Gabriel Garcia Rafaelli Rigoni – gabrielgarciarigoni@gmail.com
FICHAMENTO 20: HEGEL
Como anteriormente apresentado por Bobbio, as concepções das formas
de governo para Vico e Montesquieu – histórica e geográfica espacial, respectivamente – se convergem na abordagem de Hegel e fundam um sistema mais complexo e abrangente. Assim são confirmados estudos posteriores.
Hegel se inspira e bebe da fonte de Montesquieu a quem qualifica como
“autor da obra imortal”, tal como também segue ideias do geógrafo alemão Karl Ritter - autor de uma geografia "relacionada com a natureza e a história do homem", de 1817. O que em Montesquieu é apenas intuitivo, Hegel transforma em uma verdadeira teoria. Nas Lições de Filosofia da História, que representam a última fase da evolução do seu pensamento, Hegel elenca três fases da história do mundo caracterizadas por três tipos de base geográfica: o “altiplano” da Ásia Central origina as nações nômades; a planície fluvial do Oriente (região do Ganges, do Tigres e Eufrates até o Nilo) propicia o cultivo da agricultura; “zona costeira” estimula o comércio e se formam novos motivos de riqueza, e novas condições de progresso civil. Hegel ainda demonstra que o mar é um fator indeterminado pois ao mesmo tempo em que o próprio é infinito e não aceita demarcações de Estados, estimulando a exploração do infinito pelo homem, ao passo que a planície fluvial fixa o homem ao solo, sendo sua liberdade restringida por complexos e diversos vínculos. O mar é condicionante do comportamento humano. Como se percebe as três atividades econômicas distintas (pastoril, agrícola e comercial) que também representam as três fases do desenvolvimento da sociedade humana, correspondem também a três regiões distintas da Terra, o que demonstra que a evolução da sociedade não ocorre apenas em momentos sucessivos do tempo e no mesmo espaço, mas mediante um deslocamento de área em área. Hegel afirma que a mudança foi acompanhando o sol, do oriente para o ocidente, seguindo a direção da América, o “país do futuro”, segundo Hegel.
Bobbio faz então uma comparação entre Montesquieu e Hegel que,
segundo ele, ultrapassa a concepção geográfica e vai para a tipologia das formas de governo. Ambos lamentam que a Alemanha não constitui um Estado unificado e tal como Maquiavel, invocam um salvador (“Teseu”) que lhe dará unidade. Hegel atribui aos povos germânicos a fundação de todos os Estados monárquicos, do qual os alemães tivessem dado vida ao terceiro espírito do mundo (que surge após o despotismo oriental e a degeneração da república). Todavia, Bobbio aponta aqui uma diferença entre o pensamento dos dois autores. Hegel não concordava que o sistema de representação “não existia” nas selvas alemães, afirmando que os ingleses retiraram dos bosques alemães sua ideia de governo político, foi a parir da observação dos costumes germânicos. Mas a concordância com Montesquieu a respeito das três formas de governo e sua sucessão é de fato surpreendente – o despotismo (oriental), a república (antiga) e a monarquia (moderna).
Hegel permanece fiel a tipologia, e dedica-se inclusive a explicar o
conceito de "constituição", onde demonstra que a constituição é "a porta pela qual o momento abstrato do Estado penetra na vida e na realidade" e que a primeira determinação que assinala a passagem da ideia abstrata de Estado à sua forma concreta e histórica é "a diferença entre quem governa e quem é governado". Então Hegel estabelece a tipologia clássica – monarquia, democracia e aristocracia – com a ressalva claro que a monarquia poderia ser distinguida em monarquia e despotismo, algo já trabalhado por Montesquieu e como visto retomado por Hegel. Vale transcrever par melhor entendimento uma passagem decisiva para demonstrar:
“A história universal é o processo mediante o qual se dá a educação do
homem, que passa da fase desenfreada da vontade natural à universal, e à liberdade subjetiva. O Oriente sabia e sabe que um só é livre; o mundo grego e romano, que alguns são livres; o mundo germânico, que todos são livres. Por isso, a primeira forma que encontramos na história universal é o 'despotismo', a segunda é a 'democracia' e a 'aristocracia', a terceira é a 'monarquia'”. A interpretação destas formas históricas de constituições de governos, baseadas nos princípios da liberdade e da extensão (propriamente hegeliana), a tipologia de Hegel não se distingue da de Montesquieu, desde que se tome o cuidado de reunir democracia e aristocracia em uma única categoria - república. Não só Hegel utiliza o esquema de Montesquieu como o aplica de forma mais rígida e exemplar historicamente do que poderíamos encontrar no autor francês.
A explicação de Hegel é clara, as formas históricas de constituição, pelas
quais passam todos os Estados, e a própria história do mundo, são três - uma primeira forma de reino patriarcal, o despotismo; uma forma de Estado livre, embora de liberdade particularíssima caso da república (tanto aristocrática como democrática); e por fim uma forma de reino que não é patriarcal ou despótica, a monarquia, em que o rei governa uma sociedade articulada em esferas relativamente autônomas. Se analisarmos veremos que não é uma simples cópia da tipologia de Montesquieu, ela inova pois não é o mesmo critério usado para distinguir as três formas. Não se emprega mais o critério de “quem” e “como” governa, passando a um critério muito mais rico de potencialidades explicativas, porque leva em conta a estrutura da sociedade no seu conjunto.
