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349 - 407 DC
CONTRA OS IMPUGNADORES
DA VIDA MONÁSTICA
DISCURSO PRIMEIRO
NINGUÉM VENCE
NA GUERRA CONTRA DEUS
Tal foi o castigo na presente vida; mas o que os espera na vida por vir é
infinitamente mais grave. Porque os tormentos e dores inexplicáveis que
haverão de sofrer seus corpos retornados a vida não durarão mil anos
nem dez mil somente, nem duas ou três vezes mais, senão pelos séculos
infinitos. De ambos os gêneros de tormentos sabe o bem-aventurado
Isaías; de ambos também Ezequiel, o vidente de maravilhosas visões; e
repartindo-se os dois profetas o castigo destes homens, um nos explicou o
castigo na presente vida e outro o que os aguarda na eternidade
- Longe de mim - disse - Não queira Deus que eu brinque jamais com
estas coisas, nem que diga nem finja em minha imaginação o que, mesmo
agora que aconteceram, eu teria pago alto preço e mil vezes teria querido
não me haver inteirado delas.
E rindo-se o outro:
E outro:
"Eu antes de todos encontrei o seu abrigo".
"Mas eu",
replica um terceiro
E outro terá como façanha digna do mais alto elogio tê-los levado
ao cárcere, aos maus tratos da prisão e haver antes arrastado pela
praça pública aqueles santos varões. E assim outro e outra coisa.
Logo rompem todos em uma gargalhada. Isto nos conluios dos
cristãos. Quanto aos gentios, riem-se dos zombadores e dos
zombados: De uns pelo que fizeram; de outros, pelo que
sofreram. E tudo anda cheio de uma espécie de guerra civil, ou
melhor, de algo mais grave que uma guerra civil. Os que fizeram
uma guerra civil, quando mais tarde se recordam dela, maldizem
mil vezes aos que a promoveram e atribuem a algum gênio
maléfico quanto nela tenha acontecido, e são justamente os que
mais se envergonham quem nela mais se distinguiram; estes, ao
contrário, gabam-se de suas transgressões. E não só porque esta
guerra é mais sacrílega que a outra e porque se faz contra
homens santos que a ninguém ofenderam, mas porque se
persegue homens que não sabem fazer dano a ninguém, e só estão
dispostos a sofrer eles próprios.
3. - Alto! - disse-lhe eu -, alto! Não sigas com teus relatos, se não queres
que irremediavelmente exale meu ultimo alento. Deixa-me que volte à
minha casa com pelo menos um pouco de força. O que tu me ordenaste se
cumprirá completamente; só te rogo que não me contes mais nada, mas
anda e roga que se dissipe esta nuvem de tristeza e que o próprio Deus a
quem fazem guerra me dê alguma ajuda para remédio dos mesmos que o
combatem. E certamente me dará, sem dúvida alguma, sendo benigno e
amoroso, pois
"Bem-aventurados"
disse,
- "Filho meu",
disse,
"Este",
disse-lhes,
- Mas o que tem a ver - dirá alguém - tudo isto conosco? Porque nós não
afastamos ninguém da fé e nem impedimos que se pregasse.
E para que vale - dizei-me - a fé, se a vida não é pura? Mas talvez vós
ignorais também esta verdade, já que não escutais nenhuma doutrina
nossa. Pois eu vos vou enumerar as sentenças de Cristo e observai vós se
não se condenou de algum modo a vida e só se estabeleceram castigos
acerca da fé e da doutrina. E, de fato, tendo subido ao monte, vendo
aquela grande multidão que o rodeava, depois de outras muitas
exortações, disse:
E também:
E o que ouve suas palavras mas não as põe em pratica, disse ser
semelhante a um homem tolo que edifica sua casa sobre a areia, fazendo-
a presa fácil de rios, chuvas e ventos (24-27). E em outra ocasião, falando
ao povo:
"Da maneira como os pescadores, quando puxam a rede,
separam os peixes ruins; assim será naquele dia, quando os
anjos lançarão na fornalha ardente todos os que houverem
cometido pecados."
Mt 13, 47
"Irão onde está o verme que não morre e o fogo que não se
apaga".
Mc 9, 44
E outra vez:
"Um rei",
disse,
disse,
Logo parece-te que sem motivo andamos tão temerosos pela nossa vida e
colocamos tanto afinco na parte moral da filosofia? Não penso desta
maneira, certamente, a não ser que digas que tampouco Cristo teve
motivo para dizer tudo isso e muito mais do que isso, pois não iremos
transcrever aqui todo o Evangelho. E se não temesse alongar meu
discurso, pelos profetas, pelo bem-aventurado Paulo e os outros apóstolos
poderia mostrar-te quanto empenho o próprio Deus pôs nesta parte. Mas
creio que basta o que disse; ou, melhor, não só basta o que disse, mas a
menor coisa que dissemos. Porque quando é Deus que afirma algo, ainda
que o dissesse uma só vez, temos que recebê-lo como se mil vezes
houvesse repetido.
O MUNDO, CASA QUE ARDE E CIDADE
REVOLTOSA
7. Então? - alguém me dirá - Os que ficam em suas casas não podem
praticar essas virtudes, cuja falta acarreta tão graves castigos? Também
quisera eu não menos, mas muito mais que vós, e muitas vezes desejei que
desaparecesse a necessidade dos mosteiros. Oxalá fosse tanta a disciplina
das cidades que ninguém jamais tivesse necessidade de buscar o refúgio
do deserto! Mas como tudo anda de cabeça para baixo, e as cidades em
que se estabelecem os tribunais e as leis estão cheias de iniquidade e
injustiça, e o deserto produz copiosos frutos de filosofia, não é justo que
culpeis a quem trata de retirar de dentro desta tormenta e confusão os
que desejam se salvar, e os conduzem a um porto de calma, em lugar dos
que converteram as cidades em lugares tão intransitáveis e tão nada
propícios à filosofia, que forçam aquele que quer se salvar a fugir para o
deserto. Se não, dizei-me: Se alguém tomasse a meia noite um tocha e
pusesse fogo em uma grande casa habitada por muita gente com intenção
de queimar as pessoas que dormem no interior dela, quem diríamos que é
malvado? O que despertou os que dormiam e lhes fez sair daquela casa
ou o que empreendeu atear fogo e pôs em semelhante transe os da casa e
o que os tirou dela? E se, vendo alguém uma cidade sob a tirania ou
atacada pela peste ou em plena revolta, persuadisse a quem pudesse entre
seus habitantes a escapar para o topo dos montes e, depois de persuadi-
los, os ajudasse também em sua retirada, a quem haveriamos de culpar?
Ao que retira os homens desta furiosa tormenta em que andam revoltos
ou ao que foi a causa destes naufrágios?
O MUNDO SOB A TIRANIA DO PECADO
Porque, na verdade, não penses que a situação do mundo é agora melhor
que a de uma cidade sob o domínio de um tirano, mas muito pior. Não
um homem , mas algum demônio maligno se apoderou como um tirano
feroz de toda a terra e invadiu com toda a sua hoste as almas dos homens,
e dali, como de uma cidadela, dita a todo o mundo suas ordens
abomináveis e sacrílegas: Desfaz casamentos, saqueia riquezas, executa
mortes iníquas e, o que é muito mais grave, separa do trato com Deus a
alma que com Ele se desposara e a entrega a seus guardas impuros e a
obriga que se una a eles. E estes, uma vez que se tenham apoderado de
uma destas almas, têm com ela trato tão vergonhoso e insolente qual se
pode supor de demônios perversos, que ardente e furiosamente desejam
nossa perdição e desonra. Despem-na de todas as vestes da virtude, e
cobrem-na com os farrapos dos vícios, imundos, despedaçados e
fedorentos que a deixam mais feia que a própria nudez e, depois de
enche-la com toda a sua impureza diabólica, ainda não se dão por
satisfeitos em suas insolências contra ela. E é assim que não conhecem
saciedade neste sacrílego e adúltero convívio, senão o modo de agir de
bêbados que quanto mais bebem mais ficam sedentos, assim estes, quanto
mais abusam da alma, tanto mais se enfurecem e com mais violência e
ferocidade saltam sobre ela, rasgando-a e mordendo-a por todas as
partes, inoculando seu próprio veneno e não a abandonando, enfim, até
vê-la convertida em demônio como eles separada do corpo. Pois, que
tirania, que prisão, que destruição, que escravidão, que guerra, que
naufrágio, que fome pode ser mais dura que semelhante estado? E quem
será tão cruel e feroz, quem tão tolo, quem tão desumano, tão alheio à
dor e à compaixão que, o quanto estiver em suas mãos, não queira livrar
uma alma assim ultrajada e maltratada daquela sacrílega fúria e
insolência, mas que consinta vê-la sofrer tudo isso? Mas se o
consentimento for de uma alma feroz e de pedra, onde colocaremos, dize-
me, os que não só o consentem, mas os que cometem crimes muito
maiores que este? E é a quem tem coragem de se lançar no meio dos
perigos e não se importam de meter a mão na cara da fera, sem
considerar o mal cheiro e o perigo, para arrancar da garganta do
demônio as almas que já tinham devorado; a estes, digo, não só não os
louvam nem aprovam, mas os expulsam de todas as partes e lhes
declaram a guerra.
QUANTO É DIFÍCIL SALVAR-SE NO
MUNDO
8. Então - me dirás - é verdade que se perdem e naufragam os que habitam
as cidades e teremos que deixa-las e despovoa-las para irmos ao deserto e
habitar os cumes das montanhas? E és tu quem isto ordenas e esta lei
impões?
- Pelo contrário. Como já disse, melhor seria o oposto, e faço votos a Deus
que gozemos de tanta paz e seja arrancada a tirania destes males pela
raiz, que não só não tenham necessidade os que habitam as cidades de
tomar de assalto as montanhas, mas que mesmo os que moram nos
desertos, e, como desterrados por longo tempo, voltem a sua própria
cidade. Porém o que iremos fazer! Eu temo que, ao empenhar-nos em
devolvê-los a sua pátria, em lugar de entregá-los a esta, os coloquemos
nas mãos dos malignos demônios e, querendo livra-los da solidão e do
desterro, os façamos perder sua filosofia e tranqüilidade.
E se são poucos os que acham o caminho, muito menos são os que têm
força para chegar até o término do mesmo. Com efeito, nem todos os que
a princípio entram por ele, se mantêm firmes até o fim. Uns naufragam
no começo, outros pelo meio, outros na própria boca do porto. E em
outra ocasião disse o Senhor que
Pois bem, quando é o próprio Cristo quem afirma que a maior parte se
perde e limita a salvação a uns poucos, porque tu te revoltas contra mim?
É como se contando a ti o que aconteceu no tempo de Noé, te admirasses
que todos tivessem perecido e só dois ou três homens escapassem de tão
grande castigo, esperando deste modo tapar-me a boca, como se eu não
houvesse de me atrever a condenar tanta gente.
QUANTO ALHEIOS AO EVANGELHO
VIVEM OS MUNDANOS
Não cometerei eu esta covardia nem preferirei o vulgar à verdade. Não
são os pecados atuais menores do que os de então, mas tão mais
abomináveis quanto os que nos ameaçam agora com o inferno e nem
assim se corta pela raiz a maldade. Quem, dize-me, não chama de néscio
ao seu irmão? Pois aquele que o faz é réu do fogo do inferno. Quem não
olhou para uma mulher com olhos intemperantes? Pois isto é adultério
consumado, e é forçoso que o adultério caia no inferno. Quem não jurou
alguma vez? Pois o juramento, vem absolutamente do maligno. E o que
vem do maligno merece castigo absolutamente. Quem não teve alguma
vez inveja de seu amigo? Pois isto nos faz piores que os gentios e os
publicanos; e quem é pior que gentios e publicanos não há de escapar ao
castigo, coisa patente a todo mundo. Quem desterrou de seu coração todo
o rastro de rancor e perdoou os pecados de todos os que lhe ofenderam?
Pois que quem não perdoar há de ser forçosamente entregue aos
tormentos, nenhum ouvinte de Cristo ousará contradizer. Quem não
serviu a Mammon? Pois quem serve a Mammom, forçosamente há de se
negar ao serviço de Cristo, e aquele que renega o serviço de Cristo,
forçosamente há de renegar sua própria salvação. Quem não maldisse
ocultamente? Pois aos maledicentes, mesmo a antiga lei ordena que se
lhes tire a vida e lhes passe a espada.
Pois bem, que consolo temos de nossos próprios males? Somente ver que
todos, como que de comum acordo, se precipitam no abismo da maldade,
quando isto justamente é a prova maior da enfermidade que nos aflige,
pois tomamos como consolo de nossos males o que deveria ser motivo de
maior dor! Na verdade, ter muitos como companheiros de pecado, não
nos absolve de culpa, nem nos isenta de castigo.
Porém não falemos ainda sobre isto, mas aguardemos para trata-lo em
seu devido tempo. Porque - deixando de lado as demais coisas - o próprio
fato de estarmos obrigados a compor o presente discurso não é por si só
prova suficiente da gravidade da enfermidade que nos aflige? Já é um
limite extremo de malícia não sentir remorso dos próprios pecados e
cometê-los sem dor alguma. Pois onde colocaremos estes novíssimos
legisladores de uma nova e absurdíssima ordem de coisas que desterram
com mais rigor aos mestres da virtude que outros aos do vício, e
declaram uma guerra mais terrível aos que tentam corrigir o pecado e
não àqueles que o cometem? Ou melhor dizendo, por estes não se
incomodam nem pouco nem muito e nem lhes dirigem jamais uma
reprovação; quanto aos outros, todavia, de boa vontade os comeriam
vivos e só falta que se lancem pelas ruas gritando e pregando com seus
ditos e feitos que é mister agarrar-se com unhas e dentes à maldade e não
voltar jamais à virtude; e não parece que devam castigar só aos que a
praticam, senão mesmo aos que se atrevem a abrir a boca em favor dela.
