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RESUMO:
O presente trabalho visa a refletir sobre a obra do autor e compositor pelotense Vitor Ramil no
sentido de demonstrar que o autor traduz o lugar, fazendo seus personagens literários andarem
pelo espaço público e criando uma música que fale dessas coisas e desses espaços. Há em sua
trajetória um encontro da música, da poética, da estética e da escrita que busca aproximar e criar
zonas de contato, estabelecendo diálogos, entre Argentina, Uruguai e Sul do Brasil. Pode-se
entender o que Ramil faz como uma memória latino-americana reconstruída, já que ele retraduz
a cidade conferindo-lhe elementos regionais, retraduz a música regional mixando elementos
urbanos, fazendo uma música que não se encerra, que fala muito do local e do regional, mas que
também pode ser nacional, latino-americana.
ABSTRACT:
This paper aims to reflect on the work by Vitor Ramil, an author and composer from Pelotas
Vitor Ramil. The purpose is to demonstrate that he tries to translate the city, making his literary
characters walk beyond public space and creating a song that speaks of this place and its things.
There is kind of a meeting among music, poetry, aesthetics and writing that seeks to create
contact areas and establish dialogues between Argentina, Uruguay and southern Brazil. One can
understand what Ramil does as a Latin American memory rebuilt, since he retranslates the city
giving it regional elements, retranslates regional music mixing urban elements, making a song
that does not have an end in itself, but which speaks of the place and the regional, but which can
also be national, Latin American.
INTRODUÇÃO
(FRANCO, 1998, p. 150), em meio a esse tempo volátil no qual estamos inseridos.
Nessa inserção num amontoado de “incessantes transformações”, o sujeito se “desnuda”
ao revelar experiências, modos de proceder e arquitetar as coisas e encontrar nestas um
jeito de expor-se sobre o “momento presente” (FRANCO, 1998, p. 150).
Falar de alegoria remete a Walter Benjamin (1985; 1987; 1997), que pela figura
do flâneur produz sentido para as ruínas da cidade contemporânea. Além disso,
Benjamin descontruía a ideia de uma tradição fértil e apontava para um momento social
em que os indivíduos perderiam a “possibilidade de deixar marcas pessoais” ou 100
“rastros” num movimento de “perda da individualidade” em meio às massas, multidões,
metrópoles (FRANCO, 1998, p. 151).
Destaca-se, assim, uma complexidade de autor e de narrador no contexto
contemporâneo de sujeitos cada vez mais divisíveis, de culturas ainda mais híbridas do
que antes, de possibilidades múltiplas, e de versões infinitas para a identidade de um
lugar e de um tempo. Nesse contexto, surgem também as manifestações culturais de
diferentes grupos, os quais tomam para si o papel de “historiadores de si mesmos”
(NORA, 1993, p.17), o que se reflete no intenso movimento de busca memorial
identificado por Joel Candau (2011) pelo termo mnemotropismo, dinâmica que
caracteriza as sociedades ocidentais contemporâneas.
A partir de uma perspectiva de sujeitos e culturas híbridas e de um movimento
de resgate e de reflexão das identidades nesse contexto, faz-se um estudo da obra
literária do escritor brasileiro e gaúcho Vitor Ramil – os livros Satolep e Pequod – e da
obra musical – os discos Tango (1987), Ramilonga (1997) e Délibáb (2014).
Consideram-se também o livro A Estética do Frio e o documentário A Linha Fria do
Horizonte, nos quais o artista reflete sobre sua produção artística e permite ao seu leitor
um panorama das questões que englobam sua arte, seu jeito de produzir.
Parte-se da ideia de produção de sentido a partir do lugar teorizada por Walter
Benjamin, autor que destaca uma literatura inquietante sobre a cidade, ou seja, aquela
que considera a multidão em seus textos, em oposição às fisiologias1 (BEJAMIN,
1985). O autor também fala da figura do flâneur, aquele indivíduo que percorre a
cidade, que toma a posição de detetive do lugar, buscando deslocar-se em meio à massa
(BENJAMIN, 1985).
