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Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de

dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

o Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI


FRONTEIRAS

KLUG, Marlise Buchweitz


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da
Universidade Federal de Pelotas - UFPel
Bolsista CAPES
marlisebuchweitz@gmail.com
98
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi
Professora Associada da Universidade Federal de Pelotas
leticiamazzucchi@gmail.com

RESUMO:
O presente trabalho visa a refletir sobre a obra do autor e compositor pelotense Vitor Ramil no
sentido de demonstrar que o autor traduz o lugar, fazendo seus personagens literários andarem
pelo espaço público e criando uma música que fale dessas coisas e desses espaços. Há em sua
trajetória um encontro da música, da poética, da estética e da escrita que busca aproximar e criar
zonas de contato, estabelecendo diálogos, entre Argentina, Uruguai e Sul do Brasil. Pode-se
entender o que Ramil faz como uma memória latino-americana reconstruída, já que ele retraduz
a cidade conferindo-lhe elementos regionais, retraduz a música regional mixando elementos
urbanos, fazendo uma música que não se encerra, que fala muito do local e do regional, mas que
também pode ser nacional, latino-americana.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura latino-americana. Memória. Identidade.

ABSTRACT:
This paper aims to reflect on the work by Vitor Ramil, an author and composer from Pelotas
Vitor Ramil. The purpose is to demonstrate that he tries to translate the city, making his literary
characters walk beyond public space and creating a song that speaks of this place and its things.
There is kind of a meeting among music, poetry, aesthetics and writing that seeks to create
contact areas and establish dialogues between Argentina, Uruguay and southern Brazil. One can
understand what Ramil does as a Latin American memory rebuilt, since he retranslates the city
giving it regional elements, retranslates regional music mixing urban elements, making a song
that does not have an end in itself, but which speaks of the place and the regional, but which can
also be national, Latin American.

KEYWORDS: Latin American Literature. Memory. Identity.

INTRODUÇÃO

Refletir sobre os modos de fazer Literatura no mundo contemporâneo remete a


pensar o lugar comum do sujeito e seu papel na sociedade em que vivemos. Pensar a
identidade na contemporaneidade é remeter aos teóricos pós-colonialistas que destacam

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS


KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de
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a importância da questão da enunciação, do lugar de onde se fala. Para Edward Said


(1995), a leitura não pode mais ser focada apenas na representação, mas há que se fazer
uma análise da relação entre narrador e texto, como e a partir de que ‘locus’ este foi
concebido (SAID, 1995, p. 63).
O sujeito contemporâneo é, a partir dessa perspectiva, resultado do fenômeno
moderno de divisão, podendo ser compreendido em múltiplas partes e não apenas como
ser indivisível. Entender a identidade nesse contexto é pensá-la como múltipla, e não
mais única, previsível. O indivíduo da atualidade possui uma identidade multíplice, pois 99
se insere em diferentes contextos, mas que também pode estar fragmentada, e pode
sugerir uma necessidade de um encontro consigo mesmo. Stuart Hall nos fala de uma
‘homogeneização cultural’ como resultado do consumismo global, em que diferenças e
distinções culturais ficam reduzidas (HALL, 2006, p. 75-76). A fragmentação estaria,
então, na questão da percepção de si mesmo em relação à multiplicidade cultural que
rodeia o indivíduo.
A literatura contemporânea associa-se assim às perspectivas de identidades pós-
coloniais pelas quais se percebe um indivíduo que fala do seu lugar, estando este
geralmente à margem da tradição e do cânone. Para Bakhtin (2011) “[...] a literatura é
parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a
cultura de uma época” (p. 360), de tal modo que ela também pode ser entendida como
múltipla, pois a Literatura de um lugar não pode mais ser pensada a partir de
características específicas, mas deve ser olhada num todo, buscando-se aproximações
entre autores, temáticas comuns.
É preciso também levar em consideração o fato de que o sujeito contemporâneo
está plenamente ciente da “singular hibridez das experiências históricas e culturais”, de
uma inserção em contextos até contraditórios, da transformação destas para além das
“fronteiras nacionais” (SAID, 1995, p. 46). Para o autor, as culturas não mais podem ser
consideradas unitárias, monolíticas ou autônomas, mas completas perante os elementos
“estrangeiros” que abarcam (SAID, 1995, p. 46).
No Brasil, Renato Franco destaca a presença da alegoria no romance pós-64
como “artifício literário” em meio ao contexto histórico e político e como preponderante
“[...] no romance dos anos 70 graças ao processo de modernização que afetava então o
capitalismo no Brasil” (FRANCO, 1998, p. 149). Além disso, Franco relaciona o
romance moderno com o fluxo histórico como uma “consciência aguda do tempo”

