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Tribunal Constitucional, Jurisprudências e Políticas Públicas

J. J. Gomes Canotilho1

Ao longo de vinte anos de jurisprudência, o Tribunal Constitucional fez muita política.


Dizer isto indicia já que gostaria de vos apresentar um outro modo de analisar algumas
das sentenças do Tribunal Constitucional Português. Não é preciso recorrer à ironia
dirigida contra os juízes do Tribunal Constitucional Alemão: “os juízes de toga vermelha
fazem política”. Basta analisar alguns leading cases do nosso Tribunal para se verificar
que, sob o manto diáfano da dogmática e metódica constitucionais, se escreveram
páginas de alta política constitucional, chegando aqui e ali a reinventar-se politicamente a
própria Constituição. E não podia deixar de ser assim. As questões decididas em algumas
sentenças tinha um cuore político – eram problemas de políticas públicas –, não podendo
deixar de transportar dimensões de politicidade típicas da aplicação de normas
constitutivas do estatuto jurídico do político.

O tema poderá parecer estranho, sobretudo numa cerimónia em que se comemoram os


“Vinte anos do Tribunal Constitucional de Portugal”. Convém, por isso, avançar desde já
as razões impulsionadoras deste trabalho.

Em primeiro lugar, pela sua proximidade dialógica, temos em mente a excelente análise
feia pelo Ex-Presidente deste Tribunal – o Dr. José Manuel Cardoso da Costa – na
“República do Direito” em Coimbra. Aí se aflorou, com conhecimento de causa, a análise
política de alguns acórdãos do Tribunal Constitucional.

Em segundo lugar, cumpre fazer referência à incomodidade que vimos sentindo com
alguns dos nossos colegas brasileiros, firmemente convictos de que é possível e
desejável a fiscalização judicial das políticas públicas.

Por último, assinalaremos o provável impacto que relativamente ao nosso tema irá
produzir a constitucionalização das políticas públicas na Constituição da União Europeia.
Quem se der ao trabalho de ler o prolixo Projecto de Constituição verificará, com efeito,
que nele se positivaram as políticas e acções internas da União (mercado interno, livre
circulação de mercadorias, capitais e pagamentos, regras de concorrência, política
económica, monetária, política social, coesão económica, social e territorial, etc.). A este
propósito, não deixa de ser estranha a décálage entre as propostas de revisão da
Constituição Portuguesa ultimamente difundidas pela comunicação social e as propostas
da Constituição Europeia. As primeiras retomaram a “questão constitucional” debatida há
vinte anos e procedem a um “expurgo” ou “desbaste” revisionista do texto de Abril. As
segundas, transmutam ou pretendem transmutar o acquis comunautaire – convencional,
regulamentar e jurisprudencial – em regras e princípios constitucionais europeus.

Cremos, assim, que os traços e os tropos da intriga estão tendencialmente revelada.


Passaremos agora à sua impostação crítica. Antes, porém, é mister explicitar o outro lado
da intriga. Com efeito, o título da nossa intervenção aponta para um outro tópico que se
liga à própria jurisprudência. Introduzimos na epígrafe o sibilino plural “júrisprudências”. É
isto mesmo. Há várias jurisprudências, pelo menos no plano metódico, dentro da
1 Conferência proferida no XX Aniversário do Tribunal Constitucional em 28 de Novembro de 2003
jurisprudência do Tribunal Constitucional. Vamos começar por aqui.

§§2º Jurisprudências

A leitura das sentenças que o Tribunal Constitucional proferiu ao longo destes vintes anos
denota claramente as mudanças na sua composição, mas revela, igualmente, algumas
constâncias que tentarei sistematizar.

1. Pragmatismo jurisprudencial
Talvez se possa dizer que o Tribunal assumiu um papel regulativo e recentrador das
controvérsias jurídico-constitucionais e político-constitucionais, reduzindo as
complexidades do político e da política através de duas formas metodicamente
pragmáticas:

(1) através da rejeição, ou, pelo menos, prudência quanto à utilização dos amparos
maiêuticos das grandes teorias” (“discurso racional”, “razão pública”, “agir comunicativo”,
“teoria da justiça, “teorias referenciais”);

(2) através da parcimónia na abordagem dos problemas metódico-metodológicos de


interpretação/concretização das normas constitucionais.