As três formas de governo correspondem a três tipos de sociedade: a
primeira ainda é indiferenciada e inarticulada, em que as esferas particulares de que se compõe uma sociedade evoluída (ordens, classes ou grupos) não emergiram da indistinta unidade inicial (como acontece na família, um todo que ainda não se compõe de partes relativamente autônomas); na segunda, começam a surgir as esferas particulares, que contudo não chegam a ser completamente autônomas com relação à totalidade; na terceira, a unidade se recompõe mediante a articulação das suas diferentes partes - há unidade e diferenciação, e a unidade é perfeitamente compatível com a liberdade das partes – a tripartição de Montesquieu – que corresponde historicamente a monarquia moderna, isto é, a monarquia constitucional.
Subentende-se que a forma de governo é a estrutura política de uma
sociedade bem determinada, cada sociedade possui sua própria constituição - e não pode ter uma outra. Bobbio faz analogia a isto em que uma constituição não é um chapéu que se possa colocar à vontade em qualquer sociedade. Conclui que em um Estado de fato autônomo deve surgir uma constituição determinada que 'não dependa de escolha', mas seja 'a única adequada, em cada caso, ao espírito do povo.
Não é a única vez que Hegel se refere ao “espírito do povo”, o fará em
diversos livros, clara alusão crítica ao iluminismo e sua tentativa de uma constituição bela e perfeita que pode ser imposta aos povos mais diversos. Considera tal tentativa a indagar quem deve fazer uma constituição, seria o mesmo que perguntar quem deve fazer o espírito de um povo. Assim não se preocupa qual república é melhor e considera perda de tempo quem o faz. Lhe parece que a pergunta sobre qual a melhor constituição é formulada muitas vezes não só como se a teoria a esse respeito fosse uma simples matéria de convicção subjetiva, mas também como se a adoção efetiva de uma constituição pudesse surgir de uma simples discussão teórica - como se o tipo de constituição só dependesse de uma livre escolha, determinada pela reflexão. Bobbio ainda relembra ao leitor o primeiro capítulo (A discussão célebre) que o próprio Hegel retoma, afirmando que Heródoto narra tão ingenuamente quanto a discussão em si sobre qual a melhor forma de governo para se adotar na Pérsia.
Hegel trata de quatro formas as épocas universais: o mundo oriental, o
mundo helênico, o mundo romano e o mundo germânico. Bobbio chega a brincar dizendo que para Hegel, que procede por tríades o rompimento para quatro deve ter sido um ato de submissão forçada perante a reflexão e a evidência das coisas. Tal separação representa um rompimento com a sistemática tríplice, derivado da divisão do mundo antigo em grego e romano e a impossibilidade suprimir a era imperial desta última civilização.
Para quem só tinha a disposição a tríplice classificação clássica e de
Montesquieu, o império não podia ser interpretado se não como uma forma de principado, como outrora fizera Vico. Porém para Vico o havia feito pois havia interposto entre o principado da antiguidade e a monarquia contemporânea a "segunda barbárie". Finalizava primeiro corso da história universal com o império romano. A alternativa seria interpretá-lo como forma de despotismo, assim como Montesquieu. Nenhuma das interpretações era válida para Hegel, que considerava o movimento histórico contínuo, não cíclico, e para quem todas as coisas estavam rigorosamente associadas ao espaço geográfico e ao tempo histórico, de modo que não podiam repetir-se. Por isso a necessidade de incluir uma quarta era, que não pode ser reduzida a uma das três formas. No momento histórico do "mundo romano" Hegel inclui só a época imperial. E interpreta esse período como uma grande era de transição entre o fim do mundo antigo e o início do moderno. A era imperial não é uma forma de governo, por isso não faz parte das três formas clássicas. Na análise do mundo imperial da antiga Roma, Hegel acentua todos os aspectos que devem servir para pôr em dúvida a sua forma de Estado: primeiro a ausência de um elemento popular unitário, dada a variedade de povos que a compõe (universalidade abstrata para Hegel) ou de religião característica; e segundo a concessão de cidadania indiscriminada a todos os indivíduos, o que os mantém conectados apenas por relações de direito privado, inviabilizando a criação de um Estado. Tanto o universalismo abstrato como o particularismo individualista são características que contrastam com a realidade concreta e histórica de um Estado, e por conta disto, o império é um longo período de transição entre duas formas de Estado.