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(FRANCO, 1998, p. 150), em meio a esse tempo volátil no qual estamos inseridos.
Nessa inserção num amontoado de “incessantes transformações”, o sujeito se “desnuda”
ao revelar experiências, modos de proceder e arquitetar as coisas e encontrar nestas um
jeito de expor-se sobre o “momento presente” (FRANCO, 1998, p. 150).
Falar de alegoria remete a Walter Benjamin (1985; 1987; 1997), que pela figura
do flâneur produz sentido para as ruínas da cidade contemporânea. Além disso,
Benjamin descontruía a ideia de uma tradição fértil e apontava para um momento social
em que os indivíduos perderiam a “possibilidade de deixar marcas pessoais” ou 100
“rastros” num movimento de “perda da individualidade” em meio às massas, multidões,
metrópoles (FRANCO, 1998, p. 151).
Destaca-se, assim, uma complexidade de autor e de narrador no contexto
contemporâneo de sujeitos cada vez mais divisíveis, de culturas ainda mais híbridas do
que antes, de possibilidades múltiplas, e de versões infinitas para a identidade de um
lugar e de um tempo. Nesse contexto, surgem também as manifestações culturais de
diferentes grupos, os quais tomam para si o papel de “historiadores de si mesmos”
(NORA, 1993, p.17), o que se reflete no intenso movimento de busca memorial
identificado por Joel Candau (2011) pelo termo mnemotropismo, dinâmica que
caracteriza as sociedades ocidentais contemporâneas.
A partir de uma perspectiva de sujeitos e culturas híbridas e de um movimento
de resgate e de reflexão das identidades nesse contexto, faz-se um estudo da obra
literária do escritor brasileiro e gaúcho Vitor Ramil – os livros Satolep e Pequod – e da
obra musical – os discos Tango (1987), Ramilonga (1997) e Délibáb (2014).
Consideram-se também o livro A Estética do Frio e o documentário A Linha Fria do
Horizonte, nos quais o artista reflete sobre sua produção artística e permite ao seu leitor
um panorama das questões que englobam sua arte, seu jeito de produzir.
Parte-se da ideia de produção de sentido a partir do lugar teorizada por Walter
Benjamin, autor que destaca uma literatura inquietante sobre a cidade, ou seja, aquela
que considera a multidão em seus textos, em oposição às fisiologias1 (BEJAMIN,
1985). O autor também fala da figura do flâneur, aquele indivíduo que percorre a
cidade, que toma a posição de detetive do lugar, buscando deslocar-se em meio à massa
(BENJAMIN, 1985).

1
O termo ‘fisiologia’ refere-se a um tipo de texto isento de sátira, a qual é responsável por mostrar as
ruínas por detrás da cidade vista, os problemas de uma metrópole urbana (BENJAMIN, 1985).
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Assim, a partir dessas ideias norteadoras, e do olhar de Benjamin sobre o espaço


urbano, busca-se refletir sobre a produção de sentido a partir do lugar na escrita de Vitor
Ramil. Em Benjamin observa-se um fascínio pela complexidade humana e pela
descontinuidade na movimentação das grandes cidades; “[...] [ele] vai propor caminhos
para a recuperação dos sentidos no espaço urbano” (ABREU, 2012, p. 23-24).
Pensa-se o percurso de composição da obra em Ramil como aquele de um
etnógrafo que sai a campo fazendo três movimentos: andar, ver, escrever (SILVA, 2009,
p. 174), sendo a cidade conhecida a partir do percurso que o indivíduo nela realiza. 101
“[Esta] se oferece como um quadro no museu, para cuja contemplação adequada ele
busca, com seus passos que tateiam o chão, o lugar ideal, o ângulo perfeito” (SILVA,
2009, p. 174). Ainda,
[...] se o olhar é a captação de instantes, coisas, pessoas e paisagens,
ele não é um registro (como uma fotografia) e sim um travelling, a
melhor palavra para indicar seu sentido porque o recupera no
deslocamento. Travelling, travel. Viajar [...] O olhar vê onde o andar
lhe leva [...] (SILVA, 2009, p. 174-175).

Pode-se definir o olhar de Ramil como o descrito por Silva: percorrer, ver,
escrever. A partir desse movimento, o artista cria um jeito de fazer arte que se distancia
do tradicional, que lê a cidade, o lugar, a região e, a partir da leitura, cria uma escrita
que tenta dar conta do que vê, do que sente ao andar, ao contrapor sua identidade
múltipla e contemporânea com coisas já vistas, feitas – às quais se denominam
tradicionais, canônicas. Esse movimento que se entende ser o de Ramil é um
movimento que cria sentido para o lugar, uma arte que se constitui a partir da memória e
que busca diluir fronteiras – locais, regionais, nacionais.