Se alguém nos coloca a pergunta de saber se o Tribunal é influenciado pelas “teorias da


justiça”, do “agir comunicativo”, da “integridade discursiva” responderíamos que elas não
cabem, enquanto tais, na ratio decidendi das questões jurídico-constitucionais. De igual
modo, se alguém nos colocar a pergunta – e ela tem-nos sido feita sobretudo por alunos
do Programa Erasmus – da teoria da interpretação sufragada pelo Tribunal Constitucional
Português, diríamos, pragmaticamente, que ele oculta as premissas metódicas do seu
labor interprétativo.

Quais as consequências deste pragmatismo? Colocando-nos na pista do juiz Holmes, ele


próprio na senda do filósofo Peirce, e, nas eras contemporâneas, na companhia do juiz
Posner, diríamos que, em geral, o pragmatismo jurisprudencial opera um verdadeiro
downsize nos sujeitos de interpretação porquanto ele obriga o aplicador das normas
constitucionais a duas autocontenções:

(1) a encontrar uma solução prática, operacional, aceitável e credível para o problema
constitucional concreto e apenas para este;

(2) a colocar entre parêntesis os fundamentos ou concepções teóricos eventualmente


antagónicos sempre que isso não perturbe a sua autonomia de juízo.

A nosso ver, este pragmatismo jurisprudencial não significa, no caso português, um


minimalismo dogmático e teorético. Pelo contrário. As sentenças denotam cargas teóricas
pouco comuns na jurisprudência comparada e revelam a afirmação positiva das
diferenças, nas frequentes dissenting opinions dos juízes conselheiros.

2. Jurisprudência principialista ou principialismo jurisprudencialista


Como o próprio nome indica, a jurisprudência principialista diz o direito do caso concreto
manejando a aplicação de princípios. Estará fora de questão proceder a uma
peregrinação teorética em torno da distinção entre princípios e normas. Tão pouco iremos
saturar a atenção do auditório fazendo uma crónica de erudição de desenvolvimento do
principialismo jurisprudencial, começando com J. Esser, com o princípio e norma no
direito privado, e acabando em R. Alexy, com a sua decantada elaboração teórica de
regras e princípios. Pelo meio, encontraríamos a influência decisiva de Dworkin, e, no
campo de direito constitucional, as iluminantes sugestões de G. Zagrebelsky. Estas
menções a autores servem, como se poderá deduzir, para aproveitar este momento e
saudar a presença neste diálogo do ilustríssimo colega, professor e Juiz G. Zagrebelsky.

Feito este desvio, concentremo-nos na jurisprudência do Tribunal Constitucional


Português. Mais uma vez, a rota dicisória do nosso órgão de fiscalização concentrada se
nos afigura um caminho aberto aos caminhantes. Foi um ex-juiz do Tribunal
Constitucional Alemão, o Professor E.W. Bockenförde, que clarificou a questão da
jurisprudência principialista. Quando se fala de jurisprudência de princípios isso não
significa que a jurisprudência possa ou deva desprezar as regras jurídicas, precisas e
densas. O direito não pode ser todo de princípios nem reduzir-se a regra. No entanto,
bem se poderia afirmar que, neste contexto, bastará seguir uma máxima inspirada noutras
máximas formuladas a este respeito: “diz-me se o Tribunal Constitucional aplica princípios
e eu dir-te-ei que tipo de justiça constitucional ele faz”. Ora, basta consultar o último
número dos Acórdãos do Tribunal Constitucional (nº 52, referente ao ano 2002), para se
poder concluir que o nosso Tribunal tem uma visão do ordenamento jurídico-constitucional
como um sistema aberto de regras e princípios. Desde princípios jurídico-constitucionais
próximos de regras (ex.: princípio da anualidade orçamental) até princípios densificados
de princípios fundantes do Estado de direito democrático (princípio da adequação,
princípio da confiança, princípio imparcialidade da administração, princípio da legalidade,
princípio da proporcionalidade, princípio da necessidade, princípio da segurança jurídica)
passando pelo princípios básicos da igualdade, da equidade e da justiça, todos eles nos
surgem como normas inspiradoras da ratio decidendi e do obiter dictum, mas, sobretudo,
como normas fundamentadoras das decisões. Tanto basta para, neste momento,
incitarmos os jovens estudiosos a sujeitarem esta riquíssima jurisprudência de princípios a
um crivo analítico-dogmático absolutamente imprescindível ao progresso da ciência do
direito português.