1
O termo ‘fisiologia’ refere-se a um tipo de texto isento de sátira, a qual é responsável por mostrar as
ruínas por detrás da cidade vista, os problemas de uma metrópole urbana (BENJAMIN, 1985).
A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS
KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de
dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
Pode-se definir o olhar de Ramil como o descrito por Silva: percorrer, ver,
escrever. A partir desse movimento, o artista cria um jeito de fazer arte que se distancia
do tradicional, que lê a cidade, o lugar, a região e, a partir da leitura, cria uma escrita
que tenta dar conta do que vê, do que sente ao andar, ao contrapor sua identidade
múltipla e contemporânea com coisas já vistas, feitas – às quais se denominam
tradicionais, canônicas. Esse movimento que se entende ser o de Ramil é um
movimento que cria sentido para o lugar, uma arte que se constitui a partir da memória e
que busca diluir fronteiras – locais, regionais, nacionais.
Ramil define, então, um estética do frio ligada a uma imagem que pudesse
expressar o jeito de ser da gente do Sul, a qual relaciona-se ao Pampa gaúcho: “[...] o
pampa pode ocupar uma área pequena do território do Rio Grande do Sul, pode, a rigor,
nem existir, mas é um vasto fundo na nossa paisagem interior” (RAMIL, 2004, p. 19).
Além dessa imagem, Ramil define a milonga como a música que caracteriza sua estética
do frio: “[...] assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul,
Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil” (RAMIL, 2004, p. 22).
Assim, com as questões norteadoras de seu pensamento enquanto artista, Vitor
Ramil trabalha a ideia de unidade em sua obra, no sentido de falar de uma identidade
gaúcha, regional e nacional ao mesmo tempo em toda a sua produção artística. Partindo-
A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS
KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de
dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
Frio. Além disso, Selbor viveu em “lugares ao sol” (RAMIL, 2008, p. 10), mas precisou
retornar para sua cidade natal quando do seu aniversário de trinta anos, porque de
alguma forma precisava das estações do Sul, estações estas marcadas pelo frio. Em
Satolep, elas são marcadas pela umidade e pelo frio.
A personagem Selbor, ao se instalar definitivamente na cidade de Satolep,
também está ali movido pelo sentimento de que as estações frias sim é que eram suas
estações, já que abandona o Norte (para onde viajara) movido pelo sentimento
inexplicável de que nada lá era seu. E, ao voltar, procura seguir seu intento: rever as 104
coisas geometrizadas pelo frio, aquelas todas que ele ainda trazia na lembrança e torná-
las ainda mais presentes, mais vivas em seu corpo.
[...] Já vi um anoitecer límpido de verão na praia do Laranjal. Céu
azul-marinho, lua cheia, branca e luminosa junto à Lagoa dos Patos.
[...] Vi também o anoitecer de outono e o de primavera. Mas é um
anoitecer de inverno como o da noite em que iniciei este relato que
simboliza o anoitecer em Satolep. A luminosidade caía à medida que o
bonde avançava. A névoa que eu vira rasteira pelos campos começava
a emanar do fundo das ruas, por todos os lados, simultaneamente
(RAMIL, 2008, p. 28).
Ramil inicia o relato em Satolep falando de uma inadequação corpo/lugar por
parte de Selbor quando este não consegue mais permanecer nos lugares perto ao sol e
retorna em busca do reencontro com as estações do Sul, aquelas do frio. E quando
Selbor define o anoitecer de inverno como o anoitecer que simboliza Satolep, ele replica
o que Ramil afirma em seu ensaio: o frio diferencia o Sul do restante e de todo
brasileiro que não mora aqui.
Ao percorrer os caminhos de pedra no percurso por Satolep, Selbor cria um
registro, uma “série documental sobre a cidade, fotos acompanhadas de textos; [...] uma
espécie de diário de viagem [...]” (RAMIL, 2008, p. 214). É, pois, a milonga a música
que intermedia o caminho de Selbor:
[...] melancólica e pura... [...] amiga dos silêncios e dos vazios;
profunda, clara, concisa; [...] Que outra, se não essa música de
nuanças, intensa e extensa, poderia conciliar em uma só expressão a
vastidão monocromática e campo e céu e o detalhismo sofisticado da
arquitetura de Satolep?’ (RAMIL, 2008, p. 84).
