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Ondjaki
Joana Palha
Nota Prévia
Fiquei na varanda. No jardim havia umas lesmas que deviam ser mais
velhas porque sempre acordavam cedo. Eram muitas. Depois do
matabicho, ficar assim na varanda com aquele fresquinho, ver as lesmas
irem não sei aonde, aquilo dava-me sono outra vez. Adormeci mesmo.
(Ondjaki, 2002:22)
A imagem da noite é muito curiosa, pois sendo um motivo romântico ganha ainda
mais ênfase na descrição feita pelo protagonista, “noite tem cheiro, sim” (Ondjaki,
2002:97), denotando mais um traço para desenhar o seu retrato psicológico, a sua
sensibilidade, o que também se alia a um dos princípios do protótipo do Bildungsroman.
A influência das mulheres mais velhas nos protagonistas do romance de
aprendizagem também é uma questão muito recorrente e temos aqui esse motivo ilustrado
pela figura da tia de Ndalu, Dada, que vive em Portugal e vai passar uns dias a Luanda,
ficando integrada durante esse tempo no ambiente familiar da casa. O protagonista tem
uma afeição especial pela tia, embora só a vá conhecer pessoalmente na idade em que
agora se encontra, pois mantém com ela uma relação madura a nível de todas as conversas
que aparecem ao longo do romance, sendo realçadas as conversas telefónicas, pois Ndalu
refere a voz da tia como “doce”. O sexo feminino, representado nas figuras da mãe e da
tia Dada, contribui, em grande escala, para muitos aspetos importantes no processo de
descoberta e amadurecimento dos protagonistas retratados no género literário que é o
Bildungsroman.
Ela foi uma das poucas pessoas mais velhas que eu encontrei que não
falou comigo como se eu fosse uma criança pateta, cumprimentou-me
com dois beijinhos quando eu até estava habituado a dar um beijinho
na cara dos mais velhos, e disse-me só assim: está muito calor, não
achas? (Ondjaki, 2002:39)
Ndalu clarifica, de uma forma simples, a descrição que enceta sobre a sua família,
mostrando de uma forma muito sucinta, mas original e completa, as relações e as rotinas
do seu quotidiano familiar. O lar aparece como um lugar onde o protagonista se sente
bem e feliz, não tendo relutância em referir nenhum aspeto, passando um retrato tranquilo
para o leitor.
Ndalu e a escola
Ela começou a ler, eu fui arrumando outras coisas. Era muito giro mexer
nesses cadernos do antigamente, uma pessoa encontrava redações
engraçadas que fazíamos na segunda e na terceira classe, os desenhos
bem malaicos da pré-cabunga, as contas armadas de dividir, tudo coisas
que agora pareciam muito antigas. (Ondjaki, 2002:99)
Dali fomos para a parte de trás das salas, ali onde cheirava bué a chichi.
Tirámos os cadernos e os livros das mochilas, eu tinha trazido todos os
meus cadernos de apontamentos menos o de Língua Portuguesa que
tinha lá redações que eu gostava. O Cláudio tirou os livros, o Helder, o
Bruno também, pusemos tudo junto e acendemos o fogo. (Ondjaki,
2002:130)
Os colegas e os professores cubanos com quem o protagonista mantém uma boa
relação de amizade são uma marca muito presente no retrato escolar apresentado por
Ndalu, pois são as pessoas com quem mais convive, além da sua família; estas figuras são
com quem compartilha as experiências mais importantes do seu crescimento, passando
estas por serem meras brincadeiras, relações mais afetivas ou perceções de uma realidade
social obscura.
O tema do retrato literário, neste caso abordado numa perspetiva social, interliga-
se com algumas das principais características do Bildungsroman, tendo um dinamismo
literário que permite uma descrição bem estruturada, dotada de grande simplicidade.
Ndalu, com as suas memórias, no romance Bom dia Camaradas, de Ondjaki, traça
um retrato, que além de seu, é muito próprio e íntimo de Angola, nomeadamente da cidade
de Luanda, espaço central da sua existência que serviu como base para a descoberta da
sua identidade, através da interação com o que o rodeava e com a sua natureza.
Referências
Leseur, G. (1995). Ten is the Age of Darkness. The Black Bildungsroman. University of
Missouri. Press Columbia and London.
Ondjaki (2002). Bom Dia Camaradas. Editorial Caminho Outras Margens. Lisboa.