fazendo um cânone com a m.d., diferentemente do que vinha
ocorrendo anteriormente:

3ª frase

Exemplo 82 - Sonatina nº5- I mov. – cc.9-12

Como podemos observar no exemplo acima, o cânone entre as duas vozes


reforça a importância em se destacar o que tem de mais característico na subseção do tema
A, ou seja, a interlocução entre as vozes. Portanto, é necessário que o legato das semi-
124

frases e dos contracantos sejam, de fato, bem delineados, separados pelas articulações das
frases (respirações). Nesse sentido, é importante a não utilização do pedal sustain, pelo
menos na apresentação das três frases iniciais, pois o controle de toque se torna mais
preciso.
Outro momento da subseção do Tema A em que é muito clara a importância
das articulações de frases e semi-frases sem a utilização do pedal sustain se dá entre os
cc.20-27. Este trecho de oito compassos encerra esta subseção do tema A, pois delimita o
centro na nota lá por causa das sucessivas repetições das primeiras notas do tema inicial
que ocorrem nos cc.20, 23, 25 e 27. Destacamos aqui a importância dos stacattos da m.e.
em contraste com as notas em legato:

Exemplo 83 - Sonatina nº5- I mov. – cc.23-27

Como podemos observar no trecho acima, a m.e. desenvolve um ostinato que


entra em contraste com as sucessivas entradas do tema na m.d. em legato. Importante
destacar aqui a repetição do desenho rítmico-melódico da m.e.: as notas mi e lá que se
alternam com as notas ré e lá grave em stacatto tem forte caráter rítmico diante da melodia
da m.d..
Os trechos entre os cc.13-19 e entre cc.28-32 funcionam como de passagem e
por isso a utilização do pedal sustain é recomendável, pois dá efeito contrastante ao que
vem antes e o que vem depois: o trecho entre cc.13-19, por exemplo, é constituído por
sequências ascendentes e descendentes quase todo em legato e a utilização do pedal
respeitando as notas ligadas da m.e., por exemplo, serve para contrastar dos trechos sem
pedal que destacamos acima. Já os cc.28-32 são, por natureza, transição para a o tema B,
podendo a utilização do pedal se dar de novo como uma sinalização de mudança de
atmosferas entre as seções do movimento como um todo.
A subseção do tema B se inicia no c.33 e termina no c.56 e, diferentemente do
que ocorre no tema A, o tema B caracteriza-se basicamente por uma melodia
acompanhada. Além disso, esse segundo tema destaca-se pelo aspecto rítmico da m.e.,
125

constituída em duas vozes, ambas proeminentemente rítmicas, como podemos observar no


exemplo abaixo:

Exemplo 84 - Sonatina nº5- I mov. – cc.33-36

No exemplo acima, destacamos apenas as duas primeiras frases do tema B. Os


dois primeiros compassos mostram que a rítmica da m.e. é construída por arpejos
ascendentes agrupados de três em três, quebrando o sentido métrico dos compassos binário
e ternário e a voz inferior apresenta-se em notas repetidas ritmicamente. Este padrão
rítmico da m.e. repete-se como um ostinato por quase toda a subseção do tema B, sendo,
portanto, a rítmica que mais caracteriza o tema: esse caráter fortemente rítmico é sentido
pelas sucessivas pausas de colcheias na m.e., antecedida pelos marcatos no baixo. Esta
rítmica da m.e. pode ser reforçada com a utilização do pedal sustain entre a mínima
pontuada e colcheia do baixo e evitando-o nas pausas.
Na seção de desenvolvimento (cc.56-87) destacamos o caráter fortemente
percussivo entre os cc.60-71 do caráter rítmico-melódico que ocorre entre os cc.76-86, este
proveniente do tema B. No caso do primeiro trecho (cc.60-71) existe uma incidência
grande de acordes dissonantes e de sinais de acentuação (marcatos e tenutos), além do
nível dinâmico mais intenso (f - ff), que faz com que esse trecho seja o de maior
intensidade sonora de todo o movimento. A sonoridade dos intervalos de segundas maiores
e menores entre m.d. e m.e é o mais importante a ser destacado. Além disso, o contorno
melódico da m.d. indica a característica fortemente rítmica do trecho, como podemos
observar nos trechos a seguir.
Destacamos abaixo a rítmica proveniente de ambos os sinais de dinâmica
(marcattos e tenutos) que há no trecho abaixo:
126

Exemplo 85 - Sonatina nº- I mov. – cc.59-62

Notamos que, no primeiro trecho, a angulosidade das colcheias da m.d. com


suas notas marcadas entram em conflito com a pulsação das semínimas pontuadas da m.e..
No trecho seguinte a sequência dos compassos 2/4 – 5/4 – 3/4 – 2/4 gera uma variação da
rítmica do tresillo. Essa rítmica é destacada através dos intervalos de segundas entre ambas
as mãos:

Exemplo 86 - Sonatina nº- I mov. – cc.64-67

No trecho a seguir, as terças da m.d. destaca outra rítmica sincopada:


127

Exemplo 87 - Sonatina nº5- I mov. – cc. 68-69

O tema B, além da exposição, é apresentado mais três vezes durante o


movimento: entre os cc.76-86, a partir do c.106 e também a partir do c.119 e a cada
repetição o compositor mostra uma versão diferente, prevalecendo a rítmica do tresillo.
Abaixo expomos apenas os compassos iniciais dessas três versões do tema B:
128

Exemplo 88 - Sonatina nº5- I mov. – cc.76-80; cc.106-108; cc.119-121

No primeiro trecho destaca-se a relação da linha superior com a voz


intermediária sobressaindo os intervalos de segundas. No trecho seguinte, a voz principal é
a intermediária onde se destacam as décimas: nessa versão a voz intermediária está
distribuída entre ambas as mãos do pianista. O terceiro trecho apresenta certa semelhança
com a primeira vez que este tema aparece na seção de exposição. O tema aparece
transitando entre oitavas diferentes do piano e onde o acompanhamento também transita
entre diferentes oitavas, numa variação da versão inicial. Apesar de que nas três versões a
intensidade dinâmica seja a mesma (p), o contorno melódico e como esse contorno está
envolvido na trama das vozes torna-se importante fator na execução interpretativa.
Com exceção de cinco compassos da reexposição, mais precisamente entre os
cc.95-99, não há neste primeiro movimento da Sonatina repetição de material já exposto
utilizando-se das mesmas notas. O fluxo musical se desenvolve sempre de maneira variada
para temas e demais passagens, mesmo quando reexpostos. Através de uma escrita
predominantemente linear, esta variedade na utilização dos materiais torna a execução
desta obra bem dinâmica no sentido de realçar a cada nova variação de elementos já
apresentados, vozes, harmonias, texturas novas.

Pianismo
Já expusemos sobre o emprego do pedal sustain e sua utilização ou não em
relação aos dois temas apresentados nessa Sonatina. Lembramos que na coda, a partir do
c.133, o tema A reaparece numa nova versão, diferente do tratamento estritamente linear
apresentado anteriormente. A m.e. nessa versão final percorre algumas notas arpejadas e
também acordes, com uma função mais harmônica à linha melódica da m.d. Portanto, a
utilização do pedal sustain nesse trecho final seria interessante no sentido de destacar esses
acordes e arpejos da harmonia e também sinalizar a chegada da coda, diferenciando-a das
demais seções e subseções do movimento.
129

Outro fator a ser levado em consideração diz respeito à escritura pianística: o


tema A apresenta-se no modo mixolídio em lá e “relembra a música do nordeste”,
conforme frisou Mendonça (2001) ou tem “um apelo nordestino bem claro, conforme
salienta Bencke (2010). Como sabemos, o modo mixolídio é muito empregado na música
da região nordeste do Brasil e é comum em diversos ritmos, tais como no baião ou no
frevo, por exemplo. A maneira como é apresentado no tema A através de um arpejo
ascendente seguida de uma terça menor descendente traz uma forte alusão ao tema do
Baião, canção de Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira que fez sucesso no ano de 1944 e que
se tornou uma espécie de leit motiv nas criações de inspiração nordestina por parte de
muitos compositores tanto populares quanto eruditos. Logicamente que não existe uma
influência direta da canção de Gonzaga na concepção desta Sonatina de Guarnieri, mas sua
menção aqui se dá pela sonoridade que lembra ou nos remete a característica melódica
nordestina. A menção deste motivo inicial que ocorre também entre os cc.20-27
juntamente com o desenho rítmico-melódico (ostinato), a qual destacamos anteriormente,
sugere uma lembrança tanto da canção quanto da rítmica do baião.

(II movimento) Muito calmo

Estrutura Formal

S. A
Cc. 01-16
Ce. E
Tabela 45 - Estrutura formal da Sonatina nº 5, II mov.

Mendonça (2001) comenta em sua breve análise deste segundo movimento que
esta obra foi executada nos Estados Unidos pelo pianista norte-americano Joseph Battista,
a quem Guarnieri a dedicou, e que o pianista Eugene Liszt, ao ouvi-la, afirmou: “Nunca se
escreveu tanta música com tão pouca nota.”30 Tal afirmação demonstra o grau de
expressividade deste breve movimento, talvez um dos menores segundos movimentos de
todo o ciclo juntamente com o segundo movimento da Sonatina nº 2. Este caráter
expressivo, que mais se parece com um lamento, escrito em breves dezesseis compassos,
torna este movimento um tanto quanto complexo para a execução interpretativa

30
MENDONÇA: 2001, p.408.
130

exatamente pela sua brevidade, onde quase num único fôlego o pianista precisa saber
controlar vários elementos expressivos importantes ao discurso musical: agógica, dinâmica
e as articulações de notas, tais como os legatos, tenutos, marcatos e as respirações de
frases.
Mendonça afirma que a imprecisão tonal não permite a sensação de repouso
(MENDONÇA: 2001, p.408) e, com isso, nos dá uma dica de que a harmonia constitui um
dos mais importantes elementos expressivos para a interpretação deste movimento.

Aspecto Rítmico-Melódico
Este movimento guarda certa semelhança de execução com o segundo
movimento da Sonatina nº3 no que diz respeito à distribuição das vozes e a importância da
relação entre linha melódica e baixos. Podemos estabelecer três vozes que atuam em
oitavas diferentes do teclado: levando em consideração o centro em mi, a linha melódica
gira em torno do mi3 e mi4 e constitui-se quase sempre da melodia formada pela rítmica da
colcheia seguida da semínima pontuada, como no exemplo abaixo:

Exemplo 89 - Sonatina nº5- II mov. – cc.1-3

A linha intermediária é formada quase que exclusivamente por colcheias e se


constitui das notas que formam o recheio harmônico da melodia. Para efeito de execução
instrumental, não estamos levando em consideração as colcheias que coincidem com as
notas da linha melódica, mas apenas aquelas que estão destacadas no exemplo acima de
vermelho. Incluímos ainda nesse recheio harmônico as colcheias mais agudas da m.e. por
estar na tessitura da linha intermediária: auditivamente, tem seu som confundido com ela.
Esta linha intermediária gira em torno do mi2 e mi3. Os baixos, por sua vez, constituem
apenas pelos intervalos de semitom das colcheias e semicolcheias seguidas das semínimas,
desenhando um cromatismo descendente. Sua tessitura está em torno do mi1 e mi2.
A divisão a três vozes acima permite hierarquizar o nível de intensidade em
três planos, como indicado no exemplo: o primeiro e o segundo planos sonoros mais
131

evidentes e o terceiro plano como pano de fundo harmônico. Mas para a execução
instrumental o importante é a relação entre os dois primeiros planos, ou seja, as bordaduras
da linha melódica junto com os semitons descendentes dos baixos.
Segundo Bencke (2010), este movimento pode ser dividido em duas frases: a
primeira que compreende os cc.1-8 e a segunda frase entre os cc.9-16. Ainda, segundo
Bencke, a primeira frase apresenta-se de um modo geral ascendente e a segunda,
descendente. O que estabelece a divisão entre as duas frases exatamente no c.8 é
justamente a cadência para f#m e que perdura até o compasso seguinte, diferentemente das
tonalidades passageiras que ocorrem a cada tempo do compasso em quase todo o
movimento. Como essa divisão em duas frases incide no meio do movimento onde há uma
permanência maior na tonalidade de f#m e a existência de um ponto culminante, ainda que
discreto, podemos determinar que entre os cc.8-9 seja o limite em termos de dinâmica e de
tensão do discurso musical, devendo o pianista construir seu discurso sonoro baseado nessa
divisão de forças que ocorre entre o desenho da linha melódica com o encaminhamento
harmônico.

