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Como você analisa o que está se passando com os governos de esquerda na América
Latina?
A destruição dos governos de esquerda na América Latina que está em curso resulta de
uma nova estratégia de poder do capitalismo globalitário, em sua versão financeirizada.
Uma tomada de poder do Estado que não se vale da força militar, mas sim da força do
desejo, a fim de torná-la reativa. Isto se faz por meio de uma tripla operação: midiática,
judiciária e policial. Tem-se aqui uma estratégia micropolítica, muito mais sutil e invisível
do que a tradicional estratégia macropolítica, o que faz com que seja muito mais difícil
decifrá-la e combatê-la. Minha impressão é a de que por não abarcar a dimensão
micropolítica, o imaginário das esquerdas não tem como decifrar a estratégia de poder do
capitalismo financiarizado e, sendo assim, não consegue combatê-lo. Pela mesma razão,
o binomio esquerda X direita, ao qual está atrelado este imaginário, não abarca a
complexidade das forças em jogo.
A experiência que estamos vivendo nesses contextos é muito triste, mas também muito
valiosa. Por quê? Porque nos permite reconhecer o que a esquerda pode e também o que
ela não pode, dados seus limites, inerentes à sua própria lógica. O que a esquerda pode é
praticar a resistência no âmbito do Estado. Uma forma de resistência que tem a ver com
lutar por uma democracia que não seja somente política, mas que seja também econômica
e social. . Neste âmbito, a esquerda representa sem dúvida a melhor posição possível –
ainda que varie o grau de ampliação da democracia almejado por cada governo tido como
de esquerda, que é inversamente proporcinal à sua maior ou menor cumplicidade com a
agenda neoliberal.
Se o destino das assim chamadas “revoluções do século 20” foi por nós vivido como uma
traição, é porque ainda mantínhamos a crença de que um dia existiria esta totalidade que
designávamos pelo nome de Revolução, herdeira da ideia monoteista de paraíso. No
entanto, o que está acontecendo – não só na América Latina, mas também em escala
internacional – nos lança em outro nível de lucidez que inclui um saber ético, distinto de
uma consciência moral. Deste ponto de vista, revela-se que “o que pode a esquerda”
choca-se contra seu próprio limite – o limite do regime antropo-falo-ego-logo-cêntrico da
cultura moderna ocidental, do qual ela mesma faz parte.
É evidente o grande perigo que representa a atual derrocada mundial das esquerdas,
provocada pela ascensão ao poder de forças macropolíticamente reacionárias e
micropoliticamente reativas e conservadoras nos coloca diante de um grande perigo.
Entretanto, é precisamente a gravidade dessa experiência que nos leva a perceber que não
basta atuar macropoliticamente. Por que não basta? Porque, por mais que se faça no plano
macropolítico, por mais brilhantes que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas
que sejam as ações, por mais êxito que tenham, por menos autoritárias e corruptas que
sejam, do ponto de vista micropolítico o que se consegue é uma reacomodação do mapa
vigente, na melhor das hipóteses com um grau de desiguldade econômica e social um
pouco menor. E tudo volta para o mesmo lugar, exatamente aquele do qual pretendíamos
sair.
O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO
Você criou, há alguns anos, essa noção de “inconsciente colonial”, e vem desde então
trabalhando com ela. Como você definiria essa noção hoje em dia? E por que passou a
denominá-la “inconsciente colonial-capitalístico”?
Para responder à sua pergunta, tenho que falar de dois tipos de experiência que fazemos
no mundo. A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite
apreender as formas do mundo segundo em seus contornos atuais – uma apreensão
estruturada segundo a cartografia cultural vigente. Em outras palavras, quando vejo,
escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações
de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido. Este modo de
congnição é indispensável para a existência em sociedade, porém essa é apenas uma entre
as múltiplas experiências outras experiências que a subjetividade faz do mundo e que
operam simultaneamente. Trata-se da experiência do que chamamos de “sujeito”. Em
nossa tradição ocidental, confunde-se “subjetividade” com “sujeito”, porque nesta
política de subjetivação, é apenas esta capacidade a que que tende a estar ativada. No
entanto, a experiência que a subjetividade faz do mundo é potencialmente muito mais
ampla, múltipla e complexa.