CONTRA OS IMPUGNADORES
DA VIDA MONÁSTICA
DISCURSO SEGUNDO
A UM PAI INFIEL
E aquelas outras:
"Coisas de assombro e de espanto aconteceram sobre a
terra".
Jer 5, 30
E o mais grave deste caso é que não só pessoas estranhas e que nada têm
a ver com aqueles a quem se aconselha a abraçar a vida monástica se
irritam e se desgostam por isto, mas são capazes também de irar-se os
próprios pais e parentes.
Sim, eu não ignoro que existem muitos que não se surpreendem de que
assim se comportem os pais e os parentes; o que lhes sufoca de irritação -
dizem - é ver que o mesmo fazem aqueles que não são nem pais, nem
parentes, nem amigos, e nem por algum outro conceito ligados a quem
abraça a filosofia, e, freqüentemente, sem sequer conhecê-los, superam os
próprios pais em morder, combater, e afrontar aos que os persuadiram a
isto. Mas o que me parece surpreendente é justamente o contrário.
Porque não é nada estranho que aqueles que não se sentem ligados por
vínculo algum de parentesco nem de amizade se lamentem pelos bens
alheios; uns, vítimas da inveja; outros, que têm como sua própria ventura
a perdição dos demais; pensamento, por certo, apoucado e vil, mas que
ocorre em certas pessoas. Mas os pais que os geraram, que os criaram,
que diariamente fazem votos de vê-los mais importantes que eles mesmos,
e que para conseguir estas glorias não deixam pedra por mover; que
estes, repito, como se despertassem de uma bebedeira, sintam pena de
que seus filhos sejam levados para a filosofia, isto sim é coisa que me
surpreende acima de toda a ponderação e afirmo ser argumento
suficiente de que tudo está corrompido. Caso semelhante não se pode
citar nem nos tempos passados, quando o terror imperava
escancaradamente. Embora, uma vez tenha acontecido em uma cidade
gentil; mas foi em regime de tirania. E ainda então não foi, como agora,
um pai, mas os que haviam tomado a cidadela, e nem foram todos, mas o
mais abominável de todos, o que chamou Sócrates e o intimou que não
falasse mais sobre filosofia. Mas se Critias cometeu este ato de violência
foi porque era um tirano, incrédulo e cruel, que em todos os seus atos
maquinava a ruína da república, gozava com as desgraças alheias e sabia
que nada há de tão eficaz para derrubar a melhor constituição política
que uma ordem semelhante. Porém estes que são crentes e vivem em
cidades, ao que parece, bem governadas e olham pelo bem de seus filhos,
se atrevem a falar a mesma linguagem dos tiranos sobre seus súditos
subjugados, e não se envergonham disto. De modo que devemos nos
admirar mais de que os pais se irritem, do que os estranhos.
NEM SEMPRE SÃO OS PAIS OS QUE
MELHOR CONHECEM O QUE CONVÉM A
SEUS FILHOS
Por isto, deixando de lado os estranhos, vou conversar com aqueles a
quem acima de tudo importa o bem de seus filhos ou, melhor dizendo,
aqueles a quem deveria importar, mas não lhes importa em absoluto. E
quero lhes falar com bondade e modéstia, rogando-lhes antes de tudo
uma coisa: que não levem a mal nem se molestem se alguém lhes disser
que conhece melhor do que eles mesmos o que convém a seus filhos.
Haver gerado um filho não basta para que seja precisamente o pai que
ensine ao filho o que lhe convém. A geração é indubitavelmente
importante para infundir carinho à prole; porém nem a geração nem o
carinho são suficientes para saber pontualmente o que é conveniente à
prole. Se assim fosse, ninguém melhor do que o pai haveria de ver o que
seria conveniente a seu filho, pois ninguém poderia ganhar dele em
carinho. Mas o certo é que os próprios pais, pelo seu modo de agir,
confessam que o desconhecem, e assim vemos que mandam seus filhos à
escola, os põem aos cuidados de aias e tomam o conselho de uma
infinidade de pessoas, quando tratam do gênero de vida a que os querem
dedicar. E, afinal, não é de se espantar que tomem conselho, mas que
muitas vezes, vindo a deliberar sobre o assunto de seus próprios filhos,
deixem seu parecer e sigam o parecer alheio. Pois que também não se
aborreçam comigo se lhes digo que sei melhor do que eles o que convém a
seus filhos. Isto sim, se não o demonstrar com meus argumentos, acusem-
me então e me dêem a alcunha de fanfarrão, corruptor e inimigo da
natureza universal.
JOÃO QUISERA NÃO TER QUE DISCUTIR
SENÃO COM UM INFIEL
2. Pois bem, como colocaremos a coisa claramente e como saberemos quem
realmente vê o interesse dos filhos e quem parece, sim, que o vê, porém
não o percebe em parte alguma? Pois obrigando a meus argumentos,
como se fossem atletas, que deixem de fazer alarde de si e travem braços
com seus adversários, e encomendando a sentença a juizes incorruptos.
Pois bem, a lei do combate só me obriga a lutar com quem seja cristão e
só com ele deveria medir minhas forças. Nada mais se exige de mim.
"julgar os de fora?"
1 Cor 5, 12
Não obstante, como acontece serem infiéis muitos dos pais dos que são
atraídos para o céu, apesar de que a lei do combate me exima de lutar
contra estes, por minha própria vontade e com ânimo entrarei
primeiramente contra eles nesta arena. E que bom seria se fosse só contra
eles que tivesse que combater! Certo é que o combate fica mais difícil, e
oferece maiores pretextos ao inimigo; pois,
Não é verdade que temos dado muitos pretextos aos nossos acusadores e
temos pintado com muitas cores nosso adversário? Pois se tudo isto não é
o bastante, ainda vamos procurar novos pretextos contra nós. Aparte o
que foi dito, mova este pai todos os recursos para dissuadir seu filho, e
seja tudo em vão, como se este se firmasse sobre uma rocha, desafiando a
fúria dos rios, das chuvas e dos ventos. Lamente-se o homem, derrame
lágrimas, e inflame assim mais e mais a indignação contra nós, e acuse-
nos ante quem encontrem repetindo continuamente:
"Eu gerei um filho, o criei, sofri por ele calamidades durante toda
sua vida, sem medir esforços nem sacrifícios, o quanto pode
reclamar um filho. Tinha sobre ele as mais belas esperanças, me
pus a falar com criados, roguei aos mestres, gastei dinheiro,
passei muitas noites em claro pensando nas suas melhores
vestimentas e em sua educação, para que assim não frustrasse em
nada seus avós, antes a todos superasse por sua glória. Eu
esperava que ele fosse o cajado de minha velhice; passando o
tempo, comecei a pensar em sua mulher e no seu casamento,
sobre procurar para ele alguma magistratura e poder. E eis que de
repente, como um raio ou tormenta que rebenta, não se sabe de
onde, e afunda uma nave carregada de infinitas mercadorias -
uma nave que com próspero vento atravessou o alto mar e estava
já para tocar o porto e quase entrando em sua baía -, e a
tempestade não só lança na suma pobreza o homem que era antes
dono de tanta riqueza, mas também no terror da morte e da
perdição mais espantosa; isto, literalmente me acontece agora.
Porque estes malditos, corruptores e charlatões (chamemo-nos
assim por enquanto, não vamos brigar por isto), arrancando de
todas estas esperanças o que havia de ser o sustento de minha
velhice, levaram-no de mim como bandidos ao seu antro, e de tal
maneira o encantaram com seus encantamentos, que prefere
passar generosamente pelo ferro, pelo fogo, pelas feras, pelo que
seja, antes que voltar a sua antiga prosperidade. E o mais
desesperador é que os que meteram esta loucura na sua cabeça,
me venham dizer ainda que são eles, e não eu, que vêm o que é
bom para o meu próprio filho. Desertas estão as minhas casas,
desertos estão meus campos. Cheios de tristeza e de vergonha
andam os meus lavradores, e também meus criados. Só os meus
inimigos mostram-se satisfeitos com minhas desgraças, enquanto
escondem a cara de vergonha os meus amigos. Quanto a mim, já
não tenho outro desígnio senão atear fogo em tudo: casas e
campos, manadas de bois e rebanhos de ovelhas. Para que há de
me servir daqui por diante toda esta riqueza, se quem deveria
gozar desta já não existe? Tornou-se escravo; entre bárbaros
desumanos está sofrendo uma escravidão mais amarga que a
própria morte. De luto mandei que se vestissem os meus criados;
de cinza rociaram as cabeças; mandei formar coros de
carpideiras, e que o chorem com mais fortes lamentos do que se
tivessem visto seu cadáver. Perdoa-me por ter chegado a este
extremo: Minha dor presente é mais triste que a da própria morte.
Parece que já me incomoda a luz e me irritam os próprios raios do
sol; quando me vem à mente aquele hábito do meu desafortunado
filho, quando o vejo vestido mais miseravelmente que os mais
míseros lavradores e ocupado em tarefas mais desonrosas que as
deles, quando considero, em fim, que sua resolução é inflexível, é
que me queimo, me despedaço e me arrebento".
PREPARA-SE A REFUTAÇÃO
3. Enquanto diz tudo isto, prostre-se aos pés de quem o ouve, espalhe-se
cinza sobre sua cabeça, suje-se seu rosto com poeira, suplique-se a todos
que lhe estendam a mão e arranque-se sua branca cabeleira. Sem dúvida
pintamos com bastante exatidão o nosso acusador e o quadro é para que
se acenda a ira em todo mundo e para move-lo a precipitar por um
despenhadeiro abaixo os causadores de tanto mal. Efetivamente, eu quis
levar meu argumento ao extremo de todas as causas, com o fim de que
vencido este que assim preparamos, com a graça de Deus, ninguém lhe dê
razão alguma. Porque tapada a boca de quem tudo isto junto pôde alegar
(e, na verdade, é impossível que todas estas verdades ocorram de uma só
vez), há de nos ser já fácil derrotar aos demais. Assim, pois, meu
adversário pode dizer tudo isto e muito mais. Eu rogo aos juizes que por
hora não tenham compaixão deste pobre velho; sim, quando eu tiver
demonstrado que está chorando por um filho que não sofre mal algum,
antes goza de bens tão grandes, que não é possível encontrar maiores.
Porque então sim, será este pobre homem digno de lástima, pois não é
capaz de compreender a felicidade de seu filho e se acha tão distante dela
que chora como se se tratasse das maiores desgraças.
QUEM DESPREZA AS RIQUEZAS É MAIS
RICO DO QUE QUEM AS COBIÇA
Por onde, pois, vamos começar nosso argumento contra este homem?
Comecemos pela riqueza e pelo dinheiro, pois isto é o que ele lamenta
sobretudo e isto é também o que a todos parece mais duro: que jovens
ricos abracem a vida monástica. Dize-me, agora: A quem nós todos
teríamos por mais feliz e digno de inveja, a quem sofresse de uma sede
contínua e antes de saciar-se com o primeiro copo já tivesse necessidade
de outro e assim constantemente, ou a quem, livre completamente desta
necessidade, não sentisse sede jamais e não tivesse que levar nenhum
copo d'água à boca? Não é verdade que o primeiro se assemelha a um
enfermo com febre alta, que sofre a mais dura tirania, ainda que pudesse
tirar a água de fontes perenes, e o outro é livre com a verdadeira
liberdade e está são com a verdadeira saúde e se levanta, enfim, acima da
natureza humana? E o que diríamos de quem amasse perdidamente a
uma mulher e se unisse a ela continuadamente e depois de tal união se
sentisse abrasar furiosamente; outro, ao contrário, se achasse tão alheio a
esta loucura amorosa que nem por sonhos o assaltasse o pensamento? A
quem aqui teríamos por ditoso e digno de inveja? Sem duvida, ao que é
livre da paixão. A quem teríamos por miserável e desgraçado? Não seria
este que sofre com a estúpida enfermidade do amor, que não pode de
maneira alguma saciar-se e que se inflama com os meios inventados para
o extinguir? E se este tal, além de estar enfermo, ainda se achasse ditoso
em sua enfermidade e não só não quisesse se ver livre dela, mas tivesse
pena dos que estão sãos - que é o caso do homem de que tratamos agora -
não seria este o motivo de o termos como mais desgraçado e miserável,
não só porque está enfermo, mas porque nem sequer sabe que o está e
por isso não quer se livrar da enfermidade, e além disso chora pelos que
estão sãos?
4. E não penses que vou te falar dos bens do céu e do que nos espera depois
da viagem da vida presente. Não. A demonstração a quero tomar do que
tens ao alcance da mão. Pois aqui vai. Em primeiro lugar, tu só és dono
de teus próprios bens; o teu filho o é dos de toda a terra. Não me
acreditas? Pois te levarei até teu filho e vamos convence-lo que desça do
monte, ou melhor, que ele fique ali, e que dali mesmo indique a um dos
grandes ricos e piedosos que lhe mande a quantidade de ouro que tu
queiras... Mas não. Ele não quererá que mande para ele. Ordena-lhe,
pois, que a dê a um necessitado qualquer, e verás como aquele rico lhe
obedecerá e a entregará com a maior prontidão e gosto do que se tu o
mandasses a um dos teus criados ou administradores. Porque o teu
administrador quando o mandam gastar, se põe de mal humor e
resmunga; o rico piedoso, ao contrário, quando não gasta se põe triste e
teme ter ofendido os monges em alguma coisa, pois não recebe uma
ordem semelhante. E posso mostrar-te muitos, e não dos mais ilustres,
mas dos mais humildes, que têm este poder. Ademais, se teus
administradores te malbaratam a fazenda que lhes confiaste, tu não tens
a quem recorrer, e, pela malícia deles, toda a tua riqueza se converte em
pobreza imediatamente. Teu filho, ao contrário, não tem porque temer
tal perda, pois se o primeiro a quem pedir parar na miséria, dará suas
ordens a outro; e, se com este acontecer o mesmo, acudirá um outro e é
mais provável que sequem as fontes das águas do que faltar alguém
disposto a obedecer-lhe nisto.
