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CAMPINAS
2013
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
CAMPINAS
2013
iii
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350
Título em outro idioma: The artistic and thecnical development of the collaborative pianist
through the Lied repertoire
Palavras-chave em inglês:
Taubman, Dorothy, 1917-2013
Katz, Martin, 1945-
Piano
Chamber music
Accompaniment
Área de concentração: Práticas Interpretativas
Titulação: Mestra em Música
Banca examinadora:
Mauricy Matos Martin [Orientador]
Ney Fialkow
Paulo Mugayar Kühl
Data de defesa: 30-08-2013
Programa de Pós-Graduação: Música
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ABSTRACT
Keywords: piano pedagogy, collaborative pianist, Lied, Dorothy Taubman, Martin Katz,
accompanying.
vii
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 1
ix
4.8 Resistência ................................................................................................................... 89
x
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Mauricy Matos Martin, pela orientação tão generosa e zelosa;
Ao Prof. Dr. Luiz Ricardo Basso Ballestero, pela coorientação tão inspiradora e
entusiástica;
Aos membros titulares e suplentes da Banca professores doutores Ney Fialkow, Paulo
Kühl, Nahim Marun e Edmundo Hora, pela disponibilidade e solicitude ao meu convite;
À minha família – meus pais Josípio e Marina, meus irmãos Igor e Mayumi – pelo amor
incondicional demonstrado, dentre outras formas, pelo apoio irrestrito à minha carreira e
às minhas decisões;
Aos meus ex-professores Nelson Neves e Doris Azevedo, pela dedicação durante a
minha formação pianística primária;
À minha segunda família – André, Fernanda, Paula, tia Tereza e tio Valdir – pelo amor
que nem lhes é obrigado, mas o exercem com tanta franqueza e lealdade;
Aos meus amigos – Thiago Lopes, Herson Amorim, Paulo Porto, Rodrigo Santana,
Adriano Holanda, Vanessa Tomazela, Brenda Barretto, Marcelo Thys, Paulo Gazzaneo,
Paulo Mandarino, Carla Corsino, José Luiz Silva, Samuel Mendonça, Daniela Moreti,
Mariana Baruco, Luiz Pfüntzenreuter, Lúcia de Vasconcellos e Fernanda Vieira – pela
amizade especialmente manifestada em algum momento desta jornada;
Àqueles que de alguma forma acompanharam e torceram pela conclusão deste curso.
Obrigada a todos!
xi
xii
[...] eu prefiro a parceria. Continuarei, espero, a ter
emoção através da colaboração e da alegria que
provém de um perfeito trabalho em conjunto.
Gerald Moore
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xiv
Lista de Figuras:
xv
xvi
Lista de Tabelas:
Tabela 1: Palavras que apresentam pequena defasagem para dicção. .............................. 102
Tabela 2: Palavras que podem apresentar pequena defasagem em uma interpretação
musical. ................................................................................................................................ 102
Tabela 3: Proposta de interpretação para a canção Vergebliches Ständchen, Brahms ...... 115
xvii
xviii
Lista de Exemplos:
xix
Exemplo 38: Täuschung [Winterreise], Schubert. Compassos 1-4. ....................................... 68
Exemplo 39: Pause [Die schöne Müllerin], Schubert. Compassos 42-52. ............................. 69
Exemplo 40: Botschaft, Brahms. Compassos 1-6. ................................................................. 70
Exemplo 41: Erstes Liebeslied eines Mädchens, Wolf. Compassos 130-137. ...................... 70
Exemplo 42: Zum neuen Jahr, Wolf. Compassos 8-13. ......................................................... 71
Exemplo 43: Im Dorfe [Winterreise], Schubert. Compassos 9-14. ......................................... 72
Exemplo 44: Die junge Nonne, Schubert. Compassos 1-8. ................................................... 73
Exemplo 45: Und wüssten’s die Blumen [Dichterliebe], Schumann. Compassos 1-5. .......... 74
Exemplo 46: Der Knabe und das Immlein, Wolf. Compassos 28-35. .................................... 75
Exemplo 47: Karwoche, Wolf. Compassos 28-33. ................................................................. 76
Exemplo 48: Norman’s Gesang, Schubert. Compassos 22-27. ............................................. 77
Exemplo 49: Er, der Herrlichste von Allen [Frauenliebe und -leben], Schumann. Compassos
1-9. ......................................................................................................................................... 78
Exemplo 50: Heimweh, Wolf. Compassos 47-58. .................................................................. 78
Exemplo 51: Mein! [Die schöne Müllerin], Schubert. Compassos 1-4. .................................. 79
Exemplo 52: An meinem Herzen, an meinem Brust [Frauenliebe und -leben], Schumann.
Compassos 10-15. ................................................................................................................. 80
Exemplo 53: Wenn ich mit Menschen und mit Engelszungen redete [Vier ernste Gesänge],
Brahms. Compassos 1-6. ....................................................................................................... 81
Exemplo 54: Er ist’s, Wolf. Compassos 4-9. .......................................................................... 82
Exemplo 55: Ungeduld [Die schöne Müllerin], Schubert. Compassos 1-8. ............................ 83
Exemplo 56: Auf dem Wasser zu singen, Schubert. Compassos 1-7. ................................... 84
Exemplo 57: Das ist ein Flöten und Geigen [Dichterliebe], Schumann. Compassos 59-69. . 85
Exemplo 58: Du Ring an meinem Finger [Frauenliebe und -leben], Schumann. Compassos
1-10. ....................................................................................................................................... 86
Exemplo 59: Die alten bösen Lieder [Dichterliebe]. Compassos 53-67. ................................ 87
Exemplo 60: Auf einer altes Bild, Wolf. Compassos 17-26. ................................................... 88
Exemplo 61: Nimmersatte Liebe, Wolf. Compassos 1-8. ....................................................... 88
Exemplo 62: Verbogenheit, Wolf. Compassos 1-9. ............................................................... 89
Exemplo 63: Wohin? [Die schöne Müllerin], Schubert. Compassos 33-40. ........................... 90
Exemplo 64: Erlkönig, Schubert. Compassos 8-16. ............................................................... 90
Exemplo 65: Der Zwerg, Schubert. Compassos 36-49. ......................................................... 91
Exemplo 66: Der Feuerreiter, Wolf. Compassos 25-37. ........................................................ 92
Exemplo 67: Du bist die Ruh, Schubert. Compassos 6-15. ................................................... 99
Exemplo 68: Die Rose, die Lilie [Dichterliebe], Schumann. Compassos 8-15. .................... 100
Exemplo 69: Du Ring an meinem Finger [Frauenliebe und -leben], Schumann. Compassos
1-4. ....................................................................................................................................... 101
Exemplo 70: Der Genesene an die Hoffnung, Wolf. Compassos 33-37. ............................. 104
Exemplo 71: Whither must I Wander?, Williams. Compassos 1-11. .................................... 105
Exemplo 72: Im wunderschönen Monat Mai [Dichterliebe], Schumann. .............................. 108
Exemplo 73: Ich kann’s nicht fassen, nicht glauben [Frauenliebe und -leben], Schumann.
Compassos 16-28.. .............................................................................................................. 109
Exemplo 74: Chanson triste, Duparc. Compassos 5-8. ....................................................... 110
Exemplo 75: Aufträge, Schumann. Compassos 10-11. ....................................................... 111
xx
Exemplo 76: Vergebliches Ständchen, Brahms. Compassos 1-40. ..................................... 114
Exemplo 77: Morgen, Strauss. Compassos 1-16. ................................................................ 117
Exemplo 78: Gretchen am Spinnrade, Schubert. Compassos 63-69. ................................. 118
Exemplo 79: Die alten bösen Lieder [Dichterliebe], Schumann. Compassos 48-67. ........... 120
Exemplo 80: Das Wandern [Die schöne Müllerin], Schubert. .............................................. 123
xxi
xxii
Lista de Abreviaturas:
M – Tonalidade maior
m – Tonalidade menor
xxiii
xxiv
Lista de Símbolos:
# – Sustenido
b – Bemol
xxv
xxvi
INTRODUÇÃO
Apesar de a colaboração ser uma das áreas de maior demanda do ponto de vista
profissional, o repertório de piano em colaboração com outros instrumentos e/ou vozes
não tem sido utilizado como um segmento significativo no ensino tradicional do piano, o
que não permite aos jovens pianistas desenvolverem as habilidades necessárias para
atuarem de forma satisfatória como pianistas colaboradores.