Um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno é a que designo como
“fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e
que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem
em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles
Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”). Somos
tomados por um estado que não tem nem imagem, nem palavra, nem gesto que lhe
correspondam e que, no entanto, é real e apreensível por este modo de cognição que
denomino “saber-do-corpo”. Aquí já não se trata da experiência de um indivíduo,
tampouco existe a distinção entre sujeito e objeto, pois o mundo “vive” em nosso corpo
sob o modo de “afectos” e “perceptos” e faz parte de sua/nossa composição em processo.
Estes formam uma espécie de germe de mundo que passa a nos habitar e que nos causa
estranhamento por ser, por princípio, intraduzível na cartografia cultural vigente, já que
é exatamente o que lhe escapa e a coloca em risco de dissolução.
É totalmente distinto o que se passa com o desejo quando se orienta segundo uma
perspectiva antropo-falo-ego-logocêntrica, que é a que define o inconsciente colonial-
capitalístico. Este consiste na anestesia da potência que o corpo tem de decifrar o mundo
a partir de sua condição de vivente: o saber-do-corpo torna-se inacessível. Por estar
bloqueada a experiência da subjetividade fora-do-sujeito, a subjetividade passa a existir
e a se orientar somente a partir de sua experiência como sujeito. Nestas condições, a
subjetividade vive a fricção do paradoxo existente entre estas duas experiências como
uma ameaça de autodesagregação, o que lhe causa medo. O desejo é então convocado a
recobrar apressadamente um equilíbrio apressadamente e o faz por meio da conexão com
toda sorte de produtos que o mercado lhe oferece. São coisas, mas também e sobretudo
formas de existir e visões de mundo a elas associadas, sedutoramente veiculadas pelos
meios de comunicação de massa. Desestabilizada, a subjetividade os idealiza e os
consome, para mimetizá-los, de modo a refazer-se rapidamente um contorno reconhecível
e livrar-se de seu mal-estar. É isto o que define uma micropolítica reativa, cujo efeito é a
conservação do status quo.
Assim, a potência do desejo, convocada pelo mal-estar, é desviada de seu destino criador
e canalizada para alimentar o mercado e produzir capital. A mídia, personagem principal
no cenário do capitalismo globalitário financeirizado, reforça o fantasma do perigo de
desagregação iminente fabulado pelo sujeito, intensificando seu medo e transformando o
estado de desestabilização em potência de submissão. Este sim é um perigo real, o qual
se alimenta do perigo imaginário do sujeito. E se designo por “colonial-capitalístico” o
regime de inconsciente que corresponde a essa política do desejo, não é apenas porque o
capitalismo nasce junto com a empresa de colonização de parte do planeta levada a cabo
pela Europa Ocidental, mas também, e sobretudo, porque com sua nova estratégia de
poder, o capitalismo vem logrando expandir seu projeto colonial a ponto de englobar o
conjunto do planeta.
Abandonar este modo de subjetivação passa por um “devir revolucionário”, como dizia
Deleuze. Tal devir é impulsionado pelas irrupções de afetos que nos chegam do saber-do-
corpo e que nos forçam a reinventar a realidade – o que não tem nada a ver com “a”
Revolução, com R maiúsculo, total e absoluta. A ideia de “Revolução” pertence a essa
mesma lógica do inconsciente colonial-capitalístico, em sua versão de esquerda: com o
bloqueio da experiência fora-do-sujeito, o mal-estar da desestabilização leva a
subjetividade de esquerda a imaginar defensivamente um outro mundo, que substituirá o
existente como um só bloco, mediante a tomada do poder do Estado. Um mundo
idealizado e com eternidade garantida, porque nele estaríamos protegidos contra as
turbulências inevitáveis da vida, que nos tiram da zona de conforto e nos exigem um
trabalho constante de transformação, como condição para a própria preservação da vida.