(III movimento) Com alegria


Estrutura Formal

S. A B A' C A Coda

Cc. 01/34 34-62 62-78 78-109 109-137 137-153

Ce. A D A F# A F# - A

Exp. Com Alegria (con spirito) Súbito (scherzando) (com spirito) Tempo Primo (con spirito) marcato
Tabela 46 - Estrutura formal da Sonatina nº5 - III mov.

Assim como no terceiro movimento da Sonatina nº2, este movimento é


também um Rondó. Cada uma das três seções A, B e C tem características diferentes no
que se refere a textura e também em relação a expressividade interpretativa: as seções A e
A’ apresentam uma linha melódica acompanhada numa nota pedal de lá e tem um caráter
mais cantábile (con spirito); a seção B tem notas repetidas em staccato, rítmica baseada no
tresillo e certa espirituosidade jocosa (súbito scherzando); a seção C é mais impetuosa e
mais virtuosística e se constitui em alternância de oitavas na m.d. com acordes de quartas
na m.e. com apojaturas.
As mudanças no nível da dinâmica que ocorrem de uma seção para a outra
colaboram para caracterizar as seções entre si. Elas estão associadas às mudanças em
132

textura e aos sinais de expressão, segmentando a escrita musical, ou seja, o discurso


musical apresenta-se entrecortado por essas mudanças, como veremos.

Aspecto rítmico-melódico
O tema inicial da seção A abrange os cc.1-8 e constitui-se de duas frases: a
primeira frase entre os cc. 1-5 e a segunda entre cc.5-8. O que caracterizam essas frases,
além de seu desenho melódico, são as notas pedais em lá, tanto da m.e. quanto as tocadas
com o polegar da m.d.:

1ª frase

2
2ª frase

Exemplo 90 - Sonatina nº5- III mov. – cc.1-8

Se observarmos o trecho acima veremos que os lás, principalmente aqueles


tocados pelo polegar da m.d., mantém-se constantes por toda a extensão do tema e
juntamente com as quartas melódicas tocadas pela m.e., produzem uma dissonância
característica com esses lás, principalmente o sol#. A utilização do pedal sustain a cada
tempo do compasso, ou seja, a cada duas semínimas, faz com que a sonoridade desses lás
seja levemente mantida por toda a execução do tema. Lembramos que é típico do
compositor a nota pedal, as vezes lembrando um bordão de instrumento de corda ou
mesmo para criar algum tipo de efeito de sonoridade, como é o caso aqui.
A seção B apresenta-se subitamente com uma textura diferente da seção
anterior, além de ser toda segmentada: a polifonia e as ligaduras de notas entre as vozes da
seção anterior dá lugar a um súbito (scherzando) em staccato com característica mais
rítmica e de leveza. No exemplo abaixo, focalizamos a passagem da seção A para a seção
133

B, que começa no c.34, onde o enfoque principal está em evidenciar o contraste


proporcionado pelas diferentes articulações de notas:

Exemplo 91 - Sonatina nº5- III mov. – cc.31-37

Esta seção, por ser toda segmentada, apresenta quatro pequenos trechos de
diferentes características expressivas: o primeiro a partir do c.34, o segundo a partir do
c.38, o terceiro iniciando no c.47 e o quarto no 54. Abaixo destacamos apenas os três
primeiros compassos de cada um deles:
134

Exemplo 92 - Sonatina nº5- III mov. – cc.34-36; cc.38-40; 47-49; 54-56

Todos os trechos acima diferenciam-se em relação ao nível da dinâmica e na


textura e cada um apresenta uma característica distinta em termos interpretativos e
expressivos: do staccato do primeiro passamos a expressividade melódica do segundo, que
passa ao caráter ritmado do terceiro e chega a forte dissonância do quarto, terminando com
a volta do p súbito do primeiro trecho a partir do c.58. Existe, na sequencia desses quatro
trechos, um crescendo de intensidade implícito que vai do p súbito e atinge o ff rude para
retornar ao p súbito novamente (c.58). Em cada um deles cabe ressaltar os elementos que
mais os identificam: o caráter leve dos staccatos do primeiro, a linha melódica das notas
mais agudas do segundo, a rítmica produzida pelos arpejos e acordes da m.e. no terceiro e
as fortes dissonâncias de segundas menores no quarto trecho. Em todos eles existe a
rítmica do tresillo presente, ora mais explícito ora menos. Outro detalhe importante é que a
passagem de um trecho ao outro, todos separados por uma barra dupla, deve ser feita sem
interrupção, enfatizando assim o contraste entre eles, diferentemente do que ocorre no final
do quarto trecho para a volta do primeiro, mais especificamente no c.57 para o c.58 onde
existe uma pausa de semínima. Isso indica o quão importante é para esta seção
evidenciarmos os contrastes repentinos entre os referidos trechos.
135

Exemplo 93 - Sonatina nº- III mov. – cc.37-41

Exemplo 94 - Sonatina nº5- III mov. – cc.48-52 e 54-57

A seção C que se inicia no c.78 tem outro tipo de escrita que dá uma outra
característica ao Rondó: a alternância de oitavas na m.d. com acordes de quartas na m.e.
136

com apojaturas é a seção mais impetuosa, que requer uma interpretação mais veemente
por parte do instrumentista. Esta seção está dividida em três partes que são recorrentes
entre si: cada uma das partes formam o que poderíamos chamar de diálogo entre duas
frases. Destacamos abaixo apenas a primeira parte da seção onde, de um lado temos a
impetuosidade das oitavas da m.d. entre os cc.78-83 e, por outro lado, a ressonância da
última oitava (lá#) por quatro compassos e meio que corresponde a uma resposta das
oitavas em f e o comentário das notas intermediárias a oitava:

Exemplo 95 - Sonatina nº5- III mov. – cc.78-87


137

São exatos cinco compassos correspondendo a uma frase e mais cinco


correspondendo à outra frase. O ff do c.83 se refere a dinâmica da oitava da m.d. para que
ela ressoe pelos quatros compassos e meio seguintes e não que os compassos seguintes
(cc.83-87) tenham que ser executados em fortíssimo. Isso não ocorre entre os cc.101-105,
onde a indicação ff rude destina-se efetivamente as notas inferiores tocadas pela m.d. entre
os referidos compassos. A impetuosidade da seção C é utilizada para terminar o
movimento.

Pianismo
A utilização especifica do pedal sustain e também a sua não utilização neste
movimento como um todo será importante como recurso interpretativo no sentido de
reforçar as características inerentes a cada uma das seções do Rondó. Isso porque existem
elementos da escrita, diferentes estados de espírito, mudanças de humor que ocorrem na
passagem de uma seção para outra, ou mesmo dentro de uma mesma seção, que devem ser
levados em consideração na execução interpretativa.
Vimos que as notas pedal da seção A requer a utilização do pedal sustain para,
justamente com a melodia, manter o efeito da sonoridade dessas notas em ação. A seção B,
como vimos anteriormente, apresenta-se segmentada em trechos onde é possível
estabelecer a sua utilização ou não. A seção C é outro momento em que é recomendável a
utilização desse pedal pela própria vitalidade com que as oitavas se apresentam, não
utilizando-o entre os cc.83-87, 91-95 e 101-108 para não cortar o efeito das ligaduras das
oitavas da m.d. e as pausas da m.e.
O tresillo utilizado na seção B, lembrando uma embolada segundo Mendonça
ou um sutil ritmo de samba segundo Verhaalen constitui-se num dos clichês recorrentes
principalmente em movimentos rápidos e está relacionado, como é o caso aqui, ao efeito da
síncopa sobre as estruturas rítmicas.

Dinâmica

S. A B A' C A

Cc. 01/34 34-62 62-78 78-109 109-137

Din. p-f-mf-f- p-mf-f-ff-p p f-ff p-f-mf


Tabela 47 - Dinâmica da Sonatina nº5, III mov.
138

De maneira geral este Rondó apresenta-se com mais contrastes na dinâmica,


tanto entre as seções quanto no interior delas propriamente dita. Como pudemos observar
anteriormente, as mudanças no nível dinâmico estão associadas às mudanças texturais e de
indicações expressivas. O primeiro nível na dinâmica indicada em cada uma das seções na
tabela acima representa efetivamente o nível dinâmico que se inicia a seção. Na seção B,
como podemos ver acima, cada nível dinâmico assinalado representa a mudança de um
segmento da seção (mudanças de textura).
As seções A e A’ tem o menor nível dinâmico do movimento ao passo que a
seção C juntamente com a coda apresentam o maior nível dinâmico.
139

4.6. SONATINA Nº6 (1965)

A Sonatina nº6 foi dedicada ao pianista Caio Pagano (1940) e estreada por ele
no mesmo ano de 1965 em São Paulo. Esta Sonatina tornou-se um dos marcos na produção
musical do compositor e também no conjunto das Sonatinas para piano. Segundo
Mendonça, “O caráter atonal dessa Sonatina demonstra uma grande evolução na criação do
compositor.”31 Verhaalen afirma:

Esta sonatina estabelece uma nova fase na intensidade emocional de Guarnieri...


Em contraste com a textura clássica da Sonatina nº5, esta peça combina a maior
densidade da trama com a severidade da linguagem... Em todos os seus aspectos,
essa peça é uma grande obra. Na verdade é uma sonata, por sua extensão e pela
seriedade de seu conteúdo. Ela representa um dos mais avançados pensamentos
do compositor até a data em que foi escrita.32

Bencke diz que a obra ...“inaugura o segundo grupo (das Sonatinas) ... e reflete
uma mudança na escrita do compositor...”33
As críticas acima, unânimes em destacar a transformação ocorrida no âmbito
da linguagem musical de Guarnieri a partir desta obra, refletem também na execução
interpretativa uma mudança de atitude em relação ao tratamento pianístico e também ao
pianismo. Esta Sonatina apresenta uma linguagem harmônica menos definida pela
utilização mais acentuada de dissonâncias e pela perda de sentido de funcionalidade
harmônica. Esta obra está muito próxima do atonalismo, mas seus movimentos estão
estruturados por diferentes centros bem definidos: o 1º movimento tem o dó como centro;
o 2º movimento, também estruturado em dó, explora a bimodalidade (confronto entre
terças maiores e menores no tema inicial); no 3º movimento, uma fuga, a nota mi é o
centro.
Há uma abordagem muito mais extensa do teclado do piano através de uma
maior utilização das extremidades do teclado e também de passagens de notas com
utilização mais extensa das mãos (o que também ocorre na Sonatina nº7), a utilização de
um toque mais percussivo para trechos mais ritmados e trabalho motívico onde intervalos
dissonantes, tais como segundas, sétimas e nonas formam passagens de difícil execução
para ambas as mãos, seja por meio de acordes ou por meio de frases entrecortadas.

31
Mendonça: 2001, p.408.
32
Verhaalen: 2001, p.164.
33
Bencke: 2010, p.140.
140

No aspecto do pianismo vemos que Guarnieri se utiliza de elementos advindos


do populário de maneira bem mais discreta, que não são tão evidentes como nas Sonatinas
anteriores, mas suas constâncias rítmico-melódicas, tais como mudanças frequentes de
fórmulas de compasso, escrita linear constante, utilização de ostinatos, propiciam uma
escritura onde o caráter sugestivo, de ambientação, estão presentes.

(I movimento) Gracioso

Estrutura Formal

S. Exposição Desenvolv. Reexposição

Cc. 01-57 57-90 91-142

Sub. Tema A TR Tema B Tema A Tema B Coda

Cc. 01-28 28-32 32-57 91-116 116-143 143 - 151

Ce. E C#-A-E E-D E C#-A-E E

Esp. gracioso rude expressivo gracioso violento violento


Tabela 48 - Estrutura formal da Sonatina nº6 - I mov.