EXEMPLOS PAGÃOS: SÓCRATES E
DIÓGENES
E se fosses homem que professasse nossa religião, te contaria muitos e
grandes exemplos acerca desse particular; mas já que professas o
paganismo, tampouco aí me faltarão exemplos. Escuta o que disse Críton
a Sócrates:
Que coisa é mais doce que este gênero de opulência? E ainda este
argumento é para os homens do mundo; porém se quiséssemos examinar
a riqueza do monge com um espírito um pouco mais filosófico, talvez tu
não seguisses os meus argumentos, mas não tenho outro remédio senão
dize-los para agrado dos juizes. E é por isso que a riqueza da virtude é
tão grande, tanto mais doce e invejável que a vossa, que aqueles que a
possuem jamais desejariam trocá-la pela terra inteira, nem se as
montanhas, os mares e os rios se convertessem em ouro. E se tal
transformação fosse possível, tu verias de fato de que não se trata de
fanfarronice, mas que, oferecendo-lhes ainda muito mais do que tudo
isto, desprezariam a tudo e jamais o trocariam pela virtude. E como digo
trocar? Nem sequer consentiriam em possuir juntamente riqueza e
virtude. Se a vós oferecessem a riqueza da virtude junto com a do
dinheiro, as receberias amorosamente; com o que confessais que esta
riqueza é grande e maravilhosa. Os monges, porém, não querem a tua
riqueza unida com a deles; com o que dão a entender que a têm por coisa
desprezível. E eu te manifestarei isto com os teus próprios exemplos. Que
quantidade de dinheiro acreditas não teria dado Alexandre a Diógenes, se
este tivesse querido receber? Porém o rejeitou totalmente. Alexandre, ao
contrário, empenhava-se e não deixou pedra por mover para que um dia
chegasse à riqueza de Diógenes.
O MONGE, DONO DA TERRA, TEM POR
PÁTRIA O CÉU
5. Queres que te mostre por um outro capítulo a tua pobreza e a riqueza
de teu filho? Pois anda, e tira-lhe a única roupa que tem e expulsa-o de
sua cabana e tira-o de seu refúgio e nem desta maneira verás que ele se
enfadonha ou se põe triste; ainda te agradecerá por isto, pois não fazes
senão dar-lhe maiores impulsos à filosofia. Ao contrário, se te roubarem
dez dracmas, terás pranto e lamentações para toda a vida. Quem será,
pois, o mais rico: o que sofre por coisas mínimas ou o que despreza tudo
o que existe?
Mas não te contentes com isto. Desterra-o de todo o país e verás que ele
rirá do desterro, como se fosse brincadeira de criança. A ti ao contrário,
se só te desterrassem de tua cidade, sofrerias terrivelmente e não terias
nem forças para suportar tamanha desgraça. Já o monge, como dono que
se sente de toda a terra e de todo o mar, se transferirá com a mesma
facilidade e sem lástima de um lugar para o outro, como tu caminhas por
teus próprios campos, ou melhor dizendo, com mais facilidade que tu por
teus caminhos. Pois se é certo que tu podes andar por teus campos,
também é certo que tu terás que atravessar pelos campos alheios; mas o
monge anda por toda a terra como se fosse sua. Os lagos, os rios e as
fontes lhe oferecem por toda parte abundante bebida; comida, os legumes
e as ervas e um pedaço de pão lhe vêm de muitas partes.
Não quero dizer-te todavia que desdenhe do mundo inteiro, como quem
tem sua pátria no céu. E se chegar a hora de morrer, o monge terá por
mais doce a morte que todas as vossas delícias e pedirá a Deus que morra
antes desta maneira e não como vós em vossa pátria e leito. De modo que
bem se poderia chamar de errante, desterrado e de peregrino, quem tem
uma cidade e habita em uma casa, e não quem de tudo isto carece.
Porque ninguém poderá tira-lo de sua pátria, a não ser que o tirem da
terra inteira (falemos assim por enquanto; pois, segundo a verdadeira
razão, se o tiras deste mundo, então é quando melhor o pões em sua
pátria; mas não toquemos ainda neste ponto, pois tu não entendes mais
do que o que entra pelos olhos) nem o poderás despi-lo, enquanto estiver
vestido com o traje da virtude, nem o matarás de fome, enquanto souber
qual é o verdadeiro alimento. Os ricos, ao contrário, a todos estes
percalços estão expostos; de sorte que, segundo este raciocínio, não
estaria errado quem aos ricos qualificasse de pobres - e manifestamente
pobres -, e de realmente ricos os monges. Porque quem em toda parte
pode achar farta comida, bebida, casa e descanso e não só não sofre por
tudo isto, mas passa melhor do que vós em toda a vossa opulência, é
evidentemente mais opulento que vós, os ricos, que só em vossas casas
podeis ter abundância de todas estas coisas.
Não me venhas, pois, com o deserto nem com os palácios; porque a glória
e a honra não vêm dos lugares nem das roupas nem da dignidade nem do
poder, mas unicamente da virtude de alma e da filosofia.
A POBREZA, GLORIOSA MESMO AOS
OLHOS DO MUNDO
6. Mas se por acaso os exemplos estranhos não tenham tanta força, vamos
examinar a questão em teu próprio filho, e o acharemos agora não só
mais glorioso, mas que o é justamente por aquilo que dizes ser vil e
desprezível. Vamos, pois, se te agrada, persuadi-lo a que desça do monte
e se apresente em praça pública e verás como a cidade inteira irá atrás
dele e que todos lhe acenarão e se pasmarão e se maravilharão, como se
houvesse descido um anjo do céu. Ou tu achas que a glória consiste em
outra coisa? Na verdade, não só parecerá teu filho mais ilustre que os que
moram em palácios, mas mais também do que o imperador com seu
diadema, e isto será justamente pelas suas roupas miseráveis e puídas. E
é certo que não causaria a todos tanta maravilha se se apresentasse
coberto de ouro e com manto de púrpura e com a coroa sobre sua cabeça,
ou se sentasse num palanque de seda, montasse lombo de mulas e se
rodeasse de uma guarda de lanceiros resplandecentes de ouro, como
agora que está sujo e esquálido, vestido com panos grosseiros, sem
acompanhamento de ninguém e com os pés descalços. Porque todo aquele
aparato do imperador é coisa estabelecida pelas leis e entra no cotidiano,
e, por isto, se alguém nos viesse contando vantagens porque viu o
imperador vestido com roupas de ouro, não só não nos admiraríamos,
mas riríamos de semelhante notícia, pois nada tem isto de extraordinário.
Mas venham e nos contem de teu filho que desprezou a riqueza paterna e
pisoteou a pompa mundana e, mostrando-se superior a todas as
esperanças humanas, se retirou ao deserto, e se vestiu com uma capa
imunda e miserável, isso sim, fará com que todos corram para vê-lo
imediatamente e os encherá de admiração e os obrigará a aplaudir sua
magnanimidade. Por outro lado, sendo infinitas as acusações que se
dirigem aos imperadores, suas roupas de ouro não os defendem
absolutamente nada contra elas. Tão distantes estão de converte-los por
si mesmos em seres admiráveis. O monge, ao contrário, só em seu hábito,
leva muitos motivos para que se o admire. Logo, se ninguém admira o rei
porque se veste de púrpura e todos se maravilham do hábito do monge,
segue-se que a túnica fará mais ilustre e glorioso o teu filho que a
púrpura o imperador.
O PODER DO MONGE, SUPERIOR AO DO
IMPERADOR
- E que proveito eu tiro da opinião e dos elogios das pessoas?
- A glória, pois, não é outra coisa senão isto.
- Não necessito - me contestas - de semelhante glória, pois busco
poder e honra.
- Pois os que o elogiarem, forçosamente também o honrarão. Mas,
afinal, já que queres poder e privilégios, também isto, não menos
do que tudo o que foi dito, acharemos em maior grau entre os
monges. Isto poderíamos fazer-te patente pela via dos exemplos;
mas voltando ao procedimento que mais te consola, vamos
examinar a questão somente sobre o teu próprio filho.
- Pois bem, o que dizes ser a prova de máximo poder? Não será o
poder vingar-se de quem nos ofende e recompensar a quem nos
faz um benefício? Na verdade, tamanho poder não se vê
inteiramente, nem mesmo no próprio imperador, pois existem
muitos que ofendem o imperador e ele não pode revidar, e muitos
que lhe fazem um benefício e que não é fácil para ele recompensa-
los. E assim, muitas vezes nas guerras, bem quisera ele vingar-se
dos inimigos que lhe ofendem e lhe causam danos infinitos, e não
pode; e a seus amigos que nas guerras fizeram grandes feitos,
tampouco pode ele glorifica-los como merecem, pois caídos no
mesmo campo de batalha, foram de antemão arrebatados de toda
a recompensa.
- Pois o que dirás se te demonstrar que este poder, do qual, como nosso
raciocínio demonstrou, não gozam nem mesmo os imperadores, o possui
teu filho no mais alto grau? E não penses que vou falar dos bens do céu,
dos quais não acreditas; não me esqueci até este ponto das minhas
promessas. Não. Minha demonstração há de se apoiar no que aqui
acontece. Pois bem, se o poder máximo consiste em podermos nos vingar
de quem nos ofende, muito melhor seria encontrar um gênero de vida em
que ninguém, ainda que quisesse, pudesse nos ofender. E que este poder é
superior ao primeiro, veremos patente e manifesto transferindo nosso
raciocínio para outro exemplo. Senão me dize-me: O que seria melhor:
ter muita destreza na arte da guerra que ninguém nos pudesse ferir sem
ficar ele ferido ou possuir um corpo de tal condição que ninguém, fizesse
o que fizesse, pudesse feri-lo? Qualquer um vê que este poder é superior
ao outro e se aproxima do divino. E não há só este, mas outro ainda mais
alto que este. Que poder pode ser este? Saber os remédios com que todas
as feridas desaparecem sem deixar rastros. Acertado está pois, que há
três graus de poder: Primeiro, podermos nos vingar de quem nos ofende;
segundo, superior ao primeiro, curar as próprias feridas (o que não se
segue necessariamente do primeiro) e terceiro, não ser vulnerável a
nenhum homem vivente (com o que, na verdade, se sai da natureza
humana), e vou demonstrar-te que é este o poder que teu filho possui.
NINGUÉM QUER, MESMO QUE POSSA,
FAZER MAL AO MONGE
7. E que as minhas palavras não são puro ruído, prova o fato de que, pelo
andar de nossas pesquisas, encontramos um outro poder maior do que
este que dissemos. Porque não é só que ninguém possa lhe fazer mal; é
que também não se verá ninguém que queira faze-lo; com isto a sua
segurança está duplamente protegida. Que vida, pois, pode existir mais
divina que esta em que ninguém há de querer nem, ainda que quisesse,
ninguém poderia nos fazer mal? E, assinaladamente, quando o não
querer não procede, como acontece normalmente, do não poder, mas de
não achar motivo algum. Porque se se tratasse de um só destes extremos,
quero dizer, do mero não poder, o benefício não seria tão grande, pois a
própria impotência engendraria ódio profundo em quem quisesse e não
pudesse prejudicar. E, ainda assim, esta não seria pequena felicidade.
Pois examinemos já, se estiveres de acordo, primeiramente este ponto.
Pois bem, dize, quem terá interesse em prejudicar quem não tem nada a
ver com os homens, que não se mete em tratos e contratos, não tem
terras, nem maneja dinheiro, nem entende de negócios, nem se mete em
nenhuma outra coisa? Que campos, que escravos, que valores poderiam
ser objeto de contenda? O que se pode temer, que injúria se pode receber
de um monge? Na verdade, o que nos empurra a prejudicar aos outros é
ou a inveja, ou o medo, ou a ira. Mas o monge, mais rei que todos os reis,
está acima de todas estas paixões. Quem vai realmente invejar ao que ri
de tudo isto que faz os homens se matarem e se açoitarem? Quem se
irritará, quando em nada é ofendido? Quem temerá, se de nada
suspeita?
A este curará deste modo. Pois, levemos, se te agrada, mais um, que
depois de uma enfermidade, perdeu os olhos. O que poderás fazer em
favor deste pobre cego? O monge, ao contrário, mostrando-lhe que isto
não é nenhum mal, pois ele mesmo vive trancado numa minúscula cela e
corre em direção a outra luz, em comparação à qual considera trevas a
presente, o ensinará a carregar generosamente a sua desgraça. E a quem
sofreu um dano serás capaz de convencer que o leve resignadamente? De
nenhuma maneira. O que irá acontecer é que irás molestá-lo ainda mais,
pois nunca vemos tão claramente nossos males, como quando ressaltam
em contraste com os bens alheios. E passo por alto a ajuda da oração, que
vale mais que tudo o que disse, e a passo por alto porque estou agora
falando contigo.