3. Jurisprudência contextualista
Num interessante artigo de Doris Luke intitulado “Doxa e Prudentia: conflitos de
racionalidade e problemas de comunicação como paradoxos jurídicos da
profissionalidade”, colhemos um conceito que se nos afigura apropriado: o da
jurisprudência multicontextual. Ela aponta basicamente para a necessidade e
indispensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro das situações da vida e
das experiências primárias. Se o Tribunal Constitucional, pela sua própria natureza e
funções, não está imerso na vida, nem por isso pode deixar de estar atento às sugestões
da jurisprudência multicontextual. Algumas sentenças são reveladoras desta articulação
da prudentia com a aceitação dóxica (ex.: jurisprudência sobre transmissão de
arrendamento no caso de existência de filhos menores, extensão de regime da lei dos
cônjuges às uniões de acto com filhos, jurisprudência sobre tratamento de nacionais e
não nacionais para efeito de aposentação).

Assegurados que sejam as cautelas impostas pela racionalidade jurídico-normativa, a


aproximação do código binário constitucional/inconstitucional do código, também binário,
de justo/injusto permitirá ao Tribunal Constitucional captar a aceitação/não aceitação,
adequação/não adequação das soluções jurídico-constitucionais.

4. Jurisprudência precedentalista
A fórmula literal indicia já o sentido: jurisprudência precedentalista é aquela que recorre
sistematicamente a remissões e reenvios para sentenças anteriores onde foram
discutidos as mesmas questões ou questões semelhantes.

Este tipo de jurisprudência merece sérias reticências à doutrina. Num trabalho publicado
em 1984, um jurista alemão (R. Schmidt) chamava a atenção para a prática profissional
dos juízes. Ter-se-ia instalado um positivismo jurisprudencial jurisdicional ancorado num
precedentalismo metodico judicialmente fechado. Mas de que precedentalismo se trata?
De reenvio para leading cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial?
Não! De “assentos” ou de uniformizações de jurisprudência, tendencialmente inevitáveis e
desejáveis? Não! O que se passa é um pragmatismo do caso baseado noutros “casos”. A
remissão de “sentença para sentenças”, o “reenvio de acórdãos para acórdãos”poderá ser
um meio de “descarga” da inflação processual, mas pode transformar-se também na
morte da própria jurisprudência. Se o teoreticismo jurisprudencial corre o risco de uma
scientia sem prudentia, o positivismo precedentista coloca-nos perante os perigos de uma
prudentia sem scientia.

O Tribunal Constitucional corre também estes riscos e perigos. Não é desrazoável


assentar num acquis jurisprudencial, mas já será, talvez, pouco estimulante, que o
princípio da igualdade venha há mais de vinte anos a ser glosado de sentença para
sentença, sem enriquecimentos visíveis a nível dogmático-jurídico. O actual processo de
filtragem dos recursos abre também as vias, senão houver vigilância, para este
positivismo jurisprudencial jurisdicional.

§§3º
Políticas

O Tribunal Constitucional fez política por linhas do direito. Formulamos assim a segunda
intriga. Porquê falar em políticas? As razões já foram atrás explicitadas quando aludimos
à fala de Cardoso da Costa, à incomunicabilidade com a doutrina brasileira em torno da
fiscalização da constitucionalidade das políticas públicas e aos desafios da
constitucionalização das políticas comunitárias no Projecto de Constituição Europeia. O
que se segue não é mais do que uma observação sobre estas observações.

Não deixa de ser intrigante que o Tribunal tenha feito tanta política – e “alta política
constitucional” – sem ser crucificado (salvo pelos críticos do “bloqueio”) no diálogo
intersubjectivo da comunidade jurídica. É certo que a doutrina e o próprio Tribunal já
tinham dedicado particular atenção aos problemas de legitimidade e legitimação da justiça
constitucional.