A figura de Hannah Arendt me inspira para lidar com a expêriencia tão difícil que estamos
vivendo no planeta, especialmente na América Latina, que é a realidade que vivo mais
diretamente. Quando Arendt esteve presente no julgamento de Eichmann [Eichmann em
Jerusalém: Um estudo sobre a banalidade del mal], em vez de se colocar na posição de
vítima, invadida pelos sentimentos de ódio e ressentimento, ela conseguiu manter-se em
contato com os afetos do mal-estar, que haviam irrompido em seu corpo pelas forças em
jogo naquela cena, que além do mais a conecatavam com a memória do corpo de sua
experiência mais direta com a violência do nazismo em sua passagem pelo campo de
concentração. Por haver mantido ativo o pensamento, a fim de decifrar os afetos do
nazismo em sua própria subjetividade, afastando os sentimentos tóxicos causados pelo
medo, Arendt conseguiu identificar a origem do mal justamente na ausência de
pensamento. Foi assim que ela salvou a si mesma do destino nefasto que estes efeitos
poderiam ter gerado em sua subjetividade, que seria precisamente o colapso de sua
capacidade de pensar. Com esta operação, atualizada em sua obra, ela expandiu a
possibilidade de resistirmos ao colapso que a violencia tende a nos causar, especialmente
a violencia de Estado.
De que maneira a atitude que têve Hannah Arendt te inspira para enfrentar a situação
que estamos vivendo?
Sua atitude, como tantas outras que tenho encontrado no transcurso de minha existencia,
contribui para que eu não me deixe paralizar pela situação que estamos vivendo. Como
comentei no início de nossa conversa, estou, ao contrário, muito atenta e mobilizada para
decifrá-la e, a partir daí, afinar minhas palavras e as estratégias de ação nos usos que faço
delas, seja em textos, conferências, aulas ou laboratórios. Tenho mantido um diálogo
constante com pessoas e grupos, não só do Brasil, que estão pensando o atual estado de
coisas, e inventando maneiras de enfrentá-lo: são práticas que incidem na dimensão
micropolítica da existência coletiva e que não páram de proliferar. Elas nos oferecem
condições favoráveis para problematizar e ressignificar a palavra resistência, que ainda
pode nos servir para qualificar a força das ações de desmontagem do intolerável, já que
por ora não dispomos de uma palavra que tenha mais sintonía com o tipo de ativismo que
vem sendo praticado.
A partir desta perspectiva, em lugar de dizer que sou de esquerda, ou melhor, a favor de
um Estado mais justo e menos permeável ao neoliberalismo (que é o mínimo a que se
pode aspirar), eu diria que me sinto parte de uma comunidade transnacional, informal,
múltipla e variável, que compartilha um olhar micropolítico para detectar o intolerável e
buscar formas de combatê-lo. O que orienta este olhar é uma bússola ética, cuja agulha
aponta para tudo aquilo que impede a afirmação da vida, sua preservação e sua expansão.
Essa mesma bússola é a que orienta tal comunidade flutuante em seus modos de agir.
Estes consistem em atos de criação que vão redesenhando os contornos do presente, de
maneira a dissolver os pontos em que a vida se encontra asfixiada; neste sentido, agir é
muito distinto de reagir por oposição. E se o que a sufoca abrange, evidentemente, o
âmbito macropolítico, certamente não se restringe a ele. Para que o termo “resistência”
recupere seu valor, é preciso que ampliemos seu sentido, tradicionalmente associado à
noção de esquerda e, portanto, restringe-se ao âmbito macropolítico onde esta atua. Há
que ativar seu sentido micropolítico, o que torna seu objeto muito mais amplo, mais sutil
e mais complexo do que o das lutas no âmbito do Estado – principalmente quando seu
foco tende a reduzir-se à conquista e à conservação do poder macropolítico. No lugar
disso, o que temos que conseguir é a dissolução do poder da micropolítica reativa do
capitalismo globalitário, que abarca todas as esferas da vida humana. E aquí já não se
trata de um combate pela tomada deste poder, nem tampouco se faz por oposição ao
mesmo ou por sua negação, mas sim de um combate se trava por meio da afirmação de
uma micropolítica ativa, a ser investida em cada uma de nossas ações cotidianas, inclusive
aquelas que implicam nossa relação com o Estado, que estejamos dentro ou fora dele.
Não será exatamente isso o que está acontecendo com a proliferação desse novo tipo de
ativismo?