A GLÓRIA DO FILHO CONVERTE-SE NA
DO PAI
E se queres ser honrado pelo teu filho e que ninguém te menospreze (e é
natural que tu ames apaixonadamente esta glória), eu não sei de que
melhor maneira poderias conseguir isto, do que tendo um filho que se
eleva acima da natureza humana, tão ilustre parece em toda a face da
terra e, não obstante tamanha glória, não tem um só inimigo. Por haver
alcançado o poderio do mundo, para muitos, certamente, seria objeto de
respeito; mas outros tantos o aborreceriam. Agora, ao contrário, todos os
que o honram, o fazem de boa vontade. Porque se homens humildes e de
origem humilde, filhos de lavradores e artesãos, por haver abraçado este
gênero de filosofia, chegarem a ser tão honrados aos olhos de todo o
mundo que os mais altos dignitários do império não desdenharão ir
visita-los em seus tugúrios, conversar com eles e sentar-se a sua mesa, e
considerarem isto (como o é, na verdade) uma grande sorte; com maior
razão agirão assim, quando virem teu filho professar essa mesma virtude,
tendo vindo de uma família ilustre, de ilustre propriedade e de tão altas
esperanças. De sorte que o mesmo que tu tanto lamentas, a saber, que teu
filho tivesse abandonado tudo isto e marchado para o deserto, isto é o que
claramente lhe dá a glória e leva todo o mundo a que não o veja mais
como um homem, mas como um anjo do céu. Ninguém suspeitará de teu
filho o mesmo que o vulgo supõe dos outros, isto é, que tenha tomado este
caminho por ambição de honra ou por apetência ao dinheiro ou por
desejo de sair de sua condição humilde para outra melhor. Certo que
mesmo em se tratando dos outros tudo isto é mentira e maldade pura do
povo; mas no caso de teu filho não fica nenhum motivo para suspeita.
A GLÓRIA DO MONGE NÃO DEPENDE DA
PIEDADE DOS QUE MANDAM
9. E não penses que a glória de teu filho depende somente de que os
imperadores sejam cristãos. Não. Ainda que o império mudasse e os que
mandam voltassem a ser infiéis, a glória de teu filho brilharia ainda mais
que agora. Porque nossa religião não é regida pelas mesmas leis que o
paganismo, nem está sujeita à variação das opiniões dos que mandam,
mas se estriba em sua própria força, e brilha especialmente quando é
mais ferozmente perseguida. Claro que o soldado tem sua glória mesmo
em tempo de paz; mas a alcançará mais brilhantemente, se estoura a
guerra. De modo que, ainda que imperassem gentios, tua honra seria a
mesma e até maior. Porque os que em tempo de paz reverenciaram o teu
filho, muito mais o reverenciarão quando o virem na linha de combate,
trabalhando com maior liberdade e confiança e tendo mil ocasiões para
cobrir-se de glória.
A CONDUTA DOS MONGES COM OS SEUS
PAIS
Pois examinemos agora, se tu não te importas, a conduta de teu filho
para contigo, se tu não tiveres este ponto por coisa supérflua; porque
quem se mostra tão manso e brando para os outros e que a ninguém dá
motivo de desgosto, irá honrar muito mais e com toda a reverência a seu
próprio pai e terá muito mais cuidado com ele do que se tivesse alcançado
uma alta dignidade mundana. Pois se assumisse uma alta magistratura,
não seria inteiramente seguro que não desconhecesse seu próprio pai;
mas agora, escolheu um gênero de vida que, mesmo que fosse mais
imperador que o imperador, seria para ti o mais humilde do mundo. Tal
é, com efeito, a nossa filosofia, que sabe unir em uma alma qualidades
que parecem contrarias, tais como a moderação e a exaltação. Ademais,
na primeira hipótese, como pudesse ser ambicioso pelo dinheiro, estaria
talvez desejando a tua morte; agora, ao contrário, está rogando a Deus
que prolongue indefinidamente a tua vida, para alcançar também nisto a
mais brilhante coroa de glória. Porque, na verdade, não é pequena a
glória que nos é prometida, se honrarmos aqueles que nos geraram, como
também temos o mandamento de olhá-los como nossos mestres e servi-los
com palavra e obra, sempre que não resulte em detrimento da religião.
diz a Escritura
Em conclusão, estejas certo que teu filho é agora mais glorioso, mais
opulento, mais poderoso e mais livre do que nunca e, com toda esta
grandeza de alma, também mais submisso a ti.
Dize, que motivo te resta a lamentar? Será que te lamentas por não estar
tremendo diariamente de medo que ele caia morto num campo de
batalha, de que não ofenda por acaso o imperador, de que não seja vitima
da inveja e da antipatia de seus companheiros de armas? Ou não é por
isto, e por outros percalços possíveis, que temem os pais de filhos nobres e
famosos? Porque os que elevaram seus filhos a uma grande magistratura,
são como os que colocaram uma criança em lugar alto, e que
forçosamente temem que a criança caia.
Então me dizes: - Mas também tem seu prazer cingir-se a faixa, vestir a
clâmide e ouvir a voz do arauto.
-Por que, então, também impedes o teu filho que se aproxime dela?
Melhor seria que o prejuízo se detivesse em ti. Não consideras como o
maior dos danos que vós, chegados à velhice, como alguém que não
tivesse colhido bem algum da vida passada, não fazeis senão vos irritar
com a própria velhice?
- Que grandes bens são esses? Mostra-me um só velho que possua esses
grandes bens. Se alguma vez os tivesse tido e tivessem permanecido
firmes, não se lamentaria agora como um homem a quem despojaram de
tudo. E se voaram e se murcharam, que classe de grandeza é esta que tão
velozmente se desvanece?
"Sonho de saúde",
diz a Escritura,
- Que prazer pode haver entre tanta vergonha? Mas não toquemos ainda
aqui neste ponto por enquanto; não falemos das lutas entre amantes nem
das guerras e das acusações entre rivais. Deixemos barato que se possa
gozar com toda a tranqüilidade desta devassidão, que não surja o rival,
não venha o desprezo da meretriz e mane o dinheiro como de fontes. Na
verdade, não é possível que aconteçam juntas todas estas coisas. O que
não quiser ter rival, não terá outro remédio senão arruinar toda a sua
fazenda, afim de ganhar em esplendor todos os demais; e o que não
quiser parar na miséria, terá que agüentar o desdém e o cuspe da
rameira. Mas, enfim, suponhamos que não haja nada disso e tudo saia ao
impudico como ele espera. Podes me dizer agora onde está o prazer que
se segue destes tratos? Certamente não se acha no momento da união
carnal, pois o que a consumou, por isso mesmo, extinguiu todo o prazer;
e o que não o consumou, não sente prazer, mas tumulto e agitação e
abrasamento.
Não é deste timbre o prazer que se dá entre nós nem tal Deus consinta.
Nossos prazeres deixam sempre serena a alma e não trazem consigo
ruído nem perturbação alguma; antes, trazem uma alegria pura, sincera
e gloriosa, que não tem término e é mais intensa e poderosa que a vossa.
Prova de que nosso prazer é mais agradável que o vosso é que o medo
bastaria para vos apartar dele; e se o imperador promulgasse um edito
ameaçando de morte aos impudicos, a maior parte dos homens se
apartaria deste prazer; ao contrário, mil mortes não bastariam para nos
obrigar a desprezar o nosso. Nós nos riríamos de quem assim nos
ameaçasse. Tanto mais forte, tanto mais agradável é um prazer que outro
e não admitem sequer comparação entre si.
Não invejes, pois, o teu filho que se passou de bens que fluem como água,
ou melhor dizendo, de bens que não têm ser nem importância, a bens
verdadeiros e firmes, nem chores por quem merece ser parabenizado.
Teu choro seria melhor empregado por quem não é como ele e é levado e
traído, como se estivesse em mar revolto, pela vida presente.
OS PRÊMIOS E CASTIGOS DA VIDA
FUTURA
E chegamos ao ponto capital, pois por mais incrédulo e pagão que tu
sejas, também admitirás este raciocínio. Indubitavelmente, tu já ouviste
falar dos rios Cocito e Periflegonte, da água da lagoa Estígia e do Tártaro
que dista da terra o quanto a terra do céu e de muitos gêneros de castigo.
Porque, embora os gentios não tenham podido dizer como são realmente
estas coisas, no final como que guiados unicamente pela razão e pelo que
ouviram dos nossos dogmas, com efeito, ainda tiveram como que um
vislumbre do juízo, e encontrarás especulações de todos os poetas,
filósofos e historiadores acerca destas verdades. E também já ouvistes
falar de campos Elíseos e de ilhas afortunadas e campinas e mirtos e aura
delicada e abundante fragrância, que dançam, e dos coros que vivem ali,
vestidos de branca roupagem, entoam certos hinos, e que a bons e a maus
espera, de modo absoluto, o merecido, depois da viagem da presente
vida.
Pois bem, com estes pensamentos como pensas que vivem os bons e os
maus? Não é verdade que os maus, que se envolvem com estes prazeres,
ainda supondo que os gozem sem dor e tudo na vida lhes saia a contento,
sentem-se aguilhoados, como por um açoite, pelos remorsos de sua
consciência e o temor dos tormentos que os esperam; os bons, ao
contrário, por maiores calamidades que tenham que sofrer, têm, como
disse Píndaro (frag.233), a esperança como nutriz, que não os deixa sentir
os males da vida presente?
De sorte que, ainda por este lado, o prazer da virtude é maior que o
prazer do pecado. Muito melhor é efetivamente, começar por trabalhos
momentâneos e terminar em descanso sem fim, que não gozar em um
momento de prazeres aparentes e terminar nos tormentos mais amargos
e insuportáveis. Enfim, se a tudo isto se adiciona o que já está assentado e
concordado, a saber, que a vida virtuosa é também neste mundo mais
agradável, não será forçoso façamos agora o que no começo do meu
discurso eu disse: que lastimemos os que choram estes bens? Não. Não
merece certamente teu filho que o lastimemos, mas que o aplaudamos e
coroemos, como alguém que se elevou a uma vida sem tormentas e a um
porto tranqüilo.
DEVE-SE DESPREZAR AS ZOMBARIAS
TOLAS
Mas zombam de ti - me dizes - muitos pais que têm seus filhos metidos
nos negócios da vida presente, outros rompem-se em choro quando te
vêem, outros riem. Mas por que não zombas tu e não te lamentas com
mais razão por eles? Porque o que se deve examinar não é se as pessoas
zombam ou não de nós; mas se há razão e motivo justo para tais
zombarias. Se há razão, mesmo que ninguém ria, temos que chorar; e se
não há, mesmo que todo o mundo zombe, devemos nos considerar felizes
e ter pena de quem zomba, como se fossem pessoas completamente
desgraçadas e que não se diferem em nada dos loucos. Porque é coisa de
louco, ou de pessoas que sofrem de enfermidade próxima da loucura, rir-
se de coisas que merecem mil louvores e coroas. Pois, dize: Se tivesse
enlouquecido o teu filho pela tolice de bailarinas e de meretrizes, e todo o
mundo te louvasse e se maravilhasse e te desse mil parabéns, não
acharias tu que seria pura troça e escárnio? E se, ao contrário, levando
ao fim uma ação generosa e digna de aplauso, acontecesse que as pessoas
rissem e zombassem, tu não dirias que elas estão completamente loucas?
Pois, façamos assim também agora; não sentenciemos a causa de teu filho
levados pela opinião do vulgo, mas pelo rigoroso exame da razão e verás
que, comparando uns filhos com os outros, estes que se riem são pais de
filhos escravos e não livres.
CONFIRMA-SE O QUE FOI DITO COM UM
EXEMPLO
Agora, certo, entre as sombras de tua dor, não poderás nem levantar os
olhos a estas considerações; mas apenas te recomponhas um pouco e teu
filho comece a dar mostras de sua grande virtude, já não terás
necessidade de argumentos, mas tu mesmo dirás tudo isto e muito mais
aos outros. E não te faço esta profecia como fogo de palha, mas
fundamentado na própria experiência. Eu tive um companheiro que
tinha um pai infiel, rico e nobre e por todos os conceitos ilustre. Este,
pois, no princípio da vocação de seu filho, chegou a por em movimento os
próprios magistrados, o ameaçou coloca-lo na prisão e, por fim,
despojando-o de tudo, o abandonou em terra estranha, privado até do
alimento necessário, crendo que assim o haveria de reduzir a uma vida
mais de acordo com os usos do mundo. Mas tendo visto que nada o fazia
desistir, vencido o pai, cantou a retratação e agora honra e venera este
filho mais intensamente do que como pai, e tendo muitos outro filhos
ilustres, afirma que não valem nem para escravos do primeiro. E ele
mesmo, enfim, é muito mais glorioso por causa deste filho.
CONTRA OS IMPUGNADORES
DA VIDA MONÁSTICA
DISCURSO TERCEIRO
A UM PAI CRISTÃO
INTRODUÇÃO
1. Pois façamos ver também, a um pai cristão, que não deve fazer guerra
aos que induzem seu filho a cumprir o que agrada a Deus. Na verdade,
está prestes a resultar redundante este discurso, e irá suceder o inverso
do que eu dissera antes. Disse na ocasião que a lei deste combate não me
obrigava a lutar com um gentio, mas que Paulo, ao me mandar julgar
unicamente os de dentro, me eximia de toda a luta contra os de fora. Mas
agora, ao que me parece, tampouco estou obrigado a começar o presente
combate, pois se já antes de meus argumentos era vergonhoso discutir
com um cristão sobre isto, muito mais há de ser agora. Como não corar,
efetivamente, um crente por necessitar de exortações em um ponto sobre
o qual nada nos pode replicar um infiel?
Pois bem, vamos nos calar por isto e não abriremos a boca? De maneira
nenhuma. Se houvesse alguém que nos garantisse o porvir e nos fizesse
ver com evidência que ninguém daqui por diante viesse a cometer aqueles
desaforos, seria bom que ficássemos em silêncio e jogássemos terra sobre
o passado; mas como disto não temos nenhum fiador seguro, não há
outro remédio, a não ser voltar para os nossos argumentos e exortações.
E se nossa exortação chegar a quem sofre desta enfermidade, o remédio
produzirá o seu efeito; e se não houver ninguém que esteja doente,
teremos conseguido o que desejávamos. Os médicos, ainda depois de
preparados os remédios para os enfermos, o que gostariam é de não ter
que aplicá-los; e nós, pela mesma razão, o que pedimos a Deus é que
nenhum dos nossos irmãos tenha necessidade da presente exortação;
porém se acontecer o que Deus não deseja, não há de lhe faltar, como diz
o provérbio, a segunda navegação.
