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São João Crisóstomo

349 - 407 DC

CONTRA OS IMPUGNADORES
DA VIDA MONÁSTICA
DISCURSO PRIMEIRO

NINGUÉM VENCE
NA GUERRA CONTRA DEUS

1. Quando os filhos dos hebreus, na volta de sua longa escravidão,


quiseram reconstruir o templo de Jerusalém que por muitos anos
estivera destruído, houve então homens bárbaros e desalmados que, sem
respeito ao Deus em cuja honra se levantava aquele templo; sem pena
daqueles homens pela calamidade ao cabo da qual e a duras penas se
refaziam; sem medo, enfim, do castigo que se segue da parte de Deus aos
que cometem tais desaforos, tentaram, primeiro por si mesmos, impedir-
lhes a obra de reconstrução. Mas, como nada conseguiam, escreveram
cartas a seu rei, nas quais chamavam Jerusalém de cidade rebelde e
amiga de revoluções e de guerra, e assim o convenceram que lhes
permitisse impedir a reconstrução. Com esta autorização do rei, e
atacando aos judeus com forte esquadrão de cavalaria, conseguiram
prontamente interromper a obra, e ficaram muito orgulhosos de uma
vitória pela qual mais deveriam ter chorado. Sua insídia - pensavam eles
- havia tido um final feliz. A verdade, não obstante, é que aquilo foi só o
prelúdio e o começo das calamidades que prontamente iriam cair sobre
eles. A obra, com efeito, foi levada a cabo e teve brilhante coroamento e
eles tiveram que aprender que nem Mitrídates então, nem outro jamais
que declare guerra aos que empreendem uma boa obra, fazem a guerra
aos homens, mas antes que a estes, ao próprio Deus a quem eles querem
honrar. Pois bem, o que faz guerra a Deus, não é possível que jamais
venha a ter bom paradeiro. Bem poderá acontecer que nada sofra (se é
que já não o sofre) no começo de seu atrevimento, como se Deus o
estivesse chamando a penitência e lhe desse tempo para que despertasse,
por assim dizer, de sua bebedeira. Mas se se obstina em sua loucura, sem
tirar proveito algum de tamanha paciência divina, pelo menos fará aos
demais um bem grandíssimo, pois lhes ensinará, com seu castigo, a não
entrar jamais em luta com Deus, sabendo que não é possível escapar
daquela mão invencível.

Acontece que imediatamente caíram sobre eles tais calamidades, que,


ante a grandeza daquela tragédia, empalidece qualquer outra desgraça.
Efetivamente, as mãos daqueles judeus a quem antes se lhes impedira o
trabalho, executaram neles tão espantosa carnificina, que a terra se
empapou profundamente do sangue dos mortos e deste sangue se formou
espesso barro. E misturados entre si juntamente os cadáveres de homens
e cavalos, deles e de suas feridas se desenvolveu uma tal multidão de
vermes, que os cadáveres ocultavam a terra e os vermes os cadáveres. Ao
contemplar aquela planície, diríamos não que nela estavam estendidos os
mortos, mas que eram fontes incontáveis das quais brotavam por todas
as partes aquele gênero de animais. Tal era a abundância de vermes que,
com ímpeto maior que de uma torrente, vertia daquela podridão. E isto
não durou dez ou vinte dias, mas se prolongou por muito tempo.

Tal foi o castigo na presente vida; mas o que os espera na vida por vir é
infinitamente mais grave. Porque os tormentos e dores inexplicáveis que
haverão de sofrer seus corpos retornados a vida não durarão mil anos
nem dez mil somente, nem duas ou três vezes mais, senão pelos séculos
infinitos. De ambos os gêneros de tormentos sabe o bem-aventurado
Isaías; de ambos também Ezequiel, o vidente de maravilhosas visões; e
repartindo-se os dois profetas o castigo destes homens, um nos explicou o
castigo na presente vida e outro o que os aguarda na eternidade

OS PERSEGUIDORES DOS MONGES


SOBREPUJAM A MALDADE DE
MITRÍDATES E SUA GENTE
2. Pois bem, não sem motivo faço eu agora menção destas pessoas; pois o
caso é que vieram me trazer uma noticia amarga e grave e cheia de
ofensa contra Deus. Dizem-me que também agora há homens que
cometem os mesmos desaforos daqueles bárbaros e até os sobrepujam em
muito na iniquidade, pois expulsam de todas as partes os que induzem a
outros a seguir a filosofia que nós professamos e os intimam com muitas
ameaças a não falar palavra sobre o assunto nem ensinar coisa
semelhante aos homens sobre a terra.

Ao ouvir eu tudo isto, lancei um grito e perguntei com muito afinco a


quem me falava, se estava brincando ou se estava falando sério. Mas ele:

- Longe de mim - disse - Não queira Deus que eu brinque jamais com
estas coisas, nem que diga nem finja em minha imaginação o que, mesmo
agora que aconteceram, eu teria pago alto preço e mil vezes teria querido
não me haver inteirado delas.

Suspirando eu então mais amargamente:

- Na verdade - disse-lhe - este crime é tão mais sacrílego que o de


Mitrídates e sua gente, quanto o templo das almas é mais augusto e santo
que o de pedras. Mas quem são, dize-me, e de onde procedem os que tais
desaforos cometem? Que causa ou motivo têm, a que alvo miram os que
assim lançam pedras ao alto e disparam contra o céu suas setas e
declaram guerra contra o Deus da paz? Porque um Sameas e aqueles
Fariseus e aquelas outras pessoas, eram bárbaros, como se pode ver pelos
seus próprios nomes, e inteiramente alheios à maneira de viver judaica, e
não queriam ver engrandecer-se homens vizinhos seus, pois naturalmente
pensavam que a potência destes havia de deixar no porvir uma sombra
sobre seu próprio poder. Mas aos perseguidores atuais, que liberdade
lhes foi diminuída , que segurança lhes foi tirada, que colaboração
encontram da parte dos que mandam, para lançarem-se a tais atropelos?
Porque afinal aqueles tinham a seu favor os reis da Pérsia que
pretendiam o mesmo que eles; nossos imperadores, porém, penso eu,
desejam e fazem votos exatamente pelo contrário. Daí que me encontrei
tomado da maior perplexidade, de ver como, sob imperadores que vivem
piedosamente, se possam cometer no meio das cidades, atropelos como os
que tu me contas.

- Pois ainda não sabes - me disse o outro - o mais admirável, e é que os


que fazem tais coisas querem se passar por piedosos e chamam-se a si
mesmos de cristãos, e muitos deles se contam entre os já iniciados pelo
batismo. E já houve algum deles, em quem o diabo soprou com força
extraordinária, que se atreveu a dizer com aquela língua abominável que
estava disposto a apostatar da fé e sacrificar aos demônios, pois o
sufocava que homens livres e de nobre nascimento, que poderiam viver
entre delícias, fossem conduzidos a este duro gênero de vida.

DOR POR TÃO GRANDES MALES


Ao ouvir isto, senti um golpe mais doloroso ainda e, calculando
os males que daí haveriam de se seguir, rompi em pranto pela
terra inteira e dizia a Deus:

"Tira a minha alma do meu corpo e liberta-me


destas misérias e desta vida de morte, e leva-me
àquele lugar onde nem outro dirá coisa semelhante
nem eu terei que ouvi-la. Sei muito bem que apenas
saia deste mundo, me esperam as trevas exteriores,
onde há muito pranto e ranger de dentes; porém
mais doce há de ser para mim ouvir o ranger de
dentes se não ouvir os que dizem tais blasfêmias".

Vendo-me meu amigo a chorar tão veementemente:

- Não é este, momento de prantos, - me disse - pois não irás


recuperar com as tuas lágrimas os que já se perderam e os que
ainda estão se perdendo, já que não creio que o mal haverá de
parar por aqui. O que se deve ver é como apagar este incêndio e
conjura esta pestilência, pelo menos o quanto nós conseguirmos.
E se queres seguir o meu conselho, eu te diria que, abandonando
todas estas lamentações, componhas um discurso de exortação
dirigido aos que se acham nesta enfermidade e revolta, para a
saúde deles primeiramente e de universal proveito também para
todos os homens. E eu tomarei este teu livro como se fosse um
remédio e o colocarei nas mãos destes enfermos, pois há entre eles
muitos amigos meus que não levarão a mal que eu chegue até eles
uma, duas ou muitas vezes e sei que muito rapidamente se verão
livres desta pestilência.

- Bem se vê - repliquei eu - que tu medes pela minha caridade o


meu talento; mas a verdade é que eu careço de eloqüência e a que
parece que tenho me envergonho de empregá-la em assuntos
como o presente, e de nada me envergonho tanto como de todos
os gentios, os presentes e os que ainda virão. Eu que
constantemente os recrimino, não menos por suas doutrinas do
que pela licenciosidade de seus costumes, agora me vejo forçado a
revelar-lhes nossas misérias. E na verdade, se os gentios se derem
conta de que há entre os cristãos homens que têm tal guerra
declarada à virtude e à filosofia, que não só andam eles muito
distantes dos trabalhos que sua prática demanda, mas que não
suportam nem que se fale dela, e que sua loucura não para aí,
mas que expulsam de todas as partes a quem a aconselha e abra a
sua boca sobre ela; se disto, repito, se derem conta, temo não nos
considerem nem como homens, mas como feras e monstros com
forma humana, como demônios exterminadores e inimigos da
natureza comum. E o mal é que assim sentenciarão não só sobre
os verdadeiros culpados, mas sobre todo o povo cristão.

E rindo-se o outro:

- De brincadeira - me disse - estais falando agora, pois a teu


raciocínio vou opor um outro mais oportuno, se é que tudo se
resume em teu medo que se inteirem por tuas palavras do que
todo o mundo já sabe faz tempo pelas obras. O fato é que, como
se um espírito perverso tivesse tomado todas as almas, não há
boca que não transborde de comentários sobre este assunto. E o
mesmo se fores à praça pública ou às salas de consultas dos
médicos ou a outra parte da cidade onde se costuma formar os
mexericos de pessoas desocupadas, verás como com muito gosto
se ri todo mundo. E não há outro tema ou motivo para todo
aquele riso ou comédia, senão o contar e mais contar das
transgressões cometidas contra aqueles homens santos. E é assim
que à maneira de guerreiros que lutaram em mil batalhas e
levantaram gloriosos troféus e se gabam ao lembrar de suas
façanhas, assim se pavoneia esta gente de seus feitos. Ali tu
ouvirás um que diz:

"Eu fui o primeiro que levantei a mão a tal monge e


lhe dei uma surra".

E outro:
"Eu antes de todos encontrei o seu abrigo".
"Mas eu",

replica um terceiro

"fui quem mais incitou o juiz contra ele."

E outro terá como façanha digna do mais alto elogio tê-los levado
ao cárcere, aos maus tratos da prisão e haver antes arrastado pela
praça pública aqueles santos varões. E assim outro e outra coisa.
Logo rompem todos em uma gargalhada. Isto nos conluios dos
cristãos. Quanto aos gentios, riem-se dos zombadores e dos
zombados: De uns pelo que fizeram; de outros, pelo que
sofreram. E tudo anda cheio de uma espécie de guerra civil, ou
melhor, de algo mais grave que uma guerra civil. Os que fizeram
uma guerra civil, quando mais tarde se recordam dela, maldizem
mil vezes aos que a promoveram e atribuem a algum gênio
maléfico quanto nela tenha acontecido, e são justamente os que
mais se envergonham quem nela mais se distinguiram; estes, ao
contrário, gabam-se de suas transgressões. E não só porque esta
guerra é mais sacrílega que a outra e porque se faz contra
homens santos que a ninguém ofenderam, mas porque se
persegue homens que não sabem fazer dano a ninguém, e só estão
dispostos a sofrer eles próprios.

3. - Alto! - disse-lhe eu -, alto! Não sigas com teus relatos, se não queres
que irremediavelmente exale meu ultimo alento. Deixa-me que volte à
minha casa com pelo menos um pouco de força. O que tu me ordenaste se
cumprirá completamente; só te rogo que não me contes mais nada, mas
anda e roga que se dissipe esta nuvem de tristeza e que o próprio Deus a
quem fazem guerra me dê alguma ajuda para remédio dos mesmos que o
combatem. E certamente me dará, sem dúvida alguma, sendo benigno e
amoroso, pois

"não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva"


Ez. 18, 23

JOÃO VAI ESCREVER SUA OBRA PARA O


BEM DOS PERSEGUIDORES, NÃO DOS
PERSEGUIDOS
Despedindo-se deste modo meu amigo, eu me entreguei a estes
raciocínios. E, na verdade, se o mal consistisse só em que aqueles santos
de Deus e varões admiráveis são arrastados e despedaçados quando os
conduzem aos tribunais, em que os espancam e fazem sofrer tudo o que
acabamos de contar, e nenhum dano resultasse incidentalmente contra a
cabeça de quem tais transgressões cometem; eu estaria tão distante de
doer-me por estes acontecimentos, que bem me riria com gosto e por
longo tempo deles. Quando as crianças pequenas, sem correr nenhum
risco, batem em suas mães, não fazem senão excitar-lhes o riso com seus
golpes e quando com maior zanga lhes batem, tanto mais aumenta o
gosto das mães, que caem e se arrebentam de rir. Mas se a criança
persistindo em seus golpes e zanga vem a ferir-se na mão, ora na agulha
com que a mãe prende o cinto da túnica, ora em algum raio da estrela
que enfeita o peito materno, então sim, então a mãe corta imediatamente
o riso e sente mais viva dor do que o próprio filho ferido. E, prontamente
lhe cura a ferida; mas logo o proíbe com forte ameaça para que não volte
a fazer aquilo, para que não lhe venha a suceder o mesmo. O mesmo,
pois, haveríamos de fazer nós, se víssemos que esta raiva de crianças e
estes golpes de pequeninos não acarretariam a eles uma grande perdição;
mas já que agora, arrebatados de furor, não se dão conta de nada, terão
que chorar e gemer e lamentar-se e não com pranto de crianças
pequenas, mas com o das trevas exteriores e o do fogo inextinguível;
vamos também nós fazer o mesmo que as mães, e só nos diferenciaremos
destas porque não falaremos com estas crianças através de ameaças e
injúrias, mas com muita mansidão e suavidade.
NÃO SÃO OS PERSEGUIDOS OS FERIDOS,
MAS OS PERSEGUIDORES
Se para vos demonstrar que nenhum dano acontece aos santos
por estes maus tratos, antes recompensa maior e mais confiança
diante de Deus, vos alegasse os bens vindouros, talvez rompesseis
em gargalhadas, pois este é o modo de rir de que gostais sempre;
porém, por muito amigos que sejais do riso, não podereis negar fé
ao presente. E não poderíeis, ainda que o quisesseis, pois as
próprias coisas vos desmentiriam. Sem qualquer dúvida, tereis
ouvido falar de Nero. Sim, que foi um homem famoso por sua
libertinagem, o primeiro e o único que, chegado a tão alto poder,
soube achar novos modos de torpeza e impudor. Pois Nero, que
foi contemporâneo do bem-aventurado Paulo, acusava a este dos
mesmos crimes, parecidos com estes de que são acusados estes
santos varões agora. E foi assim que Paulo, havendo persuadido a
uma concubina de Nero a quem este muito amava, a que
abraçasse a fé, persuadiu-a juntamente a deixar aquele
relacionamento impuro. Acusando, pois, Nero a Paulo deste
crime, dava-lhe os nomes de corruptor e charlatão, os mesmos
que vós aplicais aos monges, e começou por mete-lo na prisão;
logo, como não lograva convence-lo para que deixasse de
aconselhar a garota, terminou matando-o. Pois bem, que dano
resultou disso para quem sofreu o mal, e que proveito para quem
o fez? Não é verdade que o proveito foi para Paulo, morto, e o
dano para Nero que o mandou matar? Não é certo que Paulo é
celebrado como um anjo por toda a face da terra (e por enquanto
só falo do presente) e todo o mundo abomina Nero como
verdadeira peste e demônio feroz?
4. Quanto aos bens da outra vida, embora não tenhais fé neles, é mister
dize-los pela graça de quem a tem. Na verdade, julgando pelo presente,
deveríeis crer no que virá. Mas, em fim, seja qual for vossa atitude a
respeito dos bens da outra vida, eu vou dize-los e não farei mistério deles.
Qual será, pois, a sorte de um e de outro na eternidade? O miserável e
desventurado Nero, esquálido e cabisbaixo, coberto de confusão e
obscuridade, com os olhos na terra, será conduzido onde está o verme
que não morre e o fogo que não se apaga. O bem-aventurado Paulo, ao
contrário, estará com grande confiança junto ao trono do rei, entre
brilhantes resplendores e revestido de tanta glória que em nada ficará
atrás de anjos e arcanjos; e receberá tamanha glória, qual corresponde a
quem entregou a sua própria vida para cumprir o beneplácito divino.
Porque esta é a verdade: Grande recompensa espera certamente aos
quem fazem o bem; porém maior e mais copiosa será a daqueles que o
fizeram tendo que passar por entre os perigos e opróbrios. E ainda que a
boa obra seja a mesma daquele que a cumpriu sem trabalho daquele que
teve que passar por trabalhos para cumpri-la, a honra e a coroa não
serão as mesmas. Nas guerras não há dúvida que é coroado aquele que
levantou o troféu de vitória; porém recebe uma coroa mais brilhante
quem, sobre o troféu, pode mostrar as feridas com que foi levantado. E
que digo dos que vivem? Os que não têm outro mérito que ostentar senão
o haver morrido valorosamente na guerra, sem haver feito jamais outro
bem aos seus, são celebrados por toda a Grécia como seus salvadores e
protetores. O que talvez ignorais, entregues como estais continuamente a
vossos risos e deleites. Pois se homens gentis e que não têm em absoluto
um pensamento são, chegaram a compreender isto e com tão alta honra
honram os que só morreram por eles, sem que outra coisa fizessem;
quanto mais não fará assim Cristo que pela largueza de seus dons
sobrepuja sempre aos que por seu amor se expõem ao perigo? Porque Ele
determinou magnífica recompensa não só por serem perseguidos, feridos,
encarcerados e mortos violentamente, mas por uma simples injúria e por
palavras de opróbrio:

"Bem-aventurados"

disse,

"quando os homens vos aborreçam e vos separem e


vituperem e pronunciem vosso nome como coisa má, por
causa do Filho do homem. Alegrai-vos neste dia e saltai de
júbilo, porque eis que vossa recompensa é grande nos
céus".
Lc 6,22-23

Pois bem, se o sofrer um dano e o ouvir uma injúria aumenta a


recompensa dos que sofrem o dano e ouvem a injúria, segue-se que quem
impede que o dano se faça ou que se diga a injúria não favorece tanto aos
que sofrem o dano e a injúria, quanto aos que dizem a injúria e fazem
dano. Àqueles antes prejudicam, pois os privam da maior parte de sua
recompensa e tira-lhes o motivo de sua alegria e de seu júbilo. De
maneira que, olhando só para os monges, seria melhor calar e deixar que
sucedesse tudo isso que lhes proporciona maior confiança diante de Deus.
Mas posto que somos membros uns dos outros, ainda que de sua parte
não venham a nos agradecer, não é bom que os que assim sentimos,
providenciemos o beneficio de uma parte e nos descuidemos da outra.
Aos monges não faltarão outros motivos de merecimento, ainda que
agora não sejam maltratados; estes, ao contrário, se não se apartarem
desta guerra, não é possível que se salvem.
OUÇAM DESDE JÁ OS EXTRAVIADOS A
SUA EXORTAÇÃO, ANTES QUE SEJA
TARDE
Por isso, deixando de lado o interesse dos monges, quero olhar só o
vosso, e vos rogo e suplico que atendais a minhas exortações. Não craveis
a espada em vós mesmos, não deis murros em ponta de faca, não penseis
que molestais aos homens, quando estais contristando o Espirito Santo.
Eu sei muito bem, estou persuadido que, se não agora, um dia louvareis
esta minha intenção; mas quero que o façais agora, a fim de que logo não
o façais em vão. Aquele rico do evangelho, enquanto estava neste mundo,
tinha por fábula e bobagens a lei e os profetas e quantas exortações
recebia de um e de outros; mas quando lá chegou, de tal maneira
admirou suas exortações, que, uma vez que viu que para ele em nada
aproveitaria elogiar os profetas, rogou ao patriarca Abraão que enviasse
à terra algum dos moradores do inferno para dar a notícia, temeroso que
lhes acontecesse o mesmo que a ele e, depois de zombar em vida das
Escrituras, viessem a admira-las quando para nada mais haveria de valer
sua admiração. Na verdade nada fez aquele rico que possa se comparar
com o que fazeis vós. É verdade que não repartiu seus bens com Lázaro,
porém também não impediu ou afastou aos que quiseram dar-lhe, como
fazeis agora. E não só por este aspecto deixais na sombra a crueldade
daquele rico, senão por outro mais. Porque, assim como não é o mesmo
deixar de fazer um bem como impedir alguém que queira faze-lo;
tampouco é igual privar alguém do alimento corporal como impedir que
seja alimentado por outros aquele que se acha consumido pela fome da
filosofia. De maneira que por dois motivos haveis ultrapassado aquele
rico cruel: por não haver deixado a outros saciar sua fome e por haver
mostrado esta desumanidade quando se trata de uma alma que está se
afogando.

Os judeus cometeram um dia este pecado, pois trataram de impedir aos


apóstolos de pregar aos homens a doutrina da salvação. Se bem que sois
ainda piores que os judeus. Estes afinal fizeram tudo aquilo que se sabe
porque eram inimigos declarados; mas vós, pondo máscaras de amigos,
vos mostrais inimigos mortais. É verdade que açoitaram e injuriaram os
santos apóstolos a os cobriram de má fama, chamando-os de feiticeiros e
de charlatões; mas foi tal o castigo que os alcançou, que não houve
calamidade a partir de então que se possa comparar com a sua. Eles
foram os primeiros e os únicos dentre os homens sob o sol a sofrer coisas
como nenhum outro sofreu. E disto é testemunha fidedigna o próprio
Cristo que disse:

"Será grande a tribulação, qual não foi desde o princípio


do mundo até agora, nem o será".
Mt 24, 21

Não é este o momento de contar em detalhes tudo o que sofreu aquele


povo; mas é mister referir alguma coisa entre tantas. E não quero dizer
nada por minha conta, mas dar a palavra a um historiador judeu, que
narrou corretamente aqueles acontecimentos.
FOME E MISÉRIA DURANTE O SÍTIO DE
JERUSALÉM, SEGUNDO FLAVIO JOSEFO.
Que disse, pois, o historiador judeu? Depois de contar sobre o
incêndio do templo e todas aquelas calamidades nunca ouvidas,
prossegue:
5. "Tal foi a sorte do templo. Quanto aos que morriam de fome pela
cidade, a multidão dos que caíam era infinita e não é possível narrar os
sofrimentos que teve lugar. E é assim que em qualquer casa em que se
vislumbrasse uma sombra de comida, dava-se uma verdadeira batalha,
até os amigos mais íntimos cerravam os punhos, arrebatando os míseros
viáticos de vida. Nem os mortos se acreditava que estivessem desprovidos
de comida, mas os bandidos revistavam os que tinham acabado de
expirar, para verificar se algum estivesse se fingindo de morto e
escondendo comida sob o peito. Outros, com a boca aberta pela
necessidade, como cães raivosos, iam dando solavancos e perdiam a
razão, tropeçando nas portas como bêbados e, desatinados, assaltavam as
mesmas casas duas ou três vezes em uma hora. A necessidade forçava a
levar qualquer coisa à boca e o que não se dá aos mais sujos animais, se
recolhia e se comia sem escrúpulos. No final não foram perdoados nem
cintos nem sapatos e se esfolava o couro dos escudos para se mascar.
Também se fez alimento dos fiapos de feno velho, pois alguns recolhendo
as palhas, vendiam a menor quantidade por quatro peças áticas. Mas
para que me deter sobre o impudor da fome que penetra o inanimado?
Vou agora contar uma façanha sua, como não se encontra nem nas
histórias dos gregos nem dos bárbaros, feito horripilante de contar e
incrível de se ouvir. De minha parte, teria passado por alto este espantoso
caso, para não dar a impressão aos homens que hão de vir de que busco o
monstruoso, por não ter testemunhos incontáveis do feito entre os de
minha geração. Além do mais, pareceria indiferente a minha pátria se eu
dissimulasse em minhas palavras o que ela sofreu nestes feitos. Houve,
pois, uma mulher, procedente da Transjordânia, chamada Maria, filha
de Eliazar e natural da aldeia de Betezo, palavra esta que significa "casa
do hissopo". Ilustre por sua linhagem e riqueza, refugiou-se com a
multidão em Jerusalém e ali sofria o cerco comum da guerra. Os tiranos
a haviam despojado de toda a riqueza que havia conseguido reunir e
transportar de Perea a Jerusalém; quanto às relíquias de outros bens, dia
a dia os guardas as iam saqueando, apenas farejavam alguma comida.
Terrível foi a indignação que se apoderou da mulher e muitas vezes, a
força de injúrias e maldições, tratou de atiçar contra si mesma os
saqueadores. Mas uma vez que nem por indignação nem por lástima se
decidissem a matá-la, cansada já de buscar comida para os demais (coisa
difícil de se achar em qualquer parte), como a fome lhe penetrava as
entranhas e a medula e, ainda mais que a fome, incendiava-lhe a cólera,
tomando por conselheira a sua fúria e sua necessidade, voltou-se contra a
sua própria natureza, e arrebatando o seu próprio filho (que tinha junto
ao peito):

- "Filho meu",

disse,

"desgraçado pela guerra, pela fome e pela revolta, para


quem te estou guardando? Com os romanos, se sob seu
jugo vivemos, nos espera a escravidão; à escravidão a fome
toma a dianteira e pior que a escravidão e a fome são os
revoltosos. Pois, serve a mim de comida, de fúria infernal
aos revoltosos e de fábula à vida, a única que faltava às
calamidades dos judeus.

E dizendo e fazendo, mata seu próprio filho, e em seguida o assa, come a


metade e guarda escondido o restante. Apresentaram-se imediatamente
os revoltosos pelo odor daquele abominável sacrifício e a ameaçaram que
se não lhes mostrassem a comida que havia preparado, a esfaqueariam
imediatamente. Respondeu a mulher que lhes havia guardado uma boa
parte e lhes mostrou os restos de seu próprio filho. Tomados por um
calafrio de horror ficaram fora de si, petrificados ante aquele espetáculo.
Mas ela:

"Este",

disse-lhes,

"é meu filho legítimo e obra que me pertence. Comei, posto


que também eu comi. Não pretendais mostrar-vos nem
mais brandos que uma mulher nem mais compassivos que
uma mãe. Mas se quereis passar por pios e rechaçais meu
sacrifício, eu comi a metade e para mim seja também o que
sobra.

Depois destas palavras, os soldados saíram estremecidos. Só para esta


façanha se sentiram covardes. Só esta comida reservaram para a mãe. A
cidade inteira se encheu imediatamente daquela abominação e,
apresentando-se cada um ante os olhos a tragédia, todos estremeciam de
terror, como se cada um tivesse cometido aquele crime. Os que sofriam
fome tinham pressa em morrer e se considerava felizes os que se lhes
haviam adiantado, antes de ouvir e contemplar desgraças semelhantes. A
tragédia correu também muito rapidamente pelo acampamento dos
romanos. Uns se negavam a acreditar; outros se lastimavam; à maior
parte, sem duvida, não fez senão inflamar mais o ódio contra nossa
nação" (Flavio Josefo, Bell. Iud. VI, 3, p.285).
NÃO BASTA A FÉ, SE NÃO FOR
ACOMPANHADA DE UMA BOA VIDA
6. Tudo isto e coisas ainda mais duras haveriam de sofrer os judeus, não só
porque crucificaram Cristo, mas porque, depois disto, trataram também
de impedir aos apóstolos de pregarem a doutrina de nossa salvação. Isso
lhes jogava na cara o bem-aventurado Paulo, que também lhes profetizou
estes males, dizendo:

"Sobre eles cairá a ira até o fim".


1 Thes 2, 16

- Mas o que tem a ver - dirá alguém - tudo isto conosco? Porque nós não
afastamos ninguém da fé e nem impedimos que se pregasse.

E para que vale - dizei-me - a fé, se a vida não é pura? Mas talvez vós
ignorais também esta verdade, já que não escutais nenhuma doutrina
nossa. Pois eu vos vou enumerar as sentenças de Cristo e observai vós se
não se condenou de algum modo a vida e só se estabeleceram castigos
acerca da fé e da doutrina. E, de fato, tendo subido ao monte, vendo
aquela grande multidão que o rodeava, depois de outras muitas
exortações, disse:

"Nem todo o que me disser: Senhor, Senhor, entrará no


reino dos céus, senão aquele que fizer a vontade do meu
Pai".
Mt 7, 21

E também:

"Muitos me dirão naquele dia: Não profetizamos em teu


nome e em teu nome expulsamos demônios e em teu nome
realizamos muitos prodígios? E eu então lhes direi:
Afastai-vos de mim, obreiros da iniquidade: Não vos
conheço".
Mt. 22-23

E o que ouve suas palavras mas não as põe em pratica, disse ser
semelhante a um homem tolo que edifica sua casa sobre a areia, fazendo-
a presa fácil de rios, chuvas e ventos (24-27). E em outra ocasião, falando
ao povo:
"Da maneira como os pescadores, quando puxam a rede,
separam os peixes ruins; assim será naquele dia, quando os
anjos lançarão na fornalha ardente todos os que houverem
cometido pecados."
Mt 13, 47

E falando dos homens dissolutos e impuros, dizia:

"Irão onde está o verme que não morre e o fogo que não se
apaga".
Mc 9, 44

E outra vez:

"Um rei",

disse,

"celebrou um banquete de bodas para seu filho e tendo


visto um homem que estava vestido com roupas sujas, lhe
disse: Amigo, como entraste aqui sem estar vestido com a
veste nupcial? E o outro emudeceu. Então disse a seus
servos: Atai-os de pés e mãos e lançai-o nas trevas
exteriores".
Mt 22, 11-13

Ameaça com que apontava a intemperantes e dissolutos. E as virgens


imprudentes foram excluídas da sala nupcial pela sua crueldade e
desumanidade. E pela mesma causa irão outros para o fogo eterno,
preparado para satanás e seus anjos. (Mt 25, 31ss). E condenados serão
também os que falam sem razão nem motivo.