A ESTÉTICA DO FRIO E A OBRA LITERÁRIA


As narrativas em prosa de Ramil data, de 1995 a primeira – Pequod – e 2008 a
segunda – Satolep –, aqui analisadas. Entre estas, um ensaio sobre a obra, escrito no
final dos anos 1990 e início dos 2000, situa o leitor em relação às inquietações que
motivam o autor e compositor a escrever.
Essas inquietações têm relação com o lugar natal de Ramil, situado na Região
Sul do Brasil: paisagem climática diferente do restante do país. Também têm relação
com o deslocamento do autor para o Rio de Janeiro durante um mês de junho, quando
como “normais” as de um carnaval fora de época no Nordeste e como “anormais” as da
chegada de um inverno rigoroso no Sul:
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[...] [viu] o Rio Grande do Sul: campos cobertos de geada na luz


branca da manhã, crianças escrevendo com o dedo no gelo depositado
nos vidros dos carros, homens de poncho [...] andando de bicicleta,
águas congeladas, a expectativa de neve na serra, um chimarrão
fumegando [...] (RAMIL, 2004, p. 9-10).

As imagens logo remeteram a um desejo de estar não em Copacabana, mas em


Porto Alegre. E certa inquietação em relação à identidade começa a se fazer perceptível
pelo autor. Ao sentir-se um diferente no Brasil tropical e sentir o Rio Grande do Sul
como o lugar mais íntimo, Ramil busca definir um conceito próprio denominado 102
“estética do frio”. Essa conceituação compreenderia a paisagem cultural e climática de
um indivíduo que vive no sul do país.
Surge naquele junho em Copacabana um estranhamento por parte do autor em
relação ao seu lugar enquanto indivíduo e artista. Sua ida ao Rio de Janeiro tinha total
ligação com a divulgação da obra, mas a percepção da diferença fez-lhe buscar falar
mais de seu lugar, buscando entendê-lo. Já que seu lugar natal era mesmo diferente do
restante do país, já que todas as coisas relacionadas ao calor há nas outras regiões,
menos o frio:
[...] o frio é um grande diferencial entre nós e os “brasileiros”. E o
tamanho da diferença que ele representa vai além do fato de que em
nenhum lugar do Brasil sente-se tanto frio como no Sul. Por ser
emblema de um clima de estações bem definidas – e de nossas
próprias, íntimas estações; por determinar nossa cultura, nossos
hábitos, ou movimentar nossa economia; por estar identificado com a
nossa paisagem; por ambientar tanto o gaúcho existência-quase-
romanesca, como também o rio-grandense e tudo o que não lhe é
estranho; por isso tudo que o frio, independente de não ser
exclusivamente nosso, nos distingue das outras regiões do Brasil; [...]
simboliza o Rio Grande do Sul e é simbolizado por ele (RAMIL,
2004, p. 13-14).

Ramil define, então, um estética do frio ligada a uma imagem que pudesse
expressar o jeito de ser da gente do Sul, a qual relaciona-se ao Pampa gaúcho: “[...] o
pampa pode ocupar uma área pequena do território do Rio Grande do Sul, pode, a rigor,
nem existir, mas é um vasto fundo na nossa paisagem interior” (RAMIL, 2004, p. 19).
Além dessa imagem, Ramil define a milonga como a música que caracteriza sua estética
do frio: “[...] assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul,
Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil” (RAMIL, 2004, p. 22).
Assim, com as questões norteadoras de seu pensamento enquanto artista, Vitor
Ramil trabalha a ideia de unidade em sua obra, no sentido de falar de uma identidade
gaúcha, regional e nacional ao mesmo tempo em toda a sua produção artística. Partindo-
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se dessa premissa, busca-se ilustrar os pontos de convergência entre as prosas Pequod e