LANÇA-SE A CAUSA PERANTE O
TRIBUNAL DE DEUS
Imaginemos, pois, também aqui um pai cristão com o mesmo estilo de
um gentio, e que seja em tudo talhado pelo mesmo padrão, exceto em sua
fé em Deus. Lamente-se também este, arroje-se aos pés de todos, alegue
seus cabelos brancos, sua velhice, sua solidão e tudo o demais que já
sabemos, e excite à vontade a indignação dos juizes. Mas não. Tratando-
se de um cristão, a causa já não pode ser ventilada diante de um tribunal
de homens, pois o cristão ouviu o que homens cheios do Espírito nos têm
ensinado sobre aquele terrível e espantoso tribunal a que havemos de
comparecer depois da presente peregrinação. Recorde-se, antes de todas
as coisas, daquele dia em que o fogo correrá como um rio, arderá a
chama inextinguível, se escurecerá o sol, se esconderá a lua, cairão as
estrelas, se dobrarão os céus, se abalarão as potências, será sacudida e
abrasada por toda parte a terra, ressoará terrível e a intervalos a
trombeta, os anjos percorrerão a orbe, aqueles anjos que aos milhares
assistem ante o trono de Deus e dezenas de milhares o servem.
Juntamente com o juiz aparecerão os seus exércitos, com o sinal
brilhante a frente, se colocará em um trono, se abrirão os livros, brilhará
a glória inacessível, se ouvirá a voz terrível e espantosa do juiz que envia
uns ao fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos e fecha para
outros as portas depois de todo o trabalho da virgindade. Alí mandará a
seus ministros; a uns, que amarrem em feixes a cizânia e a atirem ao
forno de fogo; a outros, que atem os pés e as mãos a alguns e os lancem
nas trevas exteriores, onde será irremediável o ranger dos dentes. E
castigará com o mais doloroso e duro suplicio alguém, só por ter olhado
com olhos intemperantes; a outro, por ter se divertido fora do tempo; a
outro, por haver condenado sem exame o seu próximo; a outro, só por ter
pronunciado uma maldição. Pois, ainda que para estas coisas exista
castigo determinado, não há mais que fazer senão ouvir como nos diz e
ameaça o mesmo que há de nos aplicar os suplícios.
Uma vez saídos deste mundo, todos teremos que nos apresentar,
obrigatoriamente, perante este juiz; forçosamente veremos aquele dia em
que tudo ficará patente e desnudado, não só nossas obras e palavras, mas
nossos próprios pensamentos.
DEUS NOS MANDA ATENDER À
SALVAÇÃO DO NOSSO PRÓXIMO NÃO
MENOS QUE A NOSSA
2. Na verdade, de coisas que agora nos parecem miúdas, nos pedirão então
depois a mais espantosa conta. Com o mesmo rigor nos exigirá o Juiz
nossa própria salvação como a salvação de nosso próximo. Por isso Paulo
nos exorta a cada momento que não busquemos os nossos interesses, mas
o de nosso próximo. Por esta razão repreende vivamente os coríntios de
não haverem tomado nenhuma providência e nem se preocupado com o
assunto do incestuoso (1 Cor. 10, 24), mas de permitirem que se
inflamasse mais a ferida. E escrevendo aos gálatas, dizia:
E outra vez:
Porque o que tu pensas que se entende aqui por prover? Por acaso
administrar o que é necessário para a vida? De minha parte, opino que o
Apóstolo fala do cuidado da alma. Mas se te obstinas em teu parecer, isto
não faz senão fortalecer a minha tese. Porque se disse isso em relação ao
corpo e se tal castigo é determinado contra quem não procura este
sustento diário e afirma ser pior do que um gentio, aonde colocaremos
aquele que se descuida do que é mais necessário e excelente?
O MAIS ALTO GRAU DE MALDADE É QUE
UM PAI SE DESCUIDE DO BEM DE SEUS
FILHOS
3. Pois consideremos agora a magnitude de vosso pecado e, subindo de
grau em grau, mostremos como o descuidar dos filhos é um pecado que
ultrapassa todos os pecados e toca a própria cúspide da maldade. Assim,
pois, o primeiro grau da crueldade e da maldade é descuidar dos
amigos... Mas não. Desçamos ainda mais abaixo com nosso raciocínio.
Porque não sei como nem porque, a pouco me passou por alto que a
antiga lei, que foi dada aos judeus, não consente que se descuide nem das
bestas dos inimigos que caíram ou se extraviaram; no caso haveria que
retorná-las para o caminho, e em outro caso ajudá-las a levantar (Ex 23,
4-5).
"Porque comiam",
diz a Escritura,
O pai ouvia tudo isso e, e em vez de castigá-los com mão dura, tratava de
apartá-los daquela maldade com boas palavras e não se cansava de dizer-
lhes várias vezes:
E não foi assim, pois efetivamente os repreendeu; contudo, Deus não teve
isso como repreensão, e assim o condenou, por lhe faltar o rigor e devida
energia. De modo que ainda que cuidemos de nossos filhos, se não o
fizermos com a diligência necessária, não é isto cuidado como não foi
tampouco a repreensão de Helí. Seja como for, já que disse a culpa, o
Senhor também acrescenta com grande cólera o castigo:
"Jurei",
disse,
E não só sobressai aqui a sua virtude, mas também pode ser vista em
uma outra circunstância. De fato, havendo estourado a guerra entre
judeus e filisteus, veio um mensageiro para contar a Helí os desastres
dela, e como seus filhos tinham sido mortos, de maneira vergonhosa e
miserável, na batalha. Até aqui ainda se manteve tranqüilo; mas quando,
sobre a morte de seus filhos, acrescentou o mensageiro que a arca tinha
sido capturada pelos inimigos, então sim, abatido de tristeza,
Mas porque - dirão - não todos são castigados neste mundo? Porque tem
Deus determinado um dia em que há de julgar toda a terra (Atos 17, 31)
e este dia ainda não chegou. Por outro lado, se assim fosse, já se haveria
consumido e desaparecido todo o gênero humano. Pois para que não se
aniquile o gênero humano, nem pela demora do juízo se tornem muito
mais tíbios, toma Deus alguns culpados por seus pecados e os castiga aqui
com o intuito de ensinar aos demais a medida dos castigos que os
esperam e saibam que embora agora não sofram por seus pecados,
quando saírem deste mundo, sofrerão sem remédio mais duramente. Não
é porque agora não nos envie um profeta que nos intime o castigo, como a
Heli, que temos que nos endurecer. Este tempo não é de profetas, ou
melhor dizendo, também nos envia agora, pois o que a eles foi dito não
menos foi dito a nós; Deus não fala só com Heli mas, por meio de Heli e
de seus sofrimentos, com todos os que cometem os mesmos pecados que
Heli. Deus não faz acepção de pessoas e, se ao que pecou menos derrubou
desde a raiz com toda sua casa, não deixará impunes aqueles que são
mais culpados do que ele.
QUE GRANDE EMPENHO TEM DEUS NA
EDUCAÇÃO DOS FILHOS
4. Não se pode dizer que Deus não dá muita importância a este assunto,
quando é certo que põe marcado empenho na criança e na educação dos
filhos. Porque, primeiramente, inspirou um carinho tão grande à
natureza, que o cuidado dos filhos constitui uma necessidade indubitável
para os pais; e logo, já falando conosco, instituiu leis acerca deste
cuidado. E, ao estabelecer uma festa, manda que se instrua os filhos sobre
a sua ocasião e motivo. Assim, depois de falar da Páscoa, acrescentou:
Por outro lado, muitos são também os mandamentos que Deus impõe aos
filhos em relação a seus pais, honrando a quem se porta carinhosamente
com eles e castigando os ingratos, com o que faz mais amáveis os filhos
aos pais. Quando nos faz donos de algo, a mesma honra que nos concede,
nos coloca na máxima obrigação de cuidar dele; pois, ainda que não
tivesse outra coisa, bastaria para nos mover, considerar que tudo colocou
em nossas mãos o outro, e não teríamos coração para atraiçoar nem
levemente a quem assim nos foi confiado. E se a isto se acrescenta que se
irrita e indigna mais que os próprios ofendidos e se constitui em terrível
vingador seu, é este motivo que nos obriga ainda mais. Que é, nem mais
nem menos, o que Deus fez a respeito de pais e filhos.
NOVOS VÍNCULOS QUE UNEM PAIS E
FILHOS
Além disto, Deus acrescentou um terceiro vínculo que vem da natureza e
que, se quiseres, pode ser tido como o primeiro.
E ainda não é este o último vínculo, mas há outro, o quarto, com o qual
forte e completamente nos uniu com nossos pais. E é assim que Deus não
só castiga os filhos que se comportam mal com os seus pais e louva aos
que se comportam bem, como também isto mesmo faz em relação aos
pais, castigando asperamente os que se descuidam de seus filhos e
honrando e louvando os que zelam por eles. E assim vemos como a este
velho, que nas demais coisas brilhava pela sua virtude, Deus castigou por
esta única negligência, e ao contrário, por esta providência, não menos
que pelos outros motivos, honrou Deus o patriarca Abraão. E, de fato,
enumerando os muitos e magníficos dons que prometia conceder-lhe, e
alegando a causa, põe justamente esta:
"Porque sabia",
diz a Escritura,
Porque se a nós ordena zelar por suas almas como quem há de prestar
contas por elas (Hebr. 13,17), com maior razão o pai que os gerou, os
criou e que convive constantemente com eles. E como o pai não tem
escapatória nem desculpa de seus próprios pecados, assim tampouco em
relação aos pecados de seus filhos. E isto foi também o bem-aventurado
Paulo quem nos manifestou. Efetivamente, ao dar o Apóstolo leis sobre as
qualidades que deverão ter aqueles que hão de mandar nos demais, entre
todas as outras que indubitavelmente deverão adorna-los, exige também
esta do cuidado dos filhos (1 Tim 3,4), dando a entender que não teremos
perdão se eles se perderem.
E com muita razão. Porque se a maldade chegasse aos homens pela lei da
natureza, poderíamos nos acolher em alguma razoável defesa; mas como
somos bons ou maus pelo livre arbítrio, que razão de boa aparência pode
alegar o que deixa que se extravie e se corrompa aquele a quem ama
sobre tudo o mais? Dirá que não quis faze-lo bom? Mas não haverá pai
que diga semelhante coisa, pois a própria natureza é estímulo bastante
para despertá-lo para isso. Dirá que não pôde? Tampouco, porque o fato
de tomar a criança quando ainda branda cera e ser sobre ele o primeiro e
único poder e tê-lo sempre em casa, são coisas que fazem fácil e
totalmente praticável seu governo. De sorte que não se pode achar outra
origem para o extravio dos filhos que o louco afã das coisas terrenas. O
não olhar senão para elas, o não querer que nada seja considerado acima
delas, obriga a se descuidar tanto da própria alma como também da dos
filhos. A estes pais (e que ninguém pense que é a ira que inspira as
minhas palavras) eu não teria dificuldade em qualificar como piores que
os assassinos de seus próprios filhos. Os assassinos, apesar de tudo, só
separam a alma do corpo; mas os pais negligentes lançam juntos corpo e
alma na fogueira do inferno. E a morte do corpo é necessidade inevitável
da natureza; mas a da alma, se não fosse acarretada pela negligência dos
pais, seria evitável. Ademais, a morte do corpo ficará rapidamente
reparada com a chegada da ressurreição da carne; mas a perdição da
alma não admite consolo possível, pois já não a espera mais salvação
alguma, mas terá que sofrer, forçosamente, os tormentos eternos. De
modo que, não sem razão, podemos afirmar que tais pais são piores que
os assassinos de seus filhos. Não, não é crime tão horrível aguçar a
espada, armar a destra e umedece-la na própria garganta do filho,
quanto perder e corromper uma alma, pois nada temos comparável a ela.
A SALVAÇÃO, POSSÍVEL, PORÉM DIFÍCIL
NO MUNDO
5. Pois - dirás - o que habita em uma cidade e tem mulher e casa não pode
salvar-se? Certamente não há só um modo de salvação, mas muitos e
diversos. E o próprio Cristo diz isto de modo geral quando afirma que
O que significa dizer que uns brilharão como o sol, outros como a lua e
outros como as estrelas. E não para aqui a diferença, pois nos mostra que
entre as próprias estrelas é grande a diversidade, e não poderia ser
diferente dado seu grande número:
"Uma estrela",
diz,
"difere da outra por sua glória".
Pois bem, não seria absurdo que, se levasses teu filho ao palácio, não
medisses esforços - e também persuadisses teu filho a outro tanto - para
conseguires colocá-lo junto ao próprio imperador, sem te preocupares
com considerações de nenhuma ordem, nem com gastos, nem perigos,
nem com a própria morte, e que agora, quando se trata da milícia celeste,
não te importes de que ele ocupe o último posto e que fique para trás de
todo mundo?
Pois bem, podes me dizer que teu filho, ou porque ouviu teus bons
conselhos ou porque ele próprio algum dia se deu conta, sabe que quem
jura, ainda que jure na verdade, pode ofender a Deus? E que não se salva
o rancoroso? Diz a Escritura:
e vós não buscais senão procurar ocasiões de riso para vossos filhos.
e vós não olhais para outro objetivo em vossas ações, senão que tenham
dinheiro.
disse o Senhor,
"a perderá"
Jo 12,25
vós, ao contrário, tudo ordenais para infundir em vossos filhos este amor
à vida.
disse também,
vós, porém, chegais a insultar vossos filhos quando não querem se vingar
de seus agravos e vos apressais em coloca-los em situação de poderem
faze-lo. Cristo afirmou que os que amam a vanglória, fazem tudo
inutilmente, caso jejuem, ou orem, ou dêem esmola; vós, porém, desejais
ansiosamente que vossos filhos a consigam.
Mas para que citar o Evangelho todo? O que foi dito basta para
proporcionar-nos mil infernos, não todos juntos, mas cada ponto por si.