Mas afinal, quais são essas habilidades e competências tão necessárias para um
pianista colaborador? Além de uma série de questões ligadas à natureza do
instrumento e da música que está sendo feita em parceria, a formação pianística deve
ser igual a de um pianista solista? Considerando que a meta que rege todo o estudo de
um determinado instrumento é o aprimoramento técnico para que seja possível o
aperfeiçoamento musical, uma das fontes destas é justamente o repertório com que
lidamos. Sendo assim, é possível desenvolver a técnica de um pianista colaborador
1
O termo tem sido usado especialmente desde os anos 90 a partir de uma entrevista concedida pelo
pianista norte-americano Samuel Sanders (1937-1999), que se sentia incomodado com a possível
conotação pejorativa de outros termos. A nossa escolha pelo termo colaboração será discutida e
justificada no Capítulo 1.
1
através de seu próprio repertório? E de que forma sobrevém o desenvolvimento
artístico através desse repertório?
Para isso, a dissertação está dividida em cinco capítulos que discorrem sobre
cada um dos objetivos apresentados. No primeiro capítulo, trazemos à tona uma
discussão sobre os termos colaboração e colaborador, além de delinear a atividade
segundo as práticas mais recentes (KATZ, 2009; MOORE, 1973; LINDO, 1916). O
segundo capítulo apresenta um panorama da escrita pianística na canção de
compositores germânicos a partir do século XVIII e especialmente o século XIX.
Abordaremos com especial atenção os Lieder românticos por se tratar do periodo em
que o piano foi adquirindo um papel cada vez mais participativo no gênero. Dentre os
Lieder trabalhados, selecionamos os de Franz Schubert, Robert Schumann, Johannes
Brahms e Hugo Wolf. O objetivo neste capítulo é esboçar como cada um desses
compositores abordou a parte do piano em suas canções; simultaneamente, é possível
observar também o desenvolvimento da escrita e da consequente exigência técnica por
2
parte do pianista. No terceiro capítulo, levantamos questões acerca de alguns aspectos
da técnica pianística e tratamos das habilidades técnicas tendo como base princípios de
Dorothy Taubman, fundamentados essencialmente na qualidade dos movimentos
necessária para tocar piano. No quarto capítulo selecionamos algumas canções,dos
quatro compositores anteriormente citados, de acordo com os elementos da técnica
pianística abordados no capítulo anterior com sugestões de resolução técnica para os
respectivos trechos. Para o desenvolvimento das habilidades artísticas, no quinto e
último capítulo tomamos como base os conceitos abordados por Martin Katz em seu
livro The Complete Collaborator (2009). No livro, que é praticamente todo inspirado na
música vocal, Katz trata das habilidades consideradas mais básicas, como o
alinhamento vertical da parte do piano em relação à linha vocal, até os papéis mais
complexos exigidos do pianista, como sua participação ativa (tanto quanto a do cantor)
na constituição e construção da personagem e de outros elementos “físicos” e
“psicológicos” da canção.
3
4
1 COLABORAÇÃO PIANÍSTICA E PIANISTA COLABORADOR
PIANISTA
Vocal
Vocal
Coral Instrumental
Dança
2
Para este trabalho, delimitaremos a profissão no âmbito da música erudita.
5
Nesta família proposta por Adler, há três categorias do pianista com relação ao
trabalho em conjunto e são elas: camerista, acompanhador e correpetidor (coach).
Cada uma destas categorias apresenta áreas de conhecimento que abrangem e
envolvem diferentes graus quanto à autonomia (presença ou não de um “mediador”,
como o regente, por exemplo), à participação instrumental (escrita pianística ou
orquestral, ou seja, papel próprio ou substitutivo) e ao envolvimento textual na parte.
Logo, segundo Adler (1965, p. 5):
3
O repertório de reduções vem, em especial, dos concertos e do repertório vocal sinfônico ou operístico.
No entanto, a música de câmara inclui das sonatas do periodo barroco, escritas para instrumentos
predecessores ao piano, e que exigem do pianista a competência de realizar acompanhamentos a partir
de baixo figurado, até as composições camerísticas contemporâneas.
4
Na Alemanha, é recorrente o uso do termo Klavierbegleiter para designar o pianista acompanhador. Em
alemão, Begleitung significa “acompanhamento”.
5
José Francisco da Costa (2011, p. 6) observa que ao correpetidor é cabida a responsabilidade das
funções de coordenação e orientação do trabalho, como um instrutor que deve dominar vários assuntos.
Além disso, o correpetidor é “aquele que presta serviços a um regente, fazendo o papel de orquestra [...]
e segue estritamente a condução do maestro.”
6
Na prática, não há uma verdade absoluta na definição destes termos, posto que
seu significado se confunde e se mistura facilmente. Contudo, atualmente, um termo
mais abrangente – que, de certa forma, engloba todas essas funções anteriores – vem
se tornando mais atinente e mais usual: “pianista colaborador”.
Como aponta Adriana Mundim (2009, p. 25), esse termo, que ultimamente tem
sido usado especialmente nos Estados Unidos e parte da Europa, além de ser mais
abrangente, substitui termos como “acompanhador” que, por sua vez, tem uma
conotação possivelmente depreciativa – em concordância com Martin Katz (2009, p. 3),
que justifica a substituição do termo pelo fato de “acompanhador” soar “pejorativo,
humilhante ou indicar falta de autoestima”. Por outro lado, podemos usar como exemplo
uma afirmação de Ricardo Ballestero6 (2012), que diz que o termo não se aplica a todo
o repertório, pois muitas das vezes o pianista não está tocando apenas figuras de
acompanhamento (acordes, arpejos) e que são secundários à linha melódica. Dessa
forma, a canção Der Feuerreiter, de Wolf, seria um exemplo do quão inapropriado seria
o uso do termo “acompanhador” para descrever o pianista, pois o piano compartilha da
linha melódica com canto, além de a canção apresentar uma escrita pianística de
dificuldade técnica bastante elevada (Exemplo 1).
6
Usaremos como referência o programa “O Piano e a Música Vocal”, uma série de 9 exposições
apresentadas por Ricardo Ballestero, pianista e professor da Universidade de São Paulo (USP). O
programa aborda o papel do piano e do pianista na música vocal, apresentando um variado repertório de
canções interpretadas por importantes pianistas e cantores. A série, que foi apresentada entre
02/04/2012 a 28/05/2012, foi realizada pela Rádio Cultura FM. Portanto, entenda-se por BALLESTERO
(2012) as referências feitas ao programa. No corpo deste trabalho, apresentamos algumas partes
referentes ao programa através de transcrições.
7
Exemplo 1: Der Feuerreiter, Wolf.
8
A justificativa pela preferência do termo “colaborador” é a etimologia, que justifica
a própria proposta da nomenclatura. A palavra provém de dois elementos do latim: o
prefixo co (com) e o radical labor (trabalho) – portanto, tal dado pode sugerir que este
termo seja suficiente para representar o trabalho do pianista em parceria com outros
artistas7. Neste âmbito, o pianista estaria em igualdade de condições com seu(s)
parceiro(s). Contudo, o objeto deste estudo não é a terminologia, mas a formação e o
desenvolvimento dos pianistas na arte de tocar em conjunto.
9
músicos da época, como Joseph Joachim (1831-1907). Outro notável exemplo é
Johannes Brahms (1833-1897) que, além da parceria musical com Joachim, atuou ao
lado do barítono Julius Stockhausen (1826-1906). Portanto, além de exercerem suas
funções de concertistas, exerciam também a atividade da música em conjunto.
Paulatinamente, esta realidade foi se modificando e cada vez mais a colaboração
pianística foi respeitada e valorizada.
Como observa Katz (2009), é importante lembrar que há apenas 100 anos atrás,
os pianistas colaboradores raramente tinham o nome impresso nos programas e faziam
recitais atrás de biombos; ademais, as introduções pianísticas eram reduzidas a um ou
dois compassos e os poslúdios, quando tocados, eram inaudíveis por causa da
intervenção das palmas para o “solista”. Nos últimos anos, o status do colaborador tem
sido elevado, contando, inclusive, com diversas instituições de ensino da Europa e
Estados Unidos que oferecem formação específica de Mestrado e Doutorado para
pianistas que queiram atuar nesta área. Também vale ressaltar que, por opção, vários
dos pianistas solistas de renome se dedicaram ou têm o feito à música em conjunto,
como Sviatoslav Richter, Leonard Bernstein, Murray Perahia, Vladimir Ashkenazy,
Emmanuel Ax, Martha Argerich, Daniel Barenboim, Maria João Pires, Menahem
Pressler, dentre tantos outros.