Para Hegel a primeira era consiste no despotismo, correspondente ao
mundo oriental. Deslocando-se do da região mais oriental em direção a mais ocidental, os Estados despóticos são três: o despotismo teocrático da China, a aristocracia teocrática da Índia, a monarquia teocrática da Pérsia. Nota-se que o caráter determinante para Hegel é a teocracia pois seu líder é o sumo sacerdote ou deus, a constituição do Estado e suas leis são, ao mesmo tempo, religião, como os preceitos religiosos ou morais. O qual chamara o mundo oriental de “era infantil da história” pois não produz progresso, é um reino de duração constante, sem alterações substanciais. Embora de várias mutações nenhuma apresenta progresso. É começo da história, o ingresso do homem nela, pois antes do surgimento disto Hegel classifica com pré-história. A história como processo real de desenvolvimento só tem início no Ocidente, em contraposição às estáticas civilizações orientais estáticas. Tanto para Hegel quanto para Montesquieu o homem selvagem a qual os iluministas se referem, seria o negro africano. Totalmente preconceituosos, ambos classificam o negro como "homem no estado bruto", "o homem natural na sua total barbárie e ausência de freios", etc.
Hegel como antes dito, se recusa a colocar o problema da melhor forma
de governo, mas de apenas entender o que é a razão e a tentativa de apresentar o Estado como coisa racional em si mesma. Não procura entender como Estado deve ser, mas sim de que modo deve ser reconhecido como universo ético. Porém isso não o impede que Hegel defenda uma determinada forma de Estado - a “monarquia constitucional”. Não é a melhor forma de governo propriamente dita, mas sim que corresponde melhor ao "espírito do tempo". Só neste sentido muito restrito se pode falar, com relação a Hegel, de uso prescritivo da teoria das formas de governo.
Bobbio então acompanho passo-a-passo a evolução do pensamento
hegeliano a respeito do tema. Começa com a tradicional classificação sêxtupla (três formas retas e três corrompidas) a qual na terminologia polibiana, nesta ordem: democracia, oclocracia, aristocracia, oligarquia, monarquia, despotismo (substituindo o termo tirania). Segundo ele, numa monarquia, há distribuição de poderes pelo monarca onde a liberdade civil está melhor protegida do que em qualquer outra constituição. No caso corrompido desta, o déspota exerce o poder diretamente, de modo arbitrário, e na qual os direitos dos indivíduos não estão garantidos. A monarquia, ao contrário, é a forma de governo em que o rei exerce o poder "indiretamente", através dos chamados corpos intermediários (Montesquieu). Seguindo cronologicamente, Bobbio apresenta que Hegel demonstra conotação positiva ao termo monarquia constitucional, e que a superioridade da monarquia constitucional não é absoluta mas relativa, e relativa a duas condições: é a forma mais apropriada aos grandes Estados (a democracia era preferível a estados pequenos); é a forma que melhor se ajusta aos povos que já desenvolveram o sistema da sociedade civil.
Quanto a primeira não é novidade que se prefira democracia em estados
pequenos, assim como já haviam apontado Montesquieu e Rousseau. Entretanto, já havia surgido uma democracia em Estado grande, nos EUA. Contudo, Hegel considerava esse país um Estado ainda em formação, uma "sociedade civil" que não havia atingido a perfeição do Estado. Uma terceira observação diz respeito à expressão “sociedade civil”, empregada aqui talvez pela primeira vez no sentido específico em que é usada na obra maior, onde o momento ético é dividido em três momentos parciais - da família, da “sociedade civil” e do Estado. Afirma, deste modo, que o momento dos EUA é uma esfera intermediária, portanto, entre a família e o Estado. Portanto onde a sociedade se vem articulando pela divisão em classes, é necessário que haja uma constituição diferente da que bastava em sociedades mais simples. Quer dizer: é necessária a forma de governo monárquica, no sentido específico que ela adquiriu em Montesquieu: governo indireto de um monarca, mediado pela presença ativa dos corpos intermediários. A fórmula por excelência do Estado moderno, a melhor alternativa de seu tempo era a monarquia constitucional.
Desta comparação da monarquia constitucional e das formas clássicas
Hegel extrai o critério fundamental no que distingue as várias constituições: o da maior ou menor complexidade da sociedade. As formas clássicas só se adaptam a sociedades simples; só a monarquia constitucional, que é a monarquia entendida no sentido em que Montesquieu a descreveu, contrapondo-a ao despotismo, se adapta a sociedades complexas. Bobbio apresenta um ultimo enxerto em que Hegel afirma que as formas clássicas se reduzem a momentos da monarquia constitucional. Isto leva o italiano a comentar sobre. Diz que esta afirmação leva a pensar na velha teoria do governo misto. A monarquia constitucional, a faz aparecer como reencarnação - ou forma moderna - do governo misto, entendido na sua essência: a combinação das três formas simples. Não é preciso acreditar que Hegel tenha pretendido, com essas palavras, identificar a monarquia constitucional com o governo misto (coisa que nem Montesquieu havia feito). De fato, Hegel comenta que as diferenças (se são muitos ou poucos os detentores do poder) são simplesmente quantitativas, sendo assim superficiais e não indicavam o conceito da coisa. Quer dizer com isso que o caráter distintivo da monarquia constitucional não reside no fato de que governem um, poucos e muitos, em diferentes níveis, porém no fato, bem mais substancial de que os poderes fundamentais do Estado estão divididos, e são exercidos por diversos órgãos.