"Porque pelas tuas palavras",

disse,

"serás justificado e pelas tuas palavras serás condenado".


Mt 12, 37

Logo parece-te que sem motivo andamos tão temerosos pela nossa vida e
colocamos tanto afinco na parte moral da filosofia? Não penso desta
maneira, certamente, a não ser que digas que tampouco Cristo teve
motivo para dizer tudo isso e muito mais do que isso, pois não iremos
transcrever aqui todo o Evangelho. E se não temesse alongar meu
discurso, pelos profetas, pelo bem-aventurado Paulo e os outros apóstolos
poderia mostrar-te quanto empenho o próprio Deus pôs nesta parte. Mas
creio que basta o que disse; ou, melhor, não só basta o que disse, mas a
menor coisa que dissemos. Porque quando é Deus que afirma algo, ainda
que o dissesse uma só vez, temos que recebê-lo como se mil vezes
houvesse repetido.
O MUNDO, CASA QUE ARDE E CIDADE
REVOLTOSA
7. Então? - alguém me dirá - Os que ficam em suas casas não podem
praticar essas virtudes, cuja falta acarreta tão graves castigos? Também
quisera eu não menos, mas muito mais que vós, e muitas vezes desejei que
desaparecesse a necessidade dos mosteiros. Oxalá fosse tanta a disciplina
das cidades que ninguém jamais tivesse necessidade de buscar o refúgio
do deserto! Mas como tudo anda de cabeça para baixo, e as cidades em
que se estabelecem os tribunais e as leis estão cheias de iniquidade e
injustiça, e o deserto produz copiosos frutos de filosofia, não é justo que
culpeis a quem trata de retirar de dentro desta tormenta e confusão os
que desejam se salvar, e os conduzem a um porto de calma, em lugar dos
que converteram as cidades em lugares tão intransitáveis e tão nada
propícios à filosofia, que forçam aquele que quer se salvar a fugir para o
deserto. Se não, dizei-me: Se alguém tomasse a meia noite um tocha e
pusesse fogo em uma grande casa habitada por muita gente com intenção
de queimar as pessoas que dormem no interior dela, quem diríamos que é
malvado? O que despertou os que dormiam e lhes fez sair daquela casa
ou o que empreendeu atear fogo e pôs em semelhante transe os da casa e
o que os tirou dela? E se, vendo alguém uma cidade sob a tirania ou
atacada pela peste ou em plena revolta, persuadisse a quem pudesse entre
seus habitantes a escapar para o topo dos montes e, depois de persuadi-
los, os ajudasse também em sua retirada, a quem haveriamos de culpar?
Ao que retira os homens desta furiosa tormenta em que andam revoltos
ou ao que foi a causa destes naufrágios?
O MUNDO SOB A TIRANIA DO PECADO
Porque, na verdade, não penses que a situação do mundo é agora melhor
que a de uma cidade sob o domínio de um tirano, mas muito pior. Não
um homem , mas algum demônio maligno se apoderou como um tirano
feroz de toda a terra e invadiu com toda a sua hoste as almas dos homens,
e dali, como de uma cidadela, dita a todo o mundo suas ordens
abomináveis e sacrílegas: Desfaz casamentos, saqueia riquezas, executa
mortes iníquas e, o que é muito mais grave, separa do trato com Deus a
alma que com Ele se desposara e a entrega a seus guardas impuros e a
obriga que se una a eles. E estes, uma vez que se tenham apoderado de
uma destas almas, têm com ela trato tão vergonhoso e insolente qual se
pode supor de demônios perversos, que ardente e furiosamente desejam
nossa perdição e desonra. Despem-na de todas as vestes da virtude, e
cobrem-na com os farrapos dos vícios, imundos, despedaçados e
fedorentos que a deixam mais feia que a própria nudez e, depois de
enche-la com toda a sua impureza diabólica, ainda não se dão por
satisfeitos em suas insolências contra ela. E é assim que não conhecem
saciedade neste sacrílego e adúltero convívio, senão o modo de agir de
bêbados que quanto mais bebem mais ficam sedentos, assim estes, quanto
mais abusam da alma, tanto mais se enfurecem e com mais violência e
ferocidade saltam sobre ela, rasgando-a e mordendo-a por todas as
partes, inoculando seu próprio veneno e não a abandonando, enfim, até
vê-la convertida em demônio como eles separada do corpo. Pois, que
tirania, que prisão, que destruição, que escravidão, que guerra, que
naufrágio, que fome pode ser mais dura que semelhante estado? E quem
será tão cruel e feroz, quem tão tolo, quem tão desumano, tão alheio à
dor e à compaixão que, o quanto estiver em suas mãos, não queira livrar
uma alma assim ultrajada e maltratada daquela sacrílega fúria e
insolência, mas que consinta vê-la sofrer tudo isso? Mas se o
consentimento for de uma alma feroz e de pedra, onde colocaremos, dize-
me, os que não só o consentem, mas os que cometem crimes muito
maiores que este? E é a quem tem coragem de se lançar no meio dos
perigos e não se importam de meter a mão na cara da fera, sem
considerar o mal cheiro e o perigo, para arrancar da garganta do
demônio as almas que já tinham devorado; a estes, digo, não só não os
louvam nem aprovam, mas os expulsam de todas as partes e lhes
declaram a guerra.
QUANTO É DIFÍCIL SALVAR-SE NO
MUNDO
8. Então - me dirás - é verdade que se perdem e naufragam os que habitam
as cidades e teremos que deixa-las e despovoa-las para irmos ao deserto e
habitar os cumes das montanhas? E és tu quem isto ordenas e esta lei
impões?

- Pelo contrário. Como já disse, melhor seria o oposto, e faço votos a Deus
que gozemos de tanta paz e seja arrancada a tirania destes males pela
raiz, que não só não tenham necessidade os que habitam as cidades de
tomar de assalto as montanhas, mas que mesmo os que moram nos
desertos, e, como desterrados por longo tempo, voltem a sua própria
cidade. Porém o que iremos fazer! Eu temo que, ao empenhar-nos em
devolvê-los a sua pátria, em lugar de entregá-los a esta, os coloquemos
nas mãos dos malignos demônios e, querendo livra-los da solidão e do
desterro, os façamos perder sua filosofia e tranqüilidade.

E se puseres diante de mim a multidão dos que vivem nas cidades e se


crês deste modo comover-me e espantar-me, pois não me importarei em
condenar pouco menos que toda a face da terra, eu lançarei mão da
sentença do Cristo e com ela farei frente a tua objeção. Para que não
venhas a cometer tamanha temeridade como te opores ao voto de quem
um dia há de nos julgar. O que disse, pois, Cristo?

"Estreita é a porta e apertado é o caminho que leva à vida e


poucos são os que o encontram".
Mt 7, 14

E se são poucos os que acham o caminho, muito menos são os que têm
força para chegar até o término do mesmo. Com efeito, nem todos os que
a princípio entram por ele, se mantêm firmes até o fim. Uns naufragam
no começo, outros pelo meio, outros na própria boca do porto. E em
outra ocasião disse o Senhor que

"muitos são os chamados e pouco os escolhidos".


Mt 20, 16

Pois bem, quando é o próprio Cristo quem afirma que a maior parte se
perde e limita a salvação a uns poucos, porque tu te revoltas contra mim?
É como se contando a ti o que aconteceu no tempo de Noé, te admirasses
que todos tivessem perecido e só dois ou três homens escapassem de tão
grande castigo, esperando deste modo tapar-me a boca, como se eu não
houvesse de me atrever a condenar tanta gente.
QUANTO ALHEIOS AO EVANGELHO
VIVEM OS MUNDANOS
Não cometerei eu esta covardia nem preferirei o vulgar à verdade. Não
são os pecados atuais menores do que os de então, mas tão mais
abomináveis quanto os que nos ameaçam agora com o inferno e nem
assim se corta pela raiz a maldade. Quem, dize-me, não chama de néscio
ao seu irmão? Pois aquele que o faz é réu do fogo do inferno. Quem não
olhou para uma mulher com olhos intemperantes? Pois isto é adultério
consumado, e é forçoso que o adultério caia no inferno. Quem não jurou
alguma vez? Pois o juramento, vem absolutamente do maligno. E o que
vem do maligno merece castigo absolutamente. Quem não teve alguma
vez inveja de seu amigo? Pois isto nos faz piores que os gentios e os
publicanos; e quem é pior que gentios e publicanos não há de escapar ao
castigo, coisa patente a todo mundo. Quem desterrou de seu coração todo
o rastro de rancor e perdoou os pecados de todos os que lhe ofenderam?
Pois que quem não perdoar há de ser forçosamente entregue aos
tormentos, nenhum ouvinte de Cristo ousará contradizer. Quem não
serviu a Mammon? Pois quem serve a Mammom, forçosamente há de se
negar ao serviço de Cristo, e aquele que renega o serviço de Cristo,
forçosamente há de renegar sua própria salvação. Quem não maldisse
ocultamente? Pois aos maledicentes, mesmo a antiga lei ordena que se
lhes tire a vida e lhes passe a espada.

Pois bem, que consolo temos de nossos próprios males? Somente ver que
todos, como que de comum acordo, se precipitam no abismo da maldade,
quando isto justamente é a prova maior da enfermidade que nos aflige,
pois tomamos como consolo de nossos males o que deveria ser motivo de
maior dor! Na verdade, ter muitos como companheiros de pecado, não
nos absolve de culpa, nem nos isenta de castigo.

Mas se alguém se desespera com o que já disse, aguarde um pouco e,


quando lhe dissermos coisas ainda mais graves que estas, se desesperará
ainda mais. Por exemplo, os perjúrios. Porque o jurar já é coisa
diabólica, que castigo não nos acarretará o pisotear os juramentos? Se
chamar alguém de néscio leva de pronto ao inferno, o que dizer de quem
se desata em injúrias contra a seu irmão, que muitas vezes não lhe terá
ofendido em nada? Se o mero rancor é digno de castigo, que tormento
não merecerá o tomar vingança?

Porém não falemos ainda sobre isto, mas aguardemos para trata-lo em
seu devido tempo. Porque - deixando de lado as demais coisas - o próprio
fato de estarmos obrigados a compor o presente discurso não é por si só
prova suficiente da gravidade da enfermidade que nos aflige? Já é um
limite extremo de malícia não sentir remorso dos próprios pecados e
cometê-los sem dor alguma. Pois onde colocaremos estes novíssimos
legisladores de uma nova e absurdíssima ordem de coisas que desterram
com mais rigor aos mestres da virtude que outros aos do vício, e
declaram uma guerra mais terrível aos que tentam corrigir o pecado e
não àqueles que o cometem? Ou melhor dizendo, por estes não se
incomodam nem pouco nem muito e nem lhes dirigem jamais uma
reprovação; quanto aos outros, todavia, de boa vontade os comeriam
vivos e só falta que se lancem pelas ruas gritando e pregando com seus
ditos e feitos que é mister agarrar-se com unhas e dentes à maldade e não
voltar jamais à virtude; e não parece que devam castigar só aos que a
praticam, senão mesmo aos que se atrevem a abrir a boca em favor dela.

São João Crisóstomo


349 - 407 DC

CONTRA OS IMPUGNADORES
DA VIDA MONÁSTICA
DISCURSO SEGUNDO

A UM PAI INFIEL

A ABSURDA DOR DOS PAIS, PORQUE


SEUS FILHOS PROFESSAM A VIDA
MONÁSTICA
1. O que foi dito aqui é o bastante para tirar um homem de si e faze-lo
estremecer e não estaria fora de lugar aplicar ao presente caso aquelas
palavras do profeta:

"Pasmou-se o céu sobre isto e a terra se estremeceu


sobremaneira".
Jer 2, 12

E aquelas outras:
"Coisas de assombro e de espanto aconteceram sobre a
terra".
Jer 5, 30

E o mais grave deste caso é que não só pessoas estranhas e que nada têm
a ver com aqueles a quem se aconselha a abraçar a vida monástica se
irritam e se desgostam por isto, mas são capazes também de irar-se os
próprios pais e parentes.

Sim, eu não ignoro que existem muitos que não se surpreendem de que
assim se comportem os pais e os parentes; o que lhes sufoca de irritação -
dizem - é ver que o mesmo fazem aqueles que não são nem pais, nem
parentes, nem amigos, e nem por algum outro conceito ligados a quem
abraça a filosofia, e, freqüentemente, sem sequer conhecê-los, superam os
próprios pais em morder, combater, e afrontar aos que os persuadiram a
isto. Mas o que me parece surpreendente é justamente o contrário.
Porque não é nada estranho que aqueles que não se sentem ligados por
vínculo algum de parentesco nem de amizade se lamentem pelos bens
alheios; uns, vítimas da inveja; outros, que têm como sua própria ventura
a perdição dos demais; pensamento, por certo, apoucado e vil, mas que
ocorre em certas pessoas. Mas os pais que os geraram, que os criaram,
que diariamente fazem votos de vê-los mais importantes que eles mesmos,
e que para conseguir estas glorias não deixam pedra por mover; que
estes, repito, como se despertassem de uma bebedeira, sintam pena de
que seus filhos sejam levados para a filosofia, isto sim é coisa que me
surpreende acima de toda a ponderação e afirmo ser argumento
suficiente de que tudo está corrompido. Caso semelhante não se pode
citar nem nos tempos passados, quando o terror imperava
escancaradamente. Embora, uma vez tenha acontecido em uma cidade
gentil; mas foi em regime de tirania. E ainda então não foi, como agora,
um pai, mas os que haviam tomado a cidadela, e nem foram todos, mas o
mais abominável de todos, o que chamou Sócrates e o intimou que não
falasse mais sobre filosofia. Mas se Critias cometeu este ato de violência
foi porque era um tirano, incrédulo e cruel, que em todos os seus atos
maquinava a ruína da república, gozava com as desgraças alheias e sabia
que nada há de tão eficaz para derrubar a melhor constituição política
que uma ordem semelhante. Porém estes que são crentes e vivem em
cidades, ao que parece, bem governadas e olham pelo bem de seus filhos,
se atrevem a falar a mesma linguagem dos tiranos sobre seus súditos
subjugados, e não se envergonham disto. De modo que devemos nos
admirar mais de que os pais se irritem, do que os estranhos.
NEM SEMPRE SÃO OS PAIS OS QUE
MELHOR CONHECEM O QUE CONVÉM A
SEUS FILHOS
Por isto, deixando de lado os estranhos, vou conversar com aqueles a
quem acima de tudo importa o bem de seus filhos ou, melhor dizendo,
aqueles a quem deveria importar, mas não lhes importa em absoluto. E
quero lhes falar com bondade e modéstia, rogando-lhes antes de tudo
uma coisa: que não levem a mal nem se molestem se alguém lhes disser
que conhece melhor do que eles mesmos o que convém a seus filhos.
Haver gerado um filho não basta para que seja precisamente o pai que
ensine ao filho o que lhe convém. A geração é indubitavelmente
importante para infundir carinho à prole; porém nem a geração nem o
carinho são suficientes para saber pontualmente o que é conveniente à
prole. Se assim fosse, ninguém melhor do que o pai haveria de ver o que
seria conveniente a seu filho, pois ninguém poderia ganhar dele em
carinho. Mas o certo é que os próprios pais, pelo seu modo de agir,
confessam que o desconhecem, e assim vemos que mandam seus filhos à
escola, os põem aos cuidados de aias e tomam o conselho de uma
infinidade de pessoas, quando tratam do gênero de vida a que os querem
dedicar. E, afinal, não é de se espantar que tomem conselho, mas que
muitas vezes, vindo a deliberar sobre o assunto de seus próprios filhos,
deixem seu parecer e sigam o parecer alheio. Pois que também não se
aborreçam comigo se lhes digo que sei melhor do que eles o que convém a
seus filhos. Isto sim, se não o demonstrar com meus argumentos, acusem-
me então e me dêem a alcunha de fanfarrão, corruptor e inimigo da
natureza universal.
JOÃO QUISERA NÃO TER QUE DISCUTIR
SENÃO COM UM INFIEL
2. Pois bem, como colocaremos a coisa claramente e como saberemos quem
realmente vê o interesse dos filhos e quem parece, sim, que o vê, porém
não o percebe em parte alguma? Pois obrigando a meus argumentos,
como se fossem atletas, que deixem de fazer alarde de si e travem braços
com seus adversários, e encomendando a sentença a juizes incorruptos.
Pois bem, a lei do combate só me obriga a lutar com quem seja cristão e
só com ele deveria medir minhas forças. Nada mais se exige de mim.

"Que importa a mim",

disse o bem-aventurado Paulo,

"julgar os de fora?"
1 Cor 5, 12

Não obstante, como acontece serem infiéis muitos dos pais dos que são
atraídos para o céu, apesar de que a lei do combate me exima de lutar
contra estes, por minha própria vontade e com ânimo entrarei
primeiramente contra eles nesta arena. E que bom seria se fosse só contra
eles que tivesse que combater! Certo é que o combate fica mais difícil, e
oferece maiores pretextos ao inimigo; pois,

"o homem animal não compreende as coisas do Espírito,


que são loucuras para ele".
1 Cor 1, 14
É como se tratássemos de alguém que se enamorara de um reino de cuja
existência não quisesse se convencer. Não obstante, por muito limitado
que possa ser o campo em que hão de se encerrar os meus argumentos,
bem quisera eu ter que combater só contra os infiéis. Contra um crente
são certamente muitos os motivos que justificam minha causa; mas o
prazer da abundância de razões fica escurecido pelo excesso de vergonha.
Sinto vergonha, de fato, de que um cristão me force a sair contra ele na
discussão deste assunto e muito temo que não seja este o único encargo
que possa me dar um gentio. Em tudo o mais, com a graça de Deus, me
há de ser fácil convencê-lo e, se quiser ser homem discreto, não só espero
leva-lo ao amor deste gênero de vida, mas também a desejar aquelas
mesmas verdades de nossa fé, em que se apoia a vida monástica. E estou
tão distante de sentir medo de entrar no campo de batalha com este pai
gentio, que, antes de lançar mão das armas, quero fazer de meu discurso
mais difícil minha própria causa.
DESCREVE-SE O DESESPERO DE UM PAI
PAGÃO, CUJO FILHO ABRAÇA A VIDA
MONÁSTICA
Vamos supor que este pai não seja só gentio, mas também rico e ilustre
sobre todos os outros homens, que ocupe um alto posto no estado, que
possua muitos campos, muitas casas, bens em ouro sem número. Que sua
pátria seja a melhor capital do Império, sua linhagem, a mais ilustre; que
não tenha outros filhos nem esperança de tê-los, mas que só neste se
encerrem todas as suas ilusões. A respeito do filho, suponhamos que seja
um garoto das mais belas esperanças, que razoavelmente se conjeture
que há de subir logo à mesma dignidade que seu pai, e até que há de
brilhar mais do que ele e obscurecê-lo em todas as posições na vida.
Assim postas as coisas, entre tão largas esperanças, suponhamos que
venha não sabemos quem, e se aproxime a conversar com o jovem acerca
deste gênero de filosofia e o convença que, escarnecendo de todas estas
ilusões, se lance sob um hábito imundo, e, abandonando a cidade, fuja
para os montes e ali se dedique a plantar, a regar e carregar água e às
demais tarefas dos monges que são consideradas vis e desonrosas. E, por
acréscimo, ande com os pés descalços e durma no solo duro; ele que era
jovem formoso, torne-se esquálido e macilento; ele que vivia entre tantas
delicias e honras, e tão afáveis esperanças lhe sorriam, ande agora vestido
com roupas mais vis do que as dos seus próprios escravos.

Não é verdade que temos dado muitos pretextos aos nossos acusadores e
temos pintado com muitas cores nosso adversário? Pois se tudo isto não é
o bastante, ainda vamos procurar novos pretextos contra nós. Aparte o
que foi dito, mova este pai todos os recursos para dissuadir seu filho, e
seja tudo em vão, como se este se firmasse sobre uma rocha, desafiando a
fúria dos rios, das chuvas e dos ventos. Lamente-se o homem, derrame
lágrimas, e inflame assim mais e mais a indignação contra nós, e acuse-
nos ante quem encontrem repetindo continuamente:
"Eu gerei um filho, o criei, sofri por ele calamidades durante toda
sua vida, sem medir esforços nem sacrifícios, o quanto pode
reclamar um filho. Tinha sobre ele as mais belas esperanças, me
pus a falar com criados, roguei aos mestres, gastei dinheiro,
passei muitas noites em claro pensando nas suas melhores
vestimentas e em sua educação, para que assim não frustrasse em
nada seus avós, antes a todos superasse por sua glória. Eu
esperava que ele fosse o cajado de minha velhice; passando o
tempo, comecei a pensar em sua mulher e no seu casamento,
sobre procurar para ele alguma magistratura e poder. E eis que de
repente, como um raio ou tormenta que rebenta, não se sabe de
onde, e afunda uma nave carregada de infinitas mercadorias -
uma nave que com próspero vento atravessou o alto mar e estava
já para tocar o porto e quase entrando em sua baía -, e a
tempestade não só lança na suma pobreza o homem que era antes
dono de tanta riqueza, mas também no terror da morte e da
perdição mais espantosa; isto, literalmente me acontece agora.
Porque estes malditos, corruptores e charlatões (chamemo-nos
assim por enquanto, não vamos brigar por isto), arrancando de
todas estas esperanças o que havia de ser o sustento de minha
velhice, levaram-no de mim como bandidos ao seu antro, e de tal
maneira o encantaram com seus encantamentos, que prefere
passar generosamente pelo ferro, pelo fogo, pelas feras, pelo que
seja, antes que voltar a sua antiga prosperidade. E o mais
desesperador é que os que meteram esta loucura na sua cabeça,
me venham dizer ainda que são eles, e não eu, que vêm o que é
bom para o meu próprio filho. Desertas estão as minhas casas,
desertos estão meus campos. Cheios de tristeza e de vergonha
andam os meus lavradores, e também meus criados. Só os meus
inimigos mostram-se satisfeitos com minhas desgraças, enquanto
escondem a cara de vergonha os meus amigos. Quanto a mim, já
não tenho outro desígnio senão atear fogo em tudo: casas e
campos, manadas de bois e rebanhos de ovelhas. Para que há de
me servir daqui por diante toda esta riqueza, se quem deveria
gozar desta já não existe? Tornou-se escravo; entre bárbaros
desumanos está sofrendo uma escravidão mais amarga que a
própria morte. De luto mandei que se vestissem os meus criados;
de cinza rociaram as cabeças; mandei formar coros de
carpideiras, e que o chorem com mais fortes lamentos do que se
tivessem visto seu cadáver. Perdoa-me por ter chegado a este
extremo: Minha dor presente é mais triste que a da própria morte.
Parece que já me incomoda a luz e me irritam os próprios raios do
sol; quando me vem à mente aquele hábito do meu desafortunado
filho, quando o vejo vestido mais miseravelmente que os mais
míseros lavradores e ocupado em tarefas mais desonrosas que as
deles, quando considero, em fim, que sua resolução é inflexível, é
que me queimo, me despedaço e me arrebento".
PREPARA-SE A REFUTAÇÃO
3. Enquanto diz tudo isto, prostre-se aos pés de quem o ouve, espalhe-se
cinza sobre sua cabeça, suje-se seu rosto com poeira, suplique-se a todos
que lhe estendam a mão e arranque-se sua branca cabeleira. Sem dúvida
pintamos com bastante exatidão o nosso acusador e o quadro é para que
se acenda a ira em todo mundo e para move-lo a precipitar por um
despenhadeiro abaixo os causadores de tanto mal. Efetivamente, eu quis
levar meu argumento ao extremo de todas as causas, com o fim de que
vencido este que assim preparamos, com a graça de Deus, ninguém lhe dê
razão alguma. Porque tapada a boca de quem tudo isto junto pôde alegar
(e, na verdade, é impossível que todas estas verdades ocorram de uma só
vez), há de nos ser já fácil derrotar aos demais. Assim, pois, meu
adversário pode dizer tudo isto e muito mais. Eu rogo aos juizes que por
hora não tenham compaixão deste pobre velho; sim, quando eu tiver
demonstrado que está chorando por um filho que não sofre mal algum,
antes goza de bens tão grandes, que não é possível encontrar maiores.
Porque então sim, será este pobre homem digno de lástima, pois não é
capaz de compreender a felicidade de seu filho e se acha tão distante dela
que chora como se se tratasse das maiores desgraças.
QUEM DESPREZA AS RIQUEZAS É MAIS
RICO DO QUE QUEM AS COBIÇA
Por onde, pois, vamos começar nosso argumento contra este homem?
Comecemos pela riqueza e pelo dinheiro, pois isto é o que ele lamenta
sobretudo e isto é também o que a todos parece mais duro: que jovens
ricos abracem a vida monástica. Dize-me, agora: A quem nós todos
teríamos por mais feliz e digno de inveja, a quem sofresse de uma sede
contínua e antes de saciar-se com o primeiro copo já tivesse necessidade
de outro e assim constantemente, ou a quem, livre completamente desta
necessidade, não sentisse sede jamais e não tivesse que levar nenhum
copo d'água à boca? Não é verdade que o primeiro se assemelha a um
enfermo com febre alta, que sofre a mais dura tirania, ainda que pudesse
tirar a água de fontes perenes, e o outro é livre com a verdadeira
liberdade e está são com a verdadeira saúde e se levanta, enfim, acima da
natureza humana? E o que diríamos de quem amasse perdidamente a
uma mulher e se unisse a ela continuadamente e depois de tal união se
sentisse abrasar furiosamente; outro, ao contrário, se achasse tão alheio a
esta loucura amorosa que nem por sonhos o assaltasse o pensamento? A
quem aqui teríamos por ditoso e digno de inveja? Sem duvida, ao que é
livre da paixão. A quem teríamos por miserável e desgraçado? Não seria
este que sofre com a estúpida enfermidade do amor, que não pode de
maneira alguma saciar-se e que se inflama com os meios inventados para
o extinguir? E se este tal, além de estar enfermo, ainda se achasse ditoso
em sua enfermidade e não só não quisesse se ver livre dela, mas tivesse
pena dos que estão sãos - que é o caso do homem de que tratamos agora -
não seria este o motivo de o termos como mais desgraçado e miserável,
não só porque está enfermo, mas porque nem sequer sabe que o está e
por isso não quer se livrar da enfermidade, e além disso chora pelos que
estão sãos?

Pois então, translademos este argumento para a posse das riquezas e


veremos quem é o miserável e desgraçado. E notemos que a cobiça do
dinheiro é mais veemente e furiosa do que aqueles outros amores dos
quais falamos. De onde que há de ser mais dolorosa, não só porque sua
chama é mais penetrante, mas também porque é mais resistente e dura
que eles aos remédios que se aplicam para acalma-la. De fato, os que
amam a bebida ou os que estão enamorados dos corpos saciaram-se mais
facilmente uma vez gozado o objeto de seu amor, do que aqueles que
sofrem a loucura do dinheiro. Por isso tivemos que os simular com
discurso, por não ser fácil que apareçam na realidade; mas desta
enfermidade que é a cobiça, poderíamos alegar muitos exemplos de
experiência. Pois, dize-me, agora: Tu choras pelo teu filho justamente
porque ele se vê livre desta fúria e doença desesperada, porque não ama
com amor insaciável, porque está fora desta guerra e desta batalha?
O AMOR PELA RIQUEZA, AINDA QUE
MODERADO, TRAZ CONSIGO MUITOS
CUIDADOS
- É que com meu filho - replicas - não se passaria isto, nem ele se teria
deixado levar pela cobiça, mas sim se contentaria em gozar do que
tivesse. Para dizer a verdade, isto que me dizes está muito na direção
contrária da natureza; mas, enfim, que também seja isto. Eu te concedo
pela graça do discurso que teu filho não teria tido vontade de aumentar a
seus bens nem desejaria se prender por aquela furiosa cobiça. Pois ainda
neste pressuposto, eu irei te mostrar que ele vive agora em maior
largueza e prazer. O que é, efetivamente, maior largueza: andar entre
tantas preocupações como traz consigo a riqueza, estar atado a sua
guarda e servidão, viver sempre preocupado em não perder algo do que
se tem ou ver-se livre de todas estas ataduras? Pode ser que teu filho não
tivesse vontade de se lançar sob novas cargas; mas é muito melhor
desprezar as que já se leva. Porque se és sincero e estás convencido de
que o sumo bem é não necessitar de mais do que aquilo que se tem, segue-
se que é maior felicidade estar alheio até à necessidade daquilo que se
tem. Porque ficou demonstrado que aquele que jamais tinha sede nem
sabia o que era o amor (não há inconveniente em voltar outra vez aos
mesmos exemplos) era mais feliz, muito mais feliz não só do que aqueles
que são atacados de sede contínua e que ardem de insaciável erotismo,
mas também do que aqueles que sofrem por breve tempo o desejo e o
satisfazem, como aquele que é alheio à própria experiência de tais
necessidades.
O MONGE É DONO DAS RIQUEZAS SEM
AS PREOCUPAÇÕES DA RIQUEZA
Porém gostaria de formular-te outra pergunta: Se fosse possível
sobrepujar a todos em riqueza e ao mesmo tempo se ver livre dos
inconvenientes da riqueza, não preferirias mil vezes este modo de
opulência, em que não terias que suportar invejas, nem delações,
nem preocupações, nem coisas semelhantes? Logo se te
demonstro que isso tem teu filho agora e que vive em maior
opulência do que nunca, bom será que cesses completamente teus
prantos e lamentações.
Agora, pois, que teu filho está livre das preocupações e demais
inconvenientes que traz consigo a riqueza, coisa que nem tu podes
contradizer; pelo que tampouco eu tenho que discutir contigo esse
ponto. O que tu desejas saber é como pode teu filho, que não tem
nada, ser mais opulento que tu que possuis tantas coisas. Então,
será isto o que eu vou te fazer ver e te demonstrar que esta
extrema pobreza que tu pensas que sofre o teu filho, analisando
bem a coisa, és tu que, comparado com ele, estás sofrendo.