Em que pese ser uma obra reveladora em termos melódicos e harmônicos,


Guarnieri mantém respeito à forma sonata na concepção estrutural desta Sonatina. O
compositor estava desenvolvendo uma linguagem harmônica cada vez mais alheia ao
sistema tonal na época da sua composição: Guarnieri já vinha produzindo obras
complexas em termos harmônicos, tal como sua Seresta para piano e orquestra (1965).
Mesmo que tenha tomado algumas liberdades estruturais quanto a forma, tais como a
ausência ou a troca na ordem da disposição dos temas na seção de reexposição e a ausência
de alguma seção tal como a falta de uma seção de desenvolvimento nas Sonatina nº7 e na
Sonatina nº8 analisadas mais adiante, Guarnieri manteve-se fiel ao formalismo neste
primeiro movimento.
Nesta Sonatina nº6, ambos os temas são contrastantes: o compositor também
deixa claro os contrastes nos indicadores expressivos, como podemos observar na tabela
acima: Gracioso para o tema A e rude para o B.
As questões fraseológicas, tais como perceber perguntas e respostas (diálogos
entre frases) não se dão de maneira clara ou são praticamente inexistentes, tanto nesta
Sonatina quanto na seguinte, pois o compositor passa a construir suas frases pensando no
desenvolvimento intervalar a partir de um motivo, o qual funciona como verdadeiro núcleo
para a construção de novas frases. Com isso, o devido destaque aos motivos e tudo aquilo
141

que está fortemente ligado a eles passa a ser importante para a execução interpretativa
como elemento condutor do discurso musical.
O contrapontismo relativo ao tema A faz com que ambas as mãos do pianista
enfrente movimentos assimétricos, saltos, grandes movimentos convergentes nunca antes
desenvolvidos nas Sonatinas anteriores.

Aspecto rítmico-melódico
Reproduzimos a seguir o motivo rítmico-melódico inicial que é a base da
construção temática da subseção do tema A:

Exemplo 96 - Sonatina nº6- I mov. – motivo inicial

Em relação ao tema A, Bencke afirma:

“...A textura é um contraponto a duas vozes. A já citada estrutura em quartas


somada à fluidez da melodia, gerada pelas conexões entre os fragmentos (quando
uma voz parece ter um relativo repouso, a outra leva a mais um fragmento) além
da escassez de cadências são responsáveis pela indefinição da tonalidade...”
(BENCKE: 2010, p.141)

Interessante notarmos no comentário acima que a subseção do tema A, embora


construído de acordo com as relações intervalares do motivo rítmico-melódico inicial das
quartas, é de um fluxo melódico constantemente em movimento, pois as entradas de
fragmentos temáticos a todo o momento não permite a sensação de pontos de repouso na
linha melódica ou pontos cadenciais. Destacamos abaixo os quatro compassos iniciais da
Sonatina e as respectivas relações intervalares oriundas do tema inicial:
142

Exemplo 97 - Sonatina nº6- I mov. – cc.1-4

Embora possamos sentir um relativo repouso quando a melodia atinge a nota si


no c.2, antes de um novo impulso ascendente para atingir o fá e o mi agudos do c.4, a m.e
faz suas intervenções utilizando-se do desenho do motivo rítmico-melódico inicial.
Podemos reparar ainda que essas intervenções da m.e. iniciam sempre em partes fracas do
compasso, antecedido de pausas. Para a execução instrumental, os constantes gestos
ascendentes da m.e. nos contratempos fazem com que não exista a sensação de repouso
nessa frase inicial, jogando o fluxo melódico sempre para frente.
O exemplo acima pode ser imaginado como uma frase, dividida em duas semi-
frases: a primeira até a nota si do c.2 e a segunda até a nota mi do c.4, ou seja, a frase
começa em mi e termina em mi. Mas é muito difícil sentirmos essa frase como tal por dois
motivos: não existe uma harmonia definida para as suas notas e a nota mi do c.4 está
cadencialmente enfraquecida. Por isso também que as conexões que se dão entre os
fragmentos provenientes do motivo inicial proporcionam fluidez ao discurso musical, não
deixando que os pontos de relativo repouso do discurso musical sejam sentidos claramente.
Existe nos quinze compassos iniciais da subseção do tema A uma crescente
movimentação em contraponto entre a m.e e m.d., onde pequenos gestos melódicos
descendentes da m.d. convergem com as frequentes aparições do motivo rítmico-melódico
em movimento ascendente da m.e.. O clímax é atingido no c.15 quando se inicia por dois
compassos e meio e atingindo as extremidades do piano, um grande gesto de movimento
143

contrário entre ambas as mãos em ff. Destacamos este clímax desta subseção a partir do
compasso anterior:

Exemplo 98 - Sonatina nº6 - I mov. – cc.14-20

Notamos, no exemplo acima, que o movimento paralelo que existe no c.14 por
saltos de quintas em ambas as mãos, se transforma em movimento contrário no compasso
seguinte, fazendo com que a m.e. tenha que saltar quase cinco oitavas na velocidade de
uma colcheia e, além disso, atingindo um intenso ff: A partir daí, dó0 e dó6 do c.15
terminam em ré#3 e sol#3 no c.17, em um grande diminuendo. Em termos dinâmicos é
importante pensarmos que o p do primeiro compasso culmina nesse c.15, ou seja, os
constantes crescendos e decrescendos que há nesses quinze compassos iniciais devem ser
gradativamente mais intensos. Além disso, os cc.18-20 estão em relativo repouso:
conforme exemplo acima, o desenho melódico de ambas as mãos em contraponto repete-se
duas vezes numa extensão de pouco mais de uma oitava. Portanto, a última cisão que há
entre as ligaduras no c.17 separando as duas últimas colcheias de ambas as mãos das frases
anteriores (ré# - lá bequadro na m.e. e sol# - ré na m.d.) poderia muito bem ser destacada
através de um pequeno rall para a entrada do c.18 pois, assim, se evidenciaria a
momentânea calma dos compassos seguintes.
A subseção do tema B tem características diferentes da subseção do tema
anterior: apresenta-se mais percussivo, principalmente por causa das ritmadas tríades da
m.d. O tema está com o centro em dó# entre os cc.32-43, em lá entre os cc.44-46 e em mi
144

entre os cc.50-53. A seguir, destacamos apenas a sua primeira aparição, com o centro em
dó#:

Exemplo 99 - Sonatina nº6 - I mov. – cc.32-35

O que auxilia a expressão rude para este tema, além da sonoridade das tríades e
dos marcatos do grave, são as dissonâncias entre o dó# do tema e o dó da nota fundamental
da tríade e o si da semínima seguinte, ou seja, uma relação de semitons. Ao longo da
exposição da subseção do tema B, praticamente todas as notas do tema na m.e. tem uma
relação de segunda menor com as tríades tocadas pela m.d.:

Exemplo 100 - Sonatina nº6 - I mov. – cc.32-38

De acordo com o exemplo acima, a dissonância provocada pelas relações de


segundas menores e o deslocamento das tríades nos compassos e em relação à linha
melódica do baixo caracterizam um resultado sonoro fortemente percussivo.
A seção de desenvolvimento está dividida em três partes que estão bem
delineadas na partitura por mudanças na textura: do cc.57-65 temos nove compassos de
grande desenvolvimento polifônico iniciado em estilo imitativo; do cc.66-80 temos um
145

elemento melódico novo em uma textura mais homofônica em relação ao trecho anterior;
para finalizar a seção de desenvolvimento, temos entre os cc.82-90 a volta do tema B um
pouco modificado.
No caso do primeiro trecho, entre cc.57-65, a polifonia inicia-se com um
processo imitativo entre ambas as vozes e em movimento contrário até o c.61, onde a
partir do c.62 as vozes assumem desenhos totalmente livre uma da outra. Nos nove
compassos que compõem esse trecho, o tipo de escrita totalmente linear, onde não há como
estabelecer relações harmônicas e os grupos de notas ligadas que são independentes entre
si fazem com que o único momento de relativo repouso seja sentido no c.66. O exemplo
abaixo, destacamos dois compassos antes da entrada do c.66, a partir do qual se inicia um
elemento melódico novo e onde se estabelece uma melodia acompanhada:

Exemplo 101 - Sonatina nº6 - I mov. – cc.64-66

No trecho acima, fica evidente a mudança na textura ocorrida no c.66: a m.e.


passa a tocar notas repetidas, com movimentos repetidos e, ainda, estabelecendo um
possível centro em ré. Nos compassos seguintes a esse exemplo, o desenho rítmico-
melódico dos cc.66-67 se repete mais duas vezes em notas diferentes. Portanto, o c.66, em
mf e expressivo, quebra o discurso polifônico dos nove compassos anteriores e estabelece
uma nova relação de forças, o que na prática pode sugerir uma leve mudança no
andamento para menos, mesmo porque existem alguns saltos realizados tanto pela m.e.
quanto pela m.d. que se repetem em vários momentos desse trecho fazendo com que seja
necessário uma redução na pulsação para que seja evidenciado melhor tais saltos e a
indicação expressivo que perdura até o c.80.

Pianismo
No capítulo referente ao pianismo guarnieriano, destacamos através de um
comentário do musicólogo Ênio Squeff, a velada feição de choro que surge da escritura da
subseção do tema A desta mesma Sonatina nº6, principalmente das síncopas da m.e. entre
146

os cc.5-7 ou dos saltos melódicos seguidos de movimentos descendentes da m.d. nos cc.8-
10. Portanto, não vamos repeti-los aqui, mas destacaremos outro momento em que
Guarnieri, através de sua escrita, cria uma escritura típica do universo popular.
Trata-se de dois trechos da subseção do tema B que são equivalentes entre si:

Exemplo 102 - Sonatina nº6 - I mov. – cc.47-49 e cc.54-56

Em ambos os trechos acima, as apojaturas da m.d. em quartas nos remete a


uma escrita típica de instrumento de corda dedilhada que, no caso, poderíamos associar a
um violão. Inclusive as notas da m.d. nos dois trechos estão dentro de uma tessitura
violonística. Acordes de quartas, como já destacamos, são comuns na escrita de Guarnieri,
mas os acordes rapidamente arpejados são muito comuns na maneira com que os
violonistas seresteiros articulam acordes do violão ou da viola caipira. Semelhante
articulação de acorde de quartas sobrepostas ocorre no III movimento da Sonatina nº2 que
analisamos anteriormente.

Dinâmica

S. Exposição Desenvolv. Reexposição

Cc. 01-57 57-90 91-142

Sub. Tema A TR Tema B Tema A Tema B Coda

Cc. 01-28 28-32 32-57 91-116 116-143 143 - 151

Din. f-p-ff-f-p f mf-f-mf-f f-p-ff ff-fff fff


Tabela 49 - Dinâmica da Sonatina nº6, I mov.
147

De acordo com a tabela acima, o contraste entre ambos os temas fica evidente:
na subseção do tema A predomina maior contraste de intensidade do que a subseção do
tema B, onde o f prevalece. Na reexposição, o tema B volta com o nível de intensidade
redobrado, culminando na coda em fff.
Assim como no terceiro movimento da Sonatina nº5, o final do primeiro
movimento dessa Sonatina nº6 apresenta-se como um dos momentos mais intensos de todo
o ciclo, onde o compositor alia intensidade sonora com passagens virtuosísticas: a partir do
c.116 o tema B retorna em oitavas na m.d. em ff contra intrincadas tríades na m.e.
culminando com uma grande cadência em rápidas oitavas que se inicia no c.131 até fff do
c. 138. Esse é um dos poucos momentos em todo o ciclo onde existe de fato uma passagem
que exige do pianista grande agilidade técnica para a execução rápidas das oitavas, onde o
processo imitativo impõem movimentos contrários e saltos para ambas as mãos,
percorrendo grande extensão do teclado.

(II movimento) Etéreo

Estrutura Formal

S. A B A
Cc. 01-29 29-56 57-84
Ce. C E C
Tabela 50 - Estrutura Formal da Sonatina nº6, II mov.

A partir desta obra, Guarnieri muda a sua maneira de conceber os segundos


movimentos de suas Sonatinas para piano, ou seja, através da utilização mais contundente,
mais incisiva da dissonância, o compositor procura manter sua emotividade pela
exploração sonora do instrumento.
Destacamos anteriormente um comentário de Mendonça a respeito deste
segundo movimento onde ela relata que o compositor explora os grandes efeitos de
ressonância do piano ao invés do sentimentalismo das formas brasileiras do romance ou de
uma canção, verificado nos segundos movimentos das Sonatinas anteriores. Aqui o
compositor explora a dissonância das terças maiores com menores que se transformam em
décimas e acordes de quartas sobrepostas tocadas em grande intensidade em regiões
extremas do teclado.
148

A palavra etéreo dada a este movimento sinaliza uma importante característica


expressiva da maneira como deve soar o piano. A partir da exploração dos pedais, tanto o
sustain quanto o tonal, a interpretação ganha força quando equilibramos a sonoridade dos
registros do instrumento através desses pedais.