10
uma afinidade particular com o repertório de Lied e foi notável pela sua diferenciação na
interpretação do gênero, assumidamente influenciado pelo tenor John Coates (1865-
1941), tendo atribuído parte do sucesso ao cantor, pois durante os ensaios, Coates
exigia a “máxima expressão para qualquer figura que o pianista tocasse de forma que
mesmo as figuras de acompanhamento, que seriam genéricas nas mãos de outros
pianistas, nas mãos de Moore seriam expressivas, ligadas ao texto e à expressão do
cantor.” (BALLESTERO, 2012)
11
12
2 UM PANORAMA DO DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA PIANÍSTICA
NO REPERTÓRIO DE LIED
Uma das maneiras de manifestação foi o Lied (ou canção), termo usado
geralmente para designar a canção de câmara romântica, cujas primeiras formas são
remontadas ao século XV9. Neste capítulo, abordaremos o Lied a partir da segunda
metade do século XVIII e especialmente o século XIX, visto que o interesse em questão
é tratá-lo a partir do uso do piano no gênero.
8
Mundim (2009) traça um interessante histórico da atividade do acompanhamento ao longo dos periodos
barroco (baixo cifrado), clássico (baixo de Alberti), romântico (Lied) e século XX (variedade de recursos).
9
“As primeiras formas de Lied […] remontam ao século XV, incluindo 36 de Oswald von Wolkenstein,
todas elas para duas ou três vozes. [...]” (GROUT & PALISCA, 1994, p. 536)
13
canções desta coletânea eram paródias10 e, posteriormente, foram editadas outras
coletâneas semelhantes de canções, parodiadas ou com música original. Após 1750,
uma nova estética incentivou novas formas aos Lieder (SADIE, 1994, p. 536): Os
compositores de Berlim, considerado o centro mais importante de composição de então
e que teve como principais expoentes Johann Joachim Quantz (1697-1773), Carl H.
Graun (1704-1759) e Carl P. E. Bach (1714-1788), tinham preferência pela forma
estrófica, com melodias em estilo natural e expressivo, semelhante às canções
populares, com uma única nota para cada sílaba; portanto, os acompanhamentos eram
simples e completamente subordinados à linha vocal. Ao longo do tempo, tais
convenções, inicialmente aceitas, foram ultrapassadas e possibilitaram que o gênero se
tornasse mais variado, com as partes do teclado mais independentes e a forma
deixando de ser exclusivamente estrófica. Em 1770, a Segunda Escola Berlinense de
Lied, que inclui Johann A. P. Schulz (1747-1800) e Johann F. Reichardt (1752-1814),
utilizou-se de um estilo mais complexo e procurava uma poesia de melhor qualidade.
De Reichardt – que influenciaria mais tarde o primeiro periodo de Schubert –, por
exemplo, em muitos de seus 700 Lieder que escreveu, utilizou poemas de Goethe
(Exemplo 2).
14
Dentre os vários fatores que contribuíram para o progresso do Lied no final do
século XVIII, estão os avanços tecnológicos do novo instrumento de teclado – o piano –
com maior extensão, sonoridade e recursos de expressividade. De acordo com Sadie
(1994, p. 720), o piano “desempenhou um papel fundamental na vida musical
profissional e doméstica a partir do século XVIII [...]”. O instrumento foi distinguido pelo
fato de suas cordas serem percutidas por martelos, o que permitira produzir uma vasta
gama expressiva, de acordo com o tipo de toque. O reflexo disto na produção musical
vocal foi a parte do piano cada vez mais participativa e interativa com a parte da voz.
11
Do original: “Yet treating the keyboard as the protagonist in his songs, Haydn is not necessarily
undermining the importance of the poetic text.”
12
Neste periodo, a música está se tornando cada vez mais instrumental.
13
Do original: “The relationship between the poetry and the music is only skin-deep and does not
progress beyond a rather superficial union.”
15
• Imitação real da linha vocal que está por vir (Exemplo 3);
16
Exemplo 5: Life is a Dream, Haydn.
17
série de unidades rítmicas claras para a voz seguir.”14
Em Life is a Dream, temos outro tipo de tratamento para as partes. Nesta canção
já há uma linha independente para a parte da voz e a parte do piano possui indicações
14
Do original: “Haydn picked out a much more definite melodic profile, using the keyboard prelude to
establish a series of clear one-and two-measure rhythmic units for the voice to follow.”
18
de dinâmica, o que era permitido pelo fortepiano, instrumento em voga na época
(Exemplo 7).
19
Exemplo 8: An Lyda, Stepán.
Diz Kimball (1996, p. 55, tradução nossa): “apesar de as canções não figurarem
proeminentemente no catálogo de composições de W. A. Mozart [1756-1791], ainda
assim, as melhores delas exibem seu senso intuitivo de mistura da música e drama.”16
Das canções de Mozart, as primeiras são em estilo volkstümlich (ou popular), estróficas
15
Do original: “These composers' engagement with song is often taken as a sign of the inclusive nature of
their musical ambitions, rather than their interest in the genre for its sake.”
16
Do original: “Although songs do not figure prominently in Mozart's catalog of compositions, the best of
them still exhibit his intuitive sense of blending music and drama.”
20
típicas de canções folclóricas; a priori, foram compostas para entretenimento doméstico
e, estruturalmente, são pouco mais do que linha melódica e baixo. Sua primeira canção
Daphne, deine Rosenwangen, K. 52 (1768) ainda apresenta características como a
melodia e mão direita da parte do piano fundidas, de escrita simples, bem como uma
pequena abertura que anuncia o tema vocal (Exemplo 9).
Contudo, Mozart teve seu interesse pelo gênero da ópera aflorado, o que
influenciou diretamente na composição da canção. Suas canções assumiram caráter e
expressão musical um pouco diferentes, afastando-se do formato das canções
folclóricas em direção a um estilo italiano mais elegante (KIMBALL, 1996, p. 56). Em
Ridente la calma, K. 152 (composta entre 1772-75) percebemos algumas diferenças se
comparada à sua primeira canção, a começar pela forma, que é ABA; a parte vocal
possui uma linha independente, com frases mais longas e maior expressão da emoção
destacada pelo material melódico. As figuras de acompanhamento têm como função
dar apoio harmônico e rítmico. (Exemplo 10).
21
Exemplo 10: Ridente la calma, Mozart.
22
23
Exemplo 11: Abendempfindung, Mozart.
Assim como nas outras formas musicais, L. van Beethoven (1770-1827) foi uma
figura de transição entre os periodos Clássico e Romântico também em suas canções.
De acordo com Sadie (1994, p. 536), o compositor “pode ser considerado o criador do
Lied romântico”. Apesar de haver discordâncias sobre a afirmação anterior17,
Beethoven é apreciado por muitos autores como o precursor dos principais
compositores vindouros do gênero, que alcançaram uma nova e mais íntima relação
entre a música e a poesia.
17
Segundo Kimball (1996, p. 51), o “nascimento” do Lied se dá em 14 de outubro de 1814 – dia em que
Schubert compôs Gretchen am Spinnrade.
24
e ajudando a descrever as situações e emoções de uma determinada personagem
(BALLESTERO, 2012).
18
canções, ciclo de (in SADIE, p. 162)
19
Do original: “The work is a series of themes and variations, notable for the extensive involvement of the
piano in the form and mood of the piece.”
25
Exemplo 12: An die ferne Geliebte, Beethoven. Transição da primeira para a segunda canção.
26
Exemplo 13: Auf dem Hügel sitz’ich [An die ferne Geliebte], Beethoven.
Exemplo 14: Nimm sie hin denn, diese Lieder [An die ferne Geliebte], Beethoven.
27
Exemplo 15: Seit ich ihn gesehen [Frauenliebe und -leben], Schumann.
Exemplo 16: Nun hast du mir den ersten Schmerz getan [Frauenliebe und -leben], Schumann.
28
Beethoven utilizou as diversas formas composicionais de canção, desde as
composições estróficas até aquelas durchkomponiert20, havendo também certa
independência entre as linhas do canto e do piano – diferente do que seus precursores
realizaram; em geral, utilizaram-se somente das formas estróficas e de caráter
folclórico, nas quais o piano tinha um papel secundário e, por diversas vezes, com a
melodia da linha vocal incorporada à parte da mão direita.