Se, pois, vós levais todos juntos e colocais sobre vossos filhos a carga
insuportável dos pecados e assim os enviais ao rio de fogo, como poderão
se salvar levando tão enorme combustível para o fogo?
O VÍCIO, DISFARÇADO COM NOME DE
VIRTUDE
E não termina aqui o mal com que exortais vossos filhos a agir contra as
ordenações de Cristo, mas sabeis cobrir o vício com bonitos nomes e
chamais urbanidade à assistência contínua aos hipódromos e aos teatros,
liberdade à riqueza, magnanimidade à ambição de glória, franqueza à
arrogância, amor à devassidão e valentia à iniquidade. Logo, como se não
bastasse esta engano, também batizais a virtude com nomes contrários,
chamando rusticidade à temperança, covardia à modéstia, falta de
hombridade à justiça; a humildade é para vós subserviência e a paciência
debilidade. Não parece senão que temeis que, vossos filhos, ouvindo de
outros o verdadeiro nome destes vícios, fujam de sua pestilência. E
efetivamente, não é pouca coisa para apartá-los dos vícios, chamá-los
pelos seu verdadeiros nomes. Isto tem tanta força para ferir aos que
pecam, que muitos, muitas vezes, mesmo os que por fama pública
cometem as mais vergonhosas ações, perdem a paciência se são chamados
pelo que são, e se irritam e se enfurecem, como fossem submetidos aos
mais duros tormentos. Assim, se a uma mulher rameira ou a um jovem
que atenta contra o pudor se atribui o nome que corresponda à ação
torpe que cometem, convertem-se em inimigos irreconciliáveis, como se
lhes houvessem desferido a maior ofensa. E o mesmo pode se dizer dos
avarentos, dos bêbados, dos fanfarrões e, em uma palavra, dos que
cometem os mais graves pecados. Toda esta espécie de gente não se sente
tão ferida nem mortificada pelo feio de suas ações nem pela opinião geral,
mas por que se dá os verdadeiros nomes a suas ações. Eu sei de muitos
que por isso se tornaram moderados e encontraram a razão pela força
das injúrias e das reprovações. Porém vós eliminais até este remédio de
moderação a vossos filhos.
E o mais grave é que não só pela palavra, mas também, sobretudo, por
obras, dirigis esta exortação a vossos filhos, construindo casas
esplêndidas, comprando campos caríssimos e rodeando-os de todo o
aparato de luxo, com o que estendeis uma espessa nuvem que escurece a
suas almas.
Por outro lado, os pais dos filhos assim ultrajados suportam tudo isso em
silêncio e não se afundam sob a terra com seus filhos nem buscam
remédio algum para tamanho mal. Na verdade, se para arrancar os filhos
desta pestilência fosse necessário marchar par além das fronteiras, ou
atravessar o mar, ou habitar em ilhas, ou abeirar-se a terra inacessível,
ou sair do nosso mundo habitado, não valeria a pena faze-lo e sofrer tudo
para evitar tanta abominação? Se sabemos de um lugar doentio e
pestilento, já evitamos de levar ali nossos filhos, por mais saudáveis que
estejam e por muito que tenham a ganhar ali; agora, ao contrário,
quando tamanha pestilência se apodera de tudo, não só os empurramos
para este abismo, como repelimos como se fossem corruptores aqueles
que tentam livrá-los disto. Pois, que ira, que raios do céu não merece que
coloquemos tanto empenho em polir a sua língua por meio da sabedoria
profana e não só consintamos que sua alma se revolte e se corrompa
continuamente no seio da devassidão, mas a impeçamos quando quer se
levantar?
CONCLUSÃO: DIFICULDADE DE SALVAR-
SE ENTRE OS OBSTÁCULOS DO MUNDO
Em conclusão, haverá ainda quem ouse afirmar que é possível salvar-se
no meio de tantos males? Com que meios? Porque acontece que quem
logra escapar da loucura dos intemperantes (e são muito poucos), ainda
terá que se haver com aqueles outros tirânicos amores, que tudo
corrompem: o amor ao dinheiro e a ambição de glória, e a maioria das
pessoas se deixa levar por estes vícios e com mais excesso e descontrole
pela devassidão. Ademais, quando queremos dedicar nossos filhos ao
estudo das letras, não nos contentamos em remover de diante deles os
obstáculos a sua instrução, mas lhes proporcionamos todo gênero de
ajuda, e assim lhes colocamos criados e mestres, gastamos dinheiro, os
livramos de qualquer outra ocupação e, com mais insistência do que os
treinadores dos atletas olímpicos, não cessamos de repetir como da
instrução vem a riqueza e da ignorância nasce a miséria; enfim, por
palavras e obras, por nós mesmos ou por outros, nada omitimos para
conduzi-los ao término e ao objetivo do estudo empreendido, e, muitas
vezes, nem assim chegamos a nosso intento. E pensamos que a formação
de nosso caráter e a perfeição da vida cairão aos seus pés lindamente, a
despeito e apesar de todos os obstáculo que se lhes põem diante? Existe
aberração mais perniciosa que ter o fácil por digno de tão grande honra e
empenho, por pensar que sem isto não se pode conseguir completamente,
e crer que o difícil nos há de chover do céu, enquanto dormimos, como
coisa fútil e sem importância? Quando a verdade é que a filosofia da
alma é tanto mais trabalhosa e difícil, quanto custa mais esforço fazer do
que falar, quanto se distanciam as obras das palavras.
NECESSIDADE DE EXERCER
SERIAMENTE A VIRTUDE
9. -E que necessidade - dizes - têm meus filhos de filosofia e perfeição de
vida?
Não, amigo; não é a filosofia que faz perder e corromper tudo, mas
justamente o não professa-la. Se não, dize, quem são os que prejudicam a
ordem estabelecida: os que vivem moderada e sobriamente ou os que
inventam novos e perversos modos de prazer? Os que se empenham em
apoderar-se de todos os bens do mundo ou os que se contentam com o
que têm? Os que levam atras de si um exército de criados e se rodeiam
com enxames de aduladores ou os que crêem que lhes basta um só criado
(pois ainda não falo da mais alta filosofia, mas daquela que é acessível a
todos)? Os humanos e mansos e que não necessitam da honra do povo ou
os que exigem de seus semelhantes esta honra com mais rigor do que uma
dívida e são capazes de produzir mil desgraças, porque fulano não se
levantou ou o outro não saudou primeiro, nem se inclinou e nem se
portou como se fosse um vil escravo? Os que só pensam em obedecer ou
os que ambicionam poder e mandos e estão dispostos a tudo para
conseguirem o que querem? Os que se declaram melhores que os demais
e evidenciam isto com todo tipo de ação ou os que se põem em último
lugar e refreiam desse modo o ímpeto louco de suas paixões? Os que
constróem lindas residências e se sentam a mesas opulentas ou os que não
buscam nas comidas e nas residências nada mais do que o necessário? Os
que demarcam léguas e léguas de terra ou os que crêem não necessitar da
possessão sequer de um torrão de terra? Os que acumulam interesses e
mais interesses e não perdem nenhuma oportunidade de negócio sujo ou
os que rasgam essas escrituras injustas e ainda socorrem os necessitados
com seus próprios haveres? Os que consideram a vileza da natureza
humana ou os que não querem nem saber disto, e pelo excesso de sua
arrogância, deixaram até de se considerar homens? Os que alimentam as
rameiras e enodoam os leitos alheios ou os que se abstêm até da própria
mulher? Não é verdade que os primeiros aparecem sobre a ordem ou a
constituição da terra como os tumores no corpo ou as tormentas furiosas
no mar e perturbam pela sua intemperância aqueles que por si poderiam
se salvar; e os outros, como faróis brilhantes em meio às trevas,
convidam os náufragos para sua própria segurança e, acendendo, como
sobre um promontório, as tochas da filosofia, conduzem ao porto da vida
tranqüila a quem os queira seguir? Não é verdade que pelas culpas dos
outros se originam as revoltas, guerras e batalhas, os extermínios de
cidades, a escravidão e a servidão, os cativeiros e as matanças e todos os
males sem conta da vida, não só os que vêem dos homens para os homens,
mas os que descem do céu: secas, inundações, terremotos, ruínas,
demolições de cidades, fome e pestes e todos os outros males que, enfim,
dali nos vêem?
A ENFERMIDADE ATACA OS PRÓPRIOS
MÉDICOS
10. Assim, pois, estes são os males que transtornam a república e são a
pestilência do bem comum; estes são também para os outros a causa de
infinitas calamidades, perturbando a quem quer viver em paz, trazendo-
os em desassossego e destroçando-os de todas as formas; para estes
existem tribunais e se ditam leis e se inventam castigos e torturas de toda
a espécie. E como em uma casa onde há muitos enfermos e poucos sadios
se vê medicamentos por toda a parte e o entrar e sair dos médicos, assim
não há povo e não há cidade sobre a terra em que não haja muitas leis,
muitos governantes e muitos castigos. Porque não bastam apenas os
remédios para levantar o doente, mas se requer alguém que os aplique, e
cumprem esta função os juizes que obrigam os enfermos, queiram ou não
queiram, a tomar os remédios. Porém a enfermidade se difundiu tanto
que atacou também a profissão médica, isto é, invadiu os próprios juizes.
E acontece a nós como se alguém, atacado ele próprio de febre, hidropisia
e de outros mil males ainda mais graves, não pudesse se livrar de suas
próprias enfermidades e se empenhasse em curar a outros dessas mesmas
enfermidades. E a inundação da maldade, rompendo como uma torrente
todos os diques, se derramou furiosamente nas almas dos homens.
O PREDOMÍNIO DO MAL AMEAÇA A FÉ
NA PROVIDÊNCIA DE DEUS
E o que dizer da destruição da constituição e da ordem? Esta peste,
suscitada por estes perversos, está prestes a arrancar das cabeças do
povo até o último pensamento sobre a providência de Deus: de tal modo
avança e se estende, e está a ponto de invadir tudo e transtornar tudo, e
já não se contenta com nada menos que combater o próprio céu,
armando as línguas dos homens não só contra seus semelhantes, mas
também contra o próprio Senhor e soberano de todas as coisas. Porque,
de onde procede que em todas as partes se importem tanto com o
destino? Por que o povo atribui todas as coisas ao curso cego das
estrelas? Por que há quem renda culto à sorte e ao azar? De onde tiram
que tudo acontece ao acaso e sem razão? Pelos que vivem modesta e
sobriamente ou por estes que dizes ser o sustentáculo da república e eu te
demonstrei que constituem a pestilência comum do mundo inteiro? Por
estes, evidentemente. Ninguém, efetivamente, se irrita porque este exerça
a filosofia e o outro viva sóbria, modesta e castamente e despreze as
coisas presente; o que revolta é ver que um se enriquece e goza e é avaro
e ladrão, e que sendo uma pessoa má e carregada de crimes passa por
homem ilustre e prospera às mil maravilhas. Por isto acusam, isto jogam
os incrédulos contra Deus; disto o povo se escandaliza; pois por causa dos
que vivem decentemente, não só não poderão dizer uma só dessas
palavras, mas condenarão a si mesmos se tentarem acusar a providência
de Deus. E se todos, ou pelo menos a maior parte, se decidissem a viver
assim, nem teria ocorrido a ninguém falar deste modo e nem se teria
introduzido o que é o remate de todos estes males, toda esta especulação
acerca da origem do mal. Porque se não existisse o mal e nem aparecesse
em nenhuma parte, quem iria se meter a inquirir a causa do mal e
originar com esta inquisição inúmeras heresias? Por isso apareceram de
fato, Marción, Manes, Valentim e a maior parte dos gentios. Mas se todos
professassem a filosofia, não haveria porque entrar em tais investigações
e, se não por outro argumento, pelo menos por nossa vida perfeita, todo o
mundo se convenceria de que vivemos sob o império de Deus e que Ele
rege e governa nossas coisas conforme sua sabedoria e providência. É
verdade que também agora é Ele que move tudo, mas não parece tão
claro, pela grande escuridão que estes malvados espalharam pela terra
inteira. Se não fosse isto, a providência de Deus brilharia para todos
como um céu sereno em pleno meio dia. Se não existissem tribunais, nem
acusadores, nem delatores, nem torturas e suplícios, nem confiscos e
multas, nem temores e perigos, nem inimizades e intrigas, nem injúrias e
ódio, nem fome e peste, nem outro mal além dos enumerados, mas que
todos vivessem com a moderação conveniente, quem dos viventes poderia
duvidar da providência de Deus? Absolutamente ninguém. Mas ao
contrário, acontece-nos o que poderia se passar em uma grande tormenta
em que o piloto cumprisse, sim, seu dever e salvasse a nave, porém é tal a
confusão, o medo e a angustia pelos males que os ameaçam, que não os
tripulantes não vêm a perícia consumada do piloto. Também agora , leva
Deus, sem dúvida, o timão de todas as coisas, mas o povo não o vê por
causa da tormenta e da confusão em que andam todas as coisas, de que
são principalmente culpados estes malvados. Em conclusão, não só
transtornam a república, mas são também a pestilência da religião, e não
erraria quem os qualificasse como inimigos universais do gênero
humano, como os que vivem contra a salvação dos outros e tratam de
afogar, com suas doutrinas abomináveis e vidas impuras, seus
companheiros de navegação.
CONTRASTE ENTRE A VIDA DOS
MOSTEIROS E A VIDA DO MUNDO
11. Nada disto se vê nos mosteiros. Por mais violenta que seja a tempestade
que se desencadeie do lado de fora, só eles gozam de porto seguro e de
muita calma e segurança, como se do céu estivessem contemplando os
naufrágios dos outros. Na verdade, eles escolheram um gênero de vida
que convém ao céu e seu estado não é em nada inferior ao dos anjos. E
assim, do mesmo modo que entre os anjos não ha nenhuma diferença e
não acontece que uns vivam prosperamente e outros se encontrem na
extrema miséria, mas todos gozam de mesma paz, da mesma alegria e da
mesma glória; assim é, nem mais nem menos, também entre os monges.