O livro publicado nos Dez Anos do Tribunal Constitucional (Legitimidade e Legitimação da


Justiça Constitucional, Coimbra, 1995) continha já importantes contributos quanto a
alguns aspectos de justiça constitucional (princípio democrático, princípio a maioria,
composição). No entanto, e como o próprio nome indica, tratava-se fundamentalmente de
discutir a própria legitimidade e legitimação da justiça constitucional. À escolha do tema
não teriam sido alheios dois importantíssimos trabalhos teóricos onde a justiça
constitucional era questionada em termos teórica e dogmaticamente estimulantes.
Referimo-nos aos trabalhos de J. Habermas (Faktizität und Geltung. Beiträge zur
Diskursstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaates, Frankfurt/M, 1992) e
de Ronald Dworkin (Laws Empire, Cambridge Mas., 1986). O problema da legitimidade e
legitimação ficou discutido e não vale a pena rediscutir o que já está bem discutido.

Regressemos então à nossa intriga: qual a razão de o Tribunal ter feito política chegando
mesmo aos limites da revisão constitucional por via jurisdicional, ou, pelo menos
avançando sugestões de desenvolvimento constitucional, sem que a doutrina
constitucional tenha dedicado trabalhos à ocultação discursiva, retórica e metódica do
controlo jurídicoconstitucional de políticas públicas?

Uma das razões é seguramente a de que a discussão dessas políticas estava sujeita a
um princípio jurídico-constitucional incontornável: a limitação do controlo a actos
normativos. Ao deslocar-se o problema para a inconstitucionalidade da norma e não das
políticas públicas, acabava-se por discutir e dar centralidade decisória a temas como os
de “reserva de lei” e “reserva de decreto-lei”, competência da Assembleia” e “competência
do governo”, “lei abstracta” e “lei medida”, “separação de poderes” e “núcleo essencial de
direitos”, ou seja, temas de grande relevância jurídico-constitucional e jurídico-dogmática,
mas tendencialmente ocultadores da natureza de political question dos problemas a
decidir.

A segunda ordem de razões prende-se com o “tournant pragmaticizante” sob as vestes de


balanceamento e ponderação de bens e direitos. O alicerçamento do “Estado ponderador”
permitia também um “compromisso justicialista” claramente atento às contingências do
caso concreto.

Acresce que - e isto nem de propósito mas a propósito – as questões políticas das
políticas públicas constituíam verdadeiros tabus políticos. O Tribunal Constitucional, ao
discutir temas tão politicamente sensíveis como o das “taxas moderadoras” dos serviços
de saúde, o da “actualização de propinas” do ensino superior, o da liberalização do
comércio farmacêutico, nunca passou dos direitos às políticas. Por mais que fosse
evidente que law is politics e law is economics e que as normas garantidoras de direitos
sociais, económicos e culturais traziam acoplados direitos sociais e políticas públicas, o
problema era sempre o de conformação, modelação e restrição normativa de direitos
fundamentais e não o de controlo de políticas públicas concretizadoras destes direitos.
Além disso, como a Constituição deixava pouca liberdade de conformação ao poder
político-legislativo ao consagrar os esquemas organizativos e funcionais da realização das
políticas (direito à saúde realizado através de um serviço nacional de saúde universal e
gratuito, direito ao ensino mediante uma política de democratização do ensino baseada na
gratuitidade progressiva dos vários graus de ensino, direito à segurança social com base
num sistema nacional e unificado de segurança social), compreende-se que o Tribunal
Constitucional tivesse de emprestar força normativa à Constituição em vez de se
empenhar numa insegura discussão sobre políticas públicas. A consagração concreta de
políticas de direito implicava um mandato constitucional de optimização dos direitos
através de uma política predeterminada com a consequente restrição da liberdade
conformadora do legislador e a entrada do controlo das políticas no da constitucionalidade
ou da inconstitucionalidade. A forma como o Tribunal Constitucional português aborda
estas questões é uma verdadeira ars judicandi. Vejamos porquê. O Tribunal não podia
alargar as dimensões multicontextuais da sua jurisprudência, invocando a pluralidade
racional ou a racionalidade plural de mundos parciais como a economia, o ensino e a
ciência. Em linguagem mais sofisticada, o Tribunal não podia invocar as exigências de
responsividade e as dimensões de reflexividade incontornavelmente presentes nas
políticas constitucionais de direitos.

