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Universidade Federal de Santa Catarina

Direito
Teoria Política
Gabriel Garcia Rafaelli Rigoni – gabrielgarciarigoni@gmail.com

FICHAMENTO 22: KARL MARX

Em nenhum lugar da obra de Marx vemos qualquer manifestação sobre o


problema da tipologia das formas de governo – presente nos escritores políticos
que Bobbio nos mostra, de Platão a Hegel. A causa desta ausência é extrínseca:
embora inicialmente tivesse se proposto também a escrever uma “crítica a
política”, o que demonstra um interesse pela teoria política ao comentar trechos
de um livro de Hegel, Marx não produz nenhuma obra especialmente dedicada
ao problema Estado. Bobbio mostra que a teoria política em Marx precisa ser
extraída de trechos, em geral curtos, de obras de economia, história, política,
letras, etc. Engels sim o faz, mas abordando a formação histórica do Estado, não
sua organização política – tema central da teoria política clássica. A razão
intrínseca pela qual Marx e Engels (que até faz um livro) não se debruçam pelas
tipologias das formas de governo é sua conotação tipicamente negativa de
Estado. Isto deve-se justamente se compararmos ao seu antecessor Hegel em
que sua concepção é extremamente positiva, o fazendo antagônico a Marx.
Entre a relação de sociedade civil e Estado, a posição de Marx é antitética a de
Hegel. Este classifica o Estado como “racional em si mesmo, e por si mesmo”, é
o “deus terreno”, o sujeito da história universal; é a superação das contradições
que se revelam na sociedade civil. Marx pensa o contrário, onde o Estado não
passa do reflexo das contradições, não é superação, mas sim sua perpetuação.

Não só para Hegel o Estado representa um momento positivo: ora o fim


do Estado é ora a justiça (Platão), ora o bem comum (Aristóteles), a felicidade
dos súditos (Leibniz), a liberdade (Kant), a máxima expressão do etkos de um
povo (Hegel). O Estado normalmente é considera o escape da barbárie, da
guerra de todos contra todos. Grande parte da filosofia política é a glorificação
do Estado. Marx o vê como instrumento de dominação, tem a concepção que
chama de técnica para contrapor a ética proposta por autores antecessores,
principalmente Hegel.

Os elementos de concepção negativa do Estado para Marx são: pura e


simples superestrutura que reflete o estado das relações sociais determinadas
pela base econômica; a identificação do Estado como meio que serve a classe
dominante para manter o seu domínio, no qual o fim do Estado não é nobre,
como ajustiça, a liberdade ou o bem-estar, é puramente o interesse específico
de uma parcela da sociedade. É bem da classe dominante de quem comanda,
não o bem comum; o Estado se manifesta como forma corrompida.

Marx entende por superstição política qualquer concepção que valoriza o


Estado excessivamente, o classificando como “Deus térreo”, onde devemos nos
sacrificar por ele para manter em nome do interesse coletivo – que só Estado
oferece. A teoria do Estado para Marx representa o fim da superstição política –
algo que Maquiavel, assim como o alemão, classificou (o Estado) como pura e
simplesmente um instrumento de poder de uma classe sobre a outra. Bobbio
sintetiza em passagem célebre de Marx o que isto significa: “No sentido próprio,
o poder político é o poder de uma classe organizado para oprimir outra classe”
Manifesto do Partido Comunista, 1848.