Ninguém tem como desonra a pobreza, e ninguém é considerado pela
riqueza. Banidas estão as palavras "teu" e "meu" que tudo transtornam
e confundem, e tudo entre eles é comum: a mesa, a residência e as roupas.
E o que tem isto de maravilhoso, quando a alma é também a mesma e
uma só em todos? Todos são nobres com a mesma nobreza, todos são
escravos com a mesma escravidão, todos são livres com a mesma
liberdade. Ali há uma só riqueza para todos, a verdadeira riqueza, e uma
só glória para todos, a verdadeira glória, pois não põem os bens nos
nomes, mas nas coisas: um só prazer, um só desejo, uma só esperança
para todos. Tudo está perfeitamente ordenado como com régua e
esquadro. Não há ali desordem alguma. Tudo é ordem, ritmo e harmonia,
e concórdia absoluta, e motivo constante de alegria. Por isto todos fazem
e sofrem tudo para que todos vivam felizes e contentes. E assim, só entre
os monges podemos ver esta pura alegria que não acontece em nenhuma
outra parte, não só porque desprezaram o presente e cortaram pela raiz
toda ocasião de dissensão e luta; não só porque têm as mais belas
esperanças para o futuro, mas também pelo fato de que cada um
considera como seu tudo quanto acontece de alegria ou tristeza aos
demais. Deste modo, a tristeza desaparece facilmente, pois todos levam a
carga, como se fossem um só, e se acrescentam os motivos de alegria, pois
não se alegram só pelos próprios bens, mas também - e não menos que
pelos próprios - pelos bens alheios.
Sendo assim, como afirmar que se vai perder tudo se todos imitamos
homens desta têmpera? Agora é que está tudo perdido e corrompido, por
culpa dos que estão muito distante de se exercitar neste gênero de vida .
Quando tu dizes o contrário, fazes o mesmo que alguém que dissesse que
a lira bem afinada não serve para nada, e que a desafinada, com as
cordas muito tensas ou muito frouxas, é que pulsa maravilhosamente e
encanta os ouvintes. Quem falasse deste modo, não poderia dar melhor
prova de sua falta de sentido musical, como não há sinal mais claro de
inveja e maledicência do que condenar a vida religiosa.
A VOCAÇÃO NÃO DEVE SER ADIADA
Mas o que dizem os pais mais moderados? Que nossos filhos - dizem -
primeiro aprendam as letras e, com a gratificação da eloqüência, sejam
levados na hora adequada a este gênero de filosofia, pois então não
haverá nada que o impeça. Mas como sabes que teus filhos hão de chegar
a idade viril? Muitos, efetivamente, têm sido arrebatados antes do tempo,
com morte prematura. Mas, enfim, consideremos que isso seja seguro,
suponhamos que cheguem a idade adulta: Quem nos garantirá todas as
idades anteriores? Não me empenho em sustentar obstinadamente o meu
parecer, pois se me considerasse seguro sobre isto, eu não tiraria do
mundo os dotados de eloquência, mas então firmemente mandaria que
ficassem nele, e não só não louvaria os que os desterram, mas os tacharia
de inimigos comuns da república, pois, escondendo as lâmpadas e
levando os luminares da cidade para o deserto, fariam o mais grave dano
aos que moram nela. Mas se ninguém nos promete esta segurança, qual é
o proveito em mandá-los às escolas, onde aprenderão antes a maldade
que a eloqüência e, querendo ganhar o menos, perderão o mais, isto é,
toda a força e saúde da alma?
- Não, não é isto que eu digo, mas que não derrubemos o edifício da
virtude e não enterremos viva a alma, pois enquanto esta se mantiver na
temperança, nenhum dano virá a ela pela sua imperícia na eloqüência;
mas se alma se corromper, o dano não poderá ser maior, por mais afiada
que seja a língua, e até será tanto mais grave este dano quanto maior for
a eloqüência. A maldade, com o auxílio da facilidade da palavra, produz
males muito maiores que a ignorância.
NÃO ADIANTA OBJETAR COM A
POSSIBILIDADE DE NÃO PERSEVERAR A
VOCAÇÃO
- E se depois de abandonar o mundo - dizes - além de não haver
exercitado a língua na eloqüência, vêem a cair da virtude que
professaram?
E que ninguém pense que trato de decretar como lei que nossos filhos
sejam ignorantes. Não. Se me asseguram o principal, eu não tenho
inconveniente em que se dê também o outro por acréscimo. Se uma casa
treme em suas bases e ameaçam cair as suas quatro paredes, seria
insensatez e loucura extrema correr aos decoradores, e não aos
pedreiros; mas seria também teimosia inoportuna, estando as paredes
firmes e seguras, não deixar que a decorassem desde que o dono tivesse
vontade.
PROVA-SE O QUE FOI DITO COM UM
EXEMPLO
E porque vos digo tudo isto de coração, vou contar-vos um exemplo em
que eu próprio fui o personagem. Houve em outro tempo em nossa cidade
um jovem realmente rico, que veio com o intuito de se instruir nas letras,
tanto latinas como gregas. Este jovem tinha sempre como acompanhante
um aio cuja única missão era formar e modelar a sua alma. Um dia eu
me aproximei deste aio (que era um dos moradores dos montes) e quis
saber dele a circunstância pela qual, tendo ele abraçado tão alta filosofia,
se havia rebaixado a um oficio tão humilde como o de aio. Ele me
respondeu que já lhe restava pouco tempo naquele oficio, e me explicou o
caso desde o começo. Este menino - disse-me - tem um pai duro e áspero,
e totalmente apegado às coisas da vida; sua mãe, ao contrário, santa
mulher, prudente e modesta, não tem olhos senão para olhar o céu . O pai
pois, como homem de grandes méritos na guerra, quer que seu filho siga
pelo mesmo caminho; a mãe não o quer nem o deseja, mas abomina as
armas e toda a sua oração e todos os seus desejos são que seu filho brilhe
na vida monacal. Mas não se atreveu a dizer nada disto ao pai, pois temia
que, só de suspeitar, o amarrasse antes do tempo com as cordas da vida, o
afastasse deste estudo e o obrigasse a vestir a farda militar com o séquito
de vida livre que traz consigo, fazendo assim impossível a correção. A
mãe inventou então um novo plano. Chamou-me a sua casa e, depois de
me contar tudo isto, tomou a mão direita do garoto e a colocou em
minhas mãos. Eu lhe perguntei porque fazia aquilo e me respondeu que o
único meio que nos restava para salvar aquele menino era que eu
quisesse e me resignasse a encarregar-me dele como aio e viesse para cá
em sua companhia. Ela convenceria o pai de que o estudo da eloquência é
proveitoso mesmo para quem escolhe a carreira militar. Se conseguir isto
- me dizia a mãe - , estando tu a sós em terras estranhas, sem que te
atrapalhe o pai ou algum criado poderás modela-lo a tua vontade e fazer
com que viva como em um mosteiro. Vamos! Concede-me esta graça e
promete-me que irás representar esta farça comigo. Não se trata de algo
sem importância; está em jogo e se arrisca nada menos que a alma de
meu filho. Não permitas que corra perigo aquele que eu mais amo,
arranca-o já dos laços que o rodeiam por todos os lados, tira-o destas
ondas e desta tormenta. Mas se não quiseres conceder-me esta graça,
desde já clamo a Deus que venha até nós e que seja minha testemunha de
que em nada me omiti do que convém à salvação da alma de meu filho, e
que estou limpa do sangue deste menino. Mas se acontecer que venha a se
perder, como é natural que suceda vivendo entre tantos prazeres e
negligências, de ti e de tuas mãos há de requerer Deus naquele dia a alma
deste menino.
E o seu plano não foi em vão, pois aquele generoso varão de tal maneira
exercitou em breve tempo o jovem e acendeu tal fogo deste desejo em sua
alma, que ele renunciou de repente a tudo e correu para o deserto,
necessitando então de freio ao contrário, para contê-lo na ascese
moderada, sem aqueles excessos de fervor. Era, de fato para se temer que
se por este primeiro ímpeto de noviço, descobrisse o pai antes do tempo a
trama, movesse uma terrível guerra à mãe, ao aio e aos monges em geral.
E sem, dúvida, se o pai se houvesse inteirado desta fuga, não teria
deixado pedra sobre pedra até arrojar fora de suas terras, não só aqueles
santos que haviam acolhido seu filho, mas absolutamente todos os
monges.
- Muito bem - me dizes -; mas como saberemos isto, quero dizer, que se
manterá firme, perseverará e não cairá? Porque são muitos os que
caíram.
não acrescentou:
"Se são monges",
E em outra vez:
E mais:
E isto te parece pouco? Pois espera e ouça o que ele ordena a todos sobre
a paciência, muito superior ao que foi dito:
E outra vez:
Pois ouça também o que Paulo ordena sobre a caridade, que é resume e
compêndio de todos os bens. Depois de tê-la exaltado e enumerado seus
feitos, o Apóstolo deu a entender que exige dos leigos a mesma caridade
que Cristo pediu a seus discípulos. Porque do mesmo modo que o
Salvador pôs como limite da caridade dar a vida pelos amigos (Jo 15,13);
o mesmo deu a entender Paulo quando disse:
e esta é a que nos manda seguir. De modo que ainda que só isso tivesse
dito, isto seria prova suficiente de que exige o mesmo dos leigos e dos
monges. Porque a caridade é o vínculo e a raiz de toda a virtude; e de
fato nos especifica ponto por ponto. O que se pode buscar, pois, mais alto
do que esta filosofia? Mandando-nos, efetivamente, o Apóstolo estar
acima da ira, da cólera, da gritaria, da cobiça do dinheiro, do ventre, do
luxo, da vaidade e de todos os outros afetos da vida e que nada tenhamos
de comum com a terra, e que mortifiquemos nossos membros, é evidente
que nos pede a mesma perfeição que Cristo a seus discípulos, e quer que
estejamos tão mortos para os pecados, como os que efetivamente já estão
mortos e sepultados. De onde diz:
mas só:
Mas se alguém disser que tanto vale isto como aquilo, eu não o
contradirei, pois o que agora tratamos de demonstrar é que a profissão
do monge não agrava os castigos, mas que os leigos e os monges são réus
das mesmas penas se cometem os mesmos pecados. E o que entrou no
banquete com roupas sujas e o que reclamou os cem dinheiros não
sofreram o que sofreram por serem solitários, mas um por ter se perdido
por fornicação e o outro por ressentimento. E deste modo, examinando os
outros casos de castigos de que nos fala o Evangelho, se verá ser
unicamente o pecado o que determina o castigo.
E o mesmo que se diz sobre os castigos cabe dizer das admoestações que o
Senhor nos dirige. Assim, quando diz:
pois está claro que o liberto corre melhor que o amarrado. Logo também
terá maior recompensa e usará uma coroa mais brilhante? De maneira
nenhuma, pois foi ele que impôs a si mesmo esta necessidade, quando
tinha a opção de não o fazer!
Estes filhos não obrigam seus pais a se matarem para ganhar dinheiro
nem que andem preocupados com seu casamento ou assuntos
semelhantes, mas, deixando-os livres de toda preocupação,
proporcionam-lhes prazer superior ao que gozam os pais naturais. É que
os filhos do espírito não são gerados nem criados para os mesmos fins que
os da carne, mas para fins mais altos e gloriosos. Por isto proporcionam
também maior alegria a seus progenitores.
Além disto, eu te diria também que não há nada de surpreendente que os
que não têm fé na ressurreição se lamentem de não ver os filhos de seus
filhos, pois afinal este é o único consolo que lhes resta; mas se
consideramos a morte como um sono e se aprendemos a desprezar tudo o
que é terreno, que perdão mereceríamos se chorássemos por isto? Que
sentido tem buscar ver os filhos e deixá-los numa terra da qual temos
pressa em sair e onde vivemos gemendo e chorando? Seja dada razão aos
mais espirituais; aos que amam tanto seu corpo e se sentem fortemente
apegados à vida presente, poderíamos dizer em primeiro lugar que de
qualquer forma é incerto que resultem filhos do matrimônio; e logo que,
se nascem, dão mais tristeza do que alegria. O gozo que efetivamente nos
proporcionam não admite comparação com o peso da preocupação
diária, as angustias e os temores que originam em nós.
PARA QUEM DEIXAREMOS NOSSAS
RIQUEZAS?
- E para quem - perguntas - deixaremos nossos campos, casas, escravos
e ouro?
Eis aqui um lamento que ouço também dos pais. Pois do mesmo que
herdaria antes, e agora com muito mais razão que antes, pois agora será
o guarda e o senhor das riquezas, mais seguramente que antes. Então
havia muitas coisas que podiam prejudicar seus bens. A traça, o longo
tempo, os ladrões, os caluniadores ou delatores, os invejosos, a incerteza
do futuro, a fácil mudança das coisas humanas, e, por fim, a morte
despojaria teu filho do seu dinheiro e das suas posses. Mas agora ele
colocou sua riqueza em um lugar inacessível a tudo isso, achou um abrigo
seguro, onde nada disso pode penetrar. Tal lugar é o céu, inacessível a
toda cilada, fértil como nenhuma outra terra, banco que oferece os mais
altos interesses a quem deposita nele seu dinheiro. De modo que não
havia porque fazer esta pergunta agora. Se teu filho tivesse que ficar no
mundo, então sim, haveria porque lamentar-se e perguntar: Para quem
deixaremos nossos campos, para quem o ouro, e os demais bens? Porque
agora o teu filho é tão senhor de seus bens, que, nem mesmo depois que
tiver saído deste mundo, perderá seu senhorio. Melhor ainda, saídos
deste mundo, é que melhor gozam de seus interesses.