Satolep e as reflexões de A Estética do Frio.
No livro Pequod, publicado em 1995, a história se passa na época de infância do
personagem principal, um menino sem nome que vive sua infância na cidade de
Satolep. O pai é natural de Montevidéu, cidade para onde viajam quando da morte do
avô. Na ótica do menino, percebe-se a relação com a cidade e com o lugar no qual vive
através do relato de diferentes fatos relevantes em sua vida, e de sua formação como
indivíduo no meio em que se situa. Percebe-se também a relação do eu com outro, nesse 103
caso o país vizinho Uruguai, os hábitos diferentes, a língua distinta, numa relação
possível de proximidade expressa nas figuras de pai e filho.
Observa-se nesse primeiro texto ficcional de Ramil a relação do indivíduo
menino com o espaço. Além disso, há uma visita a Montevidéu, numa relação de
sentidos que faz parte da obra do autor: a escrita do pampa, a musicalidade latinoa-
americana, a aproximação com os países vizinhos na questão da música e do
pensamento sobre a escritura:
[...] o início da minha atividade de escritor coincide com os primeiros
passos da estética do frio. Minha primeira novela chama-se Pequod, e
seus cenários são Satolep, uma idealização da minha cidade, e
Montevidéu, capital do Uruguai, cidade bastante próxima e ainda mais
ao sul da América, onde meu pai nasceu. Trata-se de uma narrativa
longa feita de pequenas narrativas articuladas sob uma suposta forma
da memória. Transitando entre a precisão e a vaguidade, sua
elaboração deve muito a esse conjunto de ideias (RAMIL, 2004, p.
27).
As diferenças entre o eu e o outro também são debatidas na prosa Satolep,
através dos lugares geográficos Sul e Norte. A personagem principal Selbor, ao
desembarcar na cidade de Satolep e conversar com alguém local ouve:
[...] ‘Por vezes, os nossos compatriotas distantes perguntam,
envolvendo na indagação uma afirmativa: o Sul!... é estéril... Lá o
minuano cresta a inspiração, resfria a ebulição mental, criadora...
Daqui, de fugazes e ruidosos cenáculos, cujos ecos aparamos, também
interrogamos, dizendo: o Norte!... o calor é dissolvente; amolenta e
fatiga... E, nem uns nem outros temos razão bastante; somos
preliminarmente ignorantes das nossas coisas e pejorativamente
descuidosos de conhecê-las, para amá-las. Não estabelecemos uma
permuta intelectual, não confraternizamos, em suma’ (RAMIL, 2008,
p. 54).
Ao trazer para o debate dos personagens as questões que o inquietam enquanto
sujeito que pensa sobre o seu lugar, Ramil direciona também para a questão das
diferenças de sentimentos e percepções entre um e outro, para o não estabelecimento de
contatos, o que gera conflitos de identidade, tais quais os descritos em A Estética do
A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS
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Frio. Além disso, Selbor viveu em “lugares ao sol” (RAMIL, 2008, p. 10), mas precisou
retornar para sua cidade natal quando do seu aniversário de trinta anos, porque de
alguma forma precisava das estações do Sul, estações estas marcadas pelo frio. Em
Satolep, elas são marcadas pela umidade e pelo frio.
A personagem Selbor, ao se instalar definitivamente na cidade de Satolep,
também está ali movido pelo sentimento de que as estações frias sim é que eram suas
estações, já que abandona o Norte (para onde viajara) movido pelo sentimento
inexplicável de que nada lá era seu. E, ao voltar, procura seguir seu intento: rever as 104
coisas geometrizadas pelo frio, aquelas todas que ele ainda trazia na lembrança e torná-
las ainda mais presentes, mais vivas em seu corpo.
[...] Já vi um anoitecer límpido de verão na praia do Laranjal. Céu
azul-marinho, lua cheia, branca e luminosa junto à Lagoa dos Patos.
[...] Vi também o anoitecer de outono e o de primavera. Mas é um
anoitecer de inverno como o da noite em que iniciei este relato que
simboliza o anoitecer em Satolep. A luminosidade caía à medida que o
bonde avançava. A névoa que eu vira rasteira pelos campos começava
a emanar do fundo das ruas, por todos os lados, simultaneamente
(RAMIL, 2008, p. 28).
Ramil inicia o relato em Satolep falando de uma inadequação corpo/lugar por
parte de Selbor quando este não consegue mais permanecer nos lugares perto ao sol e
retorna em busca do reencontro com as estações do Sul, aquelas do frio. E quando
Selbor define o anoitecer de inverno como o anoitecer que simboliza Satolep, ele replica
o que Ramil afirma em seu ensaio: o frio diferencia o Sul do restante e de todo
brasileiro que não mora aqui.
Ao percorrer os caminhos de pedra no percurso por Satolep, Selbor cria um
registro, uma “série documental sobre a cidade, fotos acompanhadas de textos; [...] uma
espécie de diário de viagem [...]” (RAMIL, 2008, p. 214). É, pois, a milonga a música
que intermedia o caminho de Selbor:
[...] melancólica e pura... [...] amiga dos silêncios e dos vazios;
profunda, clara, concisa; [...] Que outra, se não essa música de
nuanças, intensa e extensa, poderia conciliar em uma só expressão a
vastidão monocromática e campo e céu e o detalhismo sofisticado da
arquitetura de Satolep?’ (RAMIL, 2008, p. 84).
Assim, Pequod é o olhar de um menino sobre o lugar e a relação deste com o
outro – o país vizinho Uruguai. Satolep é a escolha de um sujeito em viver num lugar
frio em oposição a outros – os lugares ao sol, ao Norte. Há em ambas as narrativas uma
descrição de lugar a partir das memórias e das percepções de seus personagens, sendo
esse lugar sempre o mais próximo possível de um Sul frio.