Dinâmica

S. A B A
Cc. 01-29 29-56 57-84

Din 3ª - pp-ppp-pp p-mf-p-pp-f-pp-ppp-ff-fff-ff-fff 3ª - pp-p-pp-ppp

10 ª - f-ff-f 10ª - f-ff


Tabela 51 - Dinâmica na Sonatina nº6, II mov.

Na tabela acima, destacamos na seção A e sua repetição, dois planos sonoros: o


das terças em pp e o das décimas em f e ff que se inicia a partir da anacruse do c.12. Já na
seção B as mudanças na dinâmica se dão de maneira mais homogênea de acordo com a
sequencia apresentada na tabela acima. Deve-se destacar que os níveis sonoros mais
intensos entre ambas as seções podem ser diferenciados, ou seja, o ff da seção A é diferente
do ff da seção B. Vejamos.
Destacamos no exemplo abaixo, trecho da seção A onde os dois planos
sonoros atuam juntos: com a ação do pedal sustain pode-se controlar estes dois níveis
sonoros distintos pois ele serve apenas para manter a sonoridade das décimas nas ligaduras
de notas, deixando as mãos livres para a execução das terças:

Exemplo 103 - Sonatina nº6 - II mov. – cc.12-18

Dentro do contexto onde prevalece o pp, como é o caso dessa seção, deve-se
cuidar para que não haja um excesso de força na execução das décimas em f e ff.
149

A seção B, a partir do c.29, apresenta o seguinte tema em três níveis sonoros:


p, f e ff:

Exemplo 104 - Sonatina nº6 - II mov., cc.29-31; cc.41-42; cc.47-49

A partir do c.45 inicia-se o trecho mais intenso do movimento. O último trecho


destacado no exemplo acima é o tema da seção B: ele é apresentado em ff nos graves e, ao
mesmo tempo, na região média-aguda do teclado, aparecem grandes acordes de quartas
sobrepostas.
Os ff e fff mostrados na tabela 51 na seção B é o trecho de maior contraste
dinâmico do movimento como um todo. Nesse trecho seria interessante priorizar a
intensidade sonora na melodia dos baixos, mais do que os acordes de quartas na região
média-aguda. A utilização do pedal tonal para os acordes dos baixos e pedal sustain para
os acordes quartais torna-se interessante para o controle de intensidade entre os diferentes
registros, inclusive para a realização dos cresc. A seguir, como sugestão, reproduzimos o
trecho com a utilização de ambos os pedais:
150

Exemplo 105 - Sonatina nº6 - II mov., cc.47-56

Os cresc. colocados nos cc.49 e 54 podem ser realizados pelos acordes de


quartas com apojaturas através do pedal sustain, como indicado acima. O cresc. do c.54
indicado para as mínimas dos baixos na realidade começa no c.52 e tem como objetivo o fff
do c.56. A percepção desse crescendo de uma mínima a outra, entre os cc.54-55, pode
ganhar força com a realização de crescendos nos acordes de quartas descendentes em
colcheias com apojaturas.

(III movimento) Fuga

Estrutura Formal

S. Exp. 1º Eps. Reexp.I 2º Eps. Reexp.2 3º Eps. Reexp.3 4º Eps Ponte Reexp. Final Coda

Cc. 01-11 11-16 16-27 27-35 35-45 45-54 54-64 64-73 74-80 81-97 98-114
Ce. E-B F#-C# G#-D# Bb-F C E-E E
Tabela 52 - Estrutura Formal da Sonatina nº6, III mov.
151

Assim como no terceiro movimento da Sonatina nº3, este terceiro movimento


constitui-se de uma fuga a duas vozes em andamento moderadamente rápido e um pouco
mais extensa que a anterior e também apresenta seções bem delineadas: uma exposição
seguida de quatro episódios e três reexposições intercaladas, uma ponte onde é apresentado
o tema do segundo movimento, uma reexposição final ampliada em oitavas em ambas as
mãos e uma coda onde o compositor desenvolve por aumentação o motivo rítmico-
melódico do c.4 do tema.
O contraste de textura homofônica/polifônica entre o 2º e 3º movimentos
respectivamente e as ligações motívicas existentes entre ambos (o tema da fuga deriva-se
do motivo anunciado no c.6 do segundo movimento; a volta do tema do segundo
movimento no final da fuga) além de dar maior unidade a obra, nos permite fazer um
paralelo com o gênero prelúdio coral e fuga.
Verhaalen (1971) num comentário sobre a textura e o controle da linguagem
empregada na Sonatina nº6, declara que esta obra “é muito similar em impacto à
Seqüência, Coral e Ricercare para Orquestra de Câmara”, obra de Guarnieri composta
um ano depois da Sonatina nº6. (VERHAALEN: 1971, p.204)

Aspectos Melódicos – Rítmicos


No exemplo abaixo, destacamos as duas frases do tema que podem ser
subdivididas em duas semi-frases cada uma. As quatro semi-frases são contrastantes entre
si: elas alternam saltos melódicos e graus conjuntos. Assim, o contraste proporcionado
pelos saltos, em oposição aos graus conjuntos, reforça o equilíbrio de ambas as frases
agindo como antecedente e consequente:
152

Frase 1

Frase 2

semi-frase semi-frase semi-frase


1 1 1

Frase 2

semi-frase contrassujeito
1 1

contrassujeito
1 Exemplo 106 - Sonatina nº6 - III mov., cc.1-11

A frase acima é da exposição inicial e começa na nota mi e, a partir dela, as


sucessivas reexposições temáticas obedecem ao círculo de quintas. Portanto, o pianista
deverá ter em mente as notas das sucessivas reexposições como guias, como âncoras, nas
intercalações entre reexposições e episódios: si (c.6) – fá# (c.16) - dó# (c.22) - sol# (35) -
ré# (c.40)- sib (c.54) – fá (c.59) até atingir o dó no c.66.
O contrassujeito, por sua vez, tem o mesmo desenho rítmico-melódico a cada
nova reexposição temática. Em quase todas as reexposições a relação da primeira nota do
tema com a primeira nota do contrassujeito é de um intervalo de 5ª. Essas relações
intervalares também poderão auxiliar e orientar o pianista durante a execução dessa fuga
porque a natureza dissonante das relações intervalares entre as vozes e também entre as
notas do tema e contrassujeito fazem com que o instrumentista facilmente se perca durante
a execução.
Ao contrário do que ocorre nos episódios em relação ao tema da fuga da
Sonatina nº3 onde eles proporcionam mais leveza às sucessivas reexposições temáticas, os
153

episódios da fuga dessa Sonatina nº6 aumentam sucessivamente o nível de tensão da fuga.
Isso é importante fator de interpretação e que deve ser levado em consideração na
execução. Há dois motivos rítmico-melódicos que são amplamente utilizados e
desenvolvidos nos episódios que são geradores de tensão às sucessivas reexposições do
tema:

Exemplo 107 - Motivos rítmico-melódicos da fuga da Sonatina nº6 - III mov., c.1-2 e c.4

O 1º episódio (cc.11-16) utiliza-se do motivo do c.4 em sequência descendente


por tons inteiros na voz superior, tendo como base harmônica do trecho a tríade aumentada
mib – sol – si (sol como nota pedal). :
154

Exemplo 108 - Sonatina nº6 - III mov., cc.11-15

No 2º episódio (cc.27-35) o ritmo harmônico se intensifica a partir do c.28


onde sequências ascendentes provenientes do motivo temático inicial se deslocam da
métrica binária:

Exemplo 109 - Sonatina nº6 - III mov., cc.27-33

No 3º episódio notamos um aumento ainda maior da tensão harmônica pela


projeção do acorde diminuto (si-ré-fá-sol# ou láb) sobre o motivo inicial em stretto:
155

Exemplo 110 - Sonatina nº6 - III mov., cc.45-50

O 4º episódio é o de maior tensão de toda a fuga, onde há uma momentânea


paralisação na intensa atividade das vozes. Observamos a reutilização do acorde diminuto,
agora sobre o dó (dó-mib ou ré#-solb ou fá#-lá) no motivo inicial também em stretto:

Exemplo 111 - Sonatina nº6 - III mov., cc.66-73

Portanto, como podemos observar nos trechos acima relativos aos quatro
episódios da fuga, existe um gradativo aumento de tensão que deve-se contrapor a cada
nova reexposição temática e que devem ser levados em consideração na execução
instrumental. As reexposições temáticas, por sua vez, seriam os momentos de distensão
desses sucessivos aumentos de tensão.
156

Em relação ao aspecto da métrica, a alternância de fórmulas de compassos nos


primeiros dois movimentos imprime certa irregularidade à métrica e, por decorrência, às
frases. A fuga, por sua vez, está composta do início ao fim numa métrica binária, mas seu
tema compõe-se de duas frases assimétricas entre si. A utilização dessas assimetrias dentro
de uma métrica regular e o uso de certas estruturas rítmico-melódicas que se deslocam
impõem momentâneas irregularidades à métrica binária.
A frase inicial do tema da fuga (cc.1-3) apresenta-se assimetricamente à frase
seguinte, pois suas semi-frases podem ser sentidas sob métrica ternária, deslocando-se do
sentido métrico binário. Tal assimetria é quebrada pelas semi-frases subsequentes (cc.4-5),
onde as estruturas rítmicas são sentidas dentro da métrica binária:

Exemplo 112 - Sonatina nº6 - III mov., cc.1-5

Esta assimetria provocada pela primeira frase proporciona certa irregularidade


à linha melódica do tema e, no decorrer da fuga, contrasta com a regularidade rítmica
proporcionada pelo contrassujeito e ocasiona momentâneas perdas do sentido métrico
binário.

Dinâmica e Tempo

Reexp.
S. Exp. 1º Eps. Reexp.I 2º Eps. Reexp.2 3º Eps. Reexp.3 4º Eps Ponte Coda
Final
Cc. 01-11 11-16 16-27 27-35 35-45 45-54 54-64 64-73 74-80 81-97 98-114
Din. f f f f f-fff pp f-ff fff-ff-fff-ffff
Tp. =  = 60 = 

Humorístico
Exp. Molto Lento Grandioso
ritmato

Tabela 53 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº6, III mov.


157

Conforme tabela acima, observamos que desde a exposição inicial até o 4º


episódio o nível de intensidade da dinâmica permanece em f, somente atingindo o fff ao
final do quarto episódio. A ponte, com a inserção do tema do 2º movimento, produz uma
grande articulação pela interrupção do discurso de ambas as vozes, produzindo grande
efeito de contraste entre o quarto episódio e reexposição final, sendo uma preparação para
a retomada de fôlego para a execução dessa última reexposição.
A coda (cc.98-114), por suas dimensões, mostra-se como uma grande cadência
finalizadora da fuga. A complexidade da sua execução se dá, além da dificuldade técnica
na sua realização, pelo controle de intensidade em fff das diversas vozes envolvidas. Sua
escrita apresenta uma sobreposição de materiais harmônicos contrastantes: no registro
grave temos arpejos em quartas que se deslocam descendentemente por tons inteiros e as
notas-pedal no extremo grave atingindo o mi no c.109. As oitavas da m.d. projetam uma
escala octatônica, uma cromática e um arpejo descendente em terças de um acorde
diminuto destacado pelas oitavas acentuadas:

Exemplo 113 - Sonatina nº6 - III mov., cc.98-101

A grande dificuldade nesse trecho consiste justamente em destacar essas


oitavas em marcato, dado o nível de intensidade e a rapidez na execução. Sugerimos aqui
que uma execução agrupada de cinco em cinco semicolcheias, que é a distância de um
acento ao outro, seja feita através de uma leve sustentação dessas oitavas marcadas pelo
acento.
158