4. E não penses que vou te falar dos bens do céu e do que nos espera depois
da viagem da vida presente. Não. A demonstração a quero tomar do que
tens ao alcance da mão. Pois aqui vai. Em primeiro lugar, tu só és dono
de teus próprios bens; o teu filho o é dos de toda a terra. Não me
acreditas? Pois te levarei até teu filho e vamos convence-lo que desça do
monte, ou melhor, que ele fique ali, e que dali mesmo indique a um dos
grandes ricos e piedosos que lhe mande a quantidade de ouro que tu
queiras... Mas não. Ele não quererá que mande para ele. Ordena-lhe,
pois, que a dê a um necessitado qualquer, e verás como aquele rico lhe
obedecerá e a entregará com a maior prontidão e gosto do que se tu o
mandasses a um dos teus criados ou administradores. Porque o teu
administrador quando o mandam gastar, se põe de mal humor e
resmunga; o rico piedoso, ao contrário, quando não gasta se põe triste e
teme ter ofendido os monges em alguma coisa, pois não recebe uma
ordem semelhante. E posso mostrar-te muitos, e não dos mais ilustres,
mas dos mais humildes, que têm este poder. Ademais, se teus
administradores te malbaratam a fazenda que lhes confiaste, tu não tens
a quem recorrer, e, pela malícia deles, toda a tua riqueza se converte em
pobreza imediatamente. Teu filho, ao contrário, não tem porque temer
tal perda, pois se o primeiro a quem pedir parar na miséria, dará suas
ordens a outro; e, se com este acontecer o mesmo, acudirá um outro e é
mais provável que sequem as fontes das águas do que faltar alguém
disposto a obedecer-lhe nisto.
EXEMPLOS PAGÃOS: SÓCRATES E
DIÓGENES
E se fosses homem que professasse nossa religião, te contaria muitos e
grandes exemplos acerca desse particular; mas já que professas o
paganismo, tampouco aí me faltarão exemplos. Escuta o que disse Críton
a Sócrates:

"A tua disposição está o meu dinheiro, que a meu ver é


suficiente. E se por consideração para comigo não quiseres
gastar o que é meu, aqui estão estes estrangeiros dispostos
a gastar. Exatamente para este fim trouxe bastante
dinheiro Simias o tebano e também está disposto Cebes, e
como eles muitos outros. Enfim, como te dizia, que não
seja este temor motivo para que desistas de te por a salvo, e
nem alegues também como dificuldade o que disseste no
tribunal: Que, saindo da cidade, não saberias o que fazer
de tua pessoa. Aonde quer que fores, te receberão com mil
amores, e, se quiseres marchar para a Tesália, ali tenho eu
hóspedes que te estimarão altamente e te darão todo o
gênero de segurança, de modo que nada te falte do quanto
exista em Tesália".

Que coisa é mais doce que este gênero de opulência? E ainda este
argumento é para os homens do mundo; porém se quiséssemos examinar
a riqueza do monge com um espírito um pouco mais filosófico, talvez tu
não seguisses os meus argumentos, mas não tenho outro remédio senão
dize-los para agrado dos juizes. E é por isso que a riqueza da virtude é
tão grande, tanto mais doce e invejável que a vossa, que aqueles que a
possuem jamais desejariam trocá-la pela terra inteira, nem se as
montanhas, os mares e os rios se convertessem em ouro. E se tal
transformação fosse possível, tu verias de fato de que não se trata de
fanfarronice, mas que, oferecendo-lhes ainda muito mais do que tudo
isto, desprezariam a tudo e jamais o trocariam pela virtude. E como digo
trocar? Nem sequer consentiriam em possuir juntamente riqueza e
virtude. Se a vós oferecessem a riqueza da virtude junto com a do
dinheiro, as receberias amorosamente; com o que confessais que esta
riqueza é grande e maravilhosa. Os monges, porém, não querem a tua
riqueza unida com a deles; com o que dão a entender que a têm por coisa
desprezível. E eu te manifestarei isto com os teus próprios exemplos. Que
quantidade de dinheiro acreditas não teria dado Alexandre a Diógenes, se
este tivesse querido receber? Porém o rejeitou totalmente. Alexandre, ao
contrário, empenhava-se e não deixou pedra por mover para que um dia
chegasse à riqueza de Diógenes.
O MONGE, DONO DA TERRA, TEM POR
PÁTRIA O CÉU
5. Queres que te mostre por um outro capítulo a tua pobreza e a riqueza
de teu filho? Pois anda, e tira-lhe a única roupa que tem e expulsa-o de
sua cabana e tira-o de seu refúgio e nem desta maneira verás que ele se
enfadonha ou se põe triste; ainda te agradecerá por isto, pois não fazes
senão dar-lhe maiores impulsos à filosofia. Ao contrário, se te roubarem
dez dracmas, terás pranto e lamentações para toda a vida. Quem será,
pois, o mais rico: o que sofre por coisas mínimas ou o que despreza tudo
o que existe?

Mas não te contentes com isto. Desterra-o de todo o país e verás que ele
rirá do desterro, como se fosse brincadeira de criança. A ti ao contrário,
se só te desterrassem de tua cidade, sofrerias terrivelmente e não terias
nem forças para suportar tamanha desgraça. Já o monge, como dono que
se sente de toda a terra e de todo o mar, se transferirá com a mesma
facilidade e sem lástima de um lugar para o outro, como tu caminhas por
teus próprios campos, ou melhor dizendo, com mais facilidade que tu por
teus caminhos. Pois se é certo que tu podes andar por teus campos,
também é certo que tu terás que atravessar pelos campos alheios; mas o
monge anda por toda a terra como se fosse sua. Os lagos, os rios e as
fontes lhe oferecem por toda parte abundante bebida; comida, os legumes
e as ervas e um pedaço de pão lhe vêm de muitas partes.

Não quero dizer-te todavia que desdenhe do mundo inteiro, como quem
tem sua pátria no céu. E se chegar a hora de morrer, o monge terá por
mais doce a morte que todas as vossas delícias e pedirá a Deus que morra
antes desta maneira e não como vós em vossa pátria e leito. De modo que
bem se poderia chamar de errante, desterrado e de peregrino, quem tem
uma cidade e habita em uma casa, e não quem de tudo isto carece.
Porque ninguém poderá tira-lo de sua pátria, a não ser que o tirem da
terra inteira (falemos assim por enquanto; pois, segundo a verdadeira
razão, se o tiras deste mundo, então é quando melhor o pões em sua
pátria; mas não toquemos ainda neste ponto, pois tu não entendes mais
do que o que entra pelos olhos) nem o poderás despi-lo, enquanto estiver
vestido com o traje da virtude, nem o matarás de fome, enquanto souber
qual é o verdadeiro alimento. Os ricos, ao contrário, a todos estes
percalços estão expostos; de sorte que, segundo este raciocínio, não
estaria errado quem aos ricos qualificasse de pobres - e manifestamente
pobres -, e de realmente ricos os monges. Porque quem em toda parte
pode achar farta comida, bebida, casa e descanso e não só não sofre por
tudo isto, mas passa melhor do que vós em toda a vossa opulência, é
evidentemente mais opulento que vós, os ricos, que só em vossas casas
podeis ter abundância de todas estas coisas.

Por isso jamais se queixará o monge de sua pobreza. Porque esta


linhagem de riqueza não só é melhor do que a vossa pela sua abundância
e prazer, como também porque é inesgotável, não pode jamais
transformar-se em pobreza, não está sujeita às incertezas do porvir, nem
cria preocupações, nem está exposta à inveja, mas anda acompanhada da
admiração, louvor e aplauso de todo o mundo. Tudo isso é realmente o
oposto, do que acontece a vós. A vós, além de não vos louvarem as
pessoas, por vossa riqueza, se aborrecem e fogem de vós e vos invejam e
vos armam ciladas . O monge, por ser rico com a verdadeira riqueza, é
objeto de admiração e ninguém o inveja e nem arma ciladas.
NINGUÉM GOZA DE SAÚDE E DE PRAZER
COMPARÁVEIS À SAÚDE E AO PRAZER
DO MONGE
Pois vejamos agora quem gozará de melhor saúde. Não é verdade que o
monge, vivendo como os animais selvagens, é robusto e vigoroso de
corpo, como quem goza de ar puro, de águas limpas, das flores e
pradarias e de perfumes verdadeiros? O rico, ao contrário, está como se
estivesse jogado no barro, tem um corpo mais brando e está mais exposto
às enfermidades. Pois bem, quem é favorecido pela saúde, é claro que é
também no prazer. Quem tu achas, que realmente desfrutará melhor: o
que se deita na relva, junto a uma fonte límpida, na sombra das arvores
frondosas e que agrada os seus olhos com o espetáculo da natureza e
conserva sua alma mais pura que o próprio céu, e está muito distante das
tribulações e dos ruídos mundanos, ou o que vive trancado em sua
minúscula casa? Porque não me digas que os mármores são mais puros
do que o ar, nem que a sombra de um ornamento mais agradável do que
a das árvores , e nem mais grato contemplar um mosaico do que uma
pradaria com seu tapete de variadas flores. E disto vós mesmos, os ricos,
sois testemunhas, pois se vos fora dado ter em vossos pisos árvores e
acrescentar a vossas casas a alegria dos prados, vós os tomaríeis de
preferência a vossos ornamentos de ouro e a vossas paredes
maravilhosas. Pelo menos, quando desejais descansar de vossos muitos
afazeres, deixais vossas casas e correis ao campo.
A HONRA E A GLÓRIA DO MONGE,
SUPERIOR À DO MUNDO
Mas te lamentas talvez pela glória, por aquela abundante e grande
glória do mundo, que aqui não aparece em nenhuma parte? Comparando
os régios palácios com o deserto, e as esperanças que ali se abrigam com
as daqui, não crês que teu filho caiu de menor altura do que a que vai do
céu à terra. Pois bem, primeiramente o que devemos afirmar é que o
deserto não desonra a ninguém, e nem os palácios dão glória nem honra;
e antes de vir a argumentos, quero tirar teu pré julgamento por meio de
exemplos, que não vou tomar de nossos homens, mas dos vossos. Talvez
já ouvistes falar de Dionísio, tirano de Siracusa e também já ouviste falar
de Platão, filho de Ariston. Quem foi, pois, mais ilustre? Quem é agora
celebrado e anda na boca de todo o mundo? O filosofo não deixou para
trás o tirano? E, não obstante, um era o senhor de toda a Sicília e vivia
entre as delícias e nadava em riquezas e andava sempre rodeado de sua
guarda e do mais pomposo aparato. O outro, ao contrário, passava o
tempo no jardim da Academia, regando e plantando e comendo um
punhado de azeitonas, contentando-se com uma mesa frugal e alheio a
toda aquela fantasia do tirano. E não é isto ainda o que é o mais
maravilhoso, mas que quando se encontrou na condição de escravo e
tendo sido vendido por ordem do tirano, estava tão distante de parecer
menos glorioso do que ele por este percalço que, antes, ganhou honra e
respeito aos olhos do próprio tirano. Tal é a natureza da virtude que não
consente que aqueles que a praticam fiquem ocultos e desconhecidos, não
só pelo que fazem, como pelas próprias desgraças que sofrem.

E o que dizer de Sócrates, mestre de Platão? Quanto mais ilustre foi


Sócrates do que Arquelao? E, contudo, Arquelao era rei e vivia na
opulência; Sócrates, ao contrário, passava o seu tempo no Liceu, não
tinha mais do que uma vestimenta que usava tanto no inverno como no
verão e em todas as outras estações do ano, andava sempre descalço e
passava o dia sem comer e, quando o fazia, era só pão, e este lhe servia de
comida e condimento. E era tão extrema a sua pobreza, que nem sequer o
pão tinha em sua dispensa, mas o tomava da generosidade alheia. E com
tudo isso, era tão mais ilustre que o rei que, tendo-lhe convidado este
muitas vezes para ir a sua corte, não quis nunca abandonar o seu Liceu
para ir ver a riqueza de Arquelao. E pela fama que ainda agora domina,
aparece claro o passado: os nomes de muitos filósofos são muito
conhecidos; já não se pode dizer o mesmo dos tiranos.
E aquele outro Filosofo, Diógenes de Sínope, apesar de viver entre
farrapos, sentia-se em maior opulência que este e outros infinitos reis,
tanto é que aquele grande macedônio, filho de Filipe, na ocasião de
conduzir o seu exército contra os persas, uma vez veio até ele
pessoalmente e lhe perguntou se necessitava de algo e se queria algo dele;
e Diógenes lhe respondeu que não queria nada.

Tens já exemplos suficientes ou queres que te recorde de outros? Os


homens que te citei não só foram mais ilustres que os que brilham nos
palácios, mas mais ilustres que os próprios reis, apesar de terem levado
uma vida de recolhimento e alheia aos negócios e não terem se
aproximado nem da política. E ainda na própria política não verás que
brilham os que vivem na opulência, entre delícias e fausto, mas os que
levam a vida sóbria e simples. Entre os Atenienses, Aristides, que ao
morrer teve que ser enterrado por conta do estado, foi tão mais ilustre
que Alcebíades com toda a sua riqueza, linhagem, prazeres e eloqüência e
força corporal e nobreza de família e demais qualidades em que se
destacava, quanto pudesse ser um maravilhoso filósofo ao lado de um
pobre menino. E entre os tebanos, Epaminondas foi chamado para
assistir a 'ecclesia' ou a reunião do povo e não pode, por estar lavando a
única roupa que tinha, e nem por isso deixou de ser mais glorioso que os
generais ali reunidos.

Não me venhas, pois, com o deserto nem com os palácios; porque a glória
e a honra não vêm dos lugares nem das roupas nem da dignidade nem do
poder, mas unicamente da virtude de alma e da filosofia.
A POBREZA, GLORIOSA MESMO AOS
OLHOS DO MUNDO
6. Mas se por acaso os exemplos estranhos não tenham tanta força, vamos
examinar a questão em teu próprio filho, e o acharemos agora não só
mais glorioso, mas que o é justamente por aquilo que dizes ser vil e
desprezível. Vamos, pois, se te agrada, persuadi-lo a que desça do monte
e se apresente em praça pública e verás como a cidade inteira irá atrás
dele e que todos lhe acenarão e se pasmarão e se maravilharão, como se
houvesse descido um anjo do céu. Ou tu achas que a glória consiste em
outra coisa? Na verdade, não só parecerá teu filho mais ilustre que os que
moram em palácios, mas mais também do que o imperador com seu
diadema, e isto será justamente pelas suas roupas miseráveis e puídas. E
é certo que não causaria a todos tanta maravilha se se apresentasse
coberto de ouro e com manto de púrpura e com a coroa sobre sua cabeça,
ou se sentasse num palanque de seda, montasse lombo de mulas e se
rodeasse de uma guarda de lanceiros resplandecentes de ouro, como
agora que está sujo e esquálido, vestido com panos grosseiros, sem
acompanhamento de ninguém e com os pés descalços. Porque todo aquele
aparato do imperador é coisa estabelecida pelas leis e entra no cotidiano,
e, por isto, se alguém nos viesse contando vantagens porque viu o
imperador vestido com roupas de ouro, não só não nos admiraríamos,
mas riríamos de semelhante notícia, pois nada tem isto de extraordinário.
Mas venham e nos contem de teu filho que desprezou a riqueza paterna e
pisoteou a pompa mundana e, mostrando-se superior a todas as
esperanças humanas, se retirou ao deserto, e se vestiu com uma capa
imunda e miserável, isso sim, fará com que todos corram para vê-lo
imediatamente e os encherá de admiração e os obrigará a aplaudir sua
magnanimidade. Por outro lado, sendo infinitas as acusações que se
dirigem aos imperadores, suas roupas de ouro não os defendem
absolutamente nada contra elas. Tão distantes estão de converte-los por
si mesmos em seres admiráveis. O monge, ao contrário, só em seu hábito,
leva muitos motivos para que se o admire. Logo, se ninguém admira o rei
porque se veste de púrpura e todos se maravilham do hábito do monge,
segue-se que a túnica fará mais ilustre e glorioso o teu filho que a
púrpura o imperador.
O PODER DO MONGE, SUPERIOR AO DO
IMPERADOR
- E que proveito eu tiro da opinião e dos elogios das pessoas?
- A glória, pois, não é outra coisa senão isto.
- Não necessito - me contestas - de semelhante glória, pois busco
poder e honra.
- Pois os que o elogiarem, forçosamente também o honrarão. Mas,
afinal, já que queres poder e privilégios, também isto, não menos
do que tudo o que foi dito, acharemos em maior grau entre os
monges. Isto poderíamos fazer-te patente pela via dos exemplos;
mas voltando ao procedimento que mais te consola, vamos
examinar a questão somente sobre o teu próprio filho.
- Pois bem, o que dizes ser a prova de máximo poder? Não será o
poder vingar-se de quem nos ofende e recompensar a quem nos
faz um benefício? Na verdade, tamanho poder não se vê
inteiramente, nem mesmo no próprio imperador, pois existem
muitos que ofendem o imperador e ele não pode revidar, e muitos
que lhe fazem um benefício e que não é fácil para ele recompensa-
los. E assim, muitas vezes nas guerras, bem quisera ele vingar-se
dos inimigos que lhe ofendem e lhe causam danos infinitos, e não
pode; e a seus amigos que nas guerras fizeram grandes feitos,
tampouco pode ele glorifica-los como merecem, pois caídos no
mesmo campo de batalha, foram de antemão arrebatados de toda
a recompensa.
- Pois o que dirás se te demonstrar que este poder, do qual, como nosso
raciocínio demonstrou, não gozam nem mesmo os imperadores, o possui
teu filho no mais alto grau? E não penses que vou falar dos bens do céu,
dos quais não acreditas; não me esqueci até este ponto das minhas
promessas. Não. Minha demonstração há de se apoiar no que aqui
acontece. Pois bem, se o poder máximo consiste em podermos nos vingar
de quem nos ofende, muito melhor seria encontrar um gênero de vida em
que ninguém, ainda que quisesse, pudesse nos ofender. E que este poder é
superior ao primeiro, veremos patente e manifesto transferindo nosso
raciocínio para outro exemplo. Senão me dize-me: O que seria melhor:
ter muita destreza na arte da guerra que ninguém nos pudesse ferir sem
ficar ele ferido ou possuir um corpo de tal condição que ninguém, fizesse
o que fizesse, pudesse feri-lo? Qualquer um vê que este poder é superior
ao outro e se aproxima do divino. E não há só este, mas outro ainda mais
alto que este. Que poder pode ser este? Saber os remédios com que todas
as feridas desaparecem sem deixar rastros. Acertado está pois, que há
três graus de poder: Primeiro, podermos nos vingar de quem nos ofende;
segundo, superior ao primeiro, curar as próprias feridas (o que não se
segue necessariamente do primeiro) e terceiro, não ser vulnerável a
nenhum homem vivente (com o que, na verdade, se sai da natureza
humana), e vou demonstrar-te que é este o poder que teu filho possui.
NINGUÉM QUER, MESMO QUE POSSA,
FAZER MAL AO MONGE
7. E que as minhas palavras não são puro ruído, prova o fato de que, pelo
andar de nossas pesquisas, encontramos um outro poder maior do que
este que dissemos. Porque não é só que ninguém possa lhe fazer mal; é
que também não se verá ninguém que queira faze-lo; com isto a sua
segurança está duplamente protegida. Que vida, pois, pode existir mais
divina que esta em que ninguém há de querer nem, ainda que quisesse,
ninguém poderia nos fazer mal? E, assinaladamente, quando o não
querer não procede, como acontece normalmente, do não poder, mas de
não achar motivo algum. Porque se se tratasse de um só destes extremos,
quero dizer, do mero não poder, o benefício não seria tão grande, pois a
própria impotência engendraria ódio profundo em quem quisesse e não
pudesse prejudicar. E, ainda assim, esta não seria pequena felicidade.
Pois examinemos já, se estiveres de acordo, primeiramente este ponto.
Pois bem, dize, quem terá interesse em prejudicar quem não tem nada a
ver com os homens, que não se mete em tratos e contratos, não tem
terras, nem maneja dinheiro, nem entende de negócios, nem se mete em
nenhuma outra coisa? Que campos, que escravos, que valores poderiam
ser objeto de contenda? O que se pode temer, que injúria se pode receber
de um monge? Na verdade, o que nos empurra a prejudicar aos outros é
ou a inveja, ou o medo, ou a ira. Mas o monge, mais rei que todos os reis,
está acima de todas estas paixões. Quem vai realmente invejar ao que ri
de tudo isto que faz os homens se matarem e se açoitarem? Quem se
irritará, quando em nada é ofendido? Quem temerá, se de nada
suspeita?

Em conclusão, é evidente, pelo que foi dito, que ninguém quererá


prejudicar um monge; e resulta não menos evidente que, mesmo que
quisesse, ninguém haveria de poder prejudicá-lo. E, de fato, nenhum
pretexto, nenhuma ocasião se oferece por onde se possa apanha-lo. Como
uma águia que se lança nas alturas não pode ser presa nos laços que se
estende aos pardais, assim, nem mais nem menos, é o monge. Na verdade,
por onde poderia ser prejudicado? Não possui dinheiro, para ser
ameaçado com uma multa; não conhece pátria, para ameaça-lo com o
desterro; não tem ambição de gloria para que sofra uma desonra. Não
resta senão a morte; mas é aqui que menos se pode prejudicá-lo, isto
antes lhe faria o maior beneficio. A morte o envia para a outra vida que é
a que ele mais deseja, à qual dirige todas as suas ações e afazeres. A
morte é para o monge uma libertação; não castigo, mas término e
descanso de sua fadiga.
O MONGE, SUPERIOR AOS TORMENTOS
Desejas saber outra linhagem de poder de teu filho, muito mais filosófica
do que a que acabamos de contar? Submeta-o a tormentos sem conta,
açoite-o, encarcere-o, e o corpo, sim, sofrerá pela lei da natureza; mas a
alma permanecerá sem comover-se graças a sua filosofia, e nem se
deixará arrebatar pela ira e nem será dominado pelo ódio e nem
derrotado pela inimizade. E ainda não é isso o que é grande, mas há
outra maravilha maior, é que aos que assim o maltratam, ele ama como
se fossem benfeitores e protetores e, como tais, roga a Deus que os cubra
de todo o gênero de bens. Na verdade, quando terias dado a teu filho algo
semelhante, ainda que mil vezes o tivesses feito rei de toda a terra e se
houvesses por mil anos prolongado seu reinado? Que púrpura, que
império, que gloria há de ser mais preciosa do que esta riqueza? Quem
não daria qualquer coisa para possuir uma alma desta têmpera? Parece-
me que, mesmo os mais apaixonados pelo corporal terão o desejo de uma
vida semelhante.
O PODER DO MONGE EM FAVOR DOS
DEMAIS
Queres ver outro poder deste homem, que é mais maravilhoso e suave e
de raiz talvez mais humilde, mas que a ti parecerá muito grato? O que foi
dito até aqui mostra que nada pode atacá-lo nem rendê-lo; mas talvez
queiras saber se ele será também capaz de proteger aos demais a coloca-
los em muita segurança. Pois sim, o primeiro auxílio do monge é incitar
os demais para que sigam seu exemplo, e com isto faze-los mais fortes.
Mas se por acaso preferirem não segui-lo, e optarem por uma vida
voltada ao mais humano e terreno, também por isso verás que teu filho
que não tem nada , e justamente por não ter nada, goza de mais poder do
que tu que nadas em opulência. Efetivamente, quem conversará com
mais autoridade com o imperador e até o repreenderá: tu que tanto
possuis e que por isto estás sujeito mesmo a seus escravos; tu que temes
por tudo e lhe ofereces mil motivos para prejudicar-te, se quiser, em um
ímpeto de cólera, ou o monge que está fora do alcance das mãos do
imperador? De fato, quem com mais autoridade sempre tem falado aos
reis tem sido aqueles que se apartaram de todas as coisas da vida. E a
quem se renderá e obedecerá aquele que está constituído em poder e que
mora nos palácios: a ti, rico, de quem suspeita fazer muitas vezes muitas
coisas por puro amor ao dinheiro, ou a quem não tem outro objetivo
senão a caridade para com o próximo? A quem ele honrará e admirará:
àquele que está acima de qualquer suspeita, ou a quem considera mais
abjeto que seus próprios escravos? Porque do mesmo modo que, em se
tratando de dinheiro, sempre obedecerão aos monges mais do que aos
leigos, assim também quando pedirem proteção para os outros.
A VIDA E AS PALAVRAS DO MONGE,
FONTE DE CONSOLO NA DESGRAÇA
8. Mas, se te agrada, suponhamos que teu filho não consiga nada por
intermédio dos outros, senão por si mesmo, e assim levemos um
desgraçado a sua presença e ante a tua, ou melhor, não ante a tua
presença, mas ante o imperador em pessoa. E vejamos quem poderá
ajudá-lo melhor na sua desgraça. E que seja o primeiro a apresentar-se
uma pessoa que tenha sofrido a mais dura calamidade que se pode sofrer
neste mundo, por exemplo, um pai que tem um filho único e o perde na
flor da idade. Não há juiz ou imperador, nem ninguém neste mundo que
possa aliviar em nada a desgraça deste pai, muito menos tu; pois nada lhe
podes dar que eqüivalha ao que foi perdido. Mas o levemos a teu filho e
em primeiro lugar aquela visão, aquele hábito, aquele modo de vida
servirão prontamente para levantar-lhe o ânimo e convencê-lo a não dar
importância às coisas humanas; e logo, com as suas palavras, dissipará
facilmente a nuvem de tristeza do homem aflito. Se entrar, porém, em tua
casa, não fará senão aumentar a sua dor. Ao vê-la livre de desgraças, em
abundância de felicidade, com o herdeiro seguro, se acenderá cada vez
mais a sua ira; mas do deserto ele voltará mais manso e disposto à
resignação. Vendo, efetivamente, como teu filho desprezou tão grande
fazenda, tanta glória e esplendor, já não sentirá tão vivamente a morte do
seu. Como condoer-se de já não ter um herdeiro para os seus bens, ao ver
que outro menosprezou tudo isto? E facilmente escutaremos suas
palavras sobre filosofia, pois vão acompanhadas da verdade das obras.
Mas se tu te atrevesses a apenas abrir a boca, não farias com isso senão
enche-lo de tristeza maior, pois tomarias as desgraças alheias como tema
de especulação. Teu filho, ensinando-o pelos fatos, o convencerá
facilmente que a morte não se diferencia de um sono. Não irá se entreter
em ir enumerando os pais que passaram pela mesma desgraça, mas o
fará ver em si mesmo como cada dia se exercita em morrer em seu corpo
e se acha sempre preparado para a morte e, fazendo mais acreditável a
doutrina sobre a ressurreição, o despedirá aliviado da maior parte do
peso de sua dor. Enfim, tanto as palavras do monge quanto a
demonstração através dos olhos consolarão melhor este pai aflito, do que
todos aqueles que o acompanham e o rodeiam nos seus banquetes.

A este curará deste modo. Pois, levemos, se te agrada, mais um, que
depois de uma enfermidade, perdeu os olhos. O que poderás fazer em
favor deste pobre cego? O monge, ao contrário, mostrando-lhe que isto
não é nenhum mal, pois ele mesmo vive trancado numa minúscula cela e
corre em direção a outra luz, em comparação à qual considera trevas a
presente, o ensinará a carregar generosamente a sua desgraça. E a quem
sofreu um dano serás capaz de convencer que o leve resignadamente? De
nenhuma maneira. O que irá acontecer é que irás molestá-lo ainda mais,
pois nunca vemos tão claramente nossos males, como quando ressaltam
em contraste com os bens alheios. E passo por alto a ajuda da oração, que
vale mais que tudo o que disse, e a passo por alto porque estou agora
falando contigo.
A GLÓRIA DO FILHO CONVERTE-SE NA
DO PAI
E se queres ser honrado pelo teu filho e que ninguém te menospreze (e é
natural que tu ames apaixonadamente esta glória), eu não sei de que
melhor maneira poderias conseguir isto, do que tendo um filho que se
eleva acima da natureza humana, tão ilustre parece em toda a face da
terra e, não obstante tamanha glória, não tem um só inimigo. Por haver
alcançado o poderio do mundo, para muitos, certamente, seria objeto de
respeito; mas outros tantos o aborreceriam. Agora, ao contrário, todos os
que o honram, o fazem de boa vontade. Porque se homens humildes e de
origem humilde, filhos de lavradores e artesãos, por haver abraçado este
gênero de filosofia, chegarem a ser tão honrados aos olhos de todo o
mundo que os mais altos dignitários do império não desdenharão ir
visita-los em seus tugúrios, conversar com eles e sentar-se a sua mesa, e
considerarem isto (como o é, na verdade) uma grande sorte; com maior
razão agirão assim, quando virem teu filho professar essa mesma virtude,
tendo vindo de uma família ilustre, de ilustre propriedade e de tão altas
esperanças. De sorte que o mesmo que tu tanto lamentas, a saber, que teu
filho tivesse abandonado tudo isto e marchado para o deserto, isto é o que
claramente lhe dá a glória e leva todo o mundo a que não o veja mais
como um homem, mas como um anjo do céu. Ninguém suspeitará de teu
filho o mesmo que o vulgo supõe dos outros, isto é, que tenha tomado este
caminho por ambição de honra ou por apetência ao dinheiro ou por
desejo de sair de sua condição humilde para outra melhor. Certo que
mesmo em se tratando dos outros tudo isto é mentira e maldade pura do
povo; mas no caso de teu filho não fica nenhum motivo para suspeita.
A GLÓRIA DO MONGE NÃO DEPENDE DA
PIEDADE DOS QUE MANDAM
9. E não penses que a glória de teu filho depende somente de que os
imperadores sejam cristãos. Não. Ainda que o império mudasse e os que
mandam voltassem a ser infiéis, a glória de teu filho brilharia ainda mais
que agora. Porque nossa religião não é regida pelas mesmas leis que o
paganismo, nem está sujeita à variação das opiniões dos que mandam,
mas se estriba em sua própria força, e brilha especialmente quando é
mais ferozmente perseguida. Claro que o soldado tem sua glória mesmo
em tempo de paz; mas a alcançará mais brilhantemente, se estoura a
guerra. De modo que, ainda que imperassem gentios, tua honra seria a
mesma e até maior. Porque os que em tempo de paz reverenciaram o teu
filho, muito mais o reverenciarão quando o virem na linha de combate,
trabalhando com maior liberdade e confiança e tendo mil ocasiões para
cobrir-se de glória.
A CONDUTA DOS MONGES COM OS SEUS
PAIS
Pois examinemos agora, se tu não te importas, a conduta de teu filho
para contigo, se tu não tiveres este ponto por coisa supérflua; porque
quem se mostra tão manso e brando para os outros e que a ninguém dá
motivo de desgosto, irá honrar muito mais e com toda a reverência a seu
próprio pai e terá muito mais cuidado com ele do que se tivesse alcançado
uma alta dignidade mundana. Pois se assumisse uma alta magistratura,
não seria inteiramente seguro que não desconhecesse seu próprio pai;
mas agora, escolheu um gênero de vida que, mesmo que fosse mais
imperador que o imperador, seria para ti o mais humilde do mundo. Tal
é, com efeito, a nossa filosofia, que sabe unir em uma alma qualidades
que parecem contrarias, tais como a moderação e a exaltação. Ademais,
na primeira hipótese, como pudesse ser ambicioso pelo dinheiro, estaria
talvez desejando a tua morte; agora, ao contrário, está rogando a Deus
que prolongue indefinidamente a tua vida, para alcançar também nisto a
mais brilhante coroa de glória. Porque, na verdade, não é pequena a
glória que nos é prometida, se honrarmos aqueles que nos geraram, como
também temos o mandamento de olhá-los como nossos mestres e servi-los
com palavra e obra, sempre que não resulte em detrimento da religião.