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OS DISCOS TANGO, RAMILONGA, DÉLIBÁB


Datados dos anos de 1987, 1997 e 2010, respectivamente, foram escolhidos os
discos Tango, Ramilonga e Délibáb para a análise da questão da memória em Vitor
Ramil, numa opção de escolha do terceiro disco a cada três produzidos. Esta escolha, do
terceiro, do sexto e do nono disco, deveu-se ao fato de cada um destes corresponder a
uma década diferente, motivo que promove uma reflexão sobre os diferentes momentos
do artista e uma curiosidade em relação à unidade por ele comentada e vislumbrada em 105
sua obra. Vale destacar que se busca compreender o sentido das canções enquanto
poesia a ser interpretada, não se fazendo relevante aqui a melodia escolhida para cada
letra, ou a composição musical de acordes.
Composto por sete canções, Tango nos dá a ver uma memória que pode ser
dividida em duas questões principais: memória do lugar em que se vive; memória
relacionada à identidade e à percepção de si em relação ao cotidiano das coisas vividas.
Neste sentido, as canções Sapatos em Copacabana, Joquim e Nino Rota no Sobrado
indicam uma relação do indivíduo com o lugar, enquanto as demais são reflexões do
sujeito a partir da memória das coisas vividas e sua relação identitária com as mesmas,
sem a presença do lugar físico. Mas, ainda que as canções citadas estejam ligadas a um
espaço, o sujeito que caminhará, escreverá e regressará os seus sapatos em Copacabana,
a biografia de Joquim e o percurso de um indivíduo pela Avenida Independência têm
ligação com a busca pessoal destes homens.
A memória do lugar está na descrição das coisas pertencentes a este. Em
Copacabana, o “maxixe”, “o mendigo”, “a história italiana”, “o polícia” (Sapatos em
Copacabana, In: RAMIL, 1987). A biografia de Joquim perpassa pela cidade: “Satolep
/ noite / no meio de uma guerra civil / o luar na janela não deixava a baronesa dormir
[...]” (Joquim, In: RAMIL, 1987). Nino Rota “[percorre] a Avenida Independência / os
travestis na esquina [fazem] sinais [...] / e [seus] sapatos pisam folhas de jornais” (Nino
Rota no Sobrado, In: RAMIL, 1987).
As questões de identidade, tão fortes nas letras das canções desse disco, são
recorrentes: “Sempre acordo com a luz do dia / [...] depois ando tonto pela casa / [...]
mais um dia quem sabe eu saio pra rua / mais um dia quem sabe eu vou pro trabalho
[...]” (Mais um dia, In: RAMIL, 1987); “[com vida escrevemos arte / sem ela ninguém
caminha]” (Virda, In: RAMIL, 1987); “Passos sem direção / eu ando só / [...] eu sou teu

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passageiro / perdido / marginal [...]” (Passageiro, In: RAMIL, 1987); “todo tempo
fiquei pensando como não / tenho nada a ver com isso / eu jogado no meu canto fico
divagando / [...]” (Nada a ver, In: RAMIL, 1987); “[...] se um dia qualquer / tudo pulsar
num imenso vazio / coisas saindo do nada / indo pro nada / [...] é sinal que valeu! [...]”
(Loucos de cara, In: RAMIL, 1987). Há, então, em Tango, um arrolamento claro do
sujeito lírico com seu espaço íntimo e também com o físico/geográfico.
Em Ramilonga é possível pensar novamente na questão da identidade de um eu
que perpassa por dois ambientes físicos: o urbano e o rural – sendo este perceptível pela 106
figura do Pampa gaúcho. Assim, duas das onze canções, Ramilonga e Milonga de Sete
Cidades, têm relação com o espaço da cidade: a primeira sobre a perspectiva dos
espaços públicos de uma única cidade – Porto Alegre – e suas características – um tarde
fria e chuvosa, um chimarrão na mão e as lembranças dos bairros, da Praça XV e sua
multidão, as ruas molhadas pela chuva e o Guaíba deserto (RAMIL, 1997); a outra
sobre as sensações vividas em sete cidades, as quais também podem representar o
processo de constituição de uma milonga: “[...] Fiz a milonga em sete cidades / Rigor,
Profundidade, Clareza / Em Concisão, Pureza, Leveza / E Melancolia / A voz de um
milongueiro não morre / Não vai embora em nuvem que passa / Sete cidades frias são
sua morada” (Milonga de Sete Cidades, In: RAMIL, 1997).
Dentre as demais canções, oito delas – Indo ao Pampa, Noite de São João,
Causo Farrapo, Gaudério, Deixando o pago, No manantial, Memória dos bardos das
Ramadas, e Último pedido – estão diretamente ligadas às questões que perpassam o
Pampa, o gaúcho do interior, conforme os exemplos que seguem: “a frente fria Pampa
adentro e através”, “a mata nativa” (Indo ao Pampa, In: RAMIL, 1997); a memória e a
tradição oral evocadas na canção Causo Farrapo – “[...] se aprochegue pra escutar / [...]
mais um causo eu vou contar” (RAMIL, 1997); “poncho e laço na garupa [...] dum
zaino negro gordacho” (Gaudério, In: RAMIL, 1997); “o pampa deserto” e “o céu
fincado no chão” (Deixando o pago, In: RAMIL, 1997). Não só as características das
coisas que pertencem ao universo interiorano, pampeano, mas também a linguagem
escolhida pela artista em suas composições destaca esse lugar; exemplos disso é o verbo
“aprochegar-se”, e as expressões “peleia das braba” (Causo Farrapo, In: RAMIL,
1997), “guacho”, “bolicho de campanha” (Gaudério, In: RAMIL, 1997), “baguala” (No
manantial, In: RAMIL, 1997). Ainda, a preocupação com a morte e as vontades que