20
“Composto do começo ao fim. […] Termo que define um tipo de canção em que a música é diferente
para cada estrofe.” (in SADIE, p. 285)
29
2.2 Franz Schubert (1797-1828)
De acordo com Adler (1965, p. 16, tradução nossa), “ele [Schubert] elevou o
acompanhamento do piano de uma condição subordinada e o designou como um
veículo de motivação psicológica para suas canções.”21 Seu intuito era o de engajar o
piano com relação ao texto; desta forma, muitas vezes, a parte do piano sugere a
imagem pictória do texto, contribuindo para o clima e ilustração de um cenário físico da
canção. O compositor firma uma ilustração de um cenário físico através de figurações
de água, elementos que evocam a Natureza (sussurro de vento, farfalhar das folhas) e
de sons de objetos inanimados. Em Die Forelle (Exemplo 17), com texto de C. Schubart
(1739-1791), um pescador tenta, em vão, pescar uma truta que se lança e esvoaça na
água clara de um riacho; o eu lírico, que assiste ao duelo, se mostra indignado quando
o pescador recorre a turvar o rio a fim de procurar o peixe. A parte do piano sugere a
moção da água e os movimentos saltitantes e sinuosos da truta:
21
Do original: “He elevated the piano accompaniment from a subordinate position and designated it as the
carrier of psychological motivation for his songs’ lyrics.”
30
Exemplo 17: Die Forelle, Schubert.
31
Exemplo 18: Gretchen am Spinnrade, Schubert.
32
Em contrapartida, a parte do piano de Erlkönig é de elevada dificuldade técnica,
principalmente pela sequência de oitavas velozes e repetitivas que podem acarretar um
problema de resistência física para o pianista (Exemplo 20).
Enquanto que em Schubert a parte do piano faz referências aos pássaros, rios,
riachos, mar, etc., o compromisso que o pianista assume com relação ao texto ao
interpretar as canções de Schumann reincide, em especial, na ilustração psicológica do
eu lírico. Como aponta Kimball (1996, p. 85, tradução nossa), com as canções de
Schumann, “o piano se apodera de si próprio como um participante pleno com a voz.”22
22
Do original: “With the songs of Robert Schumann, the piano comes into its own as a full participant with
the voice.”
33
instrumento, foram naturalmente transferidas para suas canções, assim como
aconteceu com C. P. E. Bach e Haydn, por exemplo; com isso, a parte do piano de
seus Lieder assume uma importância notável e bastante relevante. Consideremos que
o periodo antes de se concentrar em produzir canções, Schumann tinha escrito muitas
de suas obras importantes para piano, como Kinderszenen, Carnaval, Papillons e
Davidsbündlertänze – desta forma, transferiu as qualidades expressivas de suas obras
para piano para seus Lieder.
• Interlúdio: passagem usada para conectar seções de uma canção (Exemplo 22);
• Poslúdio: seção que “fecha” uma canção; quase sempre remete a algo que tenha
acontecido anteriormente, acrescenta um fecho mais completo para a peça ou
serve como um momento de reminiscência, trazendo de volta materiais
melódicos, rítmicos ou harmônicos (Exemplo 23).
34
Exemplo 21: Aus alten Märchen [Dichterliebe], Schumann.
35
Exemplo 23: Aus alten Märchen [Dichterliebe], Schumann.
36
sejam elas as de piano, as de câmara instrumental e vocal. No recinto deste último
gênero e na interação do texto e música, o compositor via a canção como uma obra
musical inspirada no texto, em que seu interesse era captar o aspecto e a essência
emocional global do poema e o transformar em uma obra musical bem acabada e
elaborada, bem como observa Dietrich Fischer-Dieskau (1985, p. 103, tradução nossa),
quando diz que “Brahms efetivamente evitava o real, a expressão realista, em favor da
beleza da forma musical que permanecia para ele como uma zona do intocável.”25
25
Do original: “Brahms evitaba efectivamente lo real, la expresión realista, en favor de la belleza de la
forma musical, que permanecía para él como en una zona de lo intocable.”
37
Exemplo 24: Primeira estrofe de Wie Melodien, Brahms.
38
Exemplo 25: Segunda estrofe de Wie Melodien, Brahms.
39
Exemplo 26: Terceira estrofe de Wie Melodien, Brahms.
Contudo, ainda de acordo com Platt (2004, p. 196), estudos apontam que
Brahms empregou a ilustração textual através do piano em algumas de suas canções,
como podemos observar através dos staccati que representam a chuva em Während
des Regens (Exemplo 28), a sequência de semicolcheias representando corrente de
água em Vom Strande (Exemplo 29), as badaladas dos sinos representadas através
dos intervalos de oitavas em Wir wandelten (Exemplo 30) e o tipo de escrita da parte do
piano representando uma perseguição em Blinde Kuh (Exemplo 31). Assim como
Schubert, o compositor também utilizou uma figura motívica que perdura praticamente
toda a canção – em contraste com alguns compositores posteriores, como Wolf, que
41
mudavam as figurações a cada nova imagem no poema.
42
Exemplo 30: Wir wandelten, Brahms.
43
A harmonia em Brahms também figura como um elemento importante na
interação entre texto e música. Além da importância da unidade tonal, a harmonia atua
como um elemento de expressão. Como observa Platt (2004, p. 196, tradução nossa),
“turvar a tônica é obviamente um elemento importante na música do século XIX em
geral [...]”26 e esta clara falta da identificação de uma tonalidade, pode servir também
como um excelente meio de expressão. Vom Strande é um exemplo disto: a canção
ilustra através da sua “ambiguidade tonal” uma das maneiras em que o artifício
harmônico pode ser usado para acentuar as questões dramáticas e psicológicas
decorrentes do texto (Figura 2).
Figura 2: Redução harmônica de Vom Strande, Brahms. Compassos 1-11. Platt (2004, p. 197).
44
violino ou em seus concertos para piano e orquestra. Como foi dito antes, o compositor
via a canção como uma obra musical inspirada no poema; desta forma, em Brahms,
não veremos uma música que serve sistematicamente o texto. Logo, seja por meio das
progressões harmônicas, manipulação dos ritmos ou através das melodias, os Lieder
de Brahms revelam um compositor engajado em trazer o texto à vida através de meios
essencialmente musicais.
Apesar de ter sido contemporâneo de Brahms e ter vivido na mesma cidade que
ele, Hugo Wolf foi seu oposto. Enquanto que para Brahms o texto era um pretexto para
uma criação musical, para Wolf, que é considerado por muitos como o representante
máximo da canção alemã, o texto era tão ou mais importante que a música escrita para
isso. O compositor era devoto da poesia como um todo e sempre foi interessado em
musicar poetas do mais alto nível como Goethe, Heine, Mörike, Einchendorff e Lenau,
aos quais se dedicava um de cada vez27. Em seu processo criativo, a música serviria e
funcionaria apenas àquele determinado texto e, diferentemente de Brahms, cuja
obsessão era pela forma musical, a obsessão de Wolf era pela caracterização musical
de seus textos. Ballestero (2012) destaca que Wolf também se interessou pela literatura
de outros países, mas a utilizava em traduções de poemas, como as que fez de Lope
de Vega, Michelangelo e Shakespeare. O fato de ter utilizado traduções nestas obras
demonstra que o compositor, de fato, pretendia o pleno domínio do idioma utilizado.
Desta forma, ele conseguiu usar recursos composicionais que se aproximassem cada
vez mais do texto.
27
“A imersão de Wolf no universo dos grandes poetas se dava pelo hábito de o compositor se dedicar a
cada um deles em um determinado periodo. Por exemplo, se concentrava em um determinado
compositor até se esgotarem as possibilidades referentes àquele; só aí, partiria para outro compositor.
Sabe-se que Wolf, antes de compor uma canção, recitava o texto em voz alta até quase entrar em estado
de transe; assim, quando sentava para compor, a música já estava bastante amarrada ao texto.”
(BALLESTERO, 2012)
45
Com as canções de Hugo Wolf, o gênero atingiu um altíssimo refinamento de
estilo e intelectualismo, alcançando uma síntese praticamente irrevogável entre texto e
música, estes indissoluvelmente ligados e extremamente difíceis de serem dissociados
um do outro, fazendo com que muitos considerem Wolf como o representante do
apogeu da canção artística. Como observa Ernst Newman (1907, p.156, tradução
nossa), “o segredo peculiar de Wolf é que ele perfurou o coração do poema como
poucos fizeram, mesmo em casos isolados, e como nenhum outro fez em tantos casos
variados.”28
Em seus Lieder – ou “poemas para voz e piano”, como ele mesmo se referia – a
linha do canto sempre responde aos estímulos do texto e até mesmo imita o que seria a
declamação emocional do texto; da mesma forma, a parte do piano também se apropria
da parte textual fazendo referência constante a ela, colaborando para que o pianista a
expresse quase que em tempo real. Quanto ao estilo, a busca obsessiva de Wolf pela
caracterização musical de seus textos faz com que sua obra soe eclética, pois o
compositor, segundo Ballestero (2012), se acomodava estilisticamente a cada poeta.