4.7. SONATINA Nº7 (1971)

Esta obra foi dedicada à pianista e professora goiana Belkiss Spenzieri


Carneiro de Mendonça (1928-2005) e estreada por ela em 17 de junho de 1990 em
Goiânia. Mendonça, que considerava esta obra uma verdadeira sonata por suas dimensões,
um pouco mais longa que a Sonatina nº6 e tão desafiadora quanto, confirma o domínio por
parte do compositor da técnica da linguagem musical e a libertação do tonalismo.
Como na Sonatina anterior e de maneira mais contundente, esta obra tem forte
apelo motívico, ou seja, está construída por motivos rítmico-melódicos que dominam o
discurso musical e que devem ser destacados na execução interpretativa, principalmente no
primeiro movimento onde os temas estão a eles subordinados. Persistem uma linguagem
atonal livre, uso extensivo do teclado, tratamento percussivo do piano em algumas
passagens, principalmente no terceiro movimento, no qual, diferentemente de todos os
movimentos do ciclo, há uma ininterrupta alternância de movimentos entre ambas as mãos,
à semelhança de uma tocata.
Também em relação ao conjunto das Sonatinas, esta obra é a mais despojada
de elementos caracteristicamente nacionalistas no aspecto de seu pianismo. Alguns dos
elementos musicais que são trabalhados nas obras anteriores e que fazem parte do seu
estilo composicional estão aqui presentes, tais como mudanças frequentes de fórmulas de
compassos, utilização constante de sinais de articulação como legatos e staccatos e
acentos, mas referências ao populário são quase inexistentes. Bencke ainda chama atenção
em relação à quase inexistência desse aspecto nesta Sonatina: ...“Nesta Sonatina, os
elementos de fonte popular são muito mais sutis, restringindo-se principalmente à rítmica
de baião presente no primeiro movimento.” (Bencke: 2010, p.163) Esta rítmica de baião
não é tão evidente auditivamente mas tem sua semelhança numa análise rítmica mais
pormenorizada.
Seu maior distanciamento em relação ao seu discurso nacionalista verificado
nesta Sonatina através de uma linguagem musical cada vez mais transformadora e
conquistadora de novas possibilidades composicionais e produzindo um caráter agressivo
mais contundente, mostra um compositor que, ainda assim, não perdeu o poder da
expressividade melódica.
159

(I movimento) Rítmico e Enérgico

Estrutura Formal

S. Exposição Reexposição

Cc. 01-62 62-113


Tema
Sub. Tema A Tema B Tr Tema C Tema D Tr Tema A Tema B Tr Tema D Coda
C
Cc. 01-15 15-26 27-35 35-46 47-60 60-61 62-81 81-94 94-97 98-101 102-113 114-124

Rítmico
Rítmico e
Exp. Robusto Rude e Robusto Rude
Enérgico
Enérgico
Tabela 54 - Estrutura formal da Sonatina nº7 - I mov.

A análise da estrutura formal deste primeiro movimento pode gerar


controvérsias. Verhaalen afirma que o compositor parece não seguir a forma típica de
allegro de sonata, mas na sua análise ela expõe este movimento em forma ternária, ou seja,
dividindo-o em exposição – desenvolvimento – reexposição.
Guarnieri não respeita a ordem das tradicionais seções de uma allegro de
sonata. O compositor omite a seção de desenvolvimento e apenas reexpõe os quatro temas:
na reexposição, a subseção do tema A é reapresentado na mesma altura de nota com que é
exposto, com apenas algumas modificações, e o restante (subseções dos temas B, C e D) o
compositor transpõe cada um deles. Na coda, o compositor reexpõe os quatro primeiros
compassos do tema A e encerra o movimento utilizando-se de materiais do motivo rítmico-
melódico inicial com as quartas ritmadas do tema B.
As subseções dos temas C e D trabalham com materiais semelhantes, tais como
repetições de notas que ocorrem na m.d. além de uma rítmica parecida na m.e., podendo
ser interpretadas como uma única seção. A única justificativa para a divisão do trecho em
duas subseções é o novo material temático que aparece a partir do c.47 até o c.60.
Com exceção da subseção do tema A na qual observamos uma polifonia
complexa entre ambas as mãos com frases angulosas e entrecortadas, as subseções
restantes têm forte característica percussiva, sendo exploradas repetições de notas com
predominância de marcatos e stacattos.
160

Aspecto Melódico – Rítmico


A subseção do tema A (cc.1-15) apresenta um contorno melódico baseado em
relações intervalares do motivo rítmico-melódico inicial, ou seja, os intervalos de quinta
aumentada e segundas menores que formam um cromatismo:

Exemplo 114 - Sonatina nº7 - I mov., c.1

A partir desses intervalos principais, temos uma subseção onde saltos se


misturam com pequenas sequências em graus conjuntos proporcionando passagens
desconfortáveis para ambas as mãos: saltos de 4as (inversão da 5ª), 7as e 9as (derivadas da
2ª) se misturam com intervalos contíguos formando frases fragmentadas e assimétricas.
Destacamos no próximo exemplo, trecho onde é possível estabelecer diálogo entre essas
fragmentadas frases da subseção, criando perguntas e respostas às sequências de notas:

Exemplo 115 - Sonatina nº7 - I mov., cc.5-11


161

As indicações de dinâmica nos auxiliam a perceber os diálogos entre as frases


nos cc.5-7. Nos compassos seguintes o contorno da linha melódica proporciona sequencias
onde é possível estabelecer relações de diálogo. A percepção dessas frases e a criação do
diálogo entre ela são necessárias para a execução, pois a notação não esclarece essas
relações, já que as ligaduras são fragmentadas e não estão de acordo com as frases da linha
melódica, como podemos observara no exemplo acima. Isso vale também na reexposição
da subseção de A nos cc.62-81.
Embora exista uma independência de vozes nessa subseção, a predominância
melódica é da m.d., ficando à m.e. uma leve proeminência rítmica devido à intervenções
constantes de pausas de colcheias.
A subseção do tema B (cc.15-26) apresenta-se toda segmentada e com caráter
fortemente rítmico em relação à subseção anterior. A segmentação ocorre através de
repetição de acordes de quartas em métricas diferentes seguido de outra parte um pouco
mais melódica:

Exemplo 116 - Sonatina nº7 - I mov., cc.15-22

No trecho acima, notamos sua segmentação em três partes: as duas primeiras


partes constituem-se de acordes quartais. Separada por uma pausa de semínima no c.19, a
terceira parte constitui-se de uma linha melódica na qual predominam saltos de quartas na
m.d. acompanhada por acordes na m.e.. Trecho semelhante ocorre nos compassos
seguintes. Interessante notar que a rítmica, a partir do c.17, é formada por acordes na m.e.
que acompanham e marcam as mudanças nos grupos de notas na m.d.: entre os cc.17-18 os
162

acordes da m.e. marcam as mudanças de acordes da m.d. e entre os cc.19-22 os acordes da


m.e. marcam as mudanças nos grupos de notas ligadas da m.d.. Portanto, esses detalhes
fazem com que essa subseção tenha um apelo rítmico forte, percussivo e de contraste de
intensidade pelas indicações da dinâmica.
Na transição (c.27-37), o caráter rítmico persiste onde acordes quartais da m.e.
acompanham as mudanças de articulação e os acentos da m.d..
A percussividade domina as subseções C (cc.35-46) e D (cc.47-60) por causa
da predominância de notas repetidas em ambas as partes. Além das notas repetidas, as
dissonâncias dos intervalos de segundas e seus derivados de sétimas e nonas são
constantes. Abaixo, destacamos três trechos de cada uma delas, sendo os dois primeiros da
subseção C e o terceiro da subseção D:

Exemplo 117 - Sonatina nº7 - I mov., cc.35-36; c.39; cc. 48

Existe uma diferença entre as duas subseções: na primeira existe uma forte
relação acordal entre ambas as mãos, onde as notas repetidas tocadas pela m.d. faz com
163

que a mão posicione-se entre as notas tocadas pela m.e. Na segunda subseção o
compositor explora três planos sonoros distintos. A pulsação ininterrupta das colcheias é o
elemento rítmico que liga uma subseção a outra e todo o jogo discursivo realizado por
ambas as mãos deve estar atrelado à pulsação contínua dessas colcheias.
Esta última subseção é mais intensa que a anterior e as relações intervalares de
segundas entre diferentes oitavas do piano é o que se tem de mais característico a ser
ouvido.

Dinâmica e Tempo

S. Exposição Reexposição

Cc. 01-62 62-113

Sub. Tema A Tema B Tr Tema C Tema D Tr Tema A Tema B Tema C Tr Tema D Coda

98-
Cc. 01-15 15-26 27-35 35-46 47-60 60-61 62-81 81-94 94-97 102-113 114-124
101

f-ff-p-f- ff-p-ff-
Din. ff-p-f-p f-sff-ff-f ff-sff ff-p-f f-ff-p-f-ff f-sff p ff
ff-p fff

Tempo
Tp. =92 
primo =92

Rítmico e Rítmico e
Exp. Robusto Rude Robusto Rude
Enérgico Enérgico

Tabela 55 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº7, I mov.

A princípio o andamento não se altera entre as subseções deste primeiro


movimento. Pelo caráter mais rítmico e percussivo dispensado às subseções B, C e D, a
manutenção da mesma pulsação durante a execução delas enalteceria justamente essas
referidas características do movimento. O Tempo primo indicado no retorno do tema A (c.-
62) pode sugerir que anteriormente em algum momento uma alteração na pulsação possa
ocorrer: na realidade, não há esta indicação e uma suposta alteração para menos
descaracterizaria as subseções anteriores justamente pelos perfis fortemente rítmicos.
Inclusive as indicações de expressividade como o Robusto para o tema B e o Rude para o
tema C podendo se estender também para o tema D se enfraqueceriam se executadas num
andamento menor. Não há também alguma indicação nesse sentido nos dois compassos de
transição anteriores (cc.60-61) ao retorno do tema A. Em outras Sonatinas o Tempo primo
é sempre antecedido por alguma alteração de andamento que pode ocorrer em toda uma
164

subseção anterior ou em alguns compassos antes. Por isso interpretamos que a repetição na
marcação seja aqui apenas uma lembrança para que a pulsação seja mantida.
Em relação à dinâmica observamos que, de maneira geral, este primeiro
movimento apresenta fortes níveis dinâmicos em todas as suas subseções, prevalecendo
nas subseções dos temas C e D os maiores níveis de intensidade e nas subseções dos temas
A e B níveis variáveis entre p e f: os p são reservados às partes onde há escrita linear, como
é o caso de toda a subseção A e parte da B.
Peculiaridades na utilização dos sinais de dinâmica ajudam a moldar frases em
diversos momentos e se tornam importantes detalhes para a execução instrumental. No ex.
115 (exemplo dos cc.5-11), além do antagonismo f e p na demarcação das frases
antecedentes e consequentes (ver também na reexposição da subseção do tema A entre
cc.65-70), existem as indicações de marcatos que incidem sobre algumas notas tanto da
m.d. quanto da m.e.. Na m.d. esses acentos recaem quase sempre sobre as notas mais
agudas da melodia e quase sempre são sucedidos por ligaduras. Esse tipo de articulação
destaca bastante os efeitos dos contratempos nas linhas melódicas sinuosas da subseção.
No exemplo 116 (cc.15-22) a segmentação da subseção B explora o contraste
na dinâmica onde um forte crescendo é interrompido subitamente por uma pausa seguida
de um p. Esses três níveis de sonoridade colaboram para que sintamos a subseção
segmentada, além do jogo de texturas diferentes.
As subseções C e D apresentam-se mais uniformes quanto aos níveis sonoros
que variam entre f e ff: a sobreposição de ambas as mãos no tema C faz com que ouçamos
algumas partes como blocos de acordes. No tema D estabelecem-se três planos sonoros: as
notas da linha superior em marcatos com as quartas tocadas pela m.e. devem estar na
mesma intensidade, as segundas em staccato tocadas com os polegares da m.d. em
segundo plano e as oitavas no grave em ff marcando os contratempos.

Pianismo
Mudanças frequentes de fórmulas de compassos, contrastes entre uma escrita
linear com outra mais acordal, fortes traços rítmicos entre os temas, intensa utilização de
acento em todas as seções ou subseções são algumas das constâncias técnicas utilizadas
aqui e também em outras Sonatinas.
Por outro lado as alusões advindas do populário são quase que inexistentes
neste primeiro movimento, talvez pela utilização maior de dissonâncias ou mesmo de uma
rítmica mais complexa. Bencke afirma que os elementos brasileiros não são tão óbvios:
165

“...os materiais musicais de fonte popular são tão transformados que se tornam quase
inaudíveis, mas nãos deixam de ser utilizados...”(BENCKE: 2010, p.151) Em seguida
Bencke faz um paralelo da rítmica básica do baião ao tema B, mais especificamente entre
os cc.15-18.

(II movimento) Suavemente

Estrutura Formal

S A TR A' Coda
Cc. 01-17 18-20 21-37 38-48
Tabela 56 - Estrutura Formal da Sonatina nº7, II mov.