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perpassam o sujeito pampeano expressas na canção Último pedido: “[...] me enterrem


num campo aberto / que eu sinta o vento pampeiro [...] (RAMIL, 1987).
Destaca-se a aproximação do gaúcho com os vizinhos do Uruguai expresso no
poema de Juca Ruivo, Memória dos Bardos das Ramadas, cuja letra dá conta da
“memória das guitarras castelhanas” e do “fascínio das histórias fronteiriças” (RAMIL,
1987). A diluição de uma fronteira nacional também se revela na canção Milonga, a
qual é um poema do folclore uruguaio, musicado pelo artista pelotense.
A aproximação com os países da Região do Prata também se percebe no disco 107
Délibáb, no qual Vitor Ramil musica poemas do gaúcho João da Cunha Vargas e
poemas do escritor argentino Jorge Luís Borges. Intercalando um poema de Vargas com
um de Borges, Ramil direciona as canções desse disco para duas temáticas. Uma delas é
a da memória, expressa por Borges, a qual permeia narrativas de sujeitos que viveram
em outras épocas e cujas histórias são lembradas através do tempo: “[...] albornoz pasa
silbando / una milonga entrerriana [...] pienso que le gustaría / saber que hoy anda su
historia / en una milonga, el tiempo / es olvido y es memoria” (Milonga de Albornoz, In:
RAMIL, 2010); “[...] hoy, caballeros, le canto / a la gente de color. / Marfil negro los
llamaban / los ingleses y holandeses / que aqui desembarcaron / al cabo de largos
meses. / [...] los ha llevado el tiempo / el tiempo que es olvido” (Milonga de Los
Morenos, In: RAMIL, 2010); “[...] velay, señores, la historia / de los hermanos iberra, /
hombres de amor y guerra [...]”(Milonga de Dos Hermanos, In: RAMIL, 2010). A outra
temática diz respeito às coisas comuns ao gaúcho pampeano, tais como o chimarrão
feito num “velho porongo crioulo” (Chimarrão, In: RAMIL, 2010), a tapera – “rancho
de barro caído” (Tapera, In: RAMIL, 2010) –, “a boleadeira e o laço cheio de talho e
pontaço” (Mango, In: RAMIL, 2010), o pampa deserto, a companheira do dia-a-dia, o
rincão querido – possível de ser lida nos versos de João da Cunha Vargas.
Desta forma, os discos mencionados perpassam questões caras à obra de Vitor
Ramil: identidade, gaúcho urbano e gaúcho pampeano, questões regionais comuns com
os países vizinhos, memória e esquecimento. A obra musical aqui analisada é uma arte
criada a partir da memória de lugares físicos, mas também da consolidação de uma
identidade híbrida que perpassa esses lugares, sejam eles urbanos ou pampeanos, os
quais compõem o espaço físico maior que é a Região Sul do Brasil.

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS


KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de
dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