28
Do original: “Now the secret of Wolf’s peculiar power is that he pierced to the very heart of the poem as
few musicians have done even in isolated cases, and as no other has done in so many varied cases.”
29
In Parsons, 2004.
30
Do original: “Wolf made complicated use of Lied traditions in order to forge a style in which late
Romaticism’s extensions of tonality were applied to nuanced, multivalent interpretations of older poetry.”
46
Em cada um dos livros de canções (Liederbuch31) que escreveu, é possível encontrar
um Wolf “diferente” e ainda em uma mesma canção, é possível ouvir um grande
vocabulário musical e estilístico, fazendo com que a maioria de suas canções
apresentem dificuldades técnicas bastante variadas, diferente de Brahms, como foi
mencionado anteriormente, em que uma mesma figura motívica predomina
praticamente toda a canção.
A parte do piano, mesmo que não carregue o texto em si, se refere a ele (texto) a
todo o momento, em especial na obra de Wolf. Desta forma, a parte do piano sempre
está muito próxima ao poema e exige do pianista um grande conhecimento do texto –
logo, o pianista deve “fazer justiça” às relações texto e música que Wolf realiza em seus
Lieder. Um artifício bastante comumente utilizado pelo compositor é a personificação do
eu lírico através da parte do piano. Na canção Zur Warnung (Exemplo 32), por exemplo,
o eu lírico desperta depois de uma ressaca e quase em delírio, pede por mais vinho. O
cantor emite sua voz com um timbre rouco, como indicado pelo próprio compositor na
parte, enquanto que o pianista deve ter meios de expressar este estado e até mesmo
imitar soluços através da parte do piano.
31
Liederbuch significa literalmente “livro de canções” e, como indica Sadie (1994, p. 537), é uma
“expressão usada para certas coletâneas alemães, dos séculos XV e XVI, de canções polifônicas ou
pequenos poemas líricos que eram geralmente catados”. No entanto, Wolf foi original em sua concepção
da expressão como forma dramática mais ampla: cada qual foi idealizado para representar um poeta ou
uma fonte.
47
Exemplo 32: Zur Warnung, Wolf.
48
Outra prática comum de Wolf quanto à parte do piano é a ilustração poética,
encontrada na canção Abschied, que narra o episódio da personagem que, depois de
ouvir coisas desagradáveis sobre o seu nariz, resolve despedir o abusado com um
chute no seu traseiro, que rola escada abaixo e é representado pela sequência de
oitavas descendentes na parte do piano (Exemplo 33).
49
música vocal, sem contar a situação de resistência32 a que o pianista se submete ao
executá-la.
32
Resistência no sentido de qualidade de resistente a algum obstáculo, neste caso, a demanda de
energia física que a obra requer. Este item será explicado no capítulo seguinte.
50
3 ABORDAGEM TÉCNICO-PIANÍSTICA
Sobre esta ideia, Thomas Mark (2003) explora a relação entre “Cinestesia e
Imaginação Musical”, colocando-as em igualdade de condições. Segundo o autor, estes
dois elementos são igualmente ativos e profundamente importantes no fazer música (p.
13, tradução nossa):
33
Do original: “Our musical conception will be realized, in sound, through movement. Refining and
deepening our musical ideas will elicit ever more refined and subtle movement.”
51
desenvolta. Em que consiste o desenvolvimento da técnica pianística? A solução para
esta questão será baseada no levantamento de três Escolas pianísticas, porém,
primeiramente, é interessante destacar uma propensão a que grande parte dos
conservatórios e escolas de música de ensino formal está sujeita.
34
Do original: “But in our conservatoires, and specially the Moscow Conservatoire […] this rule of strict
gradualness is, for obvious reasons, subject to considerable variations and is sometimes completely done
away with.”
52
sobre a abordagem desses elementos da técnica a partir de três autores e importantes
pedagogos do piano: 1) o próprio Neuhaus, 2) Alfred Cortot e 3) Adele Marcus35.
Marcus foi uma pianista norte-americana que estudou sob orientação de Josef
Lhévinne e Arthur Schnabel, e tornou-se muito conhecida como pedagoga e professora.
A pianista foi professora da Juilliard School of Music em Nova Iorque (EUA) de 1954 a
1990 e dentre seus alunos podemos citar Stephen Hough e as irmãs Güher e Süher
Pekinel. Em 1972, Adele Marcus concedeu uma entrevista (não deixando de ser uma
forma de divulgação de seu regime técnico também) ao The Instrumentalist Company
35
A escolha por estes três pianistas foi estabelecida pela sua importância e reconhecimento no ensino do
piano, além de cada um representar um país diferente (Rússia, França e Estados Unidos).
36
Para este trabalho, estamos utilizando a versão em inglês publicada em 1973.
53
intitulada Mechanics of Advanced Technique em que, grosso modo, trata da relação
intrínseca entre a interpretação e a técnica pianística, da postura ao piano, em um
sentido físico, e também da postura psicológica do instrumentista, bem como as
abordagens sobre diversos tipos de exercícios para a melhoria da desenvoltura técnica,
abordando os seguintes elementos:
• Escalas
• Arpejos
• Notas duplas
• Acordes (com peso de braço e curtos)
• Trilos
• Resistência
Principî Razionali della Tecnica Pianistica (1949)37 é em sua essência uma fonte
de exercícios de caráter solucionador para os variados tipos de dificuldades técnicas,
ou das “categorias”. O que o autor considera como as principais categorias são:
• Passagem do polegar
• Escalas
37
A publicação original foi feita em 1928, sob título de Principes Rationnels de la Technique Pianistique.
Para este trabalho, utilizamos a versão em italiano da obra.
54
• Arpejos
• Notas duplas
• Polifonia
• Extensão
• Pulso
• Acordes
• Polegar
• Notas duplas
• Trinado e trêmolo
• Acordes
• Extensão (ou salto)
• Repetição de movimento
• Polifonia
• Resistência
55
3.2 Competências técnicas
Nosso objetivo aqui não é entrar no mérito dos mais diversos tipos de lesões que
um pianista pode vir a ter ou dos mais diversos tipos de interpretações musicais que um
pianista pode conceber – mas simplesmente, trazer à tona a importância de uma boa
formação técnica e musical pianística para uma performance livre de empecilhos físicos
permitindo ao intérprete um leque de opções interpretativas. Na prática, isto tudo
implica em algumas questões como “a Escola X” ou a “Escola Y” (no sentido de uma
técnica pianística X ou Y), e muitas vezes implica também no tipo de repertório a ser
trabalhado.
38
É o que Stravinsky (1942) trata como os dois estados da música: a música potencial e a música real.
Segundo ele, “a música já existe antes de sua performance efetiva” e engloba dois aspectos, “de existir
sucessiva e distintamente em duas formas separadas uma da outra pelo hiato do silêncio.” (p. 111)
39
No Trio op. 8 para piano, violino e violoncelo, de Chopin, por exemplo, podemos encontrar na parte do
piano diversos trechos de seus dois concertos para piano e orquestra, constatando-se que a escrita
camerística pode se assemelhar – muitas vezes podendo ser transcrita – à escrita do repertório solístico.
56
possível se deparar com trechos de dificuldade técnica elevada e, assim, a
possibilidade de se desenvolver tecnicamente através deste tipo de repertório. Quanto
à escolha de abordagem das possíveis soluções dos elementos nas dificuldades
técnicas, serão usados princípios desenvolvidos por Dorothy Taubman.
57
piano parecia fácil para alguns e difícil para outros, isto é, alguns pianistas tocaram por
toda a vida sem problemas e outros, sofreram lesões ao longo do tempo. Concluiu,
então, que os pianistas que tocavam de forma “fácil” e sem dor faziam algo diferente
dos que pertenciam ao outro grupo, identificando algumas diferenças principalmente
nos movimentos que realizavam:
Dorothy Taubman não inventou uma nova forma de tocar piano. Ela observou o
que já tinha pronto nos pianistas que tocavam com fluência e facilidade. Mas
diferente de muitos outros pedagogos, ela não baseou sua abordagem sobre a
autoridade destes pianistas [...] mas em fatos subjacentemente anatômicos.