Mas se também aqui na terra queres ver teu filho dono dos seus bens,
nisto também pode-se ver a vantagem que o monge leva sobre o
mundano. Se não é assim, responde-me então: Quem é mais dono daquilo
que possui: o que gasta e reparte com grande liberdade ou o que por
mesquinharia não se atreve a tocá-lo e o enterra e guarda como se fosse
alheio? O que gasta a torto e a direito ou o que gasta devidamente? O que
semeia na terra ou o que semeia no céu? O que não pode dar tudo o que é
seu a quem deseja, ou o que se vê livre de todos os que exigem tais
contribuições? Porque tanto em cima do lavrador quanto do comerciante
se lançam um enxame de cobradores de tributos, que reclamam cada um
a sua parte; mas a quem deseja gastar o que tem com os necessitados,
ninguém irá chegar com tais ameaças. De maneira que, também aqui o
monge é mais dono de suas riquezas que o leigo. Ou tu chamas de dono
de suas riquezas aquele que as gasta com rameiras, comilanças,
aduladores e parasitas, manchando sua própria honra, perdendo sua
alma e fazendo escárnio de todo o mundo, e não aquele que as emprega
inteligentemente para a verdadeira glória e proveito e conforme o
beneplácito divino? É como se chamasses dono de seu dinheiro aquele
que visses jogando-o no esgoto e chorasses de pena por não ser senhor de
seu dinheiro aquele que o empregasse em satisfazer suas necessidades, Na
realidade, não se deveria comparar estes tais com os que simplesmente
gastam, mas com os que gastam para seu próprio mal. Porque os gastos
que fazemos por necessidade nos proporcionam acréscimo de honra, bem
estar e segurança; porém os outros não só desonram e envilecem, mas
ainda conduzem de mil maneiras à perdição.
NÃO SE DEVE ADIAR, PARA A VELHICE, A
CONVERSÃO E A ENTREGA A DEUS
17. - Assim - perguntas - não é possível professar esta filosofia depois de
casarmos e termos filhos, uma vez chegados a velhice?
Mas mesmo se nada disto fosse incerto, nem ainda assim deveriam nossos
filhos adiar o seguimento de sua vocação nem se deveria consentir
tamanho mal. Seria com efeito o cúmulo de insensatez, que, quando o
jovem necessita de mais ajuda, quando o adversário o ataca com mais
violência, os lançássemos no torvelinho das coisas para ser sua presa
fácil, e quando estiver feito um crivo de feridas e não lhe restar parte
alguma sã, então o armássemos convenientemente e o excitássemos ao
combate, estendido ele já e meio exânime.
Pois bem, entre quem queres que se encontre o teu filho: entre os que por
seu grande valor diante de Deus podem olhar fixamente os próprios
arcanjos, ou entre os que ficam para trás de todos e ocupam o último
lugar? Porque não há dúvida que o último lugar ocuparão, e isso se
conseguirem escapar de todos os obstáculos que acabo de enumerar e não
os arrebatar uma morte prematura, nem os impeça logo a mulher, e que
não tenham tão graves feridas que nem toda a velhice baste para repará-
las, e conservem, finalmente, firme e imóvel o seu primeiro propósito.
Supondo que ocorram todas estas circunstâncias, ainda assim serão
contados a duras penas no último lugar. Destes, pois, queres que seja teu
filho, ou dos que brilham na cabeça da falange?
QUE OS PAIS TENHAM PACIÊNCIA EM
ESPERAR A VOLTA DE SEUS FILHOS
- Quem será tão miserável - me contestais - que não deseje para seus
filhos a glória do primeiro posto? Mas nós buscamos a convivência e
desejamos que nossos filhos fiquem conosco. Eu também quero isto e não
peço a Deus com menos fervor que vós que os gerastes, a volta de vossos
filhos à casa paterna, e que vos paguem a dívida de sua criação, que é a
maior que o homem tem. Mas não a exijamos por enquanto. Quando os
mandais ao estudo das letras, os desterrais por um logo tempo da própria
pátria e quando devem aprender uma arte mecânica e ainda mais vil que
a mecânica vós fazeis a casa inacessível, obrigando-os a comer e dormir
na casa do mestre; não será, então, um absurdo, que quando devem
aprender não uma disciplina humana, mas a filosofia do céu, vós os
dissuadis imediatamente antes de haverem saído como desejamos? O
saltimbanco que aprende a correr pela corda esticada se afasta por um
longo tempo dos seus; e vamos fechar com os papais os que têm que
aprender a voar da terra ao céu ? Existe insensatez mais funesta? Não
vedes como os lavradores, por mais pressa que tenham em gozar do fruto
de seu trabalho, jamais consentiriam que se fizesse a colheita antes do
tempo? Pois não afastemos antes do tempo, tampouco, nossos filhos de
sua vida solitária, deixemos que se assentem bem os ensinamentos e que
as plantas lancem raízes. Que passem dez, vinte anos no mosteiro, não
nos perturbemos, não nos aflijamos por isso, pois quanto mais tempo
passarem no ginásio, mais forças adquirirão. Ou melhor, não
determinemos tempo algum; que o limite seja o tempo necessário para
levar a plena estação os frutos de sua da virtude. Então, que voltem do
deserto na hora certa; não antes. De semelhante precipitação não
havemos de tirar outro proveito, senão que sua virtude jamais chegue a
amadurecer. Porque o fruto que se retira antes do tempo da seiva da raiz,
nem mesmo chegada sua estação será de bom proveito. Para que não
aconteça isto com vossos filhos, suportemos pacientemente a separação e
não só não tenhamos pressa em que voltem, mas que, se eles a tiverem,
que os impeçamos. Porque se voltar perfeito, o proveito será universal:
para o pai, para a mãe, para a família, a cidade, e a nação; se ele se
apresentar, ao contrário, imperfeito, será o escárnio e o opróbrio de todo
o mundo e fará danos a si mesmo e aos outros. Não lhe causemos
tamanho prejuízo. Quando enviamos nossos filhos para uma viagem, é
certo que desejamos voltar a vê-los, uma vez não obtido o objetivo da
viagem; porém se apresentam-se antes, a pena da frustração da viagem
nos dilui o prazer da volta. Pois como não qualificar de suma estupidez
não colocar no espiritual o mesmo empenho que mostramos no
temporal? Aqui levamos tão resignadamente a separação dos filhos que
até fazemos votos que ela se prolongue, quando disto há de resultar
algum proveito; no espiritual, ao contrário, somos tão brandos e se nos
rompe o coração em tantos pedaços diante da perspectiva de uma
viagem, que por esta pusilanimidade se desbaratam e frustam os maiores
bens. E isso sendo que os consolos são maiores aqui, não só porque
marcham para combates mais gloriosos e a vitória é em todos os pontos
segura e nada há que possa frustrar nossas esperanças, a não ser a
própria separação. Numa viagem longa, não é fácil ver os filhos,
sobretudo se os pais já são idosos; no mosteiro, ao contrário, pode-se ir
vê-los freqüentemente. E isto é por certo o que devemos fazer, enquanto
eles não puderem vir até nós. Vamos nós até eles e convivamos e
conversemos com eles. Disto há de nos resultar grande proveito e prazer.
Porque não só nos alegraremos em ver nossos filhos amados, mas
voltaremos para casa ricos de frutos de virtude e até pode acontecer que,
presos no amor pela filosofia, fiquemos com eles.
Porém, não quero discutir isto contigo. Suponhamos que teu filho fique
em segundo ou terceiro lugar em relação àqueles: ainda assim não serão
minguados os bens de que gozará. Não chegará a ser um Pedro ou um
Paulo, nem talvez se acerque deles; será isto motivo para privá-lo da
honra que lhe caberá depois deles? Ao falar deste modo é como se
dissesses: Posto que meu filho não pode ser uma pedra preciosa, que
continue a ser ferro, e não seja nem ouro nem prata. Como é que, em
relação ao profano, não discorres assim, mas de modo contrário? A
verdade é que quando o mandas aprender a eloqüência, não esperas, a
todo o transe, vê-lo no posto mais elevado dela e nem por isso o retiras do
estudo. De tua parte fazes tudo o que podes e te dás por satisfeito que teu
filho ocupe o quinto e ainda o décimo posto entre os grandes oradores. E
quando os colocais a serviço do imperador, tampouco esperais que de
algum modo subam ao trono dos governadores e nem por isso lhes
ordenais que desatem a cinta e não toquem em absoluto os umbrais do
palácio. Não. Todo o vosso afã é que não tenham que abandonar a vida
cortesã, contentando-vos em vê-los contados entre os medianos. Por que
razão, pois, em um caso, se não conseguis o mais, vos afanais e vos
esforçais para alcançar o menos - e isso quando a esperança aqui
também é incerta - e no outro vacilais e os retirais? É que do primeiro
tendes verdadeiro desejo e do outro não tendes nenhum. Logo, como não
tendes coragem de confessar a verdade, andais buscando desculpas e
pretextos. Se realmente o quisesses, nada disso se poria diante de vós.
Porque a verdade é que quando alguém ama autenticamente alguma
coisa , se não pode alcança-la inteiramente, agarra-se ao que pode, e se
não chega ao extremo, se contenta com o médio, e muitas vezes com
menos ainda. Assim, um bom bebedor e amigo do vinho, se não pode ter
do doce e perfumado, não desdenhará o vinho de qualidade inferior; e
um avaro, igualmente, se não pode acumular pedras preciosas e ouro,
agradecerá mil vezes se conseguir prata. Assim é a natureza do desejo,
força tirânica, capaz de obrigar quem está por ela dominado, a enfrentar
tudo para conseguir o que quer. De sorte que se todas as vossas palavras
não fossem puros pretextos, o que deveríeis fazer era ajudar vossos filhos
em seus esforços. Porque é próprio de quem deseja uma coisa não opor-
se a consegui-la, mas fazer todo o possível para alcança-la. Os atletas
olímpicos, embora saibam muito bem que dentre a multidão só um há de
conseguir a vitória, todos, contudo, se esforçam e lutam para alcança-la.
Na verdade, nada tem a ver nossos combates com os olímpicos, não só
pelo fim distinto que em uns e outros se persegue, mas porque nestes só
um pode sair coroado; nos nossos, pelo contrário, a alternativa não se dá
entre sair ou não sair coroado, mas em que um alcança uma coroa mais
brilhante do que o outro; mas todos a alcançam.
Isso mesmo fez o patriarca Abraão, e até muito mais do que isso, e por
isso também recuperou com mais glória seu filho. E é assim que então
realmente possuímos nossos filhos, quando os entregamos ao Senhor.
Ninguém os há de proteger melhor do que Ele, pois ninguém como Ele
cuida deles. Não vês como isto acontece nas casas dos ricos? Ali se pode
ver como os escravos que habitam em suas casas com seus pais não
brilham tanto nem têm tanto valor para os seus senhores; ao contrário,
aqueles que estes separam de seus pais e destinam a seu próprio serviço e
à custódia de suas dispensas, estes são os que gozam de maior favor e
confiança e brilham em relação a seus companheiros como os senhores
em relação a seus escravos . Pois se os homens se mostram tão bons e
benévolos com seus serviçais, muito mais aquela bondade infinita que é
Deus.
"e por Davi, meu servo, eu serei escudo desta cidade para
salvá-la".
4 Reis 19,34
Pois que defesa já nos resta, aos que cometemos estes desaforos? Porque
se o que viveu antes da graça e da lei, o que não gozou de doutrina
alguma, tinha tanto cuidado com os seus filhos que estremecia até por
seus pecados ocultos, quem nos livrará a nós, que vivemos na graça, que
temos tido tão grandes mestres, que temos visto tão grandes exemplos e
recebido tantas exortações, quando não só não tememos pelos pecados
ocultos, mas desprezamos até os manifestos, e não só menosprezamos,
mas perseguimos aqueles que desejam corrigi-los?
"Buscai",
diz,
A isto respondo que, ainda que com toda a certeza o soubesses e não se
tratasse de mera conjectura - e o fato é que muitos dos que se esperava
que iam cair, se mantiveram firmes -, nem ainda neste caso se deveria
lança-lo para baixo. Se vemos que alguém vai cair e nos adiantamos em
dar-lhe uma rasteira, a possibilidade da queda não basta para nos
desculpar, antes, isto é justamente o que mais nos condena. Porque não
deixaste que a queda se devesse só a sua própria negligência e não de que
te adiantasses em arrebatar o pecado e atraísses toda a culpa sobre a tua
própria cabeça? Ou, melhor dizendo, nem sequer devias ter consentido
que caísse. Porque, efetivamente, não fizeste todo o possível para evitar a
queda de teu filho? De modo que, justamente porque sabias que teu filho
ia cair, por isso principalmente és digno de castigo. Porque aquele que
isso sabia de antemão não tinha que derrubar, mas estender a mão e
redobrar o empenho para que este que estava a ponto de cair se
mantivesse valentemente em pé, quer conseguisse se manter, quer não.
Nosso dever é fazer tudo o que está a nosso alcance, mesmo que ninguém
tire nenhum fruto do nosso trabalho. Por que razão e para que fim? Para
que sejam eles, e não nós, que tenham que prestar contas a Deus. Pois foi
Ele mesmo que disse ao criado que não havia negociado com o talento:
CONCLUSÃO DA OBRA
Considerando, pois, tudo isto e abandonando todos os pretextos,
empenhemo-nos em sermos pais de filhos generosos, arquitetos de
templos em que more Cristo, treinadores de atletas celestes, ungindo-os,
corrigindo-os, buscando por todos os meios seus benefícios, a fim de
participarmos também no céu de suas coroas. Mas se vos obstinardes, se
vossos filhos forem generosos, correrão, mesmo contra vossa vontade, a
abraçar esta filosofia e gozarão de todos os seus bens, e a vós só restará
amontoar castigo sobre castigo e virdes a elogiar tudo o que acabo de vos
dizer quando nenhum proveito podereis tirar desses elogios.