Em uma concepção negativa de Estado o problema da diferenciação das


formas de governo perde sua relevância. Neste tipo de concepção o Estado é
sempre mau – qualquer que seja a forma de governo. O que importa para Marx
e Engels (e Lenin), é a relação real de domínio, entre classe dominante e
dominada (que refletem as relações sociais determinadas pela base econômica
e material, a qual independeria da vontade do indivíduo) qualquer que seja a
forma institucional adotada. Isto pois a forma institucional não altera
substancialmente a realidade da relação de domínio, que tem suas raízes na
base real da sociedade, ou seja, nas relações de produção. Do ponto de vista
das relações reais de domínio, não as aparentes, cada Estado é uma forma de
despotismo. Bobbio cita uma passagem de Marx, em que a identificação do
conceito de "república" com o de "despotismo" parece estranha. Na verdade,
república é o aspecto externo e o despotismo é relação real de domínio, que se
serve da forma institucional mais adequada.
Do texto em que retira a passagem supracitada, Bobbio alerta que Marx
identifica uma forma genuína de governo, distinta do Estado representativo — o
chamado “bonapartismo”. Contudo, não demonstra que a tese da irrelevância
das formas de governo é errônea. Bonapartismo foi descrito por Engels anos
mais tarde, reafirmando que o Estado é sempre o Estado da classe mais
dominante. Acrescenta que, excepcionalmente, quando as classes antagônicas
têm quase a mesma força, o poder estatal pode assumir função mediadora entre
as classes, adquirindo uma certa "autonomia". O bonapartismo é dividido no
primeiro e segundo império. O comentário de Engels fez se repensar o conceito
de tirano clássico como aquele que toma o poder num momento de graves
conflitos sociais, fazendo-se árbitro, por cima dos partidos em luta. Em um ensaio
de Marx, o tirano é também um instrumento da classe dominante, a qual, no
momento do perigo, renuncia ao próprio poder, exercido diretamente,
entregando-se nas mãos do “salvador” (figura do bonapartismo, lembrada por
vezes em comparação ao fascismo).

Em trecho que exemplifica a explicação acima, fica claro que com a


ascensão do ditador ao poder, a burguesia renuncia o poder político, se tona um
zero político – mas não renuncia do poder econômico proveniente da
propriedade privada, da família, da religião e da ordem sobre as classes
dominadas. Pode se dizer que em momentos de tensão social, a burguesia para
manter seu domínio de poder econômico abre mão momentaneamente do poder
político até que a ordem seja restabelecida. Mais do que uma nova forma de
governo, o bonapartismo é uma inversão de papéis no âmbito do Estado
burguês. A novidade do governo bonapartista é para Marx que o poder executivo
se torna mais importante que o legislativo (o que acontece no fascismo italiano).
No centro do poder do governo representativo é o parlamento, o Estado
bonapartista o executivo marginaliza o executivo como corpo de parasitas da
burocracia. Esta inversão de papéis não altera a lógica do Estado de classe,
exercendo poder despótico. Para destacar a irrelevância das formas de governo
para o alemão, Bobbio cita enxerto de Marx:

“A França parece assim ter escapado do despotismo de uma classe para


recair sob o despotismo de um indivíduo” (cap. VII).
Mudando a forma de governo, muda o modo como o poder é exercido,
não a substância do poder. O governo é sempre despótico, o Estado por
natureza é despótico. O despotismo que sempre foi uma forma de Estado
corrompido ganha significação geral em Marx, que demonstra a própria essência
do Estado.

Porém o que indica o domínio de uma classe sobre a outra na teoria


marxista não despotismo, como vimos anteriormente. A palavra utilizada é
ditadura. São habituais os termos “ditadura da burguesia” e “ditadura do
proletariado” para expressar o Estado da burguesia e do proletariado,
respectivamente. Ditadura do proletariado demonstra que a existência das
classes só está ligada a determinada fase do desenvolvimento histórico da
produção; a luta das classes leva necessariamente à ditadura do proletariado;
esta ditadura constitui apenas uma passagem para a fase de supressão de todas
as classes, a uma sociedade sem classes (comunismo). Lenin considera de
suma importância esta passagem marxista, onde todos os caminhos para a
passagem do capitalismo ao comunismo, que formam diversas variantes de
formas levam, indubitavelmente, a ditadura do proletariado. Reconhece que em
sua essência o Estado é sempre uma ditadura de classe - no primeiro caso, da
burguesia, no segundo, do proletariado. A relação é fundamentalmente de
domínio, e provém do sistema de produção e independe da forma de governo.
Esse desinteresse é confirmado pela filosofia da história de Marx, cujo critério de
evolução está baseado nas relações econômicas, das evoluções das relações
de produção, abordagem que se assemelha a de Montesquieu, Adam Ferguson,
Lewis Morgan e Engels. Este último apresenta uma linha de evolução da história
cuja presença do Estado é apenas uma fase intermediária entre a etapa pré
estatal e a fase pós-estatal que ainda virá.