Assim, Pequod é o olhar de um menino sobre o lugar e a relação deste com o
outro – o país vizinho Uruguai. Satolep é a escolha de um sujeito em viver num lugar
frio em oposição a outros – os lugares ao sol, ao Norte. Há em ambas as narrativas uma
descrição de lugar a partir das memórias e das percepções de seus personagens, sendo
esse lugar sempre o mais próximo possível de um Sul frio.
passageiro / perdido / marginal [...]” (Passageiro, In: RAMIL, 1987); “todo tempo
fiquei pensando como não / tenho nada a ver com isso / eu jogado no meu canto fico
divagando / [...]” (Nada a ver, In: RAMIL, 1987); “[...] se um dia qualquer / tudo pulsar
num imenso vazio / coisas saindo do nada / indo pro nada / [...] é sinal que valeu! [...]”
(Loucos de cara, In: RAMIL, 1987). Há, então, em Tango, um arrolamento claro do
sujeito lírico com seu espaço íntimo e também com o físico/geográfico.
Em Ramilonga é possível pensar novamente na questão da identidade de um eu
que perpassa por dois ambientes físicos: o urbano e o rural – sendo este perceptível pela 106
figura do Pampa gaúcho. Assim, duas das onze canções, Ramilonga e Milonga de Sete
Cidades, têm relação com o espaço da cidade: a primeira sobre a perspectiva dos
espaços públicos de uma única cidade – Porto Alegre – e suas características – um tarde
fria e chuvosa, um chimarrão na mão e as lembranças dos bairros, da Praça XV e sua
multidão, as ruas molhadas pela chuva e o Guaíba deserto (RAMIL, 1997); a outra
sobre as sensações vividas em sete cidades, as quais também podem representar o
processo de constituição de uma milonga: “[...] Fiz a milonga em sete cidades / Rigor,
Profundidade, Clareza / Em Concisão, Pureza, Leveza / E Melancolia / A voz de um
milongueiro não morre / Não vai embora em nuvem que passa / Sete cidades frias são
sua morada” (Milonga de Sete Cidades, In: RAMIL, 1997).
Dentre as demais canções, oito delas – Indo ao Pampa, Noite de São João,
Causo Farrapo, Gaudério, Deixando o pago, No manantial, Memória dos bardos das
Ramadas, e Último pedido – estão diretamente ligadas às questões que perpassam o
Pampa, o gaúcho do interior, conforme os exemplos que seguem: “a frente fria Pampa
adentro e através”, “a mata nativa” (Indo ao Pampa, In: RAMIL, 1997); a memória e a
tradição oral evocadas na canção Causo Farrapo – “[...] se aprochegue pra escutar / [...]
mais um causo eu vou contar” (RAMIL, 1997); “poncho e laço na garupa [...] dum
zaino negro gordacho” (Gaudério, In: RAMIL, 1997); “o pampa deserto” e “o céu
fincado no chão” (Deixando o pago, In: RAMIL, 1997). Não só as características das
coisas que pertencem ao universo interiorano, pampeano, mas também a linguagem
escolhida pela artista em suas composições destaca esse lugar; exemplos disso é o verbo
“aprochegar-se”, e as expressões “peleia das braba” (Causo Farrapo, In: RAMIL,
1997), “guacho”, “bolicho de campanha” (Gaudério, In: RAMIL, 1997), “baguala” (No
manantial, In: RAMIL, 1997). Ainda, a preocupação com a morte e as vontades que
milonga [...] uma harmonia que vem do mundo anglo-saxão e que vem
muito do mundo da bossa nova e do samba [...] Vitor é mais brasileiro
do que crê; ao mesmo tempo é muito menos brasileiro do que as
pessoas pensam que é ser brasileiro quando na verdade ser brasileiro é
muito complexo (Jorge Drexler – Uruguai, In: A LINHA FRIA DO
HORIZONTE, 2014).