Tendo em conta a anatomia dos dedos, mãos, antebraços, e considerando
como o movimento pode ser fácil ou difícil, tenso ou livre, ela descreveu
maneiras de realizar tarefas pianísticas usando uma melhor qualidade do
movimento.
A escolha destes princípios técnicos se deu através das aulas de piano durante o
curso de Mestrado com o pianista e professor Maurícy Matos Martin. O segundo motivo
é a necessidade de se estabelecer um padrão de raciocínio para aquilo que nos
propomos a fazer.
42
Pianista e educadora, Teresa Dybvig é fundadora e diretora do The Well-Balanced Pianist, instituição
que oferece programas intensivos para pianistas. Entre 1995 e 2004, foi membro do corpo docente do
Taubman Institute of Piano e do Golandsky Institute.
58
– sendo o último o resultado dos dois primeiros. Para a pianista, não há equilíbrio e
movimentos saudáveis sem um bom alinhamento. É possível ver facilmente este
alinhamento deixando a mão cair naturalmente para o lado e observando o contorno
do antebraço desde o cotovelo até a ponta dos dedos, sendo necessária também a
sensação na mão e antebraço que torne os movimentos livres. Tocar no nosso melhor
alinhamento natural é o fundamento do funcionamento da técnica. Quanto ao
equilíbrio, Taubman compreendia que ter equilíbrio ao piano é tão natural quanto ficar
de pé no chão. Este equilíbrio independe de empurrar ou segurar-se no teclado: ela
aplicava a palavra contato para descrever este simples ponto de equilíbrio. Contato é
quando há fricção suficiente entre a mão e a tecla para que os dedos não deslizem, a
mão e o braço não precisem segurar-se ou estejam pesados a ponto de irem para
baixo. E por fim, o movimento seria o ato de movermos de um lugar a outro do teclado
enquanto mantemos o nosso alinhamento e equilíbrio. Estes movimentos
compreendem uma série de outros eventos que serão comentados logo mais.
Cada mão tem cinco dedos e eles todos têm comprimentos diferentes. Quando
estamos de pé, com os braços caídos livremente ao lado do nosso corpo, a relação
longo-curto dos dedos permanece constante. A posição da mão sobre o teclado implica
em dispor os dedos sobre as teclas da mesma maneira que eles se apresentam quando
permanecemos de pé, com os braços relaxados. Não se deve colocar todos os cinco
dedos em uma linha reta sobre o teclado para que eles pareçam iguais e toquem no
mesmo lugar. Quando precisamos tocar tecla preta, não devemos enrolar os dedos
longos para evitá-la, nem tentar alcançá-la com dedos isolados, muito menos tentar
entortar a mão para alcançar uma tecla preta quando precisamos tocá-la com o
polegar. Como solucionar? A seguir, apresentamos tópicos que chamaremos de
eventos técnicos43.
43
Utilizamos a expressão eventos técnicos para diferenciar elementos técnicos. Portanto, os eventos
representam as “ferramentas” das quais o pianista dispõem para a resolução dos elementos técnicos,
propriamente ditos. Estes eventos técnicos foram estabelecidos através das aulas com o professor
Mauricy Martin.
59
a) Dedo, mão e antebraço como uma unidade (Play unit)
Figura 3: Alinhamento do antebraço com o terceiro dedo. G. Sandor,(1981, p. 55).
b) Rotação (Rotation)
60
Na prática pianística, a rotação serve para colocar e tirar o dedo da tecla, isto é,
para tocar e liberar a tecla. As rotações podem ser simples e duplas: na simples, apesar
de o movimento não parar, deve-se parar sempre em linha reta, alinhado com o braço,
nunca parando com o dedo de lado. Em rotações duplas, deve-se lembrar de “terminar”
cada nota e, literalmente, parar completamente antes de fazer a preparação para o
próximo movimento. A preparação acontece imediatamente antes de tocar a próxima
nota; caso contrário, torna-se uma oscilação, e não uma rotação.
d) Contorno (Shaping)
61
e) Agrupamento (Grouping)
62
4 REPERTÓRIO DE LIED ORGANIZADO POR ELEMENTOS DA
TÉCNICA PIANÍSTICA
4.1 Polegar
63
a) Das Wandern [Die schöne Müllerin], Schubert
Exemplo 34: Das Wandern [Die schöne Müllerin], Schubert.
64
suas respectivas passagens de polegar. Para a passagem de polegar da m. e., no
compasso 6 do Exemplo 35, o mesmo raciocínio é aplicado, com uma observação: o
pulso mais alto ajuda os dedos a tocarem entre as teclas pretas.
Exemplo 35: Die Forelle, Schubert.
65
compasso 17, a m.d. entra gradativamente no teclado para alcançar o Mib, devendo
acontecer uma rotação simples para facilitar a passagem do polegar para o Fá, e assim
sucessivamente.
Exemplo 36: Das ist ein Flöten und Geigen [Dichterliebe], Schumann.
66
d) Denn es gehet dem Menschen [Vier ernste Gesänge], Brahms
Exemplo 37: Denn es gehet dem Menschen [Vier ernste Gesänge], Brahms.
67
4.2 Notas duplas
68
b) Pause [Die schöne Müllerin], Schubert
69
c) Botschaft, Brahms
70
e) Zum neuen Jahr, Wolf
71
“rebatimento” entre as notas de um trinado ou trêmolo é resultado de mútuas rotações
simples entre uma nota e outra desse trinado ou trêmolo. O que os diferencia é a
amplitude e a velocidade da rotação.
Neste exemplo 43, a parte da m.e. possui uma escrita que representa um trinado
mensurado, portanto, devendo-se aplicar a mesma regra de execução.
Exemplo 43: Im Dorfe [Winterreise], Schubert.
72
b) Die junge Nonne, Schubert
73
c) Und wüssten’s die Blumen [Dichterliebe], Schumann
Neste trecho, os trinados sempre são iniciados com notas duplas (com exceção
dos dois últimos compassos). Logo, as notas duplas devem ser executadas com
rotação em direção ao polegar e os trinados com rotação simples.
74
Exemplo 46: Der Knabe und das Immlein, Wolf.
e) Karwoche, Wolf
75
Exemplo 47: Karwoche, Wolf.
4.4 Acordes
76
Exemplo 48: Norman’s Gesang, Schubert.
77
Exemplo 49: Er, der Herrlichste von Allen [Frauenliebe und -leben], Schumann.
c) Heimweh, Wolf
Exemplo 50: Heimweh, Wolf.
78
4.5 Extensão (ou salto)
79
b) An meinem Herzen, an meiner Brust [Frauenliebe und -leben], Schumann
Exemplo 52: An meinem Herzen, an meinem Brust [Frauenliebe und -leben], Schumann.
80
c) Wenn ich mit Menschen und mit Engelszungen redete [Vier ernste
Gesänge], Brahms
Exemplo 53: Wenn ich mit Menschen und mit Engelszungen redete [Vier ernste Gesänge], Brahms.
81
d) Er ist’s, Wolf
82
lugares diferentes da tecla. Quando tocamos no mesmo lugar e permanecemos ali por
um tempo, utilizamos apenas uma determinada musculatura, ao passo que quando
tocamos em diferentes lugares da tecla, alternamos a musculatura que está sendo
trabalhada para não sobrecarregar apenas um grupo de músculos.
83
b) Auf dem Wasser zu singen, Schubert
84
Exemplo 57: Das ist ein Flöten und Geigen [Dichterliebe], Schumann.
4.7 Polifonia
85
das vozes da textura polifônica da parte do piano (não) coincide com a melodia da parte
da voz (como nos Exemplos 60 e 62); 3) ou ainda, o compositor realiza polifonia apenas
na parte do piano, como em prelúdios, interlúdios e poslúdios (Exemplo 59). O controle
dos elementos técnicos abordados até aqui permitem um maior controle dos planos
sonoros envolvidos na projeção de uma textura polifônica realizada no piano.
Exemplo 58: Du Ring an meinem Finger [Frauenliebe und -leben], Schumann
86
b) Die alten bösen Lieder [Dichterliebe], Schumann
Exemplo 59: Die alten bösen Lieder [Dichterliebe].
87
c) Auf einer altes Bild, Wolf
Exemplo 60: Auf einer altes Bild, Wolf.
Exemplo 61: Nimmersatte Liebe, Wolf.
88
e) Verbogenheit, Wolf
Exemplo 62: Verbogenheit, Wolf.