As características atribuídas por Engels nas sociedades primitivas são as


mesmas que toda a tradição marxista atribuirá à sociedade sem Estado,
prometida pelo comunismo: a ausência de um poder coator e opressivo, a
inexistência de um aparelho administrativo, a substituição das leis pelos
costumes, liberdade e igualdade para todos. Para a superação desta fase
intermediária, Engels não vê da mesma forma que Vico e Hegel haviam
proposto. Engels separa em três partes a fase intermediária: o Estado escravista
e o Estado Feudal que se caracterizam não pela forma de governo, mas sim pela
sociedade que refletem, são as relações de produção que o Estado pretende
perpetuar; e por fim o Estado representativo moderno, instrumento de
exploração do trabalho assalariado por parte do capital – este podendo de fato
ser considerado uma forma de governo. Para Bobbio não é preciso reafirmar que
na teoria do Estado para Marx e Engels, as tipologias das formas de governo
perdem seu valor, embora fossem utilizados por séculos para dividir as fases da
história.

Mas então Marx, pelo menos, indica a melhor forma de governo para o
futuro Estado? Embora Marx e Engels fossem avaros a indicações a respeito do
Estado do futuro, se encontra uma ou outra sugestão nas páginas que Marx
escreveu sobre a experiência de governo da Comuna de Paris. Marx extraiu
desta experiencia que o Estado proletário (domínio organizado pelo proletariado)
representa uma democracia direta com participação dos cidadãos nos órgãos
detentores do poder, sem representantes eleitos como no Estado burguês.
Assim Rousseau havia dissertado sobre a idealização da democracia direta,
criticando os ingleses ao afirmar que se pensavam um povo livre, mas só na
escolha dos representantes, após isso voltavam a ser escravos. Neste sentindo,
tal qual Rousseau, Marx idealizou a democracia da Comuna de Paris. Para Marx
esta experiência acentua, sobretudo, o exercício direto dos vários graus de poder
estatal pelo povo, que participa das diferentes funções governamentais. As
inovações radicais que inovavam das formas de governo antecedentes para ele
eram: 1) a supressão do exército permanente, substituído pelo povo em armas;
2) eleições por sufrágio universal dos conselheiros municipais,
permanentemente responsáveis e demissíveis, e a transformação da Comuna
em local de trabalho conjunto executivo e legislativo; 3) retirada das atribuições
políticas da polícia, com sua transformação em instrumento responsável da
Comuna; 4) o mesmo com relação à administração pública, com a redução
drástica dos estipêndios (ao nível dos salários recebidos pelos operários); 5)
dissolução e desapropriação de todas as igrejas, como entidades proprietárias;
6) acesso gratuito do povo a todas as instituições de ensino; 7) eletividade dos
magistrados e juízes, que passam a ser responsáveis e demissíveis como todos
os outros funcionários públicos.
Este modelo da Comuna de Paris para Marx deveria ser espalhado para
as demais comunas francesas, de modo que o antigo governo centralizado fosse
substituído pelo autogoverno dos produtores. Os temas principais para se definir
“a melhor forma de governo” eram basicamente a supressão dos chamados
“corpos separados”, como o exército e a polícia; a transformação da
administração pública, da "burocracia", em corpos de agentes responsáveis e
demissíveis, a serviço do poder popular, a extensão do princípio da eletividade,
e portanto da representação, sempre revogável, a outras funções públicas, como
a de juiz; a obrigação de os representantes seguirem as instruções dos seus
eleitores, sob pena de revogação do mandato; e amplo processo de
descentralização, de modo a reduzir ao mínimo o poder central do Estado.

O que Marx propõe, portanto, não é a democracia direta à vera, onde


todos cidadãos participam pessoalmente de todo processo deliberativo, mas sim
a democracia eletiva, de representantes eleitos com mandatos limitados
passíveis de revogação caso não sigam as instruções dos eleitores. As
indicações marxistas se tornam celebres pois inspiram Lenin, que vê "a
substituição grandiosa de um tipo de instituição por instituições baseadas em
outros princípios": uma democracia "exercida integral e coerentemente", de
modo a transformar a "democracia burguesa" em "democracia proletária", e a
mudar o "Estado", entendido como força especial para a repressão de uma
classe determinada, em "algo que não é mais exatamente o Estado".

De fato, a melhor forma de governo para Marx é aquela que leva a rápida
extinção do Estado promovendo a transformação da sociedade estatal para a
não estatal. Esta transição atende pelo nome de ditadura do proletariado. A
transformação revolucionária da sociedade capitalista para a comunista é pela
ditadura do proletariado, exemplo que é simplificado por Engels ao nos mostrar
a Comuna de Paris.

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