"O que lhes devolverás",

diz a Escritura

"que se eqüivalha ao que eles te deram?"


Ecle. 7,30

Considera, portanto, que quem em tudo alcançou o cume da virtude, é


natural que guarde também com extrema perfeição este preceito. E, na
verdade, se fosse necessário morrer por tí, ele não recusaria, pois quer te
servir e honrar, não só pela lei que impõe a natureza, mas, antes de tudo,
por amor a Deus, por quem também desprezou todo o resto, de uma só
vez.

Em conclusão, estejas certo que teu filho é agora mais glorioso, mais
opulento, mais poderoso e mais livre do que nunca e, com toda esta
grandeza de alma, também mais submisso a ti.

Dize, que motivo te resta a lamentar? Será que te lamentas por não estar
tremendo diariamente de medo que ele caia morto num campo de
batalha, de que não ofenda por acaso o imperador, de que não seja vitima
da inveja e da antipatia de seus companheiros de armas? Ou não é por
isto, e por outros percalços possíveis, que temem os pais de filhos nobres e
famosos? Porque os que elevaram seus filhos a uma grande magistratura,
são como os que colocaram uma criança em lugar alto, e que
forçosamente temem que a criança caia.

Então me dizes: - Mas também tem seu prazer cingir-se a faixa, vestir a
clâmide e ouvir a voz do arauto.

- E quantos dias - dize - durará tudo isto? Trinta, cem, duzentos? E


depois? Quando tudo aquilo se dissipar como um sonho, como um conto,
como uma sombra? A honra de teu filho, ao contrário, dura até o fim, ou
melhor dizendo, até depois da morte, e então é até maior, e ninguém lhe
poderá arrebatar esta dignidade, posto que esta não lhe foi conferida por
mãos humanas, mas pela própria virtude. Mas tu gostarias de ver teu
filho arrastando um luxuoso manto, montado a cavalo, entre uma
multidão de criados e um enxame de parasitas e aduladores. E para que
tu desejas tudo isto? Sem duvida com a melhor intenção de
proporcionar-lhe prazer. Pois bem, que dirias se ouvisses de teu filho
(pois talvez em mim não creias) que ele considera sua vida tão mais doce
do que a de quem vive entre delícias, fornicações, música, parasitas e
aduladores e nas demais dissoluções, que preferiria morrer mil vezes se
lhe mandassem deixar o prazer de sua vida e passar aos mundanos? Tu
não sabes o prazer que leva consigo uma vida sem preocupações; nem tu
nem talvez homem algum, pois ainda não a saboreastes em sua pureza.
Pois que vida pode ser melhor do que esta em que o homem é mais ilustre
e se juntam apenas coisas que podem ser colocadas juntas, tais como
segurança e glória?
CONTRASTE ENTRE A VELHICE
QUEIXOSA DO MUNDANO E A ALEGRIA
DO MONGE
- Mas com que fim - dizes - vens a mim com tudo isto, quando estou tão
distante de toda a filosofia?

-Por que, então, também impedes o teu filho que se aproxime dela?
Melhor seria que o prejuízo se detivesse em ti. Não consideras como o
maior dos danos que vós, chegados à velhice, como alguém que não
tivesse colhido bem algum da vida passada, não fazeis senão vos irritar
com a própria velhice?

- Sim, nos irritamos - respondes - mas é justamente porque a juventude


nos proporcionou grandes bens.

- Que grandes bens são esses? Mostra-me um só velho que possua esses
grandes bens. Se alguma vez os tivesse tido e tivessem permanecido
firmes, não se lamentaria agora como um homem a quem despojaram de
tudo. E se voaram e se murcharam, que classe de grandeza é esta que tão
velozmente se desvanece?

Nada disto há de acontecer a teu filho; mas se acontecer que chegue a


grande velhice, não o verás lançando estes gemidos que vós exalais, mas
estará alegre, satisfeito e jubiloso, pois será então que seus bens
alcançarão todo o seu vigor. Vossa riqueza, ainda quando tiveres
possuído imensos bens, se reduziu a vossa primeira idade; a nossa não é
assim, pois também permanece na velhice e nos acompanha depois da
morte. Daí que vós, quando percebeis que na velhice aumentam os vossos
patrimônios e que por toda a parte se vos oferecem ocasiões de glória e de
prazer, vos desesperais por não ser já vossa idade própria para gozá-los;
e pela mesma razão, vos estremeceis ao pensamento da morte e, quando
chegais à cúspide de vossa prosperidade, então assinaladamente vos
declarais os mais miseráveis de todos. Teu filho, entretanto, quando
chegar à velhice, será quando mais descansará, como quem corre a toda
a vela para o porto e para uma juventude que nunca se desvanece e nem
conhece a velhice. E tu quererias que teu filho gozasse de prazeres de que
mil vezes haveria de arrepender-se e seriam fonte de dor em sua velhice?
Não queira Deus que deles gozem nem os nossos piores inimigos.
QUÃO RÁPIDO SE VAI O PRAZER
Mas, o que eu digo, na velhice? Em um só dia se extinguem tais
prazeres, ou, melhor dizendo, não em um só dia, não em uma
hora, mas em um momento, em um abrir e fechar de olhos.
Porque, o que entendes por prazer? Não será o banquetear-se e
colocar-se em mesas sibaríticas e gozar de belas mulheres, como
porcos que chafurdam na lama?

10. Mas não toquemos ainda neste assunto. Examinemos no momento se o


prazer em si não é coisa fria e vil e, se te agradar, vejamos primeiro este
que parece o mais agradável: o prazer da gula. Mostra-me, pois, o tempo
que dura este prazer e durante que parte do dia seríeis capazes de retê-lo.
Tanto que apenas pode-se ver claramente. Porque apenas alguém se
tenha saciado, terminou o prazer e, ainda mais a satisfação passa mais
veloz do que uma torrente e se desvanece na garganta e não acompanha
sequer os alimentos ao estômago. Apenas passa pela língua e perde toda a
sua força. E me calarei sobre os outros inconvenientes e sobre a tormenta
que se segue à gula. Não só é mais agradável o homem que não se entrega
a ela, mas sente-se mais leve e dorme mais facilmente do que aquele que
se arrebenta de pura saciedade.

"Sonho de saúde",

diz a Escritura,

"no estômago moderado".


Ecle. 31,24

E para que falar das enfermidades, moléstias, calamidades e gastos


supérfluos? E que disputas, que insídias e danos não nascem dos
banquetes!

- Mas é doce - dizes - o trato com as mulheres rameiras.

- Que prazer pode haver entre tanta vergonha? Mas não toquemos ainda
aqui neste ponto por enquanto; não falemos das lutas entre amantes nem
das guerras e das acusações entre rivais. Deixemos barato que se possa
gozar com toda a tranqüilidade desta devassidão, que não surja o rival,
não venha o desprezo da meretriz e mane o dinheiro como de fontes. Na
verdade, não é possível que aconteçam juntas todas estas coisas. O que
não quiser ter rival, não terá outro remédio senão arruinar toda a sua
fazenda, afim de ganhar em esplendor todos os demais; e o que não
quiser parar na miséria, terá que agüentar o desdém e o cuspe da
rameira. Mas, enfim, suponhamos que não haja nada disso e tudo saia ao
impudico como ele espera. Podes me dizer agora onde está o prazer que
se segue destes tratos? Certamente não se acha no momento da união
carnal, pois o que a consumou, por isso mesmo, extinguiu todo o prazer;
e o que não o consumou, não sente prazer, mas tumulto e agitação e
abrasamento.

Não é deste timbre o prazer que se dá entre nós nem tal Deus consinta.
Nossos prazeres deixam sempre serena a alma e não trazem consigo
ruído nem perturbação alguma; antes, trazem uma alegria pura, sincera
e gloriosa, que não tem término e é mais intensa e poderosa que a vossa.
Prova de que nosso prazer é mais agradável que o vosso é que o medo
bastaria para vos apartar dele; e se o imperador promulgasse um edito
ameaçando de morte aos impudicos, a maior parte dos homens se
apartaria deste prazer; ao contrário, mil mortes não bastariam para nos
obrigar a desprezar o nosso. Nós nos riríamos de quem assim nos
ameaçasse. Tanto mais forte, tanto mais agradável é um prazer que outro
e não admitem sequer comparação entre si.

Não invejes, pois, o teu filho que se passou de bens que fluem como água,
ou melhor dizendo, de bens que não têm ser nem importância, a bens
verdadeiros e firmes, nem chores por quem merece ser parabenizado.
Teu choro seria melhor empregado por quem não é como ele e é levado e
traído, como se estivesse em mar revolto, pela vida presente.
OS PRÊMIOS E CASTIGOS DA VIDA
FUTURA
E chegamos ao ponto capital, pois por mais incrédulo e pagão que tu
sejas, também admitirás este raciocínio. Indubitavelmente, tu já ouviste
falar dos rios Cocito e Periflegonte, da água da lagoa Estígia e do Tártaro
que dista da terra o quanto a terra do céu e de muitos gêneros de castigo.
Porque, embora os gentios não tenham podido dizer como são realmente
estas coisas, no final como que guiados unicamente pela razão e pelo que
ouviram dos nossos dogmas, com efeito, ainda tiveram como que um
vislumbre do juízo, e encontrarás especulações de todos os poetas,
filósofos e historiadores acerca destas verdades. E também já ouvistes
falar de campos Elíseos e de ilhas afortunadas e campinas e mirtos e aura
delicada e abundante fragrância, que dançam, e dos coros que vivem ali,
vestidos de branca roupagem, entoam certos hinos, e que a bons e a maus
espera, de modo absoluto, o merecido, depois da viagem da presente
vida.

Pois bem, com estes pensamentos como pensas que vivem os bons e os
maus? Não é verdade que os maus, que se envolvem com estes prazeres,
ainda supondo que os gozem sem dor e tudo na vida lhes saia a contento,
sentem-se aguilhoados, como por um açoite, pelos remorsos de sua
consciência e o temor dos tormentos que os esperam; os bons, ao
contrário, por maiores calamidades que tenham que sofrer, têm, como
disse Píndaro (frag.233), a esperança como nutriz, que não os deixa sentir
os males da vida presente?

De sorte que, ainda por este lado, o prazer da virtude é maior que o
prazer do pecado. Muito melhor é efetivamente, começar por trabalhos
momentâneos e terminar em descanso sem fim, que não gozar em um
momento de prazeres aparentes e terminar nos tormentos mais amargos
e insuportáveis. Enfim, se a tudo isto se adiciona o que já está assentado e
concordado, a saber, que a vida virtuosa é também neste mundo mais
agradável, não será forçoso façamos agora o que no começo do meu
discurso eu disse: que lastimemos os que choram estes bens? Não. Não
merece certamente teu filho que o lastimemos, mas que o aplaudamos e
coroemos, como alguém que se elevou a uma vida sem tormentas e a um
porto tranqüilo.
DEVE-SE DESPREZAR AS ZOMBARIAS
TOLAS
Mas zombam de ti - me dizes - muitos pais que têm seus filhos metidos
nos negócios da vida presente, outros rompem-se em choro quando te
vêem, outros riem. Mas por que não zombas tu e não te lamentas com
mais razão por eles? Porque o que se deve examinar não é se as pessoas
zombam ou não de nós; mas se há razão e motivo justo para tais
zombarias. Se há razão, mesmo que ninguém ria, temos que chorar; e se
não há, mesmo que todo o mundo zombe, devemos nos considerar felizes
e ter pena de quem zomba, como se fossem pessoas completamente
desgraçadas e que não se diferem em nada dos loucos. Porque é coisa de
louco, ou de pessoas que sofrem de enfermidade próxima da loucura, rir-
se de coisas que merecem mil louvores e coroas. Pois, dize: Se tivesse
enlouquecido o teu filho pela tolice de bailarinas e de meretrizes, e todo o
mundo te louvasse e se maravilhasse e te desse mil parabéns, não
acharias tu que seria pura troça e escárnio? E se, ao contrário, levando
ao fim uma ação generosa e digna de aplauso, acontecesse que as pessoas
rissem e zombassem, tu não dirias que elas estão completamente loucas?
Pois, façamos assim também agora; não sentenciemos a causa de teu filho
levados pela opinião do vulgo, mas pelo rigoroso exame da razão e verás
que, comparando uns filhos com os outros, estes que se riem são pais de
filhos escravos e não livres.
CONFIRMA-SE O QUE FOI DITO COM UM
EXEMPLO
Agora, certo, entre as sombras de tua dor, não poderás nem levantar os
olhos a estas considerações; mas apenas te recomponhas um pouco e teu
filho comece a dar mostras de sua grande virtude, já não terás
necessidade de argumentos, mas tu mesmo dirás tudo isto e muito mais
aos outros. E não te faço esta profecia como fogo de palha, mas
fundamentado na própria experiência. Eu tive um companheiro que
tinha um pai infiel, rico e nobre e por todos os conceitos ilustre. Este,
pois, no princípio da vocação de seu filho, chegou a por em movimento os
próprios magistrados, o ameaçou coloca-lo na prisão e, por fim,
despojando-o de tudo, o abandonou em terra estranha, privado até do
alimento necessário, crendo que assim o haveria de reduzir a uma vida
mais de acordo com os usos do mundo. Mas tendo visto que nada o fazia
desistir, vencido o pai, cantou a retratação e agora honra e venera este
filho mais intensamente do que como pai, e tendo muitos outro filhos
ilustres, afirma que não valem nem para escravos do primeiro. E ele
mesmo, enfim, é muito mais glorioso por causa deste filho.

O mesmo havemos de ver cumprido em teu filho; e que não minto, tu


mesmo hás de ver claramente pelos fatos. Por isso me calo já e só te peço
uma coisa: aguarde só um ano, ou menos (pois nossa virtude, brotando
como brota da graça de Deus, não requer muitos dias) e verás como a
realidade confirma tudo o que eu te disse, e não só considerarás bom o
que aconteceu, mas aos poucos quererás levantar o teu espirito e virás a
ser rapidamente um imitador de teu filho e o terás por mestre na virtude.

São João Crisóstomo


349 - 407 DC

CONTRA OS IMPUGNADORES
DA VIDA MONÁSTICA
DISCURSO TERCEIRO

A UM PAI CRISTÃO

INTRODUÇÃO
1. Pois façamos ver também, a um pai cristão, que não deve fazer guerra
aos que induzem seu filho a cumprir o que agrada a Deus. Na verdade,
está prestes a resultar redundante este discurso, e irá suceder o inverso
do que eu dissera antes. Disse na ocasião que a lei deste combate não me
obrigava a lutar com um gentio, mas que Paulo, ao me mandar julgar
unicamente os de dentro, me eximia de toda a luta contra os de fora. Mas
agora, ao que me parece, tampouco estou obrigado a começar o presente
combate, pois se já antes de meus argumentos era vergonhoso discutir
com um cristão sobre isto, muito mais há de ser agora. Como não corar,
efetivamente, um crente por necessitar de exortações em um ponto sobre
o qual nada nos pode replicar um infiel?

Pois bem, vamos nos calar por isto e não abriremos a boca? De maneira
nenhuma. Se houvesse alguém que nos garantisse o porvir e nos fizesse
ver com evidência que ninguém daqui por diante viesse a cometer aqueles
desaforos, seria bom que ficássemos em silêncio e jogássemos terra sobre
o passado; mas como disto não temos nenhum fiador seguro, não há
outro remédio, a não ser voltar para os nossos argumentos e exortações.
E se nossa exortação chegar a quem sofre desta enfermidade, o remédio
produzirá o seu efeito; e se não houver ninguém que esteja doente,
teremos conseguido o que desejávamos. Os médicos, ainda depois de
preparados os remédios para os enfermos, o que gostariam é de não ter
que aplicá-los; e nós, pela mesma razão, o que pedimos a Deus é que
nenhum dos nossos irmãos tenha necessidade da presente exortação;
porém se acontecer o que Deus não deseja, não há de lhe faltar, como diz
o provérbio, a segunda navegação.
LANÇA-SE A CAUSA PERANTE O
TRIBUNAL DE DEUS
Imaginemos, pois, também aqui um pai cristão com o mesmo estilo de
um gentio, e que seja em tudo talhado pelo mesmo padrão, exceto em sua
fé em Deus. Lamente-se também este, arroje-se aos pés de todos, alegue
seus cabelos brancos, sua velhice, sua solidão e tudo o demais que já
sabemos, e excite à vontade a indignação dos juizes. Mas não. Tratando-
se de um cristão, a causa já não pode ser ventilada diante de um tribunal
de homens, pois o cristão ouviu o que homens cheios do Espírito nos têm
ensinado sobre aquele terrível e espantoso tribunal a que havemos de
comparecer depois da presente peregrinação. Recorde-se, antes de todas
as coisas, daquele dia em que o fogo correrá como um rio, arderá a
chama inextinguível, se escurecerá o sol, se esconderá a lua, cairão as
estrelas, se dobrarão os céus, se abalarão as potências, será sacudida e
abrasada por toda parte a terra, ressoará terrível e a intervalos a
trombeta, os anjos percorrerão a orbe, aqueles anjos que aos milhares
assistem ante o trono de Deus e dezenas de milhares o servem.
Juntamente com o juiz aparecerão os seus exércitos, com o sinal
brilhante a frente, se colocará em um trono, se abrirão os livros, brilhará
a glória inacessível, se ouvirá a voz terrível e espantosa do juiz que envia
uns ao fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos e fecha para
outros as portas depois de todo o trabalho da virgindade. Alí mandará a
seus ministros; a uns, que amarrem em feixes a cizânia e a atirem ao
forno de fogo; a outros, que atem os pés e as mãos a alguns e os lancem
nas trevas exteriores, onde será irremediável o ranger dos dentes. E
castigará com o mais doloroso e duro suplicio alguém, só por ter olhado
com olhos intemperantes; a outro, por ter se divertido fora do tempo; a
outro, por haver condenado sem exame o seu próximo; a outro, só por ter
pronunciado uma maldição. Pois, ainda que para estas coisas exista
castigo determinado, não há mais que fazer senão ouvir como nos diz e
ameaça o mesmo que há de nos aplicar os suplícios.

Uma vez saídos deste mundo, todos teremos que nos apresentar,
obrigatoriamente, perante este juiz; forçosamente veremos aquele dia em
que tudo ficará patente e desnudado, não só nossas obras e palavras, mas
nossos próprios pensamentos.
DEUS NOS MANDA ATENDER À
SALVAÇÃO DO NOSSO PRÓXIMO NÃO
MENOS QUE A NOSSA
2. Na verdade, de coisas que agora nos parecem miúdas, nos pedirão então
depois a mais espantosa conta. Com o mesmo rigor nos exigirá o Juiz
nossa própria salvação como a salvação de nosso próximo. Por isso Paulo
nos exorta a cada momento que não busquemos os nossos interesses, mas
o de nosso próximo. Por esta razão repreende vivamente os coríntios de
não haverem tomado nenhuma providência e nem se preocupado com o
assunto do incestuoso (1 Cor. 10, 24), mas de permitirem que se
inflamasse mais a ferida. E escrevendo aos gálatas, dizia:

"Irmãos, se algum homem for surpreendido em algum


delito, vós, que sois espirituais, admoestai-o".
Gal. 6,1

E antes que aos gálatas fez a mesma recomendação aos tessalonicenses,


dizendo:

"Consolai-vos uns aos outros, como já o fazeis".

E outra vez:

"Corrigi os indisciplinados, consolai os pusilânimes, apoiai


os débeis".
1 Tes 5,11-14

Talvez alguém dissesse: O que tenho eu a ver com os demais? O que se


perde que se perca, e o que se salva que se salve. Eu em nada me importo
com isto; só me importo comigo. Pois para que se corte tão desumano e
feroz pensamento, o Apóstolo nos impôs a muralha destas leis,
ordenando-nos em muitas ocasiões largar nossos próprios interesses para
buscar o interesse do próximo, e com isso afirma e define, em toda parte,
a perfeição da vida. Também, escrevendo aos Romanos, manda que se
tenha em muita conta este ponto, estabelecendo os fortes como pais dos
débeis e encarecendo que se preocupem com a sua salvação (Rom 15,17).
E ainda aqui fala em tom de exortação e de conselho, mas em outras
passagens sacode energicamente a alma de seus ouvintes, afirmando que
aqueles que se descuidam da salvação de seus irmãos pecam contra o
próprio Cristo e arruinam o templo de Deus (1 Cor 8,12). E não disse isto
da sua autoria, mas por ter aprendido com o seu Mestre. E é deste modo
que o Unigênito de Deus, querendo nos ensinar quanto é necessário este
dever e o quanto são grandes os males que esperam a quem não os quiser
cumprir, disse:

"Ao que escandalizar a um desses pequeninos, mais lhe


valeria que lhe pendurassem uma pedra de moinho ao
pescoço e o jogassem no fundo do mar".
Mt 18, 6

E aquele que apresentou o talento recebido, não foi daquele modo


castigado porque descuidara do que não lhe pertencia, mas por não
haver se importado com a salvação dos demais. De maneira que, mesmo
se, no que se refere a nossa própria vida, tenhamos sido perfeitos, isso em
nada nos aproveitará, dado que este pecado é suficiente para irmos para
o fundo do inferno. Porque se não existe desculpa possível para aqueles
que não querem socorrer a seus próximos nas necessidades corporais e,
mesmo se tiverem praticado a virgindade, serão excluídos da câmara
nupcial, como não pensar que há de sofrer todos os tormentos aquele que
faltar em coisa tão mais importante quanto a alma em relação ao corpo?
Deus não constituiu o homem de maneira que fosse útil só para si mesmo,
mas que também o fosse para os demais. Por isso Paulo chama também
aos fiéis 'luminares' (Flp 2,15), com o que dá a entender que serão
também úteis aos demais. Um luminar, enquanto só a si mesmo ilumina,
não pode ser chamado luminar. Por esta razão disse ele que aqueles que
se descuidam dos seus são piores que os próprios gentios. Eis as suas
palavras:

"Se alguém não provê aos seus, e principalmente aos seus


criados, negou a fé e é pior que um infiel".
1 Ti 5, 8

Porque o que tu pensas que se entende aqui por prover? Por acaso
administrar o que é necessário para a vida? De minha parte, opino que o
Apóstolo fala do cuidado da alma. Mas se te obstinas em teu parecer, isto
não faz senão fortalecer a minha tese. Porque se disse isso em relação ao
corpo e se tal castigo é determinado contra quem não procura este
sustento diário e afirma ser pior do que um gentio, aonde colocaremos
aquele que se descuida do que é mais necessário e excelente?
O MAIS ALTO GRAU DE MALDADE É QUE
UM PAI SE DESCUIDE DO BEM DE SEUS
FILHOS
3. Pois consideremos agora a magnitude de vosso pecado e, subindo de
grau em grau, mostremos como o descuidar dos filhos é um pecado que
ultrapassa todos os pecados e toca a própria cúspide da maldade. Assim,
pois, o primeiro grau da crueldade e da maldade é descuidar dos
amigos... Mas não. Desçamos ainda mais abaixo com nosso raciocínio.
Porque não sei como nem porque, a pouco me passou por alto que a
antiga lei, que foi dada aos judeus, não consente que se descuide nem das
bestas dos inimigos que caíram ou se extraviaram; no caso haveria que
retorná-las para o caminho, e em outro caso ajudá-las a levantar (Ex 23,
4-5).

Assim, pois, subindo de baixo para cima, o primeiro escalão de maldade e


de crueldade é descuidar ou passar ao largo das bestas e do gado de
nossos inimigos, quando sofrem um acidente grave; o segundo, mais alto
que este, é o descuidar dos próprios inimigos, pois quanto mais vale o
homem do que o animal, tanto é maior pecado descuidar de um ou do
outro; o terceiro, menosprezar aos irmãos na fé, mesmo que sejam
desconhecidos; o quarto, descuidar dos criados; o quinto, quando não nos
importa que percam o corpo, mas também a própria alma; o sexto,
quando já não são os domésticos em geral, mas os próprios filhos, cuja
perdição ou corrupção em nada nos importa; o sétimo, quando tampouco
procuramos outros que cuidem deles; o oitavo, quando impedimos e
proibimos que outros o façam por impulso próprio; o nono, quando não
só os impedimos, mas lhes declaramos guerra. Pois bem, se tão grave
castigo se segue ao primeiro, segundo e terceiro graus desta maldade, que
fogo não virá do nono, que ultrapassa a todos os outros e é justamente o
vosso? Ou, melhor dizendo, não o nono, mas o décimo e ainda o
undécimo grau de maldade poderia muito bem se chamar este. Por que?
Porque este pecado não só é por natureza muito mais grave que os antes
enumerados, mas sua malícia aumenta pela razão do tempo. O que quer
dizer esta razão do tempo? Pois, que, embora cometendo nós agora os
mesmos pecados que aqueles que viveram sob a lei, não serão os mesmos
os tormentos com que seremos castigados, mas serão tão mais graves
quanto gozamos de dom mais excelente e nos foi dada a mais perfeita
doutrina e fomos distinguidos com mais alta honra. De modo que, como
este pecado se faz tão grave pela sua própria natureza e pelo tempo em
que se comete, considera a quantidade de fogo que se acumulará sobre a
cabeça de quem o praticar.
O CASTIGO DE HELÍ PELOS PECADOS DE
SEUS FILHOS
E que não discorro eu agora sem razão, quero demostrar por um fato
histórico, para que vejas que, por melhor que tenhamos ordenada nossa
vida, se descuidarmos da salvação de nossos filhos, sofreremos o último
suplício. E contarei um caso não cogitado por mim, mas contido nas
Sagradas Escrituras.

Havia entre os judeus um sacerdote, de nome Helí, homem modesto e


bom. Helí era pai de dois filhos, e vendo que caminhavam por caminhos
de maldade, não os continha e nem os impedia; ou, melhor dizendo,
tratava, sim, de contê-los e de impedi-los, mas não com todo o afinco que
devia. As culpas daqueles jovens eram a fornicação e a gula.

"Porque comiam",

diz a Escritura,

"antes que as carnes sagradas fossem santificadas e fosse


oferecido o sacrifício na presença de Deus".
1 Sa 2,16

O pai ouvia tudo isso e, e em vez de castigá-los com mão dura, tratava de
apartá-los daquela maldade com boas palavras e não se cansava de dizer-
lhes várias vezes:

"Não façais, filhos meus, não procedais assim, pois não é


bom isso que ouço de vós, que apartais o povo do culto do
Senhor. Se pecando o homem pecar contra outro homem,
rogarão por ele ao Senhor; mas se o homem pecar contra o
Senhor quem rogará por ele?"
1 Sa 2,24

Na verdade, não deixam de ser muito graves estas palavras de repreensão


e elas bastariam para fazer entrar em si mesmo quem tivesse algum
senso: pondera-lhes seu pecado, os faz ver como era terrível, e lhes
assegura que o castigo que os espera será insuportável e espantoso. E,
não obstante, por não haver feito tudo o que devia, pereceu o pai
juntamente com os filhos. Porque teria que ter aumentado as ameaças,
tê-los expulsado de sua presença e mandado dar-lhes uma boa
quantidades de açoites, mostrando-se, enfim, mais duro e energético com
eles. Mas por não ter feito nada disso, atraiu contra si e contra seus filhos
a inimizade divina, e por ter tido uma inoportuna consideração para com
os seus filhos, perdeu a sua salvação e a deles. Ouve se não o que Deus lhe
disse, ou melhor, já não disse a ele pois já não o julgava digno nem de
dirigir-lhe a palavra. Como a um criado que o houvesse ofendido
gravemente, o faz saber por terceiros os males que iriam acontecer. Tão
grande era então a cólera de Deus. Escuta o que disse Deus ao discípulo
sobre a sorte de seu mestre... Pois, Deus preferiria falar antes com um
discípulo, com um profeta ou com o mundo inteiro dos males de Helí do
que com o próprio Helí. De tal maneira o havia rechaçado. Mas o que
disse, afinal, Deus a Samuel?