Da mesma forma como no segundo movimento da Sonatina nº6, Guarnieri,


através da utilização de uma forte dissonância, explora um discurso harmônico ambíguo,
incerto, vago em relação a tonalidade, não sendo possível sequer a identificação de centros.
A indicação expressiva suavemente, de certa forma, colabora com o nível dinâmico do
movimento, em torno de p. O etéreo do segundo movimento da Sonatina anterior cabe
muito bem como indicação expressiva para este movimento também justamente por sua
indefinição melódica e, principalmente, harmônica.
Monotemática, em forma estrófica, o compositor explora uma linha melódica
angulosa através da utilização massiva de semitons (2ª, 7ª e 9ª), décimas diminutas (2ª
maiores) e quartas.

Aspecto Melódico – Rítmico


Uma particularidade importante para a execução interpretativa desse
movimento consiste no controle da pulsação de colcheias: o compositor, na partitura,
sugere como pulsação para a colcheia em torno de 60 bpm. Esse detalhe torna-se
importante para a execução a partir da constatação de que quase todo o discurso musical do
movimento, com exceção dos compassos de transição (cc.19-20) onde há uma relativa
pausa na atividade musical, reforça o caráter estático que essas colcheias imprimem ao
discurso musical. Destacamos abaixo, o trecho final do movimento (Coda, cc.37-48):
166

Exemplo 118 - Sonatina nº7 - II mov., cc.37-48

Podemos notar no exemplo acima que a interação entre m.e. e m.d., quase que
de maneira alternada, mantém-se na velocidade de colcheias e, por isso, elas acabam sendo
o motor para balancear a pulsação do movimento de maneira geral, os rallentandos, o
retorno ao tempo normal (a tempo) e o rall final, a partir do c.46, quando começa uma
retenção ainda maior e gradativa da pulsação através da utilização das semínimas.

Dinâmica e Tempo

S A TR A' Coda
Cc. 01-17 18-20 21-37 38-48
Din. m.d. - pp m.d. – p-f-pp m.d. – pp-ppp
p-mf
m.e. - p m.e. – pp-f-pp m.e. – p-pp-ppp
Tp. Colcheia = 60
Exp. Suavemente
Tabela 57 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº7 - II mov.

Sob uma pulsação regular, a intensidade dinâmica é alternada na apresentação


do tema: na seção A ele aparece na m.e. em p acompanhado da m.d. em pp, alternando-se
na seção A’ (c.21) onde o tema é assumido pela m.d. e a intensidade dinâmica se inverte.
O movimento é construído a três vozes (cc.1-6; cc.21-27; cc.38-48) e a quatro
vozes (cc.7-17; cc.19-20; cc.28-37). Ao ampliar a textura para 4 vozes o compositor
amplia também a intensidade dinâmica: na seção A’ a dinâmica atinge f para ambas as
vozes, conforme podemos observar na tabela acima.
167

(III movimento) Requebrado

Estrutura Formal

S. A Tr B A Coda
Cc. 01-43 44-45 46-89 90-107 108-117
Tabela 58 - Sonatina nº7 - III mov.

Como já frisamos anteriormente, o terceiro movimento tem uma característica


de escrita que o diferencia dos demais movimentos do ciclo: a alternância entre oitavas e
acordes de quartas sendo as oitavas reservadas a m.d. e os acordes quartais a m.e.. Dessa
forma, existe um movimento ininterrupto de mãos alternadas, a maneira de uma tocata ou
de um moto perpetum.
Bencke34nos chama atenção para a preocupação estrutural do movimento por
parte do compositor reconhecendo dois pontos de espelhamento. De fato, além de estar
organizado em forma ternária, apresentando duas seções que se repetem (seção A) e uma
intermediária (seção B), o movimento ainda estabelece dois pontos assinalados por vírgula,
precisamente entre os cc.45-46 e outro entre os cc.89-90 onde a articulação formal revela a
estrutura em espelho, como destacamos no exemplo abaixo:

Exemplo 119 - Sonatina nº7 - III mov., cc.43-46 e 88-91

34
BENCKE 2010, p.163.
168

Em ambos os trechos acima, todos eles localizados em importantes pontos de


articulação estrutural do movimento (o primeiro trecho está situado entre os dois
compassos de transição e o segundo trecho está entre o final da seção B e a volta da seção
A), observamos que o compositor usa praticamente as mesmas notas no espelhamento.
Desse modo, os cc.43 e 46 são correspondentes, os cc.42 e 47 idem e assim por diante,
ocorrendo o mesmo a partir dos cc.89-90. Já que o movimento como um todo é invariável
na sua textura, a observação desse “efeito” se torna importante como parâmetro na
execução instrumental: não se percebe auditivamente o resultado do espelhamento mas na
prática da execução é necessário que o pianista observe esses detalhes da escrita como
orientação a própria execução.

Aspectos Melódicos
Segundo Mendonça “...o perfeito realce da linha melódica é obtido pela
igualdade de ataque dos polegares e a procura de encaminhamento da linha melódica...”
(MENDONÇA: 2000, p.410) A observação acima diz respeito ao que deve ser realçado
neste movimento como um todo: ambos os polegares da m.d. e m.e. devem ser destacados,
pois é por onde se projeta a linha melódica. No exemplo abaixo destacamos essa linha
melódica incluindo as oitavas da m.d e as notas superiores dos acordes quartais:

Exemplo 120 - Sonatina nº7 - III mov., cc.1-3

Como podemos observar no exemplo acima, o principal elemento dessa linha


melódica são as sequencias de semitons, gerando um cromatismo que é a característica
principal da melodia. Embora o compositor não destaque na escrita essa linha melódica,
uma atenção maior para as notas superiores dos acordes de quartas tocadas pela m.e. seria
satisfatório quando esses referidos acordes dividissem a linha melódica com as oitavas da
m.d..
169

Exemplo 121 - Sonatina nº7 - III mov., cc.19-22


170

4.8. SONATINA Nº8 (1982)

Dedicada à pianista Cynthia Priolli (1999) e estreada por ela no Anfiteatro de


Convenções e Congressos da USP em novembro de 1983, esta obra tem dimensões mais
modestas que as anteriores, tanto em relação ao seu tamanho quanto em relação à
utilização menos extensiva do teclado como um todo: a subseção do Tema A do primeiro
movimento, por exemplo, se apresenta apenas na clave de sol. Predomina a utilização da
região central do piano como verificado nas primeiras Sonatinas do compositor, o que
pode muito bem estar relacionado a uma preferência timbrística à região média/aguda do
teclado por parte do compositor, apesar de que em breves momentos a obra faz atingir
notas mais extremas do teclado.
Nesta última obra do conjunto das Sonatinas, Guarnieri mantém uma
linguagem atonal livre verificada desde a Sonatina nº6, mudanças frequentes de fórmulas
de compassos, uma utilização abundante de ligaduras de fraseados demarcando frases e
semi-frases em todos os três movimentos, através de uma escrita pouco mais linear que as
obras anteriores, principalmente no terceiro movimento.
Guarnieri volta a fazer referência um pouco mais direta ao seu pianismo
nacionalista utilizando-se de certos clichês e constâncias técnicas verificadas nas cinco
primeiras Sonatinas, tais como a utilização de certos tipos de rítmica sincopada que
lembram alguns processos rítmicos do choro.

(I movimento) Repinicado

Estrutura Formal

S. Exposição Reexposição

Cc. 01-45 46-78

Sub. Tema A Tr Tema B Tr Tema A Tr Coda

Cc. 01-13 13-19 19-43 44-45 46-75 75-78 78-90


Tabela 59 - Estrutura formal da Sonatina nº8 - I mov.

Assim como na Sonatina anterior, Guarnieri não pensa esse primeiro


movimento de maneira a enquadra-lo no Allegro tradicional da forma sonata: além de não
existir a seção de desenvolvimento, a reexposição apresenta apenas a subseção do tema A.
Mesmo assim, podemos pensar este primeiro movimento na forma ternária, apenas
171

considerando a sequencia das apresentações das subseções de ambos os temas,


caracterizando um A – B – A.
O caráter percussivo existente na obra anterior, dá lugar aqui a uma obra mais
linear, com uma predominância maior de atividade melódica em ambas as mãos na
caracterização dos temas.

Aspecto Melódico – Rítmico


A subseção do tema A (cc.1-13) tem uma linha melódica
desproporcionalmente dividida em ambas as mãos, o que apresenta certa dificuldade para
as intervenções da m.e. pois ela se dá, na maioria das vezes, por meio de acordes tocados
em partes fracas do tempo. A m.d. predomina na condução dessa linha melódica.
Através de seu contorno melódico, é possível estabelecer as frases, as semi-
frases e a relação dialógica entre elas: ascendência, graus conjuntos e cromatismo seguido
por descendência, saltos de quartas e segundas maiores harmônicas conformam essas
frases e semi-frases:

Exemplo 122 - Sonatina nº8 - I mov., cc.1-8

Notamos, no exemplo acima, que as ligaduras delimitam o tamanho das semi-


frases, mas as frases, por sua vez, são estabelecidas principalmente pelo direcionamento
melódico ascendente (antecedente) ou descendente (consequente) e também pelo
crescendo e decrescendo associados. A partir do c.7, crescendos e decrescendos estão
associados a um novo contorno melódico onde as notas superiores dos acordes da m.e.
fazem parte do contorno melódico das frases, destacado em vermelho:
172

Exemplo 123 - Sonatina nº8 - I mov., cc.7-13

Podemos observar que cada um dos crescendos e decrescendos ocorre a cada


grupo de oito colcheias entre os cc.7-10. O compositor molda as suas frases por meio
desses aumentos e diminuições de intensidade35. As intervenções da m.e. complementam a
linha melódica da m.d..
A subseção do tema B, de caráter mais enérgico em relação à subseção do tema
A, apresenta-se subdividida em três partes: entre os cc.19-27, cc.27-35 e cc.35-43. Estas
subdivisões obedecem a mudanças principalmente texturais, entre outros parâmetros: no
primeiro trecho a linha melódica na m.e. composta por saltos e semitons é acompanhada
por intervenções da m.d. que ressaltam contratempos através das ligaduras das quartas
seguidas de semitom:

Exemplo 124 - Sonatina nº8 - I mov., cc.19-22

No segundo trecho, ressaltamos a repetição do tema na m.d. sob ostinato na


m.e.. Além do aumento de intensidade dinâmica, há uma súbita expansão da tessitura para
as extremidades do teclado (mi0 – ré6):

35
Ver comentários sobre as indicações de dinâmica do c.10 mais adiante, na parte referente a
Dinâmica.
173

Exemplo 125 - Sonatina nº8 - I mov., cc.27-30

No terceiro trecho, apenas as primeiras notas do tema são reexpostas por


aumentação. O fluxo constante das colcheias é temporariamente interrompido para dar
lugar a exploração da ressonância dos acordes quartais e das oitavas, utilizando-se de notas
mais longas:

Exemplo 126 - Sonatina nº8 - I mov., cc.35-38

As três partes destacadas formam três momentos onde um mesmo tema é


exposto de maneira variada e onde o nível de tensão do movimento atinge seu maior ponto:
o nível crescente de intensidade sonora aliada a uma utilização mais ampla do teclado
nessa subseção é reduzido a partir do c.40 tanto em termos dinâmicos e de andamento
quanto em tessitura, terminando nas oitavas simples dos cc.44-45 – transição para a
reexposição.
Na reexposição (cc.46-75) a subseção do tema A reaparece com o tema
literalmente sem modificações, mas com um complemento que se inicia no c.58 no qual
materiais do tema A e do tema B são re-trabalhados por processo canônico entre os cc.59-
63 e por movimento contrário a partir do c.65.
Esses novos elementos que surgem a partir do c.58 até o c.78 (início da coda)
constituem num dos pontos mais complexos para a execução por conta da polifonia que se
estabelece entre ambas as mãos: a estrita imitação canônica a partir do c.59 ocorre num
174

intervalo de uma oitava entre a m.d e m.e.. A defasagem de frases entre ambas as mãos
destaca a sequencia de intervalos apresentados no tema B: intervalos de segundas
separados por salto de quarta, destacado no exemplo seguinte. O desenho melódico
formado apresenta certo desconforto para a execução, principalmente para o dedilhado da
m.e.:

Exemplo 127 - Sonatina nº8 - I mov., cc.59-61

Destacamos outro trecho onde a m.e. se utiliza do cromatismo exposto no c.12


(ver ex. nº 123) da subseção do tema A. Além do movimento contrário entre as vozes e da
independência delas quanto a respiração das frases, o trecho impõe a execução de desenhos
melódicos diferentes e simultâneos entre ambas as mãos, onde há uma mistura de pequenos
saltos com sequencias em graus conjuntos que se sucedem:

Exemplo 128 - Sonatina nº8 - I mov., cc.64–69


175

Dinâmica e Tempo

Exposição Reexposição
S.
Cc. 01-45 46-78

Sub. Tema A Tr Tema B Tr Tema A Tr Coda

Cc. 01-13 13-19 19-43 44-45 46-75 75-78 78-90


cresc. P
Din. p-f cresc. mf-ff-sonoro dim. p-f
sempre ff-fff
Tempo primo
Tp. =100 Poco meno
=100
(marcato)
Exp. Repinicado Repinicado
c.45 – sonoro
Tabela 60 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº8, I mov.