SOBRE A LINHA FRIA DO HORIZONTE


O documentário, produzido a partir das discussões e reflexões de Vitor Ramil,
reúne artistas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina, buscando explorar
sobre a questão de uma música e de uma literatura que cruza as fronteiras e avança para
uma nova proposta do latino-americano, despido da aura de ativismo político ou
intelectual.
Apresenta, entre outros, impressões de Ramil sobre sua própria obra, além de
outros gaúchos como Marcelo Delacroix e Arthur de Faria, uruguaios, como Daniel 108
Drexler, Ana Prada e Jorge Drexler, e argentinos, tais como Kevin Johansen, Carlos
Moscardini e Tomi Lebrero. Todos eles destacam as influências de Ramil, além de
analisarem as convergências culturais da Região do Prata. Ana Prada (Uruguai) sugere
que há uma temática variada nesses lugares, mas com pontos em comum, sendo que a
influência da paisagem é algo determinante para o compositor desse local.
Ao ser questionado do porquê de uma produção à margem – no sentido de ser
longe da televisão, das gravadoras, e de ser do interior do Rio Grande do Sul – Ramil
destaca que vê seu Sul como centro de outra história, “o Rio Grande do Sul como
centro, como trânsito das culturas do Prata” (Vitor Ramil, 2014). Outro artista a
comentar sobre a busca dos pontos de encontro, Daniel Drexler (Uruguai, In: A LINHA
FRIA DO HORIZONTE, 2014) destaca que há muito observa Argentina dialogando
com Brasil, Uruguai com Argentina e Brasil, e que uma das vias de fazer esse encontro
de maneira mais rápida é através da cultura.
“O fato de estar no Sul, nos climas não quentes, impõe uma introspecção”
(Carlos Moscardini, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014). De tal modo que
diferentes artistas que produzem e falam a partir desse lugar situado na região do Prata –
quer seja Rio Grande do Sul, ou Argentina, ou Uruguai – possuem um texto entendido
por eles como semelhante devido à paisagem que os une.
Além disso, por mais que seja uma canção produzida no Sul e que fale das
coisas do Sul, não deixa de ser brasileira, nacional. Já que possui um tanto de regional,
mas também interferências urbanas de outros centros do Brasil, tais como do
tropicalismo, do samba, da bossa nova, enfim, a música de Ramil não pode ser
denominada gaúcha ou nativista:
[...] Vitor tem uma complexidade harmônica que não posso explicar
[...]; é um híbrido típico dessa região; uma mistura de coisas anglo-
saxãs com a milonga, com a construção de uma identidade a partir da

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS


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Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de
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milonga [...] uma harmonia que vem do mundo anglo-saxão e que vem
muito do mundo da bossa nova e do samba [...] Vitor é mais brasileiro
do que crê; ao mesmo tempo é muito menos brasileiro do que as
pessoas pensam que é ser brasileiro quando na verdade ser brasileiro é
muito complexo (Jorge Drexler – Uruguai, In: A LINHA FRIA DO
HORIZONTE, 2014).
Para o próprio autor, há em sua obra uma “[...] busca maior pela platinidade do
que pela brasilidade; busca da correspondência entre cidade e paisagem e o que eu
fazia” (Ramil, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014). Além disso, a temática do
frio está presente, pois para ele “[...] a gente no Sul aprende a descobrir a alegria do 109
frio” (Ramil, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014).
A escrita do lugar seria em Ramil também, além de uma imagem orientada pela
sensação climática, a tradução do sentimento coletivo experienciado por tantos artistas,
conforme os depoimentos em A Linha Fria do Horizonte. Mas também a tradução das
sensações vividas pelos admiradores da obra desses artistas: “[...] o Vitor de certa forma
redigiu, formulou [...] algo que, [...] como inconsciente coletivo de um lugar e de um
momento, é muito iluminador [...]; de certa forma ele traduziu um sentimento que é de
muita gente” (Arthur de Faria).
Nessa justificativa de que “[...] o clima marca as culturas” (Kevin Johansen –
Argentina, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014), e de que “[...] por trás de
todas as ideias [desses artistas] está a pergunta: como as coisas são vistas daqui?” (Dany
López – Uruguai), tem-se um texto que exprime as sensações vistas desse lugar, o qual
“[...] [é] mais importante do que a música” (Jorge Drexler, In: A LINHA FRIA DO
HORIZONTE, 2014).
Nesse contexto, a música escolhida para transmitir a mensagem que vem do frio
é a milonga, ritmo comum aos artistas integrantes do documentário produzido. A
identidade do Prata construída por diferentes artistas transita por temas comuns no texto
cantado e escrito:
[...] Do mundo inteiro, é no Brasil, no Sul, onde o mate é levado mais
a sério, porque é uma afirmação, é uma reafirmação de identidade. No
Uruguai, o mate tem estado em cima da mesa a vida toda. No Rio
Grande do Sul também, mas todos os uruguaios tomam o mate, mas só
o tomam os brasileiros do Sul. É curioso como se constrói a
identidade, e como é defendida [...] Difícil pensar no rock primigênio
sem álcool, ou no reggae sem cannabis, e na milonga sem o churrasco
e o mate. Tudo tem o seu próprio psicotrópico associado. E não é por
acaso uma paisagem coincidir com o território da milonga, como o
território ilex paraguariensis... Com o mate, uma paisagem, um tipo
de clima [...] (Jorge Drexler, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE,
2014).