Mas não é só isto. Ao colocar-se ao Tribunal o problema das “taxas moderadoras” ou o


“problema das propinas”, pretendia-se, no fundo, que ele emprestasse a bênção
constitucional a um problema central da teoria económica e de políticas públicas – o
problema do racionamento do acesso a um bem essencial. Fomos ver, afivelando a
máscara naif de aprendiz de economia. Tratava-se de discutir aquilo que os economistas
designam por rationing devices for publicly provided private goods (Joseph Stiglitz,
Economics of the Public Sector, 3ª ed., New York/London, 2000, p. 137 ss). Devemos ter
serenidade bastante para reconhecer que o racionamento dos serviços de saúde, dos
serviços de ensino, dos serviços de segurança social por falta de recursos para assegurar
os custos de direitos sociais era um verdadeiro tabu político dentro do enquadramento
constitucional das políticas dos direitos. O Tribunal Constitucional não se colocou, até
porque lhe era constitucionalmente vedado, no papel de “quebrador de tabus”, antes
procurou discutir e decidir, de modo normativamente fundado, a necessidade,
admissibilidade e limites do racionamento de serviços públicos. As soluções a que chegou
passaram a constituir a medida jurídico-constitucional do racionamento. Elas anteciparam,
em certa medida, a revisão dos critérios de justiça social ao admitir como
constitucionalmente conforme o pagamento de um preço pela prestação de serviços
garantidores de direitos sociais por parte daqueles que revelem capacidade económica.

Nem sempre, porém, o Tribunal Constitucional abordou o problema das políticas públicas
em termos jurídico-constitucionalmente aceitáveis. Para darmos um exemplo basta referir
os acórdãos sobre a política pública de ensino concretamente incidentes sobre o ensino
de religião e moral católicas nas escolas superiores de educação e nos centros integrados
de formação de professores das universidades (Acs. Nº 174/93). Além de sustentar teses
jurídico-dogmáticas manifestamente insustentáveis (como a da exigência de lei de bases
quanto a regimes jurídicos dela carecidos apenas quando se trata de regimes inovatórios,
o que possibilitou a repristinação de normas corporativas inconstitucionais, o Tribunal
Constitucional radicalizou o multicontextualismo fazendo apelo a critérios sociológicos em
vez de recorrer aos princípios constitucionais (princípio de separação, princípio da
neutralidade, princípio de não identificação). A nosso ver, o Tribunal perdeu aqui uma boa
ocasião para recortar com profundidade as incidências destes princípios, que, note-se,
não tinham de conduzir a um wall of separation entre o Estado e as Igrejas, mas sim a um
recorte material da neutralidade confessional do Estado e da neutralidade política das
Igrejas e Confissões Religiosas. Acresce que, em termos de políticas públicas, teria sido
importante saber como é que um “direito de liberdade” é camufladamente transmutado em
direito a prestações. Mesmo assim, é com grande expectativa que aguardamos a revisão
da Concordata para sabermos se, também, aqui, o Tribunal Constitucional operou ma
verdadeira mutação constitucional através da interpretação.

§§4º
Saudações

É tempo de terminar, não sem antes, e em jeito conclusivo, registar o inestimável


contributo do Tribunal Constitucional para o enriquecimento do o direito constitucional
português. E o principal mérito da sua jurisprudência continua a ser o de levar a sério a
normatividade constitucional. A positivação da “lei superior” é um bem querer dos povos e
não uma criação de um corpo de juízes, qualquer que seja o seu título de legitimação
democrática. A normatividade das regras e princípios constitucionais positivamente
plasmados por “cidadãos” e “povos” através de esquemas democraticamente aceites
continua a ser o melhor meio para distinguirmos uma Constituição de uma Bíblia e
separar os mandados constitucionais dos mandamentos divinos. A Constituição não é,
nem deve ser, uma Bíblia; uma Bíblia não é, nem deve ser, uma Constituição. As
sucessivas gerações de juízes assim o têm entendido. O Estado de direito democrático-
constitucional português seria certamente outro – e talvez pior – se não possuísse esta
Justiça Constitucional.
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030102.html

acess. 3 fev. 2008.

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