"Conhecia que seu filhos maldiziam a Deus e não os


repreendeu".
Ibid. 3,13s

E não foi assim, pois efetivamente os repreendeu; contudo, Deus não teve
isso como repreensão, e assim o condenou, por lhe faltar o rigor e devida
energia. De modo que ainda que cuidemos de nossos filhos, se não o
fizermos com a diligência necessária, não é isto cuidado como não foi
tampouco a repreensão de Helí. Seja como for, já que disse a culpa, o
Senhor também acrescenta com grande cólera o castigo:

"Jurei",

disse,

"contra a casa de Helí, que nem com incenso nem com


sacrifícios se expiaria a sua casa por este pecado
eternamente".
1 Sa 3,13-14

Já vês a indignação veemente e o castigo irremissível. De qualquer forma


- disse - tem que perecer, e não só ele e seus filhos, mas junto com ele toda
a sua casa, sem que haja remédio que possa curar esta chaga. E, contudo,
se não fosse aquela negligência para com os seus filhos, nada teria Deus
para reprovar naquele velho, que era nas demais coisas, admirável. E é
bom que se veja toda a sua virtude, entre outras coisas, quando esta
mesma desgraça aconteceu. Porque, em primeiro lugar, tendo ouvido
tudo isto, e já que se viu por um triz do último castigo, não se irritou,
nem se rebelou, nem disse nada do que provavelmente diriam os demais:
Acaso sou eu dono da vontade alheia? Está bom que pague pelas minhas
próprias culpas, mas meus filhos já têm idade, e o justo é que só eles
sejam castigados. Não disse nada disso, nem em pensamento. Como um
criado agradecido que só sabe suportar de boa vontade quanto lhe vêem
de seu Senhor, por ferido que seja, Helí só disse estas palavras, que estão
cheias da mais alta filosofia:

"Ele é o Senhor; faça-se o que a Ele aprouver"


1 Sa 3,18

E não só sobressai aqui a sua virtude, mas também pode ser vista em
uma outra circunstância. De fato, havendo estourado a guerra entre
judeus e filisteus, veio um mensageiro para contar a Helí os desastres
dela, e como seus filhos tinham sido mortos, de maneira vergonhosa e
miserável, na batalha. Até aqui ainda se manteve tranqüilo; mas quando,
sobre a morte de seus filhos, acrescentou o mensageiro que a arca tinha
sido capturada pelos inimigos, então sim, abatido de tristeza,

"o velho caiu de seu assento de costas junto à porta do


santuário e quebrou o pescoço, pois era muito ancião e
pesavam-lhe os anos. Havia julgado Israel por vinte anos".
Ibid. 4,18

Pois bem, se a um sacerdote, a um ancião, a um juiz glorioso, que


durante vinte anos havia governado irreparavelmente o povo hebreu e
viveu em tempos em que não se exigia tanta perfeição, nenhum destes
títulos foi bastante para salvá-lo, mas, por não ter cuidado de seus filhos
com toda a diligência, pereceu trágica e lamentavelmente, e este pecado
de negligência, como uma onda enorme e violenta ultrapassou tudo e
cobriu todos os seus outros merecimentos, que castigo nos espera, a nós
que vivemos em tempos que exigem filosofia superior e carecemos de sua
virtude? Nós, digo, que não só não atendemos a nossos filhos, mas que
armamos ciladas e declaramos guerra a quem quer faze-lo, e nos
portamos com nossos rebentos mais ferozmente que bárbaros selvagens?
A crueldade dos bárbaros não passa de nos reduzir à servidão, devastar
nossa terra e submetê-la a seu domínio; males, afinal, que terminam no
corpo; mas vós escravizais a própria alma e, sobrecarregando-a de
correntes como a um prisioneiro de guerra, a entregais aos demônios
perversos e ferozes e a todas as suas paixões. Porque vós não fazeis outra
coisa quando não dirigis uma palavra de exortação espiritual a vossos
filhos, nem consentis que outros, que estão dispostos, as dirijam.
POR QUE NEM TODOS OS PECADOS SÃO
CASTIGADOS NESTA VIDA
E não se diga que muitos cometeram com seus filhos descuidos muito
maiores do que Heli e não padeceram como Heli, pois o certo é que
muitos outros padeceram muitas vezes e até mais gravemente que Heli e
justamente por este pecado de negligência. Se não, como se explicam as
mortes prematuras? As graves e contínuas enfermidades, em vós mesmos
e em vossos filhos? As perdas de patrimônio, os desastres, as infâmias e
outros males sem número? Não vem tudo de não vos incomodar que
vossos filhos sejam maus? E que isto não seja pura imaginação minha,
demonstra-o o que se passou com o velho Heli, porém eu vos quero citar
ainda uma palavra de um de nossos sábios, que falando dos filhos disse:

"Não te alegres com teus filhos ímpios; se o temor de Deus


não está neles, não confies em sua vida, pois terás que
gemer com dor prematura e de repente conhecerás o seu
fim"
Ecl. 16,1-3

Muitos, pois, como disse, sofreram castigos semelhantes, e se há também


quem tenha escapado ao castigo, não escaparão para sempre, antes a
própria demora será para seu maior dano, pois, saídos deste mundo,
sofrerão no outro mais duro suplício.

Mas porque - dirão - não todos são castigados neste mundo? Porque tem
Deus determinado um dia em que há de julgar toda a terra (Atos 17, 31)
e este dia ainda não chegou. Por outro lado, se assim fosse, já se haveria
consumido e desaparecido todo o gênero humano. Pois para que não se
aniquile o gênero humano, nem pela demora do juízo se tornem muito
mais tíbios, toma Deus alguns culpados por seus pecados e os castiga aqui
com o intuito de ensinar aos demais a medida dos castigos que os
esperam e saibam que embora agora não sofram por seus pecados,
quando saírem deste mundo, sofrerão sem remédio mais duramente. Não
é porque agora não nos envie um profeta que nos intime o castigo, como a
Heli, que temos que nos endurecer. Este tempo não é de profetas, ou
melhor dizendo, também nos envia agora, pois o que a eles foi dito não
menos foi dito a nós; Deus não fala só com Heli mas, por meio de Heli e
de seus sofrimentos, com todos os que cometem os mesmos pecados que
Heli. Deus não faz acepção de pessoas e, se ao que pecou menos derrubou
desde a raiz com toda sua casa, não deixará impunes aqueles que são
mais culpados do que ele.
QUE GRANDE EMPENHO TEM DEUS NA
EDUCAÇÃO DOS FILHOS
4. Não se pode dizer que Deus não dá muita importância a este assunto,
quando é certo que põe marcado empenho na criança e na educação dos
filhos. Porque, primeiramente, inspirou um carinho tão grande à
natureza, que o cuidado dos filhos constitui uma necessidade indubitável
para os pais; e logo, já falando conosco, instituiu leis acerca deste
cuidado. E, ao estabelecer uma festa, manda que se instrua os filhos sobre
a sua ocasião e motivo. Assim, depois de falar da Páscoa, acrescentou:

"Naquele dia instruirás o teu filho dizendo-lhe: Pelo que


Deus fez comigo quando eu saía do Egito".
Ex 13,8

E o mesmo faz na lei, pois tendo falado dos primogênitos, acrescenta


novamente:

"E depois disto se te perguntar o teu filho, dizendo: Quem


é este? tu lhe dirás: Com mão poderosa nos tirou o Senhor
do Egito, da casa da servidão. E quando o Faraó se
endureceu para nos despedir, o Senhor matou todos os
primogênitos da terra do Egito, desde os primogênitos dos
homens até os primogênitos do gado. Por isto eu sacrifico
ao Senhor todo o varão primogênito".
Ex 13,14-15

Por todos os meios manda que se leve os filhos ao conhecimento de Deus.

Por outro lado, muitos são também os mandamentos que Deus impõe aos
filhos em relação a seus pais, honrando a quem se porta carinhosamente
com eles e castigando os ingratos, com o que faz mais amáveis os filhos
aos pais. Quando nos faz donos de algo, a mesma honra que nos concede,
nos coloca na máxima obrigação de cuidar dele; pois, ainda que não
tivesse outra coisa, bastaria para nos mover, considerar que tudo colocou
em nossas mãos o outro, e não teríamos coração para atraiçoar nem
levemente a quem assim nos foi confiado. E se a isto se acrescenta que se
irrita e indigna mais que os próprios ofendidos e se constitui em terrível
vingador seu, é este motivo que nos obriga ainda mais. Que é, nem mais
nem menos, o que Deus fez a respeito de pais e filhos.
NOVOS VÍNCULOS QUE UNEM PAIS E
FILHOS
Além disto, Deus acrescentou um terceiro vínculo que vem da natureza e
que, se quiseres, pode ser tido como o primeiro.

E assim, para que por um lado os pais não desprezassem o mandamento


que lhes manda criar seus filhos, lhes impôs a necessidade da natureza; e,
por outro lado, para que as insolências dos filhos não debilitassem e até
rompessem aquela necessidade natural, colocou para estes como uma
muralha o castigo que não vem só de Deus, mas também dos pais. Com o
que submete com grande força os filhos aos pais e excita mais e mais
nestes o amor a seus filhos.

E ainda não é este o último vínculo, mas há outro, o quarto, com o qual
forte e completamente nos uniu com nossos pais. E é assim que Deus não
só castiga os filhos que se comportam mal com os seus pais e louva aos
que se comportam bem, como também isto mesmo faz em relação aos
pais, castigando asperamente os que se descuidam de seus filhos e
honrando e louvando os que zelam por eles. E assim vemos como a este
velho, que nas demais coisas brilhava pela sua virtude, Deus castigou por
esta única negligência, e ao contrário, por esta providência, não menos
que pelos outros motivos, honrou Deus o patriarca Abraão. E, de fato,
enumerando os muitos e magníficos dons que prometia conceder-lhe, e
alegando a causa, põe justamente esta:

"Porque sabia",

diz a Escritura,

"que Abraão ordenaria a seus filhos e a sua casa depois


dele, que guardassem os caminhos do Senhor Deus, para
praticar a justiça e a eqüidade".
Gen. 18,19

OS PAIS SÃO CULPADOS DOS PECADOS


DE SEUS FILHOS
Tudo isto digo agora, para que saibamos que Deus não levará com
paciência o descuido daqueles por quem Ele tanto se preocupa. Porque
não é possível que uma pessoa tenha tão grande empenho por alguém e,
ao mesmo tempo não se importe que o mesmo seja depreciado. Não, não
se despreocupará Deus , mas se ofenderá e se irritará veementemente,
como os próprios fatos demonstraram. Por isso o bem-aventurado Paulo
nos exorta dizendo:

"Pais, criai vossos filhos na disciplina e correção do


Senhor".
Ef 4,6

Porque se a nós ordena zelar por suas almas como quem há de prestar
contas por elas (Hebr. 13,17), com maior razão o pai que os gerou, os
criou e que convive constantemente com eles. E como o pai não tem
escapatória nem desculpa de seus próprios pecados, assim tampouco em
relação aos pecados de seus filhos. E isto foi também o bem-aventurado
Paulo quem nos manifestou. Efetivamente, ao dar o Apóstolo leis sobre as
qualidades que deverão ter aqueles que hão de mandar nos demais, entre
todas as outras que indubitavelmente deverão adorna-los, exige também
esta do cuidado dos filhos (1 Tim 3,4), dando a entender que não teremos
perdão se eles se perderem.

E com muita razão. Porque se a maldade chegasse aos homens pela lei da
natureza, poderíamos nos acolher em alguma razoável defesa; mas como
somos bons ou maus pelo livre arbítrio, que razão de boa aparência pode
alegar o que deixa que se extravie e se corrompa aquele a quem ama
sobre tudo o mais? Dirá que não quis faze-lo bom? Mas não haverá pai
que diga semelhante coisa, pois a própria natureza é estímulo bastante
para despertá-lo para isso. Dirá que não pôde? Tampouco, porque o fato
de tomar a criança quando ainda branda cera e ser sobre ele o primeiro e
único poder e tê-lo sempre em casa, são coisas que fazem fácil e
totalmente praticável seu governo. De sorte que não se pode achar outra
origem para o extravio dos filhos que o louco afã das coisas terrenas. O
não olhar senão para elas, o não querer que nada seja considerado acima
delas, obriga a se descuidar tanto da própria alma como também da dos
filhos. A estes pais (e que ninguém pense que é a ira que inspira as
minhas palavras) eu não teria dificuldade em qualificar como piores que
os assassinos de seus próprios filhos. Os assassinos, apesar de tudo, só
separam a alma do corpo; mas os pais negligentes lançam juntos corpo e
alma na fogueira do inferno. E a morte do corpo é necessidade inevitável
da natureza; mas a da alma, se não fosse acarretada pela negligência dos
pais, seria evitável. Ademais, a morte do corpo ficará rapidamente
reparada com a chegada da ressurreição da carne; mas a perdição da
alma não admite consolo possível, pois já não a espera mais salvação
alguma, mas terá que sofrer, forçosamente, os tormentos eternos. De
modo que, não sem razão, podemos afirmar que tais pais são piores que
os assassinos de seus filhos. Não, não é crime tão horrível aguçar a
espada, armar a destra e umedece-la na própria garganta do filho,
quanto perder e corromper uma alma, pois nada temos comparável a ela.
A SALVAÇÃO, POSSÍVEL, PORÉM DIFÍCIL
NO MUNDO
5. Pois - dirás - o que habita em uma cidade e tem mulher e casa não pode
salvar-se? Certamente não há só um modo de salvação, mas muitos e
diversos. E o próprio Cristo diz isto de modo geral quando afirma que

"na casa de seu Pai há muitas moradas"


Jo 14,2

e também Paulo, com alguma determinação, quando escreve:

"Uma é a glória do sol, outra a glória da lua e outra a


glória das estrelas; pois uma estrela difere da outra em
glória"
1 Cor 15,14

O que significa dizer que uns brilharão como o sol, outros como a lua e
outros como as estrelas. E não para aqui a diferença, pois nos mostra que
entre as próprias estrelas é grande a diversidade, e não poderia ser
diferente dado seu grande número:

"Uma estrela",

diz,
"difere da outra por sua glória".

Considera pois, percorrendo desde a grandeza do sol até a última das


estrelas, quantos graus de dignidade haverá de descer.

Pois bem, não seria absurdo que, se levasses teu filho ao palácio, não
medisses esforços - e também persuadisses teu filho a outro tanto - para
conseguires colocá-lo junto ao próprio imperador, sem te preocupares
com considerações de nenhuma ordem, nem com gastos, nem perigos,
nem com a própria morte, e que agora, quando se trata da milícia celeste,
não te importes de que ele ocupe o último posto e que fique para trás de
todo mundo?

Contudo, se te agrada, vamos verificar se é possível que quem anda


envolto no trânsito do mundo alcance sequer este posto. Na realidade, o
bem-aventurado Paulo resolveu brevemente esta questão, e disse que
quem tem mulher não pode salvar-se senão tendo-a como se não a tivesse,
e os que usam o mundo, como se não o usassem (1 Cor 7,29 ss). Mas nós,
se preferes, vamos tratar do assunto também pela via do raciocínio.

Pois bem, podes me dizer que teu filho, ou porque ouviu teus bons
conselhos ou porque ele próprio algum dia se deu conta, sabe que quem
jura, ainda que jure na verdade, pode ofender a Deus? E que não se salva
o rancoroso? Diz a Escritura:

"Os caminhos dos rancorosos levam à morte".


Prov 12,28

Sabe que, de tal maneira Deus reprovou o maledicente que o excluiu da


lição das palavras divinas? Que retirou do reino dos céus o arrogante e
insolente e o entregou ao fogo do inferno? Que quem olha com olhos
intemperantes é condenado como adúltero consumado? Exortaste-o
alguma vez a fugir do pecado, tão ao alcance da mão, de julgar o próximo
e atrair assim mais grave castigo? Leste para ele as leis que sobre isto nos
foram postas por Jesus Cristo? Ou tu mesmo ignoras o que quer dizer
tudo isto? Pois como poderá cumprir o filho aquelas coisas, cujas leis
ignora o próprio pai que devia ensiná-las a ele? E oxalá o mal consistisse
apenas em que não desses um bom conselho a teu filho, pois não seria tão
grave como o que agora cometes empurrando-o para o mal. Porque nos
dias de hoje, quando os pais falam a seus filhos e os exortam ao estudo
das letras, não se ouve deles senão palavras com estas:

"Fulano, sicrano, e o filho de beltrano, por ter aprendido a


eloquência, alcançou as mais altas magistraturas, adquiriu
grande fortuna, se casou com uma mulher rica, edificou
uma casa magnifica e todos o admira".

Outro acrescenta, por outro lado:


"Fulano, por saber a língua latina, brilha no palácio e faz
e desfaz nos assuntos do governo".

E assim segundo seu estilo, cada um põe um exemplo; mas todos de


homens ilustres na terra. Os do céu não passam pelo pensamento de
ninguém e até se alguém tentar recordá-los, é tido como um desorientado.
AS PAIXÕES DA AVAREZA E VAIDADE,
GRANDE OBSTÁCULO PARA A SALVAÇÃO
NO MUNDO
6. Pois bem, como com certeza desde o princípio não cantastes a vossos
filhos outra cantilena a não ser esta, não lhes ensinastes outra coisa com
isto, senão o que há de ser a causa de todos os seus males, pois infundites
neles os dois mais tirânicos amores: o amor ao dinheiro, e o outro, que é
mais perverso ainda, da glória vazia e vã. Qualquer um dos dois é por si
só o bastante para transtornar tudo; mas quando estão os dois juntos,
como duas torrentes que confluem, na alma terna do jovem, arrasam
todo o bem, pois arrastam consigo tantos espinhos, tanta areia, tanta
erosão, que deixam sua alma estéril e infecunda para qualquer boa obra.
Sobre isto podem nos testemunhar os próprios escritores profanos e
assim, a uma só dessas paixões, sem aliança da outra, alguém chamou a
acrópole ou cidadela, outro a cabeça de todos os males. E se,
isoladamente, é acrópole e cabeça, o que será quando se juntar a outra
paixão mais grave e poderosa, isto é, a loucura da vaidade, e as duas
caiam impetuosas sobre a alma do jovem e se apoderem dela e nela
lancem raízes? Quem será então capaz de extirpar essa doença, ainda
mais quando os próprios pais, longe de trabalhar para arrancar plantas
tão más, dirigem todas as suas obras e palavras para que se consolidem e
afirmem? Quem será, pois, tão insensato que não desespere da salvação
de um jovem assim educado? Nós estaríamos contentes se a alma que
goza de discursos contrários a estes pudesse escapar da maldade; mas
quando não se propõe outro prêmio senão o dinheiro nem outros modelos
para imitações além de homens execráveis, que esperança pode haver de
salvação? Porque os que amam o dinheiro, forçosamente hão de ser
invejosos, mal intencionados, juradores e perjuros, temerários,
maledicentes, ladrões, desavergonhados, descarados, ingratos; enfim,
sínteses de todos os males. O bem aventurado Paulo nos atesta isto
quando chama a cobiça de raiz de todos os males da vida (1 Tim 6,10); e
antes de Paulo, o próprio Cristo nos havia manifestado isto, ao afirmar
que não é possível servir a Deus aquele que se acha dominado por esta
paixão (Mt 6,24). Pois bem, se desde o princípio se leva o jovem a esta
escravidão, quando poderá ele ser livre, quando levantará a cabeça
dentre as ondas, se todos o puxam, todos estão empenhados em afundá-lo
e o põem em perigo de se afogar? Seria o bastante que quando ninguém o
perturbasse e muitos lhe estendessem a mão, pudesse se levantar e olhar
para a clara luz e limpar-se do salobre da maldade; e, se por longo tempo
encantado com canções divinas, tiver forças para se defender das
enfermidades que o agridem, esta façanha merecerá mil louvores e
coroas. O costume é uma coisa terrível; digo, terrível para dominar e
cativar uma alma, sobretudo quando esta tem o prazer como aliado da
paixão, e a outra a qual aspiramos e a cujo porto temos pressa em
chegar, nos traz preparados muitos trabalhos.
COMO DEUS EDUCOU O POVO HEBREU
Por isso o próprio Deus, posto que os hebreus, de algum modo, tinham
que abandonar seus antigos maus costumes adquiridos no Egito, os
colocou isolados no deserto e ali, como em um mosteiro, foi Deus
modelando suas almas, aplicando-lhes todo tipo de medicamentos,
ásperos e brandos, sem omitir meio algum que pudesse contribuir para o
restabelecimento de sua saúde espiritual. E ainda assim não fugiram
completamente da maldade mas, em pleno maná, sentiam falta das
cebolas e dos alhos do Egito, com todas as suas calamidades. Tão forte é o
poder do costume. Pois, se os judeus, que gozaram de tão formidável
cuidado da parte do próprio Deus, com um guia tão excelente e generoso,
educados pelo temor e pela ameaça, por benefícios e castigos e por todos
os modos imagináveis, se eles que viram tão grandes prodígios não se
fizeram melhores, crês que teu filho, em plena juventude, metido no meio
do Egito, ou melhor, no meio do campo de batalha do diabo, sem ouvir de
ninguém um bom conselho, vendo como todos o empurram para o
contrário e principalmente os que o geraram e o criaram; crês, repito,
que poderá escapar dos laços do diabo? Por que meio? Pelas tuas
exortações? Mas justamente o incitas para o contrário, não lhe
permitindo que nem em sonhos se lembre da filosofia e fazendo, com o
teu eterno trazer e levar a presente vida e seus interesses, que a tormenta
seja mais violenta. Conseguirá isto pela sua consciência e por seu próprio
esforço? Em primeiro lugar, o jovem por si não é capaz de chegar à
perfeição da virtude; mas se, depois de tudo isso, chegar a ter algum
pensamento generoso, os aguaceiros de teus discursos se encarregarão de
afogá-lo rapidamente antes que cheguem a germinar. Um corpo que não
se nutre de alimentos sãos, mas que ingere alimentos nocivos, não pode
resistir por muito tempo, e uma alma assim educada não pode tampouco
ter altos e generosos pensamentos, mas se arrastará enferma e débil,
consumida continuamente, como por uma tuberculose, pela maldade, até
parar no inferno e na eterna perdição.
O CAMINHO DO MUNDO, CONTRÁRIO AO
DO EVANGELHO
7. Mas se dizes que não é assim, e afirmas que é possível chegar a toda
perfeição da virtude ainda que se esteja em meio ao trânsito das coisas do
mundo; se isso não dizes por brincadeira, mas realmente a sério, não
tardes em me ensinar esta nova e maravilhosa doutrina, pois eu também
não quero tomar para mim, sem razão, tantas moléstias e abster-me
tolamente de tantas coisas. Mas a verdade é que não posso entender tão
belo ensinamento, pois vós mesmos não me consentis, porque tanto pelo
que dizeis como pelo que fazeis, contradizeis esta sentença e ensinais o
contrário do que soa. Como se todo o vosso empenho consistisse em
perder adrede os vossos filho, os mandais fazer tudo aquilo que de todo
modo impossibilita a sua salvação. Tomemos, se não, da água mais acima.
Diz o Evangelho:

"Ai daqueles que riem!"


Lc 6,24

e vós não buscais senão procurar ocasiões de riso para vossos filhos.

"Ai dos que enriquecem!",

e vós não olhais para outro objetivo em vossas ações, senão que tenham
dinheiro.

"Ai de vós, quando todos os homens falem bem de vós"


Lc 6,24

e vós para alcançar os louvores dos homens, muitas vezes haveis


consumido patrimônios inteiros. Ademais, o que insulta o seu irmão é réu
do inferno; vós, porém, considerais pouco homens e covardes os que
suportam em silêncio as injúrias dos outros. Cristo nos manda que
desprezemos toda contenda e luta; vós, porém, fazeis com que vossos
filhos andem sempre envoltos nestes males. Se o nosso olho nos é ocasião
de pecado, o Senhor nos manda arrancá-lo; vós, porém, buscais para
amigos quem vos ajude a ganhar dinheiro, assim lhes ensinam a última
maldade. Não permitiu Cristo que se despeça a mulher, a não ser por
causa de adultério; vós, ao contrário, caso se apresente ocasião de fazer
dinheiro, mandais que se despreze também este mandamento. Proibiu o
juramento de modo absoluto; vós, porém, rides de quem tem escrúpulo
de faze-lo.

"O que ama sua vida",

disse o Senhor,

"a perderá"
Jo 12,25

vós, ao contrário, tudo ordenais para infundir em vossos filhos este amor
à vida.

"Se não perdoares aos homens",

disse também,

"seus pecados, tampouco vosso Pai celestial perdoará os


vossos"
Mt 6,14

vós, porém, chegais a insultar vossos filhos quando não querem se vingar
de seus agravos e vos apressais em coloca-los em situação de poderem
faze-lo. Cristo afirmou que os que amam a vanglória, fazem tudo
inutilmente, caso jejuem, ou orem, ou dêem esmola; vós, porém, desejais
ansiosamente que vossos filhos a consigam.

Mas para que citar o Evangelho todo? O que foi dito basta para
proporcionar-nos mil infernos, não todos juntos, mas cada ponto por si.
Se, pois, vós levais todos juntos e colocais sobre vossos filhos a carga
insuportável dos pecados e assim os enviais ao rio de fogo, como poderão
se salvar levando tão enorme combustível para o fogo?
O VÍCIO, DISFARÇADO COM NOME DE
VIRTUDE
E não termina aqui o mal com que exortais vossos filhos a agir contra as
ordenações de Cristo, mas sabeis cobrir o vício com bonitos nomes e
chamais urbanidade à assistência contínua aos hipódromos e aos teatros,
liberdade à riqueza, magnanimidade à ambição de glória, franqueza à
arrogância, amor à devassidão e valentia à iniquidade. Logo, como se não
bastasse esta engano, também batizais a virtude com nomes contrários,
chamando rusticidade à temperança, covardia à modéstia, falta de
hombridade à justiça; a humildade é para vós subserviência e a paciência
debilidade. Não parece senão que temeis que, vossos filhos, ouvindo de
outros o verdadeiro nome destes vícios, fujam de sua pestilência. E
efetivamente, não é pouca coisa para apartá-los dos vícios, chamá-los
pelos seu verdadeiros nomes. Isto tem tanta força para ferir aos que
pecam, que muitos, muitas vezes, mesmo os que por fama pública
cometem as mais vergonhosas ações, perdem a paciência se são chamados
pelo que são, e se irritam e se enfurecem, como fossem submetidos aos
mais duros tormentos. Assim, se a uma mulher rameira ou a um jovem
que atenta contra o pudor se atribui o nome que corresponda à ação
torpe que cometem, convertem-se em inimigos irreconciliáveis, como se
lhes houvessem desferido a maior ofensa. E o mesmo pode se dizer dos
avarentos, dos bêbados, dos fanfarrões e, em uma palavra, dos que
cometem os mais graves pecados. Toda esta espécie de gente não se sente
tão ferida nem mortificada pelo feio de suas ações nem pela opinião geral,
mas por que se dá os verdadeiros nomes a suas ações. Eu sei de muitos
que por isso se tornaram moderados e encontraram a razão pela força
das injúrias e das reprovações. Porém vós eliminais até este remédio de
moderação a vossos filhos.

E o mais grave é que não só pela palavra, mas também, sobretudo, por
obras, dirigis esta exortação a vossos filhos, construindo casas
esplêndidas, comprando campos caríssimos e rodeando-os de todo o
aparato de luxo, com o que estendeis uma espessa nuvem que escurece a
suas almas.