Para o próprio autor, há em sua obra uma “[...] busca maior pela platinidade do
que pela brasilidade; busca da correspondência entre cidade e paisagem e o que eu
fazia” (Ramil, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014). Além disso, a temática do
frio está presente, pois para ele “[...] a gente no Sul aprende a descobrir a alegria do 109
frio” (Ramil, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014).
A escrita do lugar seria em Ramil também, além de uma imagem orientada pela
sensação climática, a tradução do sentimento coletivo experienciado por tantos artistas,
conforme os depoimentos em A Linha Fria do Horizonte. Mas também a tradução das
sensações vividas pelos admiradores da obra desses artistas: “[...] o Vitor de certa forma
redigiu, formulou [...] algo que, [...] como inconsciente coletivo de um lugar e de um
momento, é muito iluminador [...]; de certa forma ele traduziu um sentimento que é de
muita gente” (Arthur de Faria).
Nessa justificativa de que “[...] o clima marca as culturas” (Kevin Johansen –
Argentina, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014), e de que “[...] por trás de
todas as ideias [desses artistas] está a pergunta: como as coisas são vistas daqui?” (Dany
López – Uruguai), tem-se um texto que exprime as sensações vistas desse lugar, o qual
“[...] [é] mais importante do que a música” (Jorge Drexler, In: A LINHA FRIA DO
HORIZONTE, 2014).
Nesse contexto, a música escolhida para transmitir a mensagem que vem do frio
é a milonga, ritmo comum aos artistas integrantes do documentário produzido. A
identidade do Prata construída por diferentes artistas transita por temas comuns no texto
cantado e escrito:
[...] Do mundo inteiro, é no Brasil, no Sul, onde o mate é levado mais
a sério, porque é uma afirmação, é uma reafirmação de identidade. No
Uruguai, o mate tem estado em cima da mesa a vida toda. No Rio
Grande do Sul também, mas todos os uruguaios tomam o mate, mas só
o tomam os brasileiros do Sul. É curioso como se constrói a
identidade, e como é defendida [...] Difícil pensar no rock primigênio
sem álcool, ou no reggae sem cannabis, e na milonga sem o churrasco
e o mate. Tudo tem o seu próprio psicotrópico associado. E não é por
acaso uma paisagem coincidir com o território da milonga, como o
território ilex paraguariensis... Com o mate, uma paisagem, um tipo
de clima [...] (Jorge Drexler, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE,
2014).
Assim, tem-se uma paisagem, uma sensação climática, um estilo musical, zonas
de contato que permitem pensar uma estética do frio, que ao mesmo tempo situa o Rio
Grande do Sul na Região do Prata, e dentro do Brasil: “O Vitor nos aproxima do Brasil
com a milonga dele, pois não é um ritmo folclórico, mas soa como algo universal, com
caráter do Sul, mas não fechado” (Marcelo Delacroix, In: A LINHA FRIA DO
HORIZONTE, 2014).
uma literatura que cruza as fronteiras e avança para uma nova proposta do latino-
americano, despido da aura de ativismo político ou intelectual.
A ideia de unidade expressa por Ramil, em A Estética do Frio, é recorrente em
seu trabalho. Unidade não só no sentido de procurar defini-la dentro de cada uma de
suas obras, unidade entre ser e objeto, interferindo mutuamente na construção e
formação do outro, mas também unidade entre sua obra num todo, com ideias que se
vão costurando umas às outras, sendo elas aprimoradas com o passar do tempo,
buscando sempre o mais próximo possível da exatidão, palavra que define um jeito de 111
fazer arte próprio de um artista que pretende falar de si a partir do seu lugar.
Destaca-se uma forma de escrita e de fazer arte por parte de Vitor Ramil que
busca diluir fronteiras, buscando dialogar e criar zonas de contato. Sua obra busca
contemplar indivíduos que estão no Sul do Brasil, mas que são também brasileiros,
também platinos, além de gaúchos. Sua forma de pensar o lugar está desligada de
qualquer ideologia militante e pretende falar do seu lugar marginal, através de uma
escrita, uma arte não tradicional e não canônica.
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http://vitorramil.com.br/discos/delibab.htm#01> Acesso em 7 abr. 2013