Com relação ao andamento deste primeiro movimento, podemos perceber que


existe uma alteração na subseção do tema B (cc.19-43) para um andamento um pouco mais
lento em relação à subseção do tema A, da mesma forma que ocorreu no segundo tema da
Sonatina nº4. O poco meno a partir do c.19 ajuda a reforçar o marcato indicado para esse
tema e auxiliaria também na execução das oitavas da m.d. com os ostinatos da m.e. a partir
do c.27 que, como vimos anteriormente, é o momento de maior tensão do movimento. O
caráter grandiloquente com que é apresentado o tema até o c.40 seria reforçado por essa
mudança para um andamento mais contido.
A dinâmica de maneira geral, de acordo com a tabela acima, está dividida entre
níveis de intensidade moderada, reservados a subseção do tema A (p-f), e níveis de maior
intensidade na subseção do tema B e Coda (mf-fff). As transições funcionam como
passagens que regulam os níveis de intensidade para mais ou para menos, conforme a
subseção.
É Interessante notar que nas duas apresentações da subseção do tema A
(exposição cc.1-13 e reexposição cc.46-57) o compositor não apresenta as indicações de
crescendos e decrescendos da mesma forma: existe uma discreta diferença entre ambas.
Por se tratar de uma repetição literal, achamos por bem unificarmos as indicações de cresc.
e decresc: o c.10 teria um decrescendo para as quatro primeiras colcheias e um crescendo
para as quatro últimas, assim como o 2º tempo do c.53 seria um crescendo e o primeiro
tempo do c.54 um decrescendo.
176

Pianismo
Segundo Mendonça, “...o primeiro movimento ... é um choro, atonal, destituído
de sentido harmônico. Seu primeiro tema desenvolve-se em torno de uma célula rítmica
cromática que ... vem acompanhada por acordes também cromáticos e ritmados...”
(MENDONÇA: 2010, p.410) Mendonça vê neste movimento o caráter ritmado de um
choro, principalmente pela célula rítmica sincopada do c.12 que destacamos aqui:

Exemplo 129 - Sonatina nº8 - I mov., cc.12

Esse mesmo material rítmico-melódico, segundo Bencke é “...constituído de


cromatismo, acordes quartais sobre rítmica de baião...” (BENCKE: 2011, p.168) Ele
aparece no final da subseção do tema A, na primeira transição, em parte da reexposição e
na Coda e, portanto, tem expressiva importância no desenvolvimento deste primeiro
movimento como um todo pois seu desenho melódico, bem como seu cromatismo e
acordes por sobreposição de quartas, além se sua rítmica sincopada estão presentes em
praticamente todas as demais passagens do movimento.
Bencke ainda nos chama a atenção para uma característica inerente à
musicalidade brasileira: o contorno de uma nota em um semitom abaixo e um semitom
acima, antes de executá-la, como é o caso do desenho melódico do tema B. Esse volteio
melódico, segundo a autora, nos remete às antigas valsas e serestas brasileiras:

Exemplo 130 - Sonatina nº8 - I mov., cc.19-20


177

A utilização desse desenho melódico formado por semitons e a predileção por


frases descendentes, como vimos em outras Sonatinas, tornam-se importantes elementos de
inspiração para a execução interpretativa, pois se constituem numa referência ao universo
musical brasileiro antigo e também uma das características melódicas brasileiras.
(II movimento) Profundamente Íntimo

S. A TR A Coda
Cc. 01-15 16-26 27-42 43-49
Tabela 61 - Estrutura Formal da Sonatina nº8, II mov.

Assim como no segundo movimento da Sonatina anterior, este segundo


movimento da oitava Sonatina também apresenta forma estrófica. Em termos formais, no
final da transição (cc.21-26) há uma citação das oitavas agudas apresentadas a partir do
c.35 do primeiro movimento, agora sobre clusters em fff, além, também, de uma citação da
rítmica sincopada na Coda que foi apresentada no movimento anterior (ver as oitavas no
baixo da Coda do primeiro movimento).

Aspecto Melódico – Rítmico - Dinâmica


De maneira geral, o movimento consiste de uma linha melódica na qual
prevalecem saltos de sétimas, nonas e também segundas menores, entre outros intervalos
de menor frequência. Sob essa linha melódica, há um constante movimento descendente
nos baixos, ora por cromatismo na seção A, ora por tons inteiros na transição:

Exemplo 131 - Sonatina nº8 - II mov., cc.1-3-14 e cc.16-18-21-22


178

Destacamos acima dois trechos distintos: o primeiro é o início da seção A e o


segundo é o início da transição, a partir do c.16. No primeiro trecho, vemos o caráter vago
da linha melódica diante de um baixo ostinato que segue constante até a conclusão da
seção. No segundo trecho, embora as características rítmicas prevaleçam como na seção A,
a linha melódica está direcionada a uma sequência descendente em tons inteiros,
juntamente com os baixos, que culmina em clusters em fff: podemos reparar que as oitavas
adicionadas aos baixos desembocam nos referidos clusters. Destacamos ainda que os
níveis dinâmicos da seção A (p-pp) diferem da Transição (p-fff-ppp).
Portanto, o movimento consiste nesse contraste de discurso entre a seção A e a
Transição: na seção A temos uma angulosidade melódica que caminha com certa vagueza
e, na transição, um maior direcionamento da linha melódica culminando no trecho mais
intenso do movimento.

(III movimento) Dengoso

Estrutura Formal
A B A Coda
01-17 17-34 34-50 51-58
Tabela 62 - Sonatina nº8 - III mov.

Assim como na subseção do tema A do primeiro movimento da Sonatina nº6,


este terceiro movimento da última sonatina apresenta também um fluxo melódico
constantemente em movimento. O fluxo constante das colcheias em ambas as mãos até o
c.50, antes da Coda, ao mesmo tempo em que proporciona uma execução mais fluída, dá a
sensação de ausência de pontos de repousos, justamente porque o tratamento
contrapontístico dado à escrita permite que as linhas melódicas movam-se continuamente
“com seu próprio senso de direção” segundo Verhaalen.
Diferentemente do terceiro movimento da Sonatina nº7, no qual o compositor
explorou a forma ABA de maneira inédita para o ciclo (explorando apenas um tipo de
gesto rítmico-melódico), nesse terceiro movimento da Sonatina nº8 essa forma ternária
volta a adquirir uma característica mais familiar: seu pianismo volta a fazer referências a
um estilo de escrita idiomática que combina elementos característicos do populário de
modo um pouco mais direto do que em sonatinas anteriores.
179

Aspecto Melódico – Rítmico


Um dos principais aspectos a ser levado em conta na seção A (cc.1-17) é o
contraponto que se estabelece entre ambas as mãos, pois as linhas melódicas de cada uma
delas desenham contornos distintos, fazendo com que o pianista tenha que internalizar
movimentos independentes. Reparem, no trecho inicial no exemplo a seguir, que o
compositor estabelece as articulações das frases de maneira a pronunciar os diferentes
desenhos melódicos que ocorrem sincronicamente:

Exemplo 132 - Sonatina nº8 - III mov., cc.1-6

Se repararmos no contorno melódico de cada uma das vozes veremos linhas


melódicas marcadas por cromatismos e saltos dispostos de tal maneira que a trama
contrapontística se torna vaga, indecisa quanto ao direcionamento melódico, o que torna
também desconfortável e trabalhoso para a execução instrumental.
Na seção B a textura polifônica é mantida, só que desta vez m.d. e m.e.
dividem a linha melódica: uma linha melódica mais definida é o que contrasta essa seção B
da seção A. O tema da seção B é apresentado duas vezes em tessituras diferentes,
conforme destacamos no exemplo a seguir. Como sugestão interpretativa, uma valorização
de alguns detalhes entre as duas versões do tema da seção B poderia ser realizada através
de diferente utilização do pedal sustain na execução de ambos os trechos da seção, como
mostra o exemplo a seguir:
180

Exemplo 133 - Sonatina nº8 - III mov., cc.17-19 e cc.26-28

No primeiro trecho (cc.17-25), onde a melodia se desloca do agudo para a


região média do teclado, a mudança do pedal a cada pulsação de semínima faz com que os
intervalos de segundas da linha melódica não se misturem entre si e também com as outras
colcheias. No segundo trecho (cc.26-33) temos a repetição do tema a partir da região média
do teclado em direção à região mais grave. Nesse trecho sugerimos um pedal mais longo,
tal como mudanças a cada pulsação de mínima, de maneira a privilegiar junto à linha
melódica as dissonâncias dos intervalos de segundas da m.d., fazendo com que elas soem
por mais tempo.

Dinâmica e Tempo

S A B A Coda
Cc 01-17 17-34 34-50 51-58
Din p f p-ff ff-f-p-pp-ppp-fff
Tp =92 Poco meno =92
Exp Dengoso cantando
Tabela 63 - Dinâmica e Tempo - Sonatina nº8 - III mov.

Conforme tabela acima, o contraste da seção B em relação à seção A é de


dinâmica e de andamento: o compositor deixa claro o destaque ao tema da seção B
181

(cantando) reduzindo um pouco a velocidade das colcheias em relação à seção anterior,


facilitando assim a condução das vozes superiores de cada uma das mãos com a parte
inferior dos arpejos.
Os oito compassos da Coda definem o único momento no qual as colcheias
ininterruptas cessam para dar lugar a um ritmo sincopado e marcado, utilizado
anteriormente no primeiro e no segundo movimentos da Sonatina. Essa rítmica destacada
vai rapidamente do ff até o ppp para terminar na semibreve em fff:

Exemplo 134 - Sonatina nº8 - III mov., cc.51-58

O efeito desta Coda diante dos 50 compassos anteriores é, mais do que uma
simulação de uma cadência conclusiva V-I (sib-mib), de súbita quebra da atividade
rítmico-melódica das colcheias e também da dinâmica: no c.5036, existe um corte abrupto
das colcheias nas extremidades do piano em ff.