4.8 Resistência
89
a) Wohin? [Die schöne Müllerin], Schubert
Exemplo 63: Wohin? [Die schöne Müllerin], Schubert.
b) Erlkönig, Schubert
Exemplo 64: Erlkönig, Schubert.
90
c) Der Zwerg, Schubert
Exemplo 65: Der Zwerg, Schubert.
91
d) Der Feuerreiter , Wolf
Exemplo 66: Der Feuerreiter, Wolf.
92
Como pôde-se observar através dos exemplos anteriores, o repertório de Lied
abarca uma série de dificuldades técnicas com as quais o pianista também pode se
deparar. A natureza destes respectivos elementos da técnica pianística é específica,
mas a resolução deste problema é uma combinação de fatores. Baseados nos
princípios de Taubman, traçamos uma linha de raciocínio aplicável a cada um dos
casos. Porém, quando tratamos de repertório vocal especialmente, devemos levar em
consideração as versões transpostas das obras. Estas transposições existem para se
adequarem à voz do(a) cantor(a), o que naturalmente implica em uma adequação
pianística também. Com a tonalidade alterada, a posição das mãos muda e, para isso,
é essencial que o pianista siga os padrões de raciocínio apresentados anteriormente,
uma vez que o que varia é o posicionamento no teclado, mas a forma de resolver é a
mesma.
93
94
5 A COLABORAÇÃO COM O CANTO
95
Há quem acredite que bons colaboradores possuam habilidade inata, sugerindo
que seja uma atividade essencialmente intuitiva, o que é questionado por Moore (1943,
p. vii, tradução nossa), que afirma que a colaboração pianística seja uma habilidade
adquirida “porque o estudante pode ser direcionado num caminho que leve a tal
competência.”45 Para Katz (2009, p. 4), a colaboração é uma atividade que resulta de
uma orientação objetiva, em que os pianistas adquirem ferramentas para realizar uma
parceria completa com seu parceiro; uma vez que estas ferramentas são obtidas, 10%
do sucesso de um colaborador pode ser atribuído a um motivo misterioso ou a uma
habilidade mística de intuir o que o parceiro vai fazer.
45
Do original: “Accompanying is an acquired art. A student can be guided a long way on the road which
leads to proficiency.”
46
Do original: “[...] they are only a small part of the big picture of collaboration, and perhaps the least
imaginative of all our jobs.”
96
colaboração também documentou suas experiências através de livros, Martin Katz
também acumulou vasta experiência47, o que possibilitou abordar e registrar com
propriedade o assunto da colaboração. Porém, Katz não é redundante a Moore: seu
trabalho almejou uma sistematização de elementos ligados à própria natureza da
atividade.
Em cada capítulo do livro, Katz procura articular, como ele mesmo diz, “o que
tem aprendido com seus anos de experiência, não só no sentido de atuar no palco, no
estúdio de gravações ou no ensaio, mas também como professor desta forma
especializada de pensar e tocar – piano colaborador no seu mais amplo sentido.”
(KATZ, 2009, p. 3, tradução nossa)49 Em seu livro, encontramos uma linguagem
didática, discursando sobre os desafios exigidos para a colaboração e as possíveis
soluções para tal. A seguir, uma síntese de alguns aspectos que o autor aborda:
a) Respiração e canto
97
estudando sem precisar tomar fôlego para que seu instrumento funcione. Para Katz, a
prática de cantar é um grande benefício e afirma que qualquer músico – particularmente
esses que não necessitam do ar para fazer seu instrumento funcionar – se beneficia do
canto quase que necessariamente por causa da respiração. Ignorar a respiração pode
limitar um pianista solista de alguma forma, mas para um colaborador, é praticamente
desastroso. Portanto, o primeiro passo para uma colaboração bem-sucedida é a
respiração. Além disso, Katz comenta sobre a importância de o pianista ser capaz de,
simultaneamente, tocar sua própria parte e cantar a parte da voz. Desta forma, ele
poderá compreender e identificar as questões da respiração do parceiro, bem como
manipular os vários tipos de situações envolvendo a respiração numa obra vocal50.
50
Apesar de seu livro ser, de uma forma geral, direcionado para a colaboração na obra vocal, o autor
deixa claro constantemente que esta e outras técnicas que aborda durante os capítulos sejam aplicáveis
a outros instrumentos também, em especial, os de sopro (madeiras e metais). Pelo perfil deste trabalho,
quase sempre nos referiremos especificamente ao canto.
98
Exemplo 67: Du bist die Ruh, Schubert.
Esta situação existe quando o cantor respira mas não pode retomar a tempo e ao
mesmo tempo a parte do piano está unida ritmicamente à linha vocal. Naturalmente, a
fluência da música deixa de acontecer momentaneamente. O pianista é “refém” da
necessidade de respiração do cantor e por isso nada pode ser feito (Exemplo 68).
99
Exemplo 68: Die Rose, die Lilie [Dichterliebe], Schumann.
100
piano durante as respirações podem ruir tudo.”51 (KATZ, 2009, p. 20, tradução nossa)
Procedendo de acordo com esta categoria, o pianista permite a respiração do parceiro
e preserva o fluxo da música (Exemplo 69).
b) A importância da palavra
101
inicia(m) cada sílaba. Então, uma vez entendido que a vogal seria o “núcleo” da sílaba,
o alinhamento vertical do piano com a linha do canto deve, rigorosamente, coincidir com
a vogal, e nunca antes ou depois dela. Isto não quer dizer que devamos dispensar
atenção às consoantes – pelo contrário, devemos estar bastante atentos à articulação
delas porque, dependendo da situação, elas podem causar um atraso na pronúncia da
vogal e o pianista deve também atrasar seu ataque até a vogal. Este atraso acontece
quando há uma dificuldade de articulação (Tabela 1) ou por uma escolha artística
(Tabela 2), isto é, quando o cantor quer realçar a expressão de uma determinada
palavra.
A psicóloga
The strawberry
Ein Pfeil
T’amo tanto
Tabela 2: Palavras que podem apresentar pequena defasagem em uma interpretação musical.
102
Além deste aspecto da dicção, outro importante aspecto ligado à palavra é a
inflexão. Katz pontua (2009, p. 23, tradução nossa):
52
Do original: “One can buy pronunciation guides, rules for diction can be learned, and exceptions can be
memorized. When it comes to stringing words together into clauses and sentences, however, we
immediately face the issue of inflection, the second, and more difficult aspect of achieving ensemble with
texted music.”
53
Não se aplica ao repertório da Canção Francesa.
54
“Forma” no sentido de formato do movimento natural da fala.
103
Exemplo 70: Der Genesene an die Hoffnung, Wolf.
104
Exemplo 71: Whither must I Wander?, Williams.
105
• Observar a estrutura da sentença e fazer marcações na linha vocal,
adequadamente;
• Ter calma para apreciar a escolha das palavras do compositor – desta forma, a
prática do entendimento do texto é aperfeiçoada, possibilitando uma construção
constante de valiosas expectativas pessoais acerca do que a música pode ou
não cumprir.
Uma vez criada essa perspectiva a partir do texto, a música (neste caso, a parte
do piano) é incorporada e o pianista pode auxiliar no desenho da obra, “reparando” os
eventuais “erros” cometidos pelos compositores – isto é, minimizando inconsistências.
Observemos o seguinte texto de Heinrich Heine:
Im wunderschönen Monat Mai als alle Knospen sprangen da ist in meinem Herzen die
Liebe aufgegangen.
Im wunderschönen Monat Mai als alle Vögel sangen da hab’ ich ihr gestanden mein
Sehnen und Verlangen.
106
107
Exemplo 72: Im wunderschönen Monat Mai [Dichterliebe], Schumann.
108
terceira canção do ciclo Frauenliebe und -leben que diz: “Parece que ele me disse: ‘Sou
teu para sempre’. Parece que ainda sonho...”. Uma maneira de proceder ao piano neste
trecho para incitar a fala de uma terceira pessoa é tocar a nota Fá# (compasso 20) com
uma cor diferenciada da que foi tocada o acorde anterior; desta forma, o pianista
convida – ou mesmo obriga – o cantor a sugerir “duas vozes” distintas. Até o compasso
23, a “cor” deve ser mantida para garantir que depois o cantor retomará a “cor” e
comportamento originais.
Exemplo 73: Ich kann’s nicht fassen, nicht glauben [Frauenliebe und -leben], Schumann.
109
compassos o compositor puser, já que o sentido é de adição ou tudo o que lhe for
semelhante (como continuidade, extensão, prolongamento). No trecho abaixo, Chanson
triste de Henri Duparc, por exemplo, se o pianista não estiver pensando em “e” nos
momentos de pausa da parte da voz, ele provavelmente irá fracassar para alcançar a
próxima entrada da voz Et (“e”) e, com isso, pode ser audível uma pequena “costura” ou
“emenda” (Exemplo 74).