Como posso, então, convencer-me de que é possível que se salvem os


vossos filhos, quando vejo que são incentivados a fazer tudo aquilo o que
Cristo declarou ser impedimento absoluto para a salvação; quando vejo
que menosprezais como coisa secundária a sua alma e colocais todo o
vosso afã no que é realmente secundário, como se fosse o necessário e o
principal? Todo o vosso empenho é que vosso filho possa ter escravos,
possa montar em cavalos, vista as melhores roupas; mas não agüentais
pensar nem por um minuto como se fará ele próprio melhor. Levais ao
extremo vossa preocupação com madeiras e pedras, mas não tendes a
alma como merecedora de uma mínima parte deste cuidado. Estais
dispostos a suportar tudo para ter em casa uma estátua de arte
primorosa e um artesanato de ouro, mas que a mais preciosa das
estátuas, a alma de vossos filhos, não seja de ouro, nisto não quereis nem
pensar.
A ABOMINAÇÃO DO PECADO NEFANDO
8. Mas eu ainda não disse o que é o cúmulo dos males, ainda não revelei o
que é resultado e saldo de nossa calamidade, pois estando muitas vezes
para tocar neste assunto me ruborizei e me calei de vergonha. Que ponto,
pois, é este? Porque devemos ter coragem de dize-lo. Seria grande a
covardia, de fato, que tratando de extirpar um mal, não nos atrevêssemos
a abrir a boca sobre ele, como se o silêncio pudesse curar
automaticamente a enfermidade. Não calarei, pois, por mais que mil
vezes perca as cores da face e me confunda de vergonha. Quando o
médico tem que limpar o podre de uma ferida, não se recusa a lançar
mão ao ferro e meter os dedos até o fundo da chaga; pois também eu
tampouco me recusarei a falar deste assunto, tanto mais quanto mais
grave a podridão. Qual é, afinal, este mal? Um amor novo e perverso
invadiu nossa vida; uma enfermidade terrível e incurável nos atacou; se
instalou a pestilência mais grave de todas as pestilências; se inventou uma
iniquidade nova e intolerável; pois não só se infringem com ela as leis
escritas, como se transtornam as próprias leis da natureza. Resulta, em
relação à devassidão, pouco menos que inocente a fornicação, e como, ao
sentirmos alguma dor, sobrevindo uma dor mais forte nos faz esquecer a
primeira mais fraca, assim a enormidade desta insolência faz que pareça
tolerável o intolerável, a devassidão com mulheres. Já se considera uma
façanha conseguir escapar destas novas redes e está prestes a ficar
supérfluo o sexo feminino já que os homens cumprem tudo o que deviam
as mulheres. E isto não é o mais terrível, senão que tamanha abominação
é cometida com a maior tranqüilidade e a iniquidade adquiriu força de
lei. Ninguém mais teme e nem se espanta; ninguém se envergonha e nem
se ruboriza, antes festeja e se diverte. Os que se contêm passam por
loucos e os que o repreendem por delirantes. Se os repreensores são mais
fracos, se expõem à derrota; se são mais poderosos, são objeto de piadas e
de risos e recebem uma chuva de impropérios. De nada servem leis e
tribunais nem pais nem acompanhantes nem mestres, pois uns se deixam
subornar pelo dinheiro e outros não têm olhos a não ser para cobrar o
seu salário. E se existem alguns mais moderados e que se preocupam com
a salvação dos que lhe foram confiados, uns são facilmente burlados e
enganados, outros temem o poder dos impudicos. Mais fácil, de fato, seria
um suspeito de aspirar a tirania salvar sua vida, do que escapar das mãos
destes execráveis homens quem tentar apartar deles as suas vítimas: A tal
ponto, como se se tratasse de um deserto inabitado, cometem em plena
cidade varões com varões atos vergonhosos. E se há alguns que logrem
escapar destes laços, do que não escaparão facilmente é da má fama de
quem tais infâmias cometem. Em primeiro lugar, porque são
extremamente escassos, com o que são facilmente cobertos pela multidão
de malvados; e logo, porque os próprios abomináveis e sacrílegos
demônios, não tendo outro meio para vingar-se dos que os desprezam,
empenham-se em prejudica-los por este caminho. Pois como não
puderam descarregar sobre eles um golpe mortal nem alcançar a sua
alma, tratam pelo menos de feri-los naquele ornamento exterior que os
rodeia e lançam por terra toda a sua boa fama.
POR QUE NÃO CHOVE FOGO SOBRE A
NOVA SODOMA
Por isso eu tenho ouvido muitos se admirarem de não ter caído também
em nosso tempo uma nova chuva de fogo, de nossa cidade não ter sofrido
o castigo de Sodoma, sendo tão mais culpada que Sodoma, não ter sido
punida com os males desta. Faz dois mil anos que aquela região, com
mais clareza do que se falasse, está clamando com o seu próprio
espetáculo a toda terra que ninguém ouse cometer semelhante
abominação; e, contudo, não só não se retraíram os homens deste pecado,
mas se tornaram mais desavergonhados, como se quisessem desafiar a
Deus e demonstrar pelos fatos que hão de se entregar tanto mais
furiosamente a estes males, quanto com mais rigor sejam ameaçados.
Então como é que não acontece agora nada do que aconteceu antes e,
cometendo-se os pecados de Sodoma, não vêm os castigos de Sodoma ? É
que os espera outro fogo mais terrível e um castigo que não terá fim. Pelo
mesmo motivo, mesmo quando os homens depois do dilúvio cometeram
pecados muito mais abomináveis do que cometeram os que foram
afogados pelo dilúvio, não caiu mais nenhuma chuva como aquela. A
razão aqui é a mesma. Porque, que outra razão pode haver para que os
homens primitivos, quando não existiam tribunais, nem os governantes
infundiam medo, nem a lei ameaçava, nem corrigia o coro dos profetas,
nem se temia o inferno, nem se esperava o céu, nem se ensinava nenhuma
filosofia, nem se haviam produzido prodígios capazes de levantar as
próprias pedras; como se explica que estes homens que não gozavam de
nenhum deste benefícios, sofressem tão duros castigos de seus pecados, e
os que participam de tudo o que foi dito e vivem entre o temor dos
tribunais divinos e humanos, não tenham sofrido ainda o que sofreram
aqueles, quando são merecedores de castigo mais severo? Não está
evidente, mesmo para uma criança, que estes estão reservados para mais
dura justiça? Porque se assim nos irritamos e nos ofendemos, como há de
suportar Deus que se cometa estes pecados impunemente, quando Ele,
mais que ninguém, cuida do gênero humano e repele e aborrece
intimamente toda a maldade? Não, não será assim, mas Ele fará sentir
sobre estes impudicos sua mão poderosa e o golpe será tão insuportável e
os tormento de tão terrível dor que os sofrimentos de Sodoma,
comparados com estes, parecerão pura brincadeira.
Porque, que tipo de bárbaros, que espécie de bestas não deixaram para
trás estes impudicos com as suas torpes uniões? Existe, claro, em certos
animais um forte impulso, um cio sexual insuportável que em nada se
diferencia da loucura; não obstante, não há animal que conheça esta
perversão do amor, todos se contêm dentro dos limites da natureza, e,
por maior que seja o seu ardor, não ultrapassam as leis da natureza. Os
homens, ao contrário, sem dúvida dotados de razão, os que gozaram do
divino ensinamento, os que sabem mostrar aos outros o que se deve fazer
ou evitar, os que ouviram as palavras vindas do céu, não se unem com
tanto impudor com as rameiras como com os jovens. É como se não
existissem os homens, como se não existisse uma providência de Deus que
nos vigia e julga nossas ações, como se as trevas cobrissem tudo e
ninguém visse nem ouvisse nada, pois descaradamente cometem suas
abominações, tal é o furor que os arrebata

Por outro lado, os pais dos filhos assim ultrajados suportam tudo isso em
silêncio e não se afundam sob a terra com seus filhos nem buscam
remédio algum para tamanho mal. Na verdade, se para arrancar os filhos
desta pestilência fosse necessário marchar par além das fronteiras, ou
atravessar o mar, ou habitar em ilhas, ou abeirar-se a terra inacessível,
ou sair do nosso mundo habitado, não valeria a pena faze-lo e sofrer tudo
para evitar tanta abominação? Se sabemos de um lugar doentio e
pestilento, já evitamos de levar ali nossos filhos, por mais saudáveis que
estejam e por muito que tenham a ganhar ali; agora, ao contrário,
quando tamanha pestilência se apodera de tudo, não só os empurramos
para este abismo, como repelimos como se fossem corruptores aqueles
que tentam livrá-los disto. Pois, que ira, que raios do céu não merece que
coloquemos tanto empenho em polir a sua língua por meio da sabedoria
profana e não só consintamos que sua alma se revolte e se corrompa
continuamente no seio da devassidão, mas a impeçamos quando quer se
levantar?
CONCLUSÃO: DIFICULDADE DE SALVAR-
SE ENTRE OS OBSTÁCULOS DO MUNDO
Em conclusão, haverá ainda quem ouse afirmar que é possível salvar-se
no meio de tantos males? Com que meios? Porque acontece que quem
logra escapar da loucura dos intemperantes (e são muito poucos), ainda
terá que se haver com aqueles outros tirânicos amores, que tudo
corrompem: o amor ao dinheiro e a ambição de glória, e a maioria das
pessoas se deixa levar por estes vícios e com mais excesso e descontrole
pela devassidão. Ademais, quando queremos dedicar nossos filhos ao
estudo das letras, não nos contentamos em remover de diante deles os
obstáculos a sua instrução, mas lhes proporcionamos todo gênero de
ajuda, e assim lhes colocamos criados e mestres, gastamos dinheiro, os
livramos de qualquer outra ocupação e, com mais insistência do que os
treinadores dos atletas olímpicos, não cessamos de repetir como da
instrução vem a riqueza e da ignorância nasce a miséria; enfim, por
palavras e obras, por nós mesmos ou por outros, nada omitimos para
conduzi-los ao término e ao objetivo do estudo empreendido, e, muitas
vezes, nem assim chegamos a nosso intento. E pensamos que a formação
de nosso caráter e a perfeição da vida cairão aos seus pés lindamente, a
despeito e apesar de todos os obstáculo que se lhes põem diante? Existe
aberração mais perniciosa que ter o fácil por digno de tão grande honra e
empenho, por pensar que sem isto não se pode conseguir completamente,
e crer que o difícil nos há de chover do céu, enquanto dormimos, como
coisa fútil e sem importância? Quando a verdade é que a filosofia da
alma é tanto mais trabalhosa e difícil, quanto custa mais esforço fazer do
que falar, quanto se distanciam as obras das palavras.
NECESSIDADE DE EXERCER
SERIAMENTE A VIRTUDE
9. -E que necessidade - dizes - têm meus filhos de filosofia e perfeição de
vida?

- Isto - respondo eu - é o que se perdeu: que coisa tão necessária e que


forma o sustento da nossa vida seja considerado como algo supérfluo e
acessório. Se alguém vê o seu filho doente fisicamente, não lhe ocorrerá
dizer : Que necessidade tem meu filho de uma saúde limpa e completa?
Não, o que faz é colocar todos os meios para que ele a recobre tão robusta
que não possa mais voltar a enfermidade. Ao contrário, se a alma está
enferma, dizem que não lhe falta nenhum remédio, e depois de falar
desse modo, ainda se atrevem a chamar-se de pais.

- Por que - perguntas - vamos professar todos a filosofia e deixar que se


percam as coisas da vida?

Não, amigo; não é a filosofia que faz perder e corromper tudo, mas
justamente o não professa-la. Se não, dize, quem são os que prejudicam a
ordem estabelecida: os que vivem moderada e sobriamente ou os que
inventam novos e perversos modos de prazer? Os que se empenham em
apoderar-se de todos os bens do mundo ou os que se contentam com o
que têm? Os que levam atras de si um exército de criados e se rodeiam
com enxames de aduladores ou os que crêem que lhes basta um só criado
(pois ainda não falo da mais alta filosofia, mas daquela que é acessível a
todos)? Os humanos e mansos e que não necessitam da honra do povo ou
os que exigem de seus semelhantes esta honra com mais rigor do que uma
dívida e são capazes de produzir mil desgraças, porque fulano não se
levantou ou o outro não saudou primeiro, nem se inclinou e nem se
portou como se fosse um vil escravo? Os que só pensam em obedecer ou
os que ambicionam poder e mandos e estão dispostos a tudo para
conseguirem o que querem? Os que se declaram melhores que os demais
e evidenciam isto com todo tipo de ação ou os que se põem em último
lugar e refreiam desse modo o ímpeto louco de suas paixões? Os que
constróem lindas residências e se sentam a mesas opulentas ou os que não
buscam nas comidas e nas residências nada mais do que o necessário? Os
que demarcam léguas e léguas de terra ou os que crêem não necessitar da
possessão sequer de um torrão de terra? Os que acumulam interesses e
mais interesses e não perdem nenhuma oportunidade de negócio sujo ou
os que rasgam essas escrituras injustas e ainda socorrem os necessitados
com seus próprios haveres? Os que consideram a vileza da natureza
humana ou os que não querem nem saber disto, e pelo excesso de sua
arrogância, deixaram até de se considerar homens? Os que alimentam as
rameiras e enodoam os leitos alheios ou os que se abstêm até da própria
mulher? Não é verdade que os primeiros aparecem sobre a ordem ou a
constituição da terra como os tumores no corpo ou as tormentas furiosas
no mar e perturbam pela sua intemperância aqueles que por si poderiam
se salvar; e os outros, como faróis brilhantes em meio às trevas,
convidam os náufragos para sua própria segurança e, acendendo, como
sobre um promontório, as tochas da filosofia, conduzem ao porto da vida
tranqüila a quem os queira seguir? Não é verdade que pelas culpas dos
outros se originam as revoltas, guerras e batalhas, os extermínios de
cidades, a escravidão e a servidão, os cativeiros e as matanças e todos os
males sem conta da vida, não só os que vêem dos homens para os homens,
mas os que descem do céu: secas, inundações, terremotos, ruínas,
demolições de cidades, fome e pestes e todos os outros males que, enfim,
dali nos vêem?
A ENFERMIDADE ATACA OS PRÓPRIOS
MÉDICOS
10. Assim, pois, estes são os males que transtornam a república e são a
pestilência do bem comum; estes são também para os outros a causa de
infinitas calamidades, perturbando a quem quer viver em paz, trazendo-
os em desassossego e destroçando-os de todas as formas; para estes
existem tribunais e se ditam leis e se inventam castigos e torturas de toda
a espécie. E como em uma casa onde há muitos enfermos e poucos sadios
se vê medicamentos por toda a parte e o entrar e sair dos médicos, assim
não há povo e não há cidade sobre a terra em que não haja muitas leis,
muitos governantes e muitos castigos. Porque não bastam apenas os
remédios para levantar o doente, mas se requer alguém que os aplique, e
cumprem esta função os juizes que obrigam os enfermos, queiram ou não
queiram, a tomar os remédios. Porém a enfermidade se difundiu tanto
que atacou também a profissão médica, isto é, invadiu os próprios juizes.
E acontece a nós como se alguém, atacado ele próprio de febre, hidropisia
e de outros mil males ainda mais graves, não pudesse se livrar de suas
próprias enfermidades e se empenhasse em curar a outros dessas mesmas
enfermidades. E a inundação da maldade, rompendo como uma torrente
todos os diques, se derramou furiosamente nas almas dos homens.
O PREDOMÍNIO DO MAL AMEAÇA A FÉ
NA PROVIDÊNCIA DE DEUS
E o que dizer da destruição da constituição e da ordem? Esta peste,
suscitada por estes perversos, está prestes a arrancar das cabeças do
povo até o último pensamento sobre a providência de Deus: de tal modo
avança e se estende, e está a ponto de invadir tudo e transtornar tudo, e
já não se contenta com nada menos que combater o próprio céu,
armando as línguas dos homens não só contra seus semelhantes, mas
também contra o próprio Senhor e soberano de todas as coisas. Porque,
de onde procede que em todas as partes se importem tanto com o
destino? Por que o povo atribui todas as coisas ao curso cego das
estrelas? Por que há quem renda culto à sorte e ao azar? De onde tiram
que tudo acontece ao acaso e sem razão? Pelos que vivem modesta e
sobriamente ou por estes que dizes ser o sustentáculo da república e eu te
demonstrei que constituem a pestilência comum do mundo inteiro? Por
estes, evidentemente. Ninguém, efetivamente, se irrita porque este exerça
a filosofia e o outro viva sóbria, modesta e castamente e despreze as
coisas presente; o que revolta é ver que um se enriquece e goza e é avaro
e ladrão, e que sendo uma pessoa má e carregada de crimes passa por
homem ilustre e prospera às mil maravilhas. Por isto acusam, isto jogam
os incrédulos contra Deus; disto o povo se escandaliza; pois por causa dos
que vivem decentemente, não só não poderão dizer uma só dessas
palavras, mas condenarão a si mesmos se tentarem acusar a providência
de Deus. E se todos, ou pelo menos a maior parte, se decidissem a viver
assim, nem teria ocorrido a ninguém falar deste modo e nem se teria
introduzido o que é o remate de todos estes males, toda esta especulação
acerca da origem do mal. Porque se não existisse o mal e nem aparecesse
em nenhuma parte, quem iria se meter a inquirir a causa do mal e
originar com esta inquisição inúmeras heresias? Por isso apareceram de
fato, Marción, Manes, Valentim e a maior parte dos gentios. Mas se todos
professassem a filosofia, não haveria porque entrar em tais investigações
e, se não por outro argumento, pelo menos por nossa vida perfeita, todo o
mundo se convenceria de que vivemos sob o império de Deus e que Ele
rege e governa nossas coisas conforme sua sabedoria e providência. É
verdade que também agora é Ele que move tudo, mas não parece tão
claro, pela grande escuridão que estes malvados espalharam pela terra
inteira. Se não fosse isto, a providência de Deus brilharia para todos
como um céu sereno em pleno meio dia. Se não existissem tribunais, nem
acusadores, nem delatores, nem torturas e suplícios, nem confiscos e
multas, nem temores e perigos, nem inimizades e intrigas, nem injúrias e
ódio, nem fome e peste, nem outro mal além dos enumerados, mas que
todos vivessem com a moderação conveniente, quem dos viventes poderia
duvidar da providência de Deus? Absolutamente ninguém. Mas ao
contrário, acontece-nos o que poderia se passar em uma grande tormenta
em que o piloto cumprisse, sim, seu dever e salvasse a nave, porém é tal a
confusão, o medo e a angustia pelos males que os ameaçam, que não os
tripulantes não vêm a perícia consumada do piloto. Também agora , leva
Deus, sem dúvida, o timão de todas as coisas, mas o povo não o vê por
causa da tormenta e da confusão em que andam todas as coisas, de que
são principalmente culpados estes malvados. Em conclusão, não só
transtornam a república, mas são também a pestilência da religião, e não
erraria quem os qualificasse como inimigos universais do gênero
humano, como os que vivem contra a salvação dos outros e tratam de
afogar, com suas doutrinas abomináveis e vidas impuras, seus
companheiros de navegação.
CONTRASTE ENTRE A VIDA DOS
MOSTEIROS E A VIDA DO MUNDO
11. Nada disto se vê nos mosteiros. Por mais violenta que seja a tempestade
que se desencadeie do lado de fora, só eles gozam de porto seguro e de
muita calma e segurança, como se do céu estivessem contemplando os
naufrágios dos outros. Na verdade, eles escolheram um gênero de vida
que convém ao céu e seu estado não é em nada inferior ao dos anjos. E
assim, do mesmo modo que entre os anjos não ha nenhuma diferença e
não acontece que uns vivam prosperamente e outros se encontrem na
extrema miséria, mas todos gozam de mesma paz, da mesma alegria e da
mesma glória; assim é, nem mais nem menos, também entre os monges.
Ninguém tem como desonra a pobreza, e ninguém é considerado pela
riqueza. Banidas estão as palavras "teu" e "meu" que tudo transtornam
e confundem, e tudo entre eles é comum: a mesa, a residência e as roupas.
E o que tem isto de maravilhoso, quando a alma é também a mesma e
uma só em todos? Todos são nobres com a mesma nobreza, todos são
escravos com a mesma escravidão, todos são livres com a mesma
liberdade. Ali há uma só riqueza para todos, a verdadeira riqueza, e uma
só glória para todos, a verdadeira glória, pois não põem os bens nos
nomes, mas nas coisas: um só prazer, um só desejo, uma só esperança
para todos. Tudo está perfeitamente ordenado como com régua e
esquadro. Não há ali desordem alguma. Tudo é ordem, ritmo e harmonia,
e concórdia absoluta, e motivo constante de alegria. Por isto todos fazem
e sofrem tudo para que todos vivam felizes e contentes. E assim, só entre
os monges podemos ver esta pura alegria que não acontece em nenhuma
outra parte, não só porque desprezaram o presente e cortaram pela raiz
toda ocasião de dissensão e luta; não só porque têm as mais belas
esperanças para o futuro, mas também pelo fato de que cada um
considera como seu tudo quanto acontece de alegria ou tristeza aos
demais. Deste modo, a tristeza desaparece facilmente, pois todos levam a
carga, como se fossem um só, e se acrescentam os motivos de alegria, pois
não se alegram só pelos próprios bens, mas também - e não menos que
pelos próprios - pelos bens alheios.

Sendo assim, como afirmar que se vai perder tudo se todos imitamos
homens desta têmpera? Agora é que está tudo perdido e corrompido, por
culpa dos que estão muito distante de se exercitar neste gênero de vida .
Quando tu dizes o contrário, fazes o mesmo que alguém que dissesse que
a lira bem afinada não serve para nada, e que a desafinada, com as
cordas muito tensas ou muito frouxas, é que pulsa maravilhosamente e
encanta os ouvintes. Quem falasse deste modo, não poderia dar melhor
prova de sua falta de sentido musical, como não há sinal mais claro de
inveja e maledicência do que condenar a vida religiosa.
A VOCAÇÃO NÃO DEVE SER ADIADA
Mas o que dizem os pais mais moderados? Que nossos filhos - dizem -
primeiro aprendam as letras e, com a gratificação da eloqüência, sejam
levados na hora adequada a este gênero de filosofia, pois então não
haverá nada que o impeça. Mas como sabes que teus filhos hão de chegar
a idade viril? Muitos, efetivamente, têm sido arrebatados antes do tempo,
com morte prematura. Mas, enfim, consideremos que isso seja seguro,
suponhamos que cheguem a idade adulta: Quem nos garantirá todas as
idades anteriores? Não me empenho em sustentar obstinadamente o meu
parecer, pois se me considerasse seguro sobre isto, eu não tiraria do
mundo os dotados de eloquência, mas então firmemente mandaria que
ficassem nele, e não só não louvaria os que os desterram, mas os tacharia
de inimigos comuns da república, pois, escondendo as lâmpadas e
levando os luminares da cidade para o deserto, fariam o mais grave dano
aos que moram nela. Mas se ninguém nos promete esta segurança, qual é
o proveito em mandá-los às escolas, onde aprenderão antes a maldade
que a eloqüência e, querendo ganhar o menos, perderão o mais, isto é,
toda a força e saúde da alma?

- Então - replicas - vamos derrubar todas as escolas?

- Não, não é isto que eu digo, mas que não derrubemos o edifício da
virtude e não enterremos viva a alma, pois enquanto esta se mantiver na
temperança, nenhum dano virá a ela pela sua imperícia na eloqüência;
mas se alma se corromper, o dano não poderá ser maior, por mais afiada
que seja a língua, e até será tanto mais grave este dano quanto maior for
a eloqüência. A maldade, com o auxílio da facilidade da palavra, produz
males muito maiores que a ignorância.
NÃO ADIANTA OBJETAR COM A
POSSIBILIDADE DE NÃO PERSEVERAR A
VOCAÇÃO
- E se depois de abandonar o mundo - dizes - além de não haver
exercitado a língua na eloqüência, vêem a cair da virtude que
professaram?

- E se ficando no mundo, além de corromper sua alma, não tiram


proveito algum do estudo da eloqüência? Porque eu tenho mais direito de
dizer isto do que tu aquilo. Por que? Porque se é certo que o resultado de
um e de outro é inseguro, no primeiro ou no segundo caso, é mais
inseguro no teu caso do que no meu. Como, e por que motivo? Porque o
estudo da eloqüência necessita da moderação dos costumes, porém esta
não requer o acréscimo da eloqüência. Pode-se muito bem alcançar a
temperança sem semelhante instrução, mas não se pode jamais alcançar
a eloqüência sem bons costumes, pois se consumiria todo o tempo em
vícios e devassidão. De modo que o que temes em relação à vida religiosa,
também deve ser temido em relação ao estudo, e aqui tanto mais quanto
são mais freqüentes os fracassos e se põem em jogo mais altos interesses.
Ali deve-se centrar todos os esforços em uma só coisa; aqui deve-se
dominar os dois de uma só vez, já que não se pode conseguir um sem o
outro, isto é, ter a eloqüência sem praticar a temperança.
O ESTUDO DA ELOQÜÊNCIA NÃO
MERECE ATENÇÃO PREFERENCIAL POR
PARTE DO CRISTÃO
Mas, se concordas, consideremos como possível o impossível. Que
proveito tiramos da perícia no falar, se recebemos um golpe mortal? E
que dano nos traz a imperícia, se salvamos o principal? E isto não é
opinião só dos que zombamos da sabedoria profana e a consideramos
loucura, mas é verdade confessada pelos próprios filósofos de fora. Por
isso a maior parte destes não se dedicaram com demasiado afinco ao seu
estudo e outros o desprezaram completamente e passaram a vida em
plena ignorância em relação à eloqüência, consagrando toda sua
atividade à parte moral da filosofia , na qual brilharam e se fizeram
famosos. Assim, nem Anacarsis, nem Crates, nem Diógenes fizeram
estudo algum neste sentido, e não faltam os que dizem que nem o próprio
Sócrates. E disto pode nos dar testemunho quem destacou-se sobre todos
nesta arte e penetrou mais fundo que os outros nas intimidades de seu
mestre. O fato é que Platão, ao introduzir Sócrates diante de seus juizes
para pronunciar seu discurso de defesa, na Apologia, o faz falar nestes
termos:

"Mas vós ireis escutar de minha boca toda a verdade, isso


sim, eu vos juro por Zeus, ó atenienses: o que não ireis
ouvir são discursos adornados com rodeios e palavras,
como os de meus inimigos, nem retoricamente
ornamentados, mas ouvireis coisas ditas com paixão e com
as palavras que me ocorram. Porque estou convencido ser
justo o que vos digo, e ninguém de vós espere de mim outra
coisa. Na verdade, nem seria decente que nesta minha
idade eu viesse a vós como um menino que pule
cuidadosamente os seus discursos".
Plat. Apol. 17 bc.

Ao falar deste modo, Sócrates dava a entender que se não aprendeu e


nem exercitou a eloqüência não foi por negligência, mas porque a tinha
como assunto que não valia a pena. De fato, a boa lábia não é coisa que
combine com filósofos , nem com homens feitos e direitos, mas
insignificância e brinquedo de meninos, como é considerado pelos
próprios filósofos, não por quaisquer, mas por aquele que na eloqüência
foi príncipe de todos eles, pois, o não consentir que seu mestre se
adornasse com suas galas, é porque tinha tal adorno como feio em um
filósofo.

Isto bastaria razoavelmente para um incrédulo, ou melhor dizendo,


também para um crente. Não é, efetivamente, absurdo que quem anda
em busca de aura popular e não tem outro meio de brilho senão a
sabedoria profana, a considere como de nenhum valor e nós a admiremos
e nos encantemos a tal ponto por ela que, para alcança-la, desdenhemos o
mais necessário?
O MUNDO FOI CONVERTIDO SEM A ARTE
DA ELOQÜÊNCIA
12. Tudo isto - repito - basta para um infiel; para um cristão, além de tudo
isto, devemos alegar também exemplos tomados de nossa religião. Que
exemplos? Aqueles primeiros grandes e santos varões que viveram
quando ainda não existiam as letras; os que vieram depois, quando já
havia letras, mas não a experiência dos discursos; os que seguiram a
estes, quando havia letras e experiência de discursos. Pois bem, os
primeiros foram alheios a um e a outro, pois não só careciam de toda a
instrução na arte dos discursos, como ignoravam as próprias letras. E
contudo, mesmo naquilo em que mais necessária parece a força da
eloquência, deixaram para trás com tanta vantagem os mais eloqüentes
oradores que estes parecem crianças que não chagaram ao uso da razão.
Porque se toda a força da eloquência está em persuadir e sabemos que os
filósofos não conseguiram jamais ganhar de um só tirano e os nossos
iletrados e ignorantes converteram toda a terra, é patente que a estes
corresponde a palma da sabedoria, não aos que tão bem conheciam a arte
do bem falar. De onde se vê bem que a verdadeira instrução e a
verdadeira sabedoria não é outra coisa senão o temor de Deus.

E que ninguém pense que trato de decretar como lei que nossos filhos
sejam ignorantes. Não. Se me asseguram o principal, eu não tenho
inconveniente em que se dê também o outro por acréscimo. Se uma casa
treme em suas bases e ameaçam cair as suas quatro paredes, seria
insensatez e loucura extrema correr aos decoradores, e não aos
pedreiros; mas seria também teimosia inoportuna, estando as paredes
firmes e seguras, não deixar que a decorassem desde que o dono tivesse
vontade.
PROVA-SE O QUE FOI DITO COM UM
EXEMPLO
E porque vos digo tudo isto de coração, vou contar-vos um exemplo em
que eu próprio fui o personagem. Houve em outro tempo em nossa cidade
um jovem realmente rico, que veio com o intuito de se instruir nas letras,
tanto latinas como gregas. Este jovem tinha sempre como acompanhante
um aio cuja única missão era formar e modelar a sua alma. Um dia eu
me aproximei deste aio (que era um dos moradores dos montes) e quis
saber dele a circunstância pela qual, tendo ele abraçado tão alta filosofia,
se havia rebaixado a um oficio tão humilde como o de aio. Ele me
respondeu que já lhe restava pouco tempo naquele oficio, e me explicou o
caso desde o começo. Este menino - disse-me - tem um pai duro e áspero,
e totalmente apegado às coisas da vida; sua mãe, ao contrário, santa
mulher, prudente e modesta, não tem olhos senão para olhar o céu . O pai
pois, como homem de grandes méritos na guerra, quer que seu filho siga
pelo mesmo caminho; a mãe não o quer nem o deseja, mas abomina as
armas e toda a sua oração e todos os seus desejos são que seu filho brilhe
na vida monacal. Mas não se atreveu a dizer nada disto ao pai, pois temia
que, só de suspeitar, o amarrasse antes do tempo com as cordas da vida, o
afastasse deste estudo e o obrigasse a vestir a farda militar com o séquito
de vida livre que traz consigo, fazendo assim impossível a correção. A
mãe inventou então um novo plano. Chamou-me a sua casa e, depois de
me contar tudo isto, tomou a mão direita do garoto e a colocou em
minhas mãos. Eu lhe perguntei porque fazia aquilo e me respondeu que o
único meio que nos restava para salvar aquele menino era que eu
quisesse e me resignasse a encarregar-me dele como aio e viesse para cá
em sua companhia. Ela convenceria o pai de que o estudo da eloquência é
proveitoso mesmo para quem escolhe a carreira militar. Se conseguir isto
- me dizia a mãe - , estando tu a sós em terras estranhas, sem que te
atrapalhe o pai ou algum criado poderás modela-lo a tua vontade e fazer
com que viva como em um mosteiro. Vamos! Concede-me esta graça e
promete-me que irás representar esta farça comigo. Não se trata de algo
sem importância; está em jogo e se arrisca nada menos que a alma de
meu filho. Não permitas que corra perigo aquele que eu mais amo,
arranca-o já dos laços que o rodeiam por todos os lados, tira-o destas
ondas e desta tormenta. Mas se não quiseres conceder-me esta graça,
desde já clamo a Deus que venha até nós e que seja minha testemunha de
que em nada me omiti do que convém à salvação da alma de meu filho, e
que estou limpa do sangue deste menino. Mas se acontecer que venha a se
perder, como é natural que suceda vivendo entre tantos prazeres e
negligências, de ti e de tuas mãos há de requerer Deus naquele dia a alma
deste menino.

Dizendo estes e muitos outros argumentos e chorando copiosa e


lastimosamente, me convenceu a tomar sobre mim este encargo, e com
estas ordens me despediu.

E o seu plano não foi em vão, pois aquele generoso varão de tal maneira
exercitou em breve tempo o jovem e acendeu tal fogo deste desejo em sua
alma, que ele renunciou de repente a tudo e correu para o deserto,
necessitando então de freio ao contrário, para contê-lo na ascese
moderada, sem aqueles excessos de fervor. Era, de fato para se temer que
se por este primeiro ímpeto de noviço, descobrisse o pai antes do tempo a
trama, movesse uma terrível guerra à mãe, ao aio e aos monges em geral.
E sem, dúvida, se o pai se houvesse inteirado desta fuga, não teria
deixado pedra sobre pedra até arrojar fora de suas terras, não só aqueles
santos que haviam acolhido seu filho, mas absolutamente todos os
monges.