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Assim, tem-se uma paisagem, uma sensação climática, um estilo musical, zonas
de contato que permitem pensar uma estética do frio, que ao mesmo tempo situa o Rio
Grande do Sul na Região do Prata, e dentro do Brasil: “O Vitor nos aproxima do Brasil
com a milonga dele, pois não é um ritmo folclórico, mas soa como algo universal, com
caráter do Sul, mas não fechado” (Marcelo Delacroix, In: A LINHA FRIA DO
HORIZONTE, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 110


Destaca-se que o texto A Estética do Frio e o documentário A Linha Fria do
Horizonte são reflexões do autor sobre a obra no sentido de elucidar seu leitor em
relação àquilo que produz, e ao seu modo de fazer arte. Uma sensação de não
pertencimento sentida por Ramil quando foi morar no Rio de Janeiro fez-lhe necessitar
criar uma estética que pudesse defini-lo enquanto indivíduo que vinha de um lugar frio,
mas que ainda assim era brasileiro e era diferente do estereótipo conhecido.
As sensações sobre o lugar são, então, temática constante em sua obra, tanto
literária quanto musical. As narrativas ficcionais de Pequod e de Satolep situam os
personagens numa cidade chamada Satolep, onde eles vivem diferentes situações. O
personagem do primeiro livro é um menino que tem contato com a cidade natal e
também com a cidade de Buenos Aires, para onde viaja com o pai, sendo a imagem da
chuva e da praia características desses lugares. Já em Satolep, o personagem principal é
um fotógrafo que vive diferentes sensações na cidade, mas as descrições da umidade, do
frio e do inverno, marcadas pela conversa com amigos em volta de um violão, são bem
presentes na narrativa.
Os discos Tango, Ramilonga e Délibáb apresentam um percurso artístico que vai
consolidando uma memória local, regional, nacional, latino-americana, perpassando por
questões do indivíduo que se situa no Sul e que busca encontrar sua identidade; pelo
sujeito que se percebe híbrido, que é parte de um lugar múltiplo no qual estão
congregados o gaúcho urbano, citadino, mas também o gaúcho pampeano, cujo modo
de viver se assemelha ao de seus irmãos fronteiriços.
E, o documentário A Linha Fria do Horizonte foi produzido a partir das
discussões e reflexões de Vitor Ramil sobre sua obra e reúne artistas do Rio Grande do
Sul, do Uruguai e da Argentina, buscando explorar sobre a questão de uma música e de

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS


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uma literatura que cruza as fronteiras e avança para uma nova proposta do latino-
americano, despido da aura de ativismo político ou intelectual.
A ideia de unidade expressa por Ramil, em A Estética do Frio, é recorrente em
seu trabalho. Unidade não só no sentido de procurar defini-la dentro de cada uma de
suas obras, unidade entre ser e objeto, interferindo mutuamente na construção e
formação do outro, mas também unidade entre sua obra num todo, com ideias que se
vão costurando umas às outras, sendo elas aprimoradas com o passar do tempo,
buscando sempre o mais próximo possível da exatidão, palavra que define um jeito de 111
fazer arte próprio de um artista que pretende falar de si a partir do seu lugar.
Destaca-se uma forma de escrita e de fazer arte por parte de Vitor Ramil que
busca diluir fronteiras, buscando dialogar e criar zonas de contato. Sua obra busca
contemplar indivíduos que estão no Sul do Brasil, mas que são também brasileiros,
também platinos, além de gaúchos. Sua forma de pensar o lugar está desligada de
qualquer ideologia militante e pretende falar do seu lugar marginal, através de uma
escrita, uma arte não tradicional e não canônica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Regina. Colecionando museus como ruínas: percursos e experiências de
memória no contexto de ações patrimoniais. In: Ilha – Revista de Antropologia, v. 14, n.
1, p. 17-35, jan./jun. 2012.
A LINHA FRIA DO HORIZONTE. Direção, roteiro e edição: Luciano Coelho. 1 dvd
(98 min), color. Produzido por: Linha Fria Filmes, 2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: ______.Walter Benjamin. São
Paulo: Ática, 1985. p. 30-43.
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64. São Paulo: Enesp, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2006.
RAMIL, Vitor. A Estética do Frio – Conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep,
2004.
______. Délibáb. Satolep Music, 2010. 1 CD (41m57s). Disponível em <
http://vitorramil.com.br/discos/delibab.htm#01> Acesso em 7 abr. 2013

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KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de
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______. Satolep. São Paulo: Cosac Naify, 2008.


______. Pequod. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
______. Ramilonga. Rio de Janeiro: estúdio CIA dos técnicos, 1997. 1 CD.
______. Tango. Porto Alegre: EMI-Odeon, 1987. 1 CD.
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995.
SILVA, Hélio. A situação etnográfica: andar e ver. In: Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 15, n. 32, p. 171-188, jul./dez. 2009.
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