Pianismo
Segundo Bencke esta Sonatina nº8 apresenta elementos de fonte populares bem
sutis e no caso do terceiro movimento, a rítmica binária traz uma vaga lembrança do choro.
(BENCKE: 2010, p.179) De fato, existem alguns elementos de escrita que nos permitem
fazer algum paralelo a procedimentos utilizados na música popular. A seguir, destacamos

36
Existe um provável erro de impressão no antepenúltimo compasso que deverá ser dividido
em dois compassos de 2/2. Portanto, deve-se considerar uma barra de compasso antes do mib e uma pausa de
mínima acima da pausa de mínima da m.e.. Com isso, o movimento completa-se em 58 compassos ao invés
dos 57 impressos.
182

alguns desses elementos, todos eles já explorados de alguma forma nas Sonatinas
anteriores.
Os saltos melódicos seguidos de movimentos descendentes como pudemos
mostrar anteriormente no primeiro movimento da Sonatina nº6, estão presentes também
aqui no seguinte trecho:

Exemplo 135 - Sonatina nº8 - III mov., cc.6-8

Existe uma sequência de saltos seguidos de movimento descendente, no qual o


ápice melódico se dá no contratempo e onde as frases pronunciam os saltos de sétimas:
essa escrita típica pode muito bem nos remeter a maneira de frasear de uma flauta em um
choro, por exemplo.
Outro detalhe de escrita são os baixos que, além de moverem-se geralmente
por graus conjuntos, desenham arpejos em movimento contrário à linha melódica e onde se
destacam saltos de quartas ou quintas, característica da viola ou do violão e que pode ser
imaginado pelo intérprete na execução interpretativa:

Exemplo 136 - Sonatina nº8 - III mov., cc.9

O tema da seção B, descendente por grau conjunto e desenvolvido através de


uma rítmica sincopada, diz respeito também ao pianismo característico de Guarnieri, uma
constância técnica que está de acordo com os preceitos defendidos pela escola nacionalista.
183

Conclusão

É possível afirmar que o conjunto das oito Sonatinas para piano de Camargo
Guarnieri sintetiza as transformações pelas quais passou o compositor em seu discurso
musical ao longo de 54 anos, desde a concepção de sua Sonatina nº1 (1928) até a Sonatina
nº8 (1982). A coletânea mostra uma complexidade crescente tanto em relação aos
elementos musicais desenvolvidos quanto para o pianista na sua execução interpretativa.
O Ensaio sobre a música brasileira, espécie de guia escrito pelo poeta Mário
de Andrade e onde ele reflete sobre a música brasileira e sua problemática de concepção
geral mostrou-se importante não só como fonte histórica de informação sobre o
nacionalismo musical brasileiro, mas principalmente, pela influência das ideias musicais
contidas no Ensaio na escrita pianística das Sonatinas em geral. Além disso, o Ensaio se
constitui também em um ponto de vista estético sobre a música brasileira e adentrar esse
universo possibilitou tirar a atenção excessiva dos parâmetros fixos da notação musical
para considerar questões contextuais, estilísticas, de caráter, que são importantes também
para as decisões interpretativas.
Em relação ao elemento ritmo contido no Ensaio, Guarnieri traduz o problema
da síncopa imposto por Mário de Andrade por mudanças frequentes de fórmulas de
compassos, polimetria e polirritmia e está ligada intimamente a uma flexibilização da linha
melódica e a exploração da sua expressividade interpretativa. Nas Sonatinas percebemos
que a rítmica está intimamente ligada ao desenvolvimento de uma linha melódica avessa a
uniformidade métrica e a banalização da rítmica em função de um discurso onde as frases
dos temas apresentem flexibilidade no seu desenvolvimento, o que vai se refletir na
agógica da execução instrumental.
Em melodia, o compositor alcança a expressividade melódica defendida pelo
poeta através de fortes intervenções da rítmica e da dinâmica e em menor grau da
harmonia, entre outras, que influenciam o poder expressivo no direcionamento e
comportamento da linha melódica. No caso da coletânea das Sonatinas, o desenvolvimento
melódico tem forte influência rítmica como mudanças frequentes de métrica, frases e
grupos de notas que não respeitam a divisão métrica dos compassos, polimetria, resultando
em frases assimétricas e/ou irregulares.
A polifonia se torna o elemento mais significativo do compositor tanto no
conjunto das Sonatinas para piano como em toda a sua obra. Guarnieri vai além da
concepção de Mário de Andrade para a questão polifônica na música artística nacional. Ao
184

longo das Sonatinas o compositor passa a dar um tratamento linear cada vez mais
sofisticado, com processos imitativos, cânones, contrapontos, strettos, culminando em duas
fugas a duas partes (Sonatinas nos3 e 6) onde a técnica é desenvolvida de modo semelhante
a uma tradicional fuga barroca.
No quesito forma podemos concluir que apesar de existir, por parte de Mário
de Andrade, uma atenção dirigida exclusivamente em reestabelecer as bases da criação
musical brasileira no tocante as formas musicais, suas alternativas para a criação a partir do
populário nada mais são do que um aproveitamento do legado da tradição da música tonal
adaptado às necessidades do nacional. Guarnieri utilizou-se e muito das formas tradicionais
da música ocidental, como é o caso aqui da utilização por ele da forma sonata e não nos
parece que as preocupações relativas à forma almejadas por Andrade no Ensaio tenham
tido efeito no compositor no sentido de evitá-las ou, de alguma forma, renová-las. A
coletânea das Sonatinas para piano contém feições neoclássicas no sentido de obedecer
aos princípios de equilíbrio formal através de uma economia de meios, a utilização da
polifonia, de técnicas composicionais tradicionais tais como a fuga e a obediência ao
princípio ternário contido na forma sonata.
Independentemente das diversas particularidades tratadas como instrumentação
por Mário de Andrade em seu livro, podemos dizer que a utilização do piano como
instrumento de sonoridade nacionalizante ou o tratamento instrumental nas Sonatinas se
manifesta no que chamamos de pianismo, ou seja, a maneira como o compositor
desenvolveu sua escrita pianística e o que está por trás dessa escrita idiomática,
conceitualizado como escritura.
O pianismo verificado nas Sonatinas para piano é um dos pontos principais
para o intérprete em suas decisões interpretativas. Existe uma maneira ou intenção como
Guarnieri trata a sonoridade do piano nas Sonatinas que valoriza as concepções do
intérprete. Nesse sentido, a coletânea se constitui em uma íntima interpretação do
compositor dos elementos musicais provenientes do popular e do folclórico que se
apresentam às vezes de maneira explícita, às vezes implícita no seu discurso musical. No
seu desenvolvimento da forma sonata, por exemplo, podemos vislumbrar uma adaptação
de atmosferas dentro de uma unidade formal. Portanto, o pianismo consistiu em uma
maneira de reconhecer pontos no discurso musical onde Guarnieri se utiliza de certas
constâncias ou costumes de escrita. Com isso, além de nos levar a identificação de um
estilo musical próprio do compositor, nos permitiu, da mesma forma, identificar elementos
musicais diversos que criam atmosferas ou tipos de sonoridades que podem influenciar a
185

maneira como pensamos a interpretação de determinadas passagens. O uso frequente de


ostinatos, notas pedais, métricas variadas, sonoridades provenientes da utilização de alguns
tipos de segmentos escalares (modais, cromáticas, octatônicas, tons inteiros), acordes como
o de sobreposição de quartas, a preferência por tessituras mais estreitas como nas primeiras
Sonatinas e mais amplas como nas últimas, a utilização do tresillo que aparece diversas
vezes ao longo da coletânea, nos permiti pensar numa escrita própria de Guarnieri: uma
escrita que gera uma escritura que consiste na busca por timbres, na busca em relacionar a
escrita do instrumento com ideias até mesmo extramusicais.
A textura polifônica, presente em todo o conjunto, apresenta-se, ora mais livre,
como no caso onde existe divisão de vozes de um acompanhamento ou um contracanto da
melodia principal, ora por processos fugados. No primeiro caso, permite que o pianista
faça diferenciação de toques para uma hierarquização sonora do trecho. No segundo caso,
a interpretação pianística se restringe ao equilíbrio na execução dos processos fugados, tais
como as sucessivas exposições e episódios nas fugas, imitação e strettos.
Em relação à dinâmica, observamos que as intensidades dinâmicas mais
extremas, como pp ou ppp e ff e fff são encontradas com mais frequências nas três últimas
Sonatinas, coincidentemente onde o compositor mais se utiliza das regiões extremas do
teclado. Há ostensiva utilização de sinais de articulação (stacattos, legatos, tenutos,
marcatos, martelatos) em toda a coletânea diferenciando temas, frases, enaltecendo pontos
culminantes, destacando determinada nota, grupos de notas e acordes.
Embora Guarnieri tenha sido pianista de grandes qualidades, é raro encontrar
no conjunto de suas Sonatinas para piano passagens virtuosísticas onde se tenha uma
utilização do teclado mais contundente, tais como grandes cadências ou passagens de
bravura. A dificuldade técnica encontrada diz respeito à artesania de sua escrita pianística
voltada ao tratamento polifônico, onde a trama linear exige do pianista controle e domínio
na condução das vozes.
Delimitar seções, subseções e centros de cada um dos movimentos do ciclo,
apesar de não surtir um efeito imediato na prática da execução instrumental, permitiu
observar o comportamento de cada uma dessas partes em relação a cada um dos
movimentos entre si de uma determinada Sonatina e também em relação ao conjunto delas
como um todo. Dentre as seções e subseções, destacamos as transições como aquela que
interfere diretamente na execução, pois na maior parte das vezes, elas são utilizadas para
mudanças de andamento (accelerandos ou rallentandos) e mudanças de intensidade
dinâmica (crescendos ou decrescendos) que há entre uma subseção e outra ou entre as
186

seções. Portanto, o compositor se utiliza desses pequenos trechos para possibilitar ao


executante a mudança de humor que geralmente está relacionado aos diferentes temas.
O aspecto melódico juntamente com o rítmico mostrou-se importante na
caracterização principalmente dos diferentes temas de cada um dos movimentos visto que
ambos os aspectos estão fortemente relacionados no discurso musical de Guarnieri. Em
que pese a afirmação de que toda a melodia carrega um ritmo e uma rítmica implícita
independente do compositor ou da época, nas Sonatinas para piano de Guarnieri esta
relação entre melodia e ritmo se dá de forma especialmente intensa pois o compositor,
deliberadamente, procurava desenvolver uma linha melódica onde a assimetria
proporcionasse variedade e proposital irregularidade às frases e semi-frases dos temas. Isso
proporciona um discurso onde a flexibilidade de uma linha melódica despojada de uma
métrica imutável deve-se refletir numa execução interpretativa mais dinâmica e que faça
valer características rítmico-melódicas importantes. Estabelecer frases e semi-frases e a
relação dialógica entre elas foi necessário, principalmente nas Sonatinas nos 2, 6, 7 e 8, pois
o contorno melódico baseado em relações intervalares, saltos e sequencias em graus
conjuntos dos diversos temas dessas Sonatinas proporcionam muitas vezes linhas
melódicas segmentadas e assimétricas, de difícil interpretação. Diversos elementos
musicais entraram em jogo na caracterização do desenho melódico (contorno melódico)
dessas frases e semi-frases e também das seções e subseções de maneira geral:
- mudança métrica constante: além de proporcionar assimetria entre frases e semi-frases,
mudanças constantes de fórmula de compasso ou desenhos melódicos deslocados dentro
dos compassos proporcionam quebras ou interrupções ao fluxo rítmico-melódico. A
polimetria demanda também certa coordenação de movimentos na execução de diferentes
desenhos entre ambas as mãos.
- utilização de diferentes sinais de dinâmica como stacattos, marcatos, martelatos e tenutos
influenciam sobremaneira o desenho rítmico-melódico de frases e semi-frases dos temas e
em determinadas situações, como no caso de trechos de grande intensidade dinâmica,
torna-se difícil diferenciar os marcatos dos martelatos, por exemplo, ou quando são
utilizados mais de dois desses acentos ao mesmo tempo.
Em relação à Dinâmica e ao Tempo concluímos que o compositor em algumas
das Sonatinas altera o andamento na diferenciação dos temas principalmente nas Sonatinas
nos1 (1º e 2º movimentos), 4 (1º movimento), 8 (1º e 3º movimentos) e, de maneira geral,
utiliza-se de níveis dinâmicos opostos na diferenciação desses mesmos temas.
Especificamente, a Sonatina nº6 se mostrou mais contundente na utilização da dinâmica
187

em seus três movimentos: o final do primeiro movimento apresenta-se como um dos


momentos mais intensos de toda a coletânea, aliando intensidade sonora com passagens
virtuosísticas; no segundo movimento há súbitos contrastes dinâmicos onde o pianista pode
explorar a caixa de ressonância do instrumento através da utilização dos pedais; no
movimento final destacamos o contraste dinâmico proporcionado pela volta do tema do 2º
movimento em pp como uma preparação para a grande Coda onde alia-se dificuldade
técnica e o controle de intensidade em fff das diversas vozes envolvidas em passagens de
oitavas rápidas. A Sonatina nº7, por sua vez, tem um caráter mais percussivo tanto entre os
temas do primeiro movimento quanto no terceiro movimento e, por sua dimensão (maior
Sonatina da coletânea), utiliza-se de tessituras mais amplas com sonoridade e contrastes
mais intensos.
Apesar de todas as influências recebidas não só de Mário de Andrade,
exploradas de forma particular nesse trabalho, mas também de outras inevitáveis
influências do meio vividas por Camargo Guarnieri, o conjunto de suas Sonatinas para
piano consistem de um poder criador ímpar não só para a história da música brasileira, mas
e especificamente para a literatura pianística. Ter a dimensão geral do conjunto dessas
obras me leva a concluir que o compositor paulista foi muito além ao que diz respeito a
essas influências, imprimindo um pianismo idiomático onde os elementos musicais
explorados são diluídos para dar lugar a uma maneira criativa de tratar o piano na
exploração das características inerentes a nossa música.
188

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