Tomando eu, pois, este jovem à parte, apresentei-lhe e semelhantes


argumentos; que em boa hora se mantivera no propósito de abraçar este
gênero de filosofia, e ainda tratei de aumentar seu desejo; parecia-me,
contudo, conveniente que vivesse na cidade e prosseguisse o estudo das
letras, pois desta maneira poderia fazer um grande bem a seus
companheiros e passar desapercebido a seu pai. E tinha eu como
necessário proceder desta maneira, não só em atenção àqueles santos
monges, à mãe e ao aio, mas pensando também no próprio jovem. Porque
se no começo o pai lhe atacasse, o provável era que arrancasse as plantas
da filosofia, ainda tenras e sem raízes; ao contrário, se passasse muito
tempo e se fincassem bem as raízes, eu tinha completa confiança que,
acontecesse o que acontecesse, não poderia o pai causar dano algum a seu
filho. O que realmente se cumpriu e não foi frustrada a minha esperança.
Porque quando mais tarde, passado muito tempo, veio o pai a ser
surpreendido com isto, por mais que sacudisse com violência o edifício,
não só não conseguiu derruba-lo, como lhe deu maior firmeza. E no que
se refere a seus companheiros, foi tal o proveito que tiraram de seu
proceder que muitos o seguiram no fervor. E tendo em sua casa
continuamente seu modelador, como uma escultura que goza sem
interrupção da mão do artesão, aquele jovem aumentava dia a dia a
beleza de sua alma. E o admirável era que, ao apresentar-se em público
não parecia distinguir-se dos demais, pois não tinha um caráter feroz ou
desabrido e nem se vestia de modo estranho, mas nos gestos, no olhar e
no falar era semelhante a todo mundo. De onde que, ocultando dentro de
si muita filosofia, lhe foi possível pegar em suas redes muitos dos que o
trataram familiarmente. Pelo contrário, vendo-o em casa dir-se-ia que
era um morador dos montes. E assim, o teor daquela casa competia com
a perfeição de um mosteiro, pois nada havia nela além do necessário.
Gastava todo o seu tempo no estudo dos livros santos, pois sendo
inteligente, bastava-lhe dedicar uma breve parte do dia à instrução
profana e o resto no dia se entregava inteiramente a contínuas orações e à
leitura dos livros divinos. Passava o dia inteiro sem comer e as vezes
prolongava o jejum por dois ou até mais dias. Também as noites eram
testemunhas de tudo isto: de suas lágrimas, orações e santas leituras.
Tudo isso nos contava, às ocultas, o aio, pois o jovem julgaria terrível se
descobrisse que estas coisas tinham transcendido para fora. Dizia-nos ,
pois, o aio, entre outras coisas, que havia fabricado uma roupa de pele, e
com ela dormia durante a noite, engenhoso invento que lhe havia
ocorrido para levantar-se mais depressa. Enfim, cumpria tudo conforme
a mais cabal perfeição dos monges e o bom aio não se cansava de
glorificar a Deus que tão velozes asas para a filosofia havia concedido a
seu recomendado.

Em conclusão, se me mostrassem agora uma alma desta têmpera e se me


encontrassem um aio como este de que falamos; se me prometessem que
tudo o mais resultaria de modo semelhante a este , eu seria o primeiro a
desejar mil vezes que assim fosse e muito mais que os próprios pais, pois
deste modo, a caça das almas seria mais abundante, já que para isto
contribuiria a vida, a idade e o trato contínuo com os que puderam caçar
seus companheiros. Mas a verdade é que não há quem nos prometa isto
nem quem o encontre; e, não havendo, seria condição de extrema
crueldade que a quem não tem forças para defender-se a si mesmo, mas
que jaz estendido, recebendo feridas pelos quatro costados e
entorpecendo os movimentos dos demais, a este, digo, deixemos no meio
do campo para ser feito em pedaços, quando nosso dever é tira-lo da
batalha. Do mesmo modo haveriam de castigar um general que retirasse
das linhas de combate os que estão em condições de lutar e mandasse pôr
na mais dura refrega os feridos, os que caem e impedem o avanço dos
demais.
INCERTEZA DE ÊXITO NAS LETRAS
13. Mas, já que muitos pais insistem desejando ver os seus filhos vivendo
nas letras, como se soubessem com certeza que hão de chegar à cúspide
da eloquência, não vamos discutir obstinadamente este ponto nem lhes
diremos que fracassarão em seus intentos. Admitamos que dominarão
absolutamente o estudo e chegarão à meta proposta. Mas se nos
apresentam uma dupla opção: freqüentar as escolas e lutar pela
instrução ou marchar para o deserto e lutar pela alma, onde é que vale
mais vencer? Porque se é possível vencer nas duas partes, também eu o
quero; mas se há que se decidir por uma das duas, deve-se escolher a
melhor.

- Muito bem - me dizes -; mas como saberemos isto, quero dizer, que se
manterá firme, perseverará e não cairá? Porque são muitos os que
caíram.

- E como saberemos que não se manterá firme nem perseverará? Porque


muitos são os que se mantiveram firmes, e mais numerosos do que os que
caíram, de maneira que mais confiança hão de nos infundir aqueles do
que estes o temor. E por que não temes o mesmo no estudo das letras,
onde terias todos os motivos para temer? Porque, entre os muitos
monges, poucos fracassaram; mas nos estudos das letras, de muitos,
poucos triunfaram. E não é este o único motivo, mas há muitos outros a
temer com mais razão no estudo das letras do que na profissão monacal.
A incapacidade da criança, a ignorância dos mestres, a negligência dos
aios, as ocupações do pai, a falta de dinheiro para gastos e salários, a
diferença de caracteres, a maldade, a inveja e a ojeriza dos companheiros
de estudo e tantas coisas mais são outros obstáculos para alcançar a meta
ambicionada. E nem sequer são só estes, mas, passada esta meta, ainda se
apresentam outros muitos. Quando o jovem tiver superado tudo e tiver
chegado ao término de sua instrução, aqui o espera outra emboscada.
Muitas vezes a malevolência do governante, a inveja dos companheiros
de profissão, a dificuldade das circunstâncias, a falta de amigos, a
própria pobreza, enfim, são coisas para que não se consiga o êxito.

Nada disto se dá entre os monges. Ali só se requer uma coisa: uma


generosa e boa vontade. Se esta ocorre, não há nada que impeça chegar
ao cume da virtude. Pois bem, não é injusto se desesperar e tremer onde
as boas esperanças são mais claras e próximas, e confiar onde são mais
distantes, havendo tantos obstáculos que se cruzam no caminho, e as
dificuldades mais patentes e numerosas? Nas letras não se considera os
fracassos que muitas vezes acontecem, mas os êxitos que escassamente se
dão; na virtude monástica se faz o contrário. E assim, onde as esperanças
do bem são muitas, só se considera o mal possível; onde o provável é o
mal, só se conta com o bem. Na verdade, na profissão das letras, ainda
quando se tem todas as circunstâncias favoráveis ao êxito, muitas vezes,
quando se chega à meta, uma morte prematura arrebata o atleta sem ser
coroado, depois de suores infinitos; mas na profissão monacal, se a morte
surpreende o monge no meio dos seus combates, então mais do que nunca
sai deste mundo glorioso e coroado.

Em conclusão, se temes pelo futuro, é nas letras onde particularmente


deverias temer, pois nelas são muitos os obstáculos para se chegar ao
término. Mas de um lado, não achas inconveniente esperar largo tempo,
olhando só para o término e não para o intermédio, os gastos, quero
dizer, a miséria e a incerteza do resultado; de outro lado, porém, quando
teu filho ainda não pisou nos umbrais nem pôs a mão nesta bela filosofia,
imediatamente te lanças a temer e a tremer e não és homem para ter um
só pensamento razoável.
- Contudo, tu mesmo disseste antes: Pois então? Por acaso, o que habita
uma cidade e sustenta uma família não pode se salvar?

- Logo se com mulher e casa e morando na cidade é possível salvar-se,


muito mais fácil será, sem mulher e demais impedimentos. Porque não
pode um mesmo sujeito ter confiança, mesmo quando se sente amarrado
às coisas terrenas, por crer que ainda assim é possível a salvação, e temer
e tremer por outra parte quando se vê livre de tudo, como se não fosse
possível viver santamente sem essas coisas. Se, como dizias, é possível
salvar-se o que habita uma cidade, muito mais aquele que se retira para o
deserto. Como temes, pois, aqui o impossível e não temes onde deverias
temer?
A PERFEIÇÃO EVANGÉLICA NÃO É
ASSUNTO SÓ DO MONGE
14. - É que não é a mesma coisa - objetas - pecar um leigo, ou pecar um
homem que consagrou a vida a Deus. Um não cai da mesma altura que o
outro e, por isso, tampouco recebem as mesmas feridas.

- Pois muito te enganas e erras - respondo-te - se pensas que uma coisa se


exige do leigo e outra do monge. A diferença está em que o leigo se casa e
o monge não; nas demais coisas, a um e a outro serão pedidas as mesmas
contas. E assim, o que se irrita contra seu irmão sem motivo, seja leigo,
seja monge, ofende igualmente a Deus; e o que olha para uma mulher
para cobiçá-la, professe o estado que professe, será igualmente castigado
por este adultério. E se devemos olhar com a razão, o leigo é neste caso
menos credor do perdão, pois não é a mesma coisa que se deixe arrebatar
pela beleza de uma mulher aquele que tem a sua própria mulher e goza
de tão grande consolo, que sofrer tal percalço aquele que está privado de
toda ajuda semelhante. Do mesmo, o que jura, seja leigo ou monge, é
condenado. Porque quando Cristo nos ensinou o mandamento e a lei
sobre isto, não fez distinção semelhante dizendo:

"Se o que jura é um monge, o juramento procede do


maligno, e se não é um monge, não";

mas disse simplesmente e de uma só vez para todo o mundo:

"Eu porém, vos digo: Não jureis de modo algum".


Mt 5,34

E pelo mesmo motivo, quando disse:

"Ai dos que riem!",


Lc 6,25

não acrescentou:
"Se são monges",

mas apresentou a lei simplesmente para todos. E o mesmo fez em todos os


outros grandes e maravilhosos mandamentos que nos ensinou. E assim
quando diz:

"Bem-aventurados os pobres de espíritos, os que choram,


os mansos, os que têm fome e sede da justiça, os
misericordiosos, os puros de coração, os pacíficos, os que
sofrem perseguição por amor da justiça, os que por sua
causa ouvem todo o mal por parte dos gentios",
Mt 5, 3-12

não aparece em nenhum lugar o nome do monge nem do leigo. Esta


distinção foi introduzida por invenção dos homens.
SÃO PAULO TAMBÉM FALA SEM
DISTINÇÃO DE MONGES E DE LEIGOS
As Escrituras não conhecem semelhantes distinções, mas querem que
todos levem a vida dos monges, mesmo os que têm mulheres. Escuta o
que disse Paulo, e quando digo Paulo, outra vez digo Cristo. Escrevendo,
pois, Paulo para homens casados e com filhos, exige deles toda a
perfeição dos monges. E assim, cortando pela raiz todo o prazer, tanto no
vestir como nas comidas, escreve estas palavras:

"Que as mulheres, vestindo-se modestamente, se adornem


com pudor e castidade, não com frisos, nem ouro, nem
pedras preciosas, nem vestidos luxuosos"
1 Tim 2,9

E em outra vez:

"A que vive entre deleites, vivendo está morta viva".


Ibid. 5,6

E mais:

"Tendo o que comer e o que vestir, contentemo-nos com


isto".
Ibid. 6,8

Que maior perfeição pode-se exigir de um monge? E ensinando como se


há de dominar a língua, põe outras leis rigorosas e tais que aos próprios
monges custa trabalho levar à prática. Porque não condena só toda a
desonestidade e grosseria no falar, como as próprias brincadeiras; não só
corta das boca dos crentes a ira e a cólera e todo o dito amargo, mas o
próprio vozerio:

"Toda a cólera e ira, gritaria e blasfêmia, seja banida


dentre vós, junto com toda a maldade".
Ef. 4,31

E isto te parece pouco? Pois espera e ouça o que ele ordena a todos sobre
a paciência, muito superior ao que foi dito:

"Que o sol não se ponha sobre a vossa ira. Cuidai que


ninguém retribua a outro o mal pelo mal, mas segui
sempre o bem, entre vós mesmos e com todos".

E outra vez:

"Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o


bem"
1 Tes 5,15; Rom 12,21

Vês como sobe ao cume da própria perfeição da filosofia e da


longanimidade?

Pois ouça também o que Paulo ordena sobre a caridade, que é resume e
compêndio de todos os bens. Depois de tê-la exaltado e enumerado seus
feitos, o Apóstolo deu a entender que exige dos leigos a mesma caridade
que Cristo pediu a seus discípulos. Porque do mesmo modo que o
Salvador pôs como limite da caridade dar a vida pelos amigos (Jo 15,13);
o mesmo deu a entender Paulo quando disse:

"A caridade não busca os seus próprios interesses";


1 Cor 13s

e esta é a que nos manda seguir. De modo que ainda que só isso tivesse
dito, isto seria prova suficiente de que exige o mesmo dos leigos e dos
monges. Porque a caridade é o vínculo e a raiz de toda a virtude; e de
fato nos especifica ponto por ponto. O que se pode buscar, pois, mais alto
do que esta filosofia? Mandando-nos, efetivamente, o Apóstolo estar
acima da ira, da cólera, da gritaria, da cobiça do dinheiro, do ventre, do
luxo, da vaidade e de todos os outros afetos da vida e que nada tenhamos
de comum com a terra, e que mortifiquemos nossos membros, é evidente
que nos pede a mesma perfeição que Cristo a seus discípulos, e quer que
estejamos tão mortos para os pecados, como os que efetivamente já estão
mortos e sepultados. De onde diz:

"O que está morto, está justificado do pecado"


Rom 6,7
Ademais há ocasiões em que o Apóstolo nos convida, com sua exortação,
à imitação do próprio Cristo e não só à de seus discípulos. Assim, quando
nos exorta à caridade, toma os exemplos de Cristo; e o mesmo em relação
a não guardar rancor; o mesmo em relação à humildade. Se, pois, Paulo
nos manda imitar não só os monges, nem os discípulos de Cristo, mas o
próprio Cristo e ameaça com o máximo castigo a quem não o imitar, de
onde tiras isto de maior ou menor altura? A verdade é que todos os
homens têm que subir à mesma altura, e o que tem transtornado toda a
terra é pensar que só o monge está obrigado à maior perfeição enquanto
os demais podem viver como lhes agrada. Mas não, não é assim! Todos -
diz o Apóstolo - estamos obrigados à mesma filosofia e eu não duvidaria
em afirma-lo absolutamente ou, melhor dizendo, não eu, mas Aquele que
nos há de julgar.
O EVANGELHO, COM AS SUAS
ADMOESTAÇÕES E CASTIGOS,
CONFIRMA ESTA MESMA VERDADE
Mas se ainda te admiras e estás perplexo, permita-me que tome outra
vez a água das mesmas fontes, para ver se consigo lavar completamente
os teus ouvidos de toda a malícia de incredulidade. E basearei minha
demonstração nos castigos que o Senhor nos promete para o derradeiro
dia. Assim, pois, aquele rico do Evangelho não foi mais rigorosamente
punido porque vivendo solitário foi cruel, mas antes, se posso dizer algo
de minha autoria, porque sendo leigo e vivendo entre riquezas e vestindo-
se de púrpura, não se incomodou com Lázaro, que se achava em extrema
pobreza. Contudo, eu não quero afirmar nem uma coisa nem outra, mas
simplesmente que foi cruel e por isso foi rigorosamente castigado no fogo
do inferno. E as virgens insensatas, por se acharem escassas de
humanidade, foram excluídas da sala de bodas; e se é lícito dizer algo
pela minha própria conta, não só não contribuiu a virgindade para
aumentar-lhes o castigo, mas talvez o tenha diminuído, pois não foi dito a
elas:

"Marchai para o fogo eterno, preparado para satanás e


seus anjos",

mas só:

"Não vos conheço".


Mt 25, 12

Mas se alguém disser que tanto vale isto como aquilo, eu não o
contradirei, pois o que agora tratamos de demonstrar é que a profissão
do monge não agrava os castigos, mas que os leigos e os monges são réus
das mesmas penas se cometem os mesmos pecados. E o que entrou no
banquete com roupas sujas e o que reclamou os cem dinheiros não
sofreram o que sofreram por serem solitários, mas um por ter se perdido
por fornicação e o outro por ressentimento. E deste modo, examinando os
outros casos de castigos de que nos fala o Evangelho, se verá ser
unicamente o pecado o que determina o castigo.

E o mesmo que se diz sobre os castigos cabe dizer das admoestações que o
Senhor nos dirige. Assim, quando diz:

"Vinde a mim os que trabalhais e estais sobrecarregados, e


eu vos aliviarei; tomai sobre vós o meu julgo e aprendei de
mim, porque eu sou manso e humilde de coração, e
encontrareis descanso para vossas almas",
Mt 11,28

não fala só com os solitários, mas com todo o gênero humano.


Igualmente, quando nos manda caminhar pelo caminho estreito, também
não dirige suas palavras exclusivamente aos monges, mas a todos os
homens. E também são ordens comuns a todos as de odiar a própria alma
neste mundo e todas as outras ordens do mesmo modo. Ao contrário,
quando não fala com todos nem põe leis universais, nos dá a entender
com toda a clareza. Assim, por exemplo, quando falou da virgindade,
acrescentou:

"O que puder entender entenda",


Mt. 19,12

sem acrescentar a palavra todos, nem dar ao seu ensinamento um tom de


mandamento. Pelo mesmo motivo, Paulo, que imitava em tudo o seu
Mestre, tratando desta matéria, dizia:

"Sobre as virgens, não tenho mandamento da parte do


Senhor".
1 Cor 7,25

Em conclusão, nem o mais obstinado e persistente poderá sustentar que


não estejam obrigados monges e leigos a subir ao mesmo cume e que, se
caírem, não recebam uns e outros as mesmas feridas.
O MONGE CAI COM MENOS FACILIDADE
QUE O LEIGO
15. Demonstrado com toda a clareza este ponto, vamos também examinar
quem cairá mais facilmente, se é que isto necessita de exame. Quanto a
castidade, não há dúvida que a guardará mais facilmente o que tem
mulher, pois goza de tão grande ajuda; mas em tudo o mais, a coisa já
não parece tão clara. E até sobre a castidade, vemos que são mais os
casados que caem do que os monges, pois não são tantos os monges que
saem dos mosteiros para se casar como os esposos que saltam do leito de
suas mulheres para se lançar nos braços das rameiras. Pois bem, se onde
os combates são mais leves, caem com tanta freqüência, o que farão nas
outras paixões em que são mais molestados que os monges? A
concupiscência, sem duvida, ataca a estes com mais violência, por não
terem contato com as mulheres; mas quanto às outras paixões não têm
nem por onde acercar-se dos monges; enquanto aos leigos perseguem
com fúria e os trazem sem sossego. Se, pois, no terreno em que a guerra
sopra mais furiosamente, os monges se saem melhor do que os que não
padecem esta fúria, é evidente que resistirão muito mais facilmente que
estes em outros terrenos em que são menos molestados. Assim, a cobiça
pelo dinheiro, o desejo de prazer e a ambição pelo poder são
naturalmente vencidas com mais facilidade pelos monges do que pelos
leigos . Pois bem, como em um campo de batalha não diremos que na
parte mais frouxa do combate é que se amontoam incessantemente os
cadáveres, mas sim quando os mortos são poucos e raros; o mesmo
devemos dizer também nestes combates do espírito. Assim, a avareza,
quem com mais facilidade a dominará não é o que anda envolto no
tráfego da vida; mas o que habita nos montes. Será difícil que o leigo não
se veja colhido em suas redes e, uma vez colhido pela avareza, não haverá
outro remédio que contá-lo entre os idolatras (Ef 5,5). Se o monge tem
dinheiro, não lhe ocorrerá desprezar por isso os seus familiares, antes,
será mais fácil que entregue tudo a eles; o leigo, ao contrário, não só os
desprezará, mas lhes fará mais danos do que aos estranhos. E esta é outra
classe de idolatria mais grave que a anterior. Enfim, para que fazer uma
relação completa de todas as paixões que o monge derrota facilmente e
que derrubam os leigos com a maior violência?
NÃO DEVEMOS TEMER TANTO PELA
SALVAÇÃO DO MONGE QUANTO PELA
SALVAÇÃO DO LEIGO
Como, pois não temes nem vacilas em levar teu filho a um gênero de
vida em que cairá rapidamente nas garras da maldade? Ou te parece
pequeno mal a idolatria, ser pior que os infiéis e renegar o serviço de
Deus, tudo o que sofrerão mais facilmente que os monges, aqueles que se
acham ligados às coisas da vida? Vês como o teu medo não era senão um
pretexto? Porque se devíamos temer, não era certamente pelos que fogem
das ondas e se refugiam rapidamente no porto, mas por aqueles que se
debatem em furiosa tempestade. A verdade é que no mundo são mais
freqüentes os naufrágios, pois além de serem maiores as tormentas, os
que deveriam enfrentá-las são os que vivem mais descuidados. Na vida
monástica, pelo contrário, as ondas não são tão encrespadas, a
tranqüilidade é muita e a solicitude de quem tem que as combater é
maior. Por isso, se nós os empurramos para o deserto, não é para que se
vistam simplesmente de saco, coloquem um cordão no pescoço e se
deitem sobre cinzas, mas antes de tudo para que fujam do vício e
abracem a virtude.

- Então - perguntas - todos os casados se perderão?

- Não é isso o que digo, mas que, se quiserem se salvar, necessitarão de


maior esforço
"por causa da instante necessidade";
1 Cor 7,26

pois está claro que o liberto corre melhor que o amarrado. Logo também
terá maior recompensa e usará uma coroa mais brilhante? De maneira
nenhuma, pois foi ele que impôs a si mesmo esta necessidade, quando
tinha a opção de não o fazer!

Conclusão: Fica aqui claramente demonstrado, pois, que temos as


mesmas obrigações que os monges; corramos pelo caminho mais plano e
levemos por ele os nossos filhos; não tratemos de afundá-los e de arrastá-
los para o abismo da maldade, como se fossemos seus inimigos mortais.
Se outros fizeram isto, paciência ; mas que defesa restará, que perdão,
que misericórdia merecem os pais, com a experiência que têm das coisas
da vida, quando sabem praticamente quanto é frio o prazer desta vida, se
a tal ponto perdem a cabeça e empurram outros para estas mesmas
coisas, cujo proveito a idade impede a eles? Quando deveriam
considerar-se desgraçados com as lembranças de sua vida passada,
lançam outros pelo mesmo caminho, e isto o fazem já com um pé no
estribo para a viagem suprema, já tocando com a mão aquele tribunal e
as contas posteriores. Porque ali pagarão com certeza não só pelos seus
próprios pecados, mas também pelos pecados de seus filhos, consigam ou
não derruba-los com a armadilha que lhes armam.
OS FILHOS DA CARNE E OS FILHOS DO
ESPÍRITO
16. Mas por acaso tendes vontade de ver os filhos dos vossos filhos? E com
que direito, se ainda não haveis chegado a ser seus verdadeiros pais?
Porque certamente não é o gerar que faz o verdadeiro pai, e assim o
reconhecem os próprios progenitores que, quando vêm seus filhos
jogados na maldade extrema, os rejeitam e desconhecem como se não
fossem seus filhos, sem que natureza, nem geração, nem título semelhante
possa conte-los. Que não pretendam, pois, considerar-se pais aqueles que
ficam tão abaixo de seus filhos na filosofia; se na virtude os tivessem
gerado, então poderiam buscar a nova descendência, pois só então,
ademais, seriam capazes de vê-la. Porque, sim, vossos filhos têm filhos,

"não nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem


da vontade de varão, mas do próprio Deus".
Jo 1,13

Estes filhos não obrigam seus pais a se matarem para ganhar dinheiro
nem que andem preocupados com seu casamento ou assuntos
semelhantes, mas, deixando-os livres de toda preocupação,
proporcionam-lhes prazer superior ao que gozam os pais naturais. É que
os filhos do espírito não são gerados nem criados para os mesmos fins que
os da carne, mas para fins mais altos e gloriosos. Por isto proporcionam
também maior alegria a seus progenitores.
Além disto, eu te diria também que não há nada de surpreendente que os
que não têm fé na ressurreição se lamentem de não ver os filhos de seus
filhos, pois afinal este é o único consolo que lhes resta; mas se
consideramos a morte como um sono e se aprendemos a desprezar tudo o
que é terreno, que perdão mereceríamos se chorássemos por isto? Que
sentido tem buscar ver os filhos e deixá-los numa terra da qual temos
pressa em sair e onde vivemos gemendo e chorando? Seja dada razão aos
mais espirituais; aos que amam tanto seu corpo e se sentem fortemente
apegados à vida presente, poderíamos dizer em primeiro lugar que de
qualquer forma é incerto que resultem filhos do matrimônio; e logo que,
se nascem, dão mais tristeza do que alegria. O gozo que efetivamente nos
proporcionam não admite comparação com o peso da preocupação
diária, as angustias e os temores que originam em nós.
PARA QUEM DEIXAREMOS NOSSAS
RIQUEZAS?
- E para quem - perguntas - deixaremos nossos campos, casas, escravos
e ouro?

Eis aqui um lamento que ouço também dos pais. Pois do mesmo que
herdaria antes, e agora com muito mais razão que antes, pois agora será
o guarda e o senhor das riquezas, mais seguramente que antes. Então
havia muitas coisas que podiam prejudicar seus bens. A traça, o longo
tempo, os ladrões, os caluniadores ou delatores, os invejosos, a incerteza
do futuro, a fácil mudança das coisas humanas, e, por fim, a morte
despojaria teu filho do seu dinheiro e das suas posses. Mas agora ele
colocou sua riqueza em um lugar inacessível a tudo isso, achou um abrigo
seguro, onde nada disso pode penetrar. Tal lugar é o céu, inacessível a
toda cilada, fértil como nenhuma outra terra, banco que oferece os mais
altos interesses a quem deposita nele seu dinheiro. De modo que não
havia porque fazer esta pergunta agora. Se teu filho tivesse que ficar no
mundo, então sim, haveria porque lamentar-se e perguntar: Para quem
deixaremos nossos campos, para quem o ouro, e os demais bens? Porque
agora o teu filho é tão senhor de seus bens, que, nem mesmo depois que
tiver saído deste mundo, perderá seu senhorio. Melhor ainda, saídos
deste mundo, é que melhor gozam de seus interesses.

Mas se também aqui na terra queres ver teu filho dono dos seus bens,
nisto também pode-se ver a vantagem que o monge leva sobre o
mundano. Se não é assim, responde-me então: Quem é mais dono daquilo
que possui: o que gasta e reparte com grande liberdade ou o que por
mesquinharia não se atreve a tocá-lo e o enterra e guarda como se fosse
alheio? O que gasta a torto e a direito ou o que gasta devidamente? O que
semeia na terra ou o que semeia no céu? O que não pode dar tudo o que é
seu a quem deseja, ou o que se vê livre de todos os que exigem tais
contribuições? Porque tanto em cima do lavrador quanto do comerciante
se lançam um enxame de cobradores de tributos, que reclamam cada um
a sua parte; mas a quem deseja gastar o que tem com os necessitados,
ninguém irá chegar com tais ameaças. De maneira que, também aqui o
monge é mais dono de suas riquezas que o leigo. Ou tu chamas de dono
de suas riquezas aquele que as gasta com rameiras, comilanças,
aduladores e parasitas, manchando sua própria honra, perdendo sua
alma e fazendo escárnio de todo o mundo, e não aquele que as emprega
inteligentemente para a verdadeira glória e proveito e conforme o
beneplácito divino? É como se chamasses dono de seu dinheiro aquele
que visses jogando-o no esgoto e chorasses de pena por não ser senhor de
seu dinheiro aquele que o empregasse em satisfazer suas necessidades, Na
realidade, não se deveria comparar estes tais com os que simplesmente
gastam, mas com os que gastam para seu próprio mal. Porque os gastos
que fazemos por necessidade nos proporcionam acréscimo de honra, bem
estar e segurança; porém os outros não só desonram e envilecem, mas
ainda conduzem de mil maneiras à perdição.
NÃO SE DEVE ADIAR, PARA A VELHICE, A
CONVERSÃO E A ENTREGA A DEUS
17. - Assim - perguntas - não é possível professar esta filosofia depois de
casarmos e termos filhos, uma vez chegados a velhice?

- E quem nos assegura, em primeiro lugar, que chegaremos à extrema


velhice e, logo, que que chegados à velhice guardaremos absolutamente
este propósito? Não somos senhores de estabelecer prazos a nossa vida, e
assim nos ensinou Paulo dizendo:

"O dia do Senhor virá como ladrão na noite".


1 Tes 5,2 / Mt 24,42-43

O nosso pensamento, por outro lado, tampouco permanece sempre no


mesmo propósito. Por isso um sábio nos exorta dizendo:

"Não postergues o converter-te ao Senhor nem o dilates dia


após dia; não aconteça que enquanto tardas, te consumas e
pereças no momento da vingança".
Eclo 5,8

Mas mesmo se nada disto fosse incerto, nem ainda assim deveriam nossos
filhos adiar o seguimento de sua vocação nem se deveria consentir
tamanho mal. Seria com efeito o cúmulo de insensatez, que, quando o
jovem necessita de mais ajuda, quando o adversário o ataca com mais
violência, os lançássemos no torvelinho das coisas para ser sua presa
fácil, e quando estiver feito um crivo de feridas e não lhe restar parte
alguma sã, então o armássemos convenientemente e o excitássemos ao
combate, estendido ele já e meio exânime.

- Sim - replicas -, porque então, apagados os desejos, a luta é mais fácil, a


batalha mais suportável.