110
tocado a tempo e com a mesma cor do que vem sendo executado antes, o cantor será
induzido a cantar und (“e”), e não doch. Neste ponto, uma possível solução para a
execução seria realizar uma leve suspensão, como um “golpe de glote55 para o piano”.
55
“O golpe de glote é um ataque brusco do som vocal.” (NUNES, L., 1976, p. 52)
111
• Una corda: mudanças súbitas de “cores” ao piano são acessíveis através do
pedal esquerdo; porém, é preciso certificar-se de que o una corda não está
sendo usado excessivamente para controlar o equilíbrio, de outro modo, a
manipulação das “cores” ficará comprometida.
• Articulação: muitas escolhas podem ser feitas com relação à articulação, que
pode variar desde o tipo mais indefinido até o tipo mais preciso, mais claro. Em
um staccato, por exemplo, temos tipos seco ou mais longos; em um legato,
temos os tipos de ataque marcado de dedo ou uma leve falta de clareza.
112
113
Exemplo 76: Vergebliches Ständchen, Brahms.
114
Katz (2009, p. 60) sugere uma lista das escolhas pianísticas aplicável às duas
primeiras estrofes da canção (já que, na segunda metade da canção, Brahms muda
alguns aspectos da forma, textura e tempo):
ELE ELA
Crescendo Crescendo nas figuras ascendentes (sua Não crescendo nas figuras
paixão requer isso); ascendentes (afinal, ela é
uma “boa moça”);
Uma corda Nunca usar una corda (pode parecer Una corda pode ser
“afeminado”); usado;
Staccati Staccati são viris, pesados e encorpados. Staccati são curtos, tesos
e leggiero.
Tabela 3: Proposta de interpretação para a canção Vergebliches Ständchen, segundo Katz (2009, p. 60).
Ao contrário do que abordamos ainda há pouco, de o piano “dar vida” a tudo que
já está sendo concretamente expressado no texto (estruturas literárias, personagens),
abordaremos outro ponto de vista da colaboração que se relaciona totalmente com uma
imaginação fértil e articulada por parte do pianista. Trata-se da esfera da insinuação,
115
dedução, sugestão – ou seja, uma atividade que está no âmbito da subjetividade. Nas
palavras de Katz (Ibid., p. 61, tradução nossa), “a música certamente alimenta a
imaginação, mas o texto realmente supera-a. Para mim, o texto da canção é um par de
óculos por onde eu leio a música.”56 A importância dessa questão é percebida quando
nota-se que a mesma notação de staccato, por exemplo, serve tanto para referir-se a
uma serenata (Ständchen, Brahms) ou a placas de vidro (O wär dein Haus, Wolf).
• Introduções (prelúdios);
• Interlúdios;
• Poslúdios;
• Canções estróficas.
116
- a música reflete ou desencadeia os sentimentos do cantor;
117
Chama-se de interlúdios as partes de piano solo que ligam duas seções de uma
canção; diferente dos prelúdios, os interlúdios são um pouco mais específicos por
envolverem dois dados: o pianista sabe onde começar e onde estará quando o cantor
retomar sua linha. Ao final de um interlúdio, normalmente, as palavras e os sentimentos
são ligeiramente diferentes da seção anterior – e a localização “geográfica” na obra, a
que nos referimos ainda há pouco, permite a condução da psique do cantor ao novo
lugar, à nova ideia. “[...] o pianista calcula o tempo e as dinâmicas necessárias para o
início da outra seção. Se o pianista esboça isso corretamente, o som da voz torna-se
uma surpresa mágica somada ao interlúdio” (KATZ, 2009, p. 78, tradução nossa)57.
118
Muito interessante a relação que o autor faz entre o pianista colaborador e o
diretor de cena. Nestas situações que estão sendo descritas, o papel do pianista é
imprescindível para expressar o que não está sendo feito textualmente naquele
momento. Além de preparar o que será dito (prelúdio) e de unir o que está sendo dito
(interlúdio), o piano pode ser também responsável pelo “desfecho” do que acabou de
ser dito. Assim, como em uma cena de ópera, onde a cortina que fecha o último ato é
tão importante quanto qualquer outro elemento da produção, os poslúdios são assim
para as canções.
58
Do original: “This is a time to contemplate, a time to savor and cherish, or perhaps to rejoice, to repent,
or even to learn new information the poem has left unexpressed.”
119
Exemplo 79: Die alten bösen Lieder [Dichterliebe], Schumann.
120
Outra situação em que o pianista tem bastante responsabilidade e “dirige” a cena
é na canção estrófica. Independente de quantas repetições exista, esta é uma questão
que permite uma criatividade pessoal ao piano. Os sinais de repetição são meramente
notações gráficas; “como se lê é irrelevante – como se toca é o ponto, aqui” (KATZ,
2009, p. 89, tradução nossa)59.
Podemos nos deparar com alguns tipos de formas estróficas e com várias
situações que podem definir o grau de dificuldade desta responsabilidade ao piano nas
canções estróficas. Quando as canções estróficas são histórias, o pianista pode
estabelecer um plano de contrastes mais facilmente porque há uma sequência
cronológica, viabilizando mais clara e naturalmente os acontecimentos expressos no
texto; entretanto, a maioria das canções estróficas não dispõe de um drama que, de
uma forma automática, nos permite planejar um enredo temporal.
Das Wandern (Exemplo 80), a primeira canção do ciclo Die schöne Müllerin, de
Schubert, possui cinco estrofes a que cada uma delas se refere a um elemento central.
Para ilustrar este exemplo, aplicaremos os comentários que Gerald Moore (1960)60 tece
59
Do original: “How it reads is immaterial; how we perform it is the point here.”
60
Comentários de Gerald Moore gravados em LP. “Gerald Moore – The Unashamed Accompanist”
(Angel Records, 1960)
121
sobre Das Wandern. Moore atenta para um detalhe que abordamos ainda há pouco: o
texto. O cantor tem o texto e através deste texto ele conta uma estória, mudando as
“cores”, fraseando de acordo com o enredo, manipulando as dinâmicas e ritmos – e o
pianista precisa fazer o mesmo, de acordo com o canto, de acordo com as palavras.
Em benefício de um engajamento textual, o pianista deve-se valer de elementos como
as mudanças de articulação, agógica e dinâmica para ajudar a sugerir o que o cantor
está cantando, em vez de tocar as notas da mesma a todo o tempo. Observemos
abaixo o elemento central de cada estrofe:
122
Exemplo 80: Das Wandern [Die schöne Müllerin], Schubert.
123
Colaboração pianística é incorporar elementos musicais e extra-musicais ao ato
de tocar piano em parceria com outros artistas. Colaborar é um pianismo informado por
questões poético-musicais (relações entre texto e música), linguísticas (fonética) e
físicas (respiração, acústica). Nesse sentido, desenvolver a técnica pianística a partir de
estímulos meramente musicais pode estar longe do universo da colaboração.
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
125
alheio ao universo essencialmente solo – todos fundamentados em princípios de Martin
Katz, no Capítulo 5.
Através deste trabalho, o pianista pode acessar dois aspectos fundamentais para
a atuação no repertório vocal, especialmente através dos dois últimos capítulos: pela
abordagem técnica funcional, fundamental para qualquer instrumentista; e também pela
abordagem específica da colaboração, que adiciona e complementa a atuação do
pianista colaborador no repertório vocal – elemento diferenciador entre os segmentos
solo e colaborativo.
A relação entre esses dois segmentos pode ser muito mais irrestrita e deve ser
vista como um mutualismo, da mesma forma que trabalhar esse repertório não deveria
significar um afastamento dos problemas centrais da técnica pianística. Muito pelo
contrário, através do que foi demonstrado pelo trabalho, pode integrar um trabalho de
técnica pianística a uma condição mais ampla do ponto de vista mercadológico e um
repertório mais abrangente para o estudante de piano.
Por fim, esperamos que esta pesquisa contribua para a propagação de novas
tendências de abordagem acerca da profissão do colaborador, dar subsídios ao
intérprete através dos princípios pianísticos técnico-artísticos expostos no escopo deste
trabalho, contribuir para o surgimento de uma formação acadêmica para pianistas
colaboradores no Brasil – reconhecer a colaboração, afinal, como uma importante
possibilidade técnica, artística e profissional.
126
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128