- E que luta é esta - eu te digo - quando não temos diante de nós um


adversário? Por isso a coroa não poderá ser já muito brilhante.

"Bem-aventurado o que tomou o jugo desde a sua


juventude. Sentar-se-á solitário e se calará".
Lam 3,27

O que merece infinitos louvores, felicitações e glória é o que sabe refrear


sua natureza em pleno furor, o que no mais quente da tormenta consegue
salvar seu navio.
NÃO ABANDONAR O JOVEM EM SUAS
LUTAS CONTRA O INIMIGO
Mas, enfim, não porfiemos nisto e, se te agrada, suponhamos que
também na velhice tenhamos que lutar. Realmente, se estivesse em nossas
mãos determinar o momento do combate, seria bom que se esperasse a
época da velhice; mas não. Temos que combater durante toda a vida,
começando desde a infância; chegando o menino ao dez anos, é
necessário que se lhe peça já contas de seus pecados, como o demonstram
aqueles que foram devorados pelos ursos como castigo por terem caçoado
de Eliseu (4 Rs 2,23s), e há conseqüentemente que se lutar desde esta
idade, em que começam a soprar com violência os ventos da guerra
contra nós. De onde tiras, pois, colocar esse tempo como limite nos
combates pela virtude? Se pudesses ordenar também ao diabo que não
nos atacasse para que não nos sacudissem seus golpes durante a
juventude, tua proposta teria algum viso de razão; mas se admites que ele
me combata e açoite e a mim impões a lei de que permaneça quieto, ou
melhor, que voluntariamente me jogue a seus pés, que dano maior
poderia ser feito a mim que ter um inimigo furioso a minha frente,
desarmar-me durante o tempo de combatê-lo e entregar-me assim em
suas mãos? É jovem e fraco? Por isso mesmo necessita de mais
segurança, e se necessita de segurança, necessitará também de mais
cuidado. Uma alma assim tem que gozar de paz e de tranqüilidade
contínua e não ser lançada no torvelinho das coisas e agitar-se no meio
delas, onde o ruído e a confusão são assombrosos. Tu, ao contrário, aos
que sofrem as mais duras guerras, por sua idade, pela sua debilidade,
pela sua inexperiência e pela perversão que os rodeia; a estes, digo, como
se já estivessem acumulados de méritos e em pleno vigor das suas forças,
lanças no meio do combate e não lhes permites que se retirem para se
exercitar na solidão. É como se um general mandasse exercitar-se
tranqüilamente em simulacros guerreiros os soldados capazes de
alcançar mil vitórias, e os novatos, que não podem nem ver uma batalha,
obrigasse a entrar no mais vigoroso combate, pondo os maiores
obstáculos em uma coisa que já é naturalmente difícil.

Ademais, deve-se saber que depois do matrimônio ninguém é dono de si


mesmo e é preciso optar ou por viver sempre com a mulher, se esta o
quiser, ou, no caso de ela não querer, separar-se e expor-se ao adultério.
E o que dizer das outras necessidades dos filhos, as preocupações da casa,
capazes de entorpecer todo bom propósito e lançar um obstáculo
completo para a alma?
A VELHICE NÃO É PRÓPRIA PARA
ABRAÇAR A VIDA MONÁSTICA
18. Portanto, vale mais a pena nos armar quando somos donos de nós
mesmos e quando nos achamos soltos, desde a infância, não só pelas
razões enumeradas, mas também por outras que vou mostrar. De fato o
que abraça esta filosofia no fim de sua vida, gasta todo o tempo lavando
os pecados cometidos na idade anterior e nesse labor se consome toda a
sua energia, e nem assim lhe basta muitas vezes, mas sai deste mundo
com fartas relíquias das feridas antigas. Ao contrário, o que desde a sua
primeira idade foi para a arena, não tem porque gastar o tempo nisso e
estar sempre a curar suas feridas, mas desde o princípio recebe os
prêmios da vitória. Aquele tem que se contentar em reparar as derrotas
passadas; o outro, porém, levanta troféus desde que começa a corrida e
acrescenta vitórias e mais vitórias e, como um campeão olímpico que
caminha desde a infância até a velhice de aclamações em aclamações,
assim este chega à eternidade, cingida sua a cabeça de coroas sem conta.

Pois bem, entre quem queres que se encontre o teu filho: entre os que por
seu grande valor diante de Deus podem olhar fixamente os próprios
arcanjos, ou entre os que ficam para trás de todos e ocupam o último
lugar? Porque não há dúvida que o último lugar ocuparão, e isso se
conseguirem escapar de todos os obstáculos que acabo de enumerar e não
os arrebatar uma morte prematura, nem os impeça logo a mulher, e que
não tenham tão graves feridas que nem toda a velhice baste para repará-
las, e conservem, finalmente, firme e imóvel o seu primeiro propósito.
Supondo que ocorram todas estas circunstâncias, ainda assim serão
contados a duras penas no último lugar. Destes, pois, queres que seja teu
filho, ou dos que brilham na cabeça da falange?
QUE OS PAIS TENHAM PACIÊNCIA EM
ESPERAR A VOLTA DE SEUS FILHOS
- Quem será tão miserável - me contestais - que não deseje para seus
filhos a glória do primeiro posto? Mas nós buscamos a convivência e
desejamos que nossos filhos fiquem conosco. Eu também quero isto e não
peço a Deus com menos fervor que vós que os gerastes, a volta de vossos
filhos à casa paterna, e que vos paguem a dívida de sua criação, que é a
maior que o homem tem. Mas não a exijamos por enquanto. Quando os
mandais ao estudo das letras, os desterrais por um logo tempo da própria
pátria e quando devem aprender uma arte mecânica e ainda mais vil que
a mecânica vós fazeis a casa inacessível, obrigando-os a comer e dormir
na casa do mestre; não será, então, um absurdo, que quando devem
aprender não uma disciplina humana, mas a filosofia do céu, vós os
dissuadis imediatamente antes de haverem saído como desejamos? O
saltimbanco que aprende a correr pela corda esticada se afasta por um
longo tempo dos seus; e vamos fechar com os papais os que têm que
aprender a voar da terra ao céu ? Existe insensatez mais funesta? Não
vedes como os lavradores, por mais pressa que tenham em gozar do fruto
de seu trabalho, jamais consentiriam que se fizesse a colheita antes do
tempo? Pois não afastemos antes do tempo, tampouco, nossos filhos de
sua vida solitária, deixemos que se assentem bem os ensinamentos e que
as plantas lancem raízes. Que passem dez, vinte anos no mosteiro, não
nos perturbemos, não nos aflijamos por isso, pois quanto mais tempo
passarem no ginásio, mais forças adquirirão. Ou melhor, não
determinemos tempo algum; que o limite seja o tempo necessário para
levar a plena estação os frutos de sua da virtude. Então, que voltem do
deserto na hora certa; não antes. De semelhante precipitação não
havemos de tirar outro proveito, senão que sua virtude jamais chegue a
amadurecer. Porque o fruto que se retira antes do tempo da seiva da raiz,
nem mesmo chegada sua estação será de bom proveito. Para que não
aconteça isto com vossos filhos, suportemos pacientemente a separação e
não só não tenhamos pressa em que voltem, mas que, se eles a tiverem,
que os impeçamos. Porque se voltar perfeito, o proveito será universal:
para o pai, para a mãe, para a família, a cidade, e a nação; se ele se
apresentar, ao contrário, imperfeito, será o escárnio e o opróbrio de todo
o mundo e fará danos a si mesmo e aos outros. Não lhe causemos
tamanho prejuízo. Quando enviamos nossos filhos para uma viagem, é
certo que desejamos voltar a vê-los, uma vez não obtido o objetivo da
viagem; porém se apresentam-se antes, a pena da frustração da viagem
nos dilui o prazer da volta. Pois como não qualificar de suma estupidez
não colocar no espiritual o mesmo empenho que mostramos no
temporal? Aqui levamos tão resignadamente a separação dos filhos que
até fazemos votos que ela se prolongue, quando disto há de resultar
algum proveito; no espiritual, ao contrário, somos tão brandos e se nos
rompe o coração em tantos pedaços diante da perspectiva de uma
viagem, que por esta pusilanimidade se desbaratam e frustam os maiores
bens. E isso sendo que os consolos são maiores aqui, não só porque
marcham para combates mais gloriosos e a vitória é em todos os pontos
segura e nada há que possa frustrar nossas esperanças, a não ser a
própria separação. Numa viagem longa, não é fácil ver os filhos,
sobretudo se os pais já são idosos; no mosteiro, ao contrário, pode-se ir
vê-los freqüentemente. E isto é por certo o que devemos fazer, enquanto
eles não puderem vir até nós. Vamos nós até eles e convivamos e
conversemos com eles. Disto há de nos resultar grande proveito e prazer.
Porque não só nos alegraremos em ver nossos filhos amados, mas
voltaremos para casa ricos de frutos de virtude e até pode acontecer que,
presos no amor pela filosofia, fiquemos com eles.

Em conclusão: só os chamemos quando se tiverem feito fortes, quando


forem capazes de aproveitar aos demais; só então lhes poderemos fazer
violência, a fim de que a luz seja comum e a lâmpada brilhe sobre o
candeeiro. Então vereis de que filhos vós sois pais, esses que considerais
agora ditosos. Então sabereis o que vale a filosofia, quando os virdes
curando os homens que sofrem de enfermidades incuráveis, quando
forem proclamados como benfeitores, protetores e salvadores universais,
quando andarem como anjos entre os homens da terra, quando todos
fixarem neles os seus olhos. Enfim, por mais que digamos, nada há de se
igualar ao que se pode ver pela experiência e pelos próprios feitos.
A EDUCAÇÃO, MAIS IMPORTANTE DO
QUE A LEGISLAÇÃO
Se as coisas fossem como deveriam ser, isso é o que teriam que fazer os
legisladores, não meter medo e mais medo nos jovens quando se tornam
homens, mas guia-los e modela-los quando ainda são crianças. Depois
disto, as ameaças sumiriam por completo. Mas na realidade se faz como
se um médico não dissesse uma palavra ao enfermo quando começa a
sentir o mal e nem lhe receitasse nenhum remédio; ao contrário, quando
já estivesse perdido e sem remédio, se pusesse a ditar leis a torto e a
direita. E é assim que os legisladores nos educam, quando nos achamos já
extraviados. Paulo não procede assim, mas desde o começo e na primeira
infância, coloca mestres de virtude para o menino, a fim de impedir que a
maldade penetre em sua alma. A pedagogia mais excelente não consiste
em permitir que primeiro nos domine a maldade e então buscar desterra-
la de nós; mas sim, em por todo o nosso esforço e cuidado para fazer-nos
inatacáveis por ela. Por isso não só exorto a não impedir a quem queira
nos fazer este benefício, mas a colaborar pessoalmente nisso, em salvar o
nosso barco e preparar uma navegação com ventos prósperos. Se todos
adotássemos este modo de ver e tratássemos, antes de todas as coisas, de
levar as crianças à virtude, bem persuadidos de que isto é mais
importante e que tudo o mais é acessório, seriam tantos os benefícios que
daí resultariam que, só de enumerá-los daria a impressão de estar
brincando. Mas se alguém quiser conhecer estes benefícios, poderá vê-los
muito bem na própria realidade e nos agradecerão, ou melhor dizendo,
agradecerão a Deus, antes que a nós, ao contemplar como floresce na
terra a vida do céu e como por ela se acredita, mesmo aos olhos dos
infiéis, a doutrina dos bens futuros e da ressurreição da carne.

A VIDA MONÁSTICA, REFLEXO DA VIDA


DO CÉU
19. A prova de que isto não é falar por falar está em que, quando
mencionamos aos infiéis a vida dos que moram no deserto, eles nada têm
a nos replicar; só se admiram e porfiam no pequeno número dos que
alcançam esta perfeição. Mas se nas cidades semeássemos também esta
semente, se a disciplina do bem viver se convertesse em lei e costume e
ensinássemos às crianças, antes de todas as coisas, a serem amigos de
Deus e os instruíssemos nos ensinamentos espirituais em lugar das outras
coisas e antes que todas as outras coisas, todos os nossos pesos se
desvaneceriam, a vida presente se veria livre de infinitos males e desde
agora começaríamos todos a gozar do que se diz da vida do céu: Que dela

"fugirá toda a dor, a tristeza, e o gemido".


Is 51,11

Porque se não nos acometesse o amor ao dinheiro nem a ambição da


glória fútil; se não temêssemos a morte; se não considerássemos como
desgraça a pobreza e o sofrimento, mas os recebêssemos como os maiores
prêmios; se não soubéssemos o que é a inimizade e o ódio, não nos fariam
guerra nem as nossas próprias paixões e nem as alheias, e o gênero
humano tocaria nos limites da natureza dos próprios anjos.

O QUE NÃO PODE ALCANÇAR O MAIS, QUE


NÃO DESPREZE O MENOS
- Mas que homem - dizes - escalou estas alturas?
É natural que tu não creias, como homem que vive nas cidades e não tem
trato com os livros divinos; mas se conhecesses os que vivem nos desertos
e tivesses lido o que nos contam os livros sagrados sobre antigos varões,
saberias que os monges agora e, antes que os monges, os apóstolos, e
antes que estes, os justos da antiga Lei, foram imagem fiel desta filosofia.

Porém, não quero discutir isto contigo. Suponhamos que teu filho fique
em segundo ou terceiro lugar em relação àqueles: ainda assim não serão
minguados os bens de que gozará. Não chegará a ser um Pedro ou um
Paulo, nem talvez se acerque deles; será isto motivo para privá-lo da
honra que lhe caberá depois deles? Ao falar deste modo é como se
dissesses: Posto que meu filho não pode ser uma pedra preciosa, que
continue a ser ferro, e não seja nem ouro nem prata. Como é que, em
relação ao profano, não discorres assim, mas de modo contrário? A
verdade é que quando o mandas aprender a eloqüência, não esperas, a
todo o transe, vê-lo no posto mais elevado dela e nem por isso o retiras do
estudo. De tua parte fazes tudo o que podes e te dás por satisfeito que teu
filho ocupe o quinto e ainda o décimo posto entre os grandes oradores. E
quando os colocais a serviço do imperador, tampouco esperais que de
algum modo subam ao trono dos governadores e nem por isso lhes
ordenais que desatem a cinta e não toquem em absoluto os umbrais do
palácio. Não. Todo o vosso afã é que não tenham que abandonar a vida
cortesã, contentando-vos em vê-los contados entre os medianos. Por que
razão, pois, em um caso, se não conseguis o mais, vos afanais e vos
esforçais para alcançar o menos - e isso quando a esperança aqui
também é incerta - e no outro vacilais e os retirais? É que do primeiro
tendes verdadeiro desejo e do outro não tendes nenhum. Logo, como não
tendes coragem de confessar a verdade, andais buscando desculpas e
pretextos. Se realmente o quisesses, nada disso se poria diante de vós.
Porque a verdade é que quando alguém ama autenticamente alguma
coisa , se não pode alcança-la inteiramente, agarra-se ao que pode, e se
não chega ao extremo, se contenta com o médio, e muitas vezes com
menos ainda. Assim, um bom bebedor e amigo do vinho, se não pode ter
do doce e perfumado, não desdenhará o vinho de qualidade inferior; e
um avaro, igualmente, se não pode acumular pedras preciosas e ouro,
agradecerá mil vezes se conseguir prata. Assim é a natureza do desejo,
força tirânica, capaz de obrigar quem está por ela dominado, a enfrentar
tudo para conseguir o que quer. De sorte que se todas as vossas palavras
não fossem puros pretextos, o que deveríeis fazer era ajudar vossos filhos
em seus esforços. Porque é próprio de quem deseja uma coisa não opor-
se a consegui-la, mas fazer todo o possível para alcança-la. Os atletas
olímpicos, embora saibam muito bem que dentre a multidão só um há de
conseguir a vitória, todos, contudo, se esforçam e lutam para alcança-la.
Na verdade, nada tem a ver nossos combates com os olímpicos, não só
pelo fim distinto que em uns e outros se persegue, mas porque nestes só
um pode sair coroado; nos nossos, pelo contrário, a alternativa não se dá
entre sair ou não sair coroado, mas em que um alcança uma coroa mais
brilhante do que o outro; mas todos a alcançam.

E em absoluto, se quiséssemos desde o princípio formar as crianças e


entrega-las a quem quer guia-los, não seria improvável que alcançariam
um dia os primeiros lugares nesta milícia, pois Deus não desdenharia tão
boa vontade e empenho, lhes estenderia sua mão e ele mesmo modelaria
esta estátua. Pois bem, onde a mão de Deus intervém, é impossível que
fracasse algo do que se faz ou, melhor dizendo, é impossível que não se
chegue à própria cúspide da perfeição, com a única condição de que não
falte a colaboração de nossa parte. Porque se houve mulheres que
conseguiram que Deus lhes ajudasse no cuidado de seus filhos, com mais
razão, se quisermos, nós também o conseguiremos. Para não alongar
meu discurso, deixarei de lado muitas outras coisas que poderia falar, e
só irei mencionar uma .

O EXEMPLO DE ANA, MÃE DE SAMUEL


20. Houve uma certa Ana, mulher judia (1 Re 1-2). Esta mulher teve só um
filho e não tinha esperanças de ter outro, pois este mesmo foi conseguido
a duras penas e com muitas lágrimas. Ana era estéril. Mas apesar de ver
que por isso uma rival a insultava, nem assim lhe ocorreu nada do que
vós fazeis. Tendo tido aquele filho, só consentiu tê-lo consigo o tempo
necessário para amamenta-lo. Quando o menino deixou de necessitar
deste tipo de alimento, a mãe se apressou a consagra-lo a Deus e desde
então não mais o convidou a pisar a casa paterna, pois ele começou a
morar continuamente no templo de Deus. Se alguma vez, porém, a mãe
desejasse vê-lo, não o chamava a sua casa, mas subia ela ao templo com o
pai, mantendo-se à frente, distante dele como de coisa consagrada a
Deus. O jovem se tornou tão nobre e tão grande que por sua virtude
alcançou que Deus se mostrasse mais uma vez propício ao povo hebreu
ao qual havia reprovado pela sua maldade excessiva e não lhes dava seus
oráculos nem lhes mostrava visão alguma. Pela virtude deste jovem, pois,
Deus voltou a fazer os mesmos benefícios que antes havia retirado e lhes
devolveu a profecia que havia desaparecido. E tudo isto conseguiu este
jovem antes de ter chegado a maior idade, sendo ainda um menino
pequeno:

"Porque não havia então",


diz a Escritura

"visão distinta, e a palavra era preciosa".


1 Re 3,1

E, contudo, nestas circunstâncias, Deus dava a ele continuamente seus


oráculos. Tal ganho nos seguirá sempre se cedermos a Deus o que
possuímos, e desprendermos de tudo , não só de nosso dinheiro e bens ,
mas de nossos próprios filhos. Pois se temos o mandamento de fazer isso
em relação a nossa própria alma, quanto mais em relação a todas as
outras coisas.

Isso mesmo fez o patriarca Abraão, e até muito mais do que isso, e por
isso também recuperou com mais glória seu filho. E é assim que então
realmente possuímos nossos filhos, quando os entregamos ao Senhor.
Ninguém os há de proteger melhor do que Ele, pois ninguém como Ele
cuida deles. Não vês como isto acontece nas casas dos ricos? Ali se pode
ver como os escravos que habitam em suas casas com seus pais não
brilham tanto nem têm tanto valor para os seus senhores; ao contrário,
aqueles que estes separam de seus pais e destinam a seu próprio serviço e
à custódia de suas dispensas, estes são os que gozam de maior favor e
confiança e brilham em relação a seus companheiros como os senhores
em relação a seus escravos . Pois se os homens se mostram tão bons e
benévolos com seus serviçais, muito mais aquela bondade infinita que é
Deus.

DEUS ABENÇOARÁ OS PAIS PELA VIRTUDE


DOS SEUS FILHOS
Deixemos, então, que nossos filhos sirvam a Deus levando-os não ao
templo, como Samuel, mas ao próprio céu com os anjos e arcanjos.
Porque é uma coisa evidente para todos que entre anjos e arcanjos
servirão e ministrarão absolutamente a Deus aqueles que abraçarem esta
filosofia. E não olharão só para si mesmos, mas também - e com mais
valor - para vós. Porque se houve filhos que alcançaram consolo em
relação a seus pais , com mais razão alcançarão os pais em relação a seus
filhos. No primeiro caso, a única justificativa é o vínculo da natureza;
porém, no segundo se acrescenta o da criação, que é mais forte que o da
própria natureza. Um e outro vos irei demonstrar pelas divinas
Escrituras. Assim, a Ezequiel, que era virtuoso e pio, mas cujos
merecimentos não eram suficientes para que se sustentasse diante do
grande perigo que o ameaçava, disse Deus que o queria salvar em
atenção à virtude de Davi, seu pai:

"Por causa de mim mesmo",


disse

"e por Davi, meu servo, eu serei escudo desta cidade para
salvá-la".
4 Reis 19,34

E escrevendo Paulo a Timóteo sobre os pais, dizia:

"Salvar-se-ão pela geração dos filhos, contanto que


perseverem na fé e na caridade e na santificação com
castidade".
1 Tim 2,15

E a Jó entre as outras coisas pelas quais o louva a Escritura: porque era


justo, verdadeiro e piedoso, uma delas é o cuidado que tinha com seus
filhos. Cuidado que não se resumia em amontoar ouro para eles e nem
em lhes proporcionar brilho e glória. Mas em que se constituía? Escuta o
que diz a Escritura:

"E tendo decorrido o turno dos dias de banquete, Jó


mandava chamar seus filhos, purificava-os, e, levantando-
se de madrugada, oferecia holocausto por cada um deles, e
matava um novilho pelo pecado em expiação de suas
almas, pois dizia: 'Talvez meus filhos tenham pecado, e
tenham ofendido a Deus nos seus corações'. Assim fazia Jó
todos os dias".
Jó 1,5

Pois que defesa já nos resta, aos que cometemos estes desaforos? Porque
se o que viveu antes da graça e da lei, o que não gozou de doutrina
alguma, tinha tanto cuidado com os seus filhos que estremecia até por
seus pecados ocultos, quem nos livrará a nós, que vivemos na graça, que
temos tido tão grandes mestres, que temos visto tão grandes exemplos e
recebido tantas exortações, quando não só não tememos pelos pecados
ocultos, mas desprezamos até os manifestos, e não só menosprezamos,
mas perseguimos aqueles que desejam corrigi-los?

Também a Abraão, como disse antes, entre outros merecimentos, este


também o fez ilustre.

BUSQUEMOS PRIMEIRO O REINO DE DEUS


21. Tendo em vista tais exemplos, preparemos para Deus servidores e
ministros experimentados. Se quem alimenta atletas para as cidades ou
instrui soldados para os imperadores, granjeia para si alta honra, qual
será a glória que receberemos se alimentarmos para Deus tão nobres e
grandes varões, ou melhor dizendo, anjos? Então, coloquemos todo nosso
empenho em deixar para nossos filhos a riqueza da piedade, riqueza esta
que é permanente, que nos acompanha na viajem para a eternidade e
que não só nos oferece a maior utilidade nesta vida, mas também na
outra. A riqueza terrena não só não sairá conosco deste mundo, mas
ainda aqui se perde antes do tempo e até muitas vezes perde também
seus donos; a riqueza espiritual, pelo contrário, é firme aqui e na outra
vida e guarda com grande segurança aos que a possuem. E a coisa é
como se segue: o que puser o que é terreno acima do espiritual , perderá
o terreno e o espiritual; mas o que cobiça o que é celeste, alcançará
também absolutamente o terreno. E isto não sou eu quem diz, mas aquele
que há de nos proporcionar um e outro: o Senhor:

"Buscai",

diz,

"o reino de Deus e tudo o mais vos será acrescentado".


Mt 6,33

Que maior honra podemos ter? Preocupa-te - diz - com o espiritual e


abandona a mim tudo o que é teu. Deus se comporta conosco exatamente
como um pai amoroso que toma sobre si o governo da casa, dos criados e
de tudo o mais, e exorta seu filho a que se dedique somente à filosofia.
Obedeçamos, pois e busquemos o reino de Deus e assim veremos
gloriosos nossos filhos em todas as coisas e juntamente com eles
brilharemos nós também e, se só amarmos o futuro e o celeste,
gozaremos também o presente.

NÃO TEM DEFESA NEM DESCULPA QUEM


IMPEDE A VOCAÇÃO DE SEU FILHO
Se nisto obedecerdes a Deus, vossa glória será grande; mas se o
contrariardes e o desobedecerdes, o castigo será muito grave, pois já não
adianta refugiar-vos em nenhuma espécie de defesa, e nem dizer que
ninguém vos havia instruído sobre o assunto. Na verdade, mesmo antes
destes meus discursos tínheis já cortada toda a defesa, pois a própria
natureza distingue perfeitamente o bem e o mal, esta filosofia é patente
para todo o mundo e os males da vida presente já são suficientes para
empurrar para o deserto até os mais apegados a ela. Digo, pois, que
ainda que me calasse, não vos restaria defesa possível; e muito menos
agora depois de tão grandes argumentos e de tão copiosa exortação,
fundada às vezes na própria experiência, e às vezes - que é motivo mais
claro - nas Sagradas Escrituras. Mesmo que fosse possível que
permanecendo no mundo não se corrompessem totalmente e alcançassem
ao menos o último posto salvando-se, nem ainda assim certamente
escaparíamos ao castigo, por tê-los impedido de abraçar a vida mais
perfeita e haver retido nas coisas da terra aqueles que ansiavam em voar
para o céu; mas não sendo isto possível, sendo de todo modo forçoso que
se percam, postos em perigo os interesses supremos, que perdão
merecemos, que defesa nos resta, atraindo sobre nós mesmos a mais
grave responsabilidade não só de nossos próprios pecados, mas dos que
depois disso cometerem nossos filhos? Porque eu não creio que eles
haverão de ser tão duramente castigados pelos pecados que cometerem
depois de terem perdido a sua vocação, arrastados ao torvelinho do
mundo, como nós que os colocamos neste transe. Se quem escandaliza a
um só merece ser lançado ao mar com uma pedra de moinho (Mt 18,6),
qual será o castigo e o suplício suficiente para quem cometer esta
crueldade e desumanidade com seus próprios filhos?

SÃO DESFEITOS OS ÚLTIMOS PRETEXTOS:


A INCERTEZA DA PERSEVERANÇA NÃO É
MOTIVO PARA SE IMPEDIR A VOCAÇÃO
Por isso, eu vos exorto a que abandoneis toda obstinação e queirais ser
pais de filhos filósofos. Já não podeis alegar nem este pretexto que ouço
de muitos. Que pretexto é este? - Como sabíamos - dizem - que não
poderiam chegar até o fim, os impedimos de seguir a sua vocação.

A isto respondo que, ainda que com toda a certeza o soubesses e não se
tratasse de mera conjectura - e o fato é que muitos dos que se esperava
que iam cair, se mantiveram firmes -, nem ainda neste caso se deveria
lança-lo para baixo. Se vemos que alguém vai cair e nos adiantamos em
dar-lhe uma rasteira, a possibilidade da queda não basta para nos
desculpar, antes, isto é justamente o que mais nos condena. Porque não
deixaste que a queda se devesse só a sua própria negligência e não de que
te adiantasses em arrebatar o pecado e atraísses toda a culpa sobre a tua
própria cabeça? Ou, melhor dizendo, nem sequer devias ter consentido
que caísse. Porque, efetivamente, não fizeste todo o possível para evitar a
queda de teu filho? De modo que, justamente porque sabias que teu filho
ia cair, por isso principalmente és digno de castigo. Porque aquele que
isso sabia de antemão não tinha que derrubar, mas estender a mão e
redobrar o empenho para que este que estava a ponto de cair se
mantivesse valentemente em pé, quer conseguisse se manter, quer não.
Nosso dever é fazer tudo o que está a nosso alcance, mesmo que ninguém
tire nenhum fruto do nosso trabalho. Por que razão e para que fim? Para
que sejam eles, e não nós, que tenham que prestar contas a Deus. Pois foi
Ele mesmo que disse ao criado que não havia negociado com o talento:

"Devias ter posto meu dinheiro no banco e eu, quando


voltasse, o teria recuperado com o lucro".
Mt 25, 27

Obedeçamos, portanto, a quem deste modo nos exorta, a fim de escapar


também ao castigo. Pois seguramente não conseguiremos enganar a
Deus, como aos homens. Porque Deus pesquisa os corações e expõe tudo
à luz do dia e Ele é quem nos faz responsáveis a todo o momento pela
salvação de nossos filhos. Se quem não pôs o dinheiro no banco foi
castigado, o que terá que sofrer quem impede aqueles que o querem pôr?
E como tiveste vontade de impedi-los, o castigo será o mesmo, tanto se
por vossos conselhos são vossos filhos arrastados para o torvelinho das
coisas da vida, como se, resistindo bravamente a vosso ataque, voltem
outra vez aos montes. Porque, do mesmo modo que quem trata de levar
alguém à filosofia, consiga ou não convence-lo, tem assegurada sua
recompensa (pois fez a sua parte); assim o que tenta corromper, consiga
ou não realizar o seu intento, sofrerá o mesmo castigo, pois também este
fez o que estava a seu alcance. De sorte que, ainda que todos os vossos
esforços para derrubar os pensamentos generosos de vossos filhos
tivessem resultado inúteis, sofreríeis o mesmo castigo que se de fato os
tivesses derrubado.

CONCLUSÃO DA OBRA
Considerando, pois, tudo isto e abandonando todos os pretextos,
empenhemo-nos em sermos pais de filhos generosos, arquitetos de
templos em que more Cristo, treinadores de atletas celestes, ungindo-os,
corrigindo-os, buscando por todos os meios seus benefícios, a fim de
participarmos também no céu de suas coroas. Mas se vos obstinardes, se
vossos filhos forem generosos, correrão, mesmo contra vossa vontade, a
abraçar esta filosofia e gozarão de todos os seus bens, e a vós só restará
amontoar castigo sobre castigo e virdes a elogiar tudo o que acabo de vos
dizer quando nenhum proveito podereis tirar desses elogios.

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