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A Candeia debaixo do alqueire

A obra “A candeia debaixo do alqueire”, escrita pelo Padre Álvaro Calderón, é um minucioso
exame sobre a autoridade doutrinal do Magistério eclesiástico a partir do Concílio Vaticano II.
Seu inteiro teor originalmente foi publicado em outubro de 2005 em Autorité et réception du
Concile Vatican II. Études théologiques, Quatrième Symposium de Paris. No Brasil encontrou
sua tradução pelas mãos do filósofo tomista Carlos Nougué em 2009. Seu autor é um distinto
teólogo dentre os tradicionalistas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX). É conhecido,
principalmente, por ser um dos membros nomeados pelo Bispo Bernard Fellay para os debates
teológicos travados com a Santa Sé.

O presente estudo visa fazer uma crítica teológica às opiniões expostas pelo autor. Não
pretendo de forma alguma afrontar pessoalmente o excelente teólogo, embora o fim polêmico
deste estudo seja inevitável. Desejo confirmar a superioridade da hermenêutica da
continuidade, entendendo ser a única atitude que não contradiz a visão tradicional sobre a
permanência substancial da Igreja no transcurso dos séculos.

É preciso começar reconhecendo que a tese geral do autor é bem elaborada e que em parte há
muito fundamento. Não resume a questão numa suposta dicotomia entre “magistério infalível”
e “magistério falível”. Para o autor o Magistério tradicional deve ser recebido de forma integral
já que ao súdito não cabe julgar “o que se diz”, mas “quem o diz”, pois “se o ensina ou manda a
autoridade legítima, não lhe resta senão confiar em que o dito seja reto” (p. 72) 1.

Neste sentido o trecho que mais aprecio [vem ao encontro de recorrente dúvida entre
católicos] da obra é o que se encontra na primeira parte da Resposta do artigo segundo (Se o
Magistério conciliar pode ser posto em discussão):

“Não há praticamente diferença entre uma opinião duvidosa e a proposição de um problema;


basta saber que algo é opinião e não certeza, sem necessidade de lucubrar muito acerca do
grau de probabilidade que tenha; e, o que agora mais nos importa, tampouco tem demasiada
importância distinguir o magistério ex cathedra do magistério simplesmente autêntico que se
aproxima dele em certeza, porque, se aquele tem certeza infalível, este tem tanta, que o
teólogo não pode pôr em dúvida sua sentença. Por essa razão, os Papas e os Concílios nunca se
preocuparam em esclarecer se falam estritamente ex cathedra: se se pronunciam com
solenidade e firmeza para toda a Igreja, os fiéis podem ter absoluta certeza de que não há
erro algum que tenha importância em tal matéria.” (p. 114-115).2
1
“Embora acredite que esse critério não é absoluto, conquanto não contempla todos os casos, não deixa de
ser realmente interessante um católico tradicionalista dizer que se deve considerar primeiro a autoridade
para depois aceitar docilmente a instrução dada. De fato, Pio XII diz que devemos aceitar os ensinamentos
do Magistério ainda que não estejamos convencidos pelos argumentos dados (cf. Magnificate Dominum).
Mas, por outro lado, um suposto Papa que definisse algo frontalmente contrário à divina revelação obriga-
nos a julgar primeiro “o que se diz” para concluir daí que “quem disse” não é uma autoridade legítima, mas
usurpadora. Diz Santo Afonso de Ligório: “É fora de dúvida que se um papa fosse herege declarado,como
seria aquele que definisse publicamente uma doutrina oposta à lei divina, ele poderia, não ser deposto por
um concílio, mas ser declarado caído do pontificado na sua qualidade de herege.” (SANTO AFONSO DE
LIGÓRIO [Doutor da Igreja], Les Vérités de la Foi, in: Œuvres Complètes, tomo IX, 1769, p. 262; apud J.
S. DALY, A Igreja estaria desprotegida contra os hereges?, mar. 2013, trad. br. em: “wp.me/pw2MJ-1EW”.)

2
Obviamente não me afeiçôo por ser uma tese do autor, no lugar, é porque ele está tão somente
reproduzindo o que já diziam os teólogos mais brilhantes sobre o assunto. Billot, Franzelin, Mons.
Fenton, Dom Paul Nau, Thomas J. Harte, Hurte e Frei Boaventura são alguns nomes que dizem coisas
Se todos os tradicionalistas, dos diversos grupos, seguissem tais princípios, inclusive Mons.
Brunero, Roberto de Mattei e Pe. Daniel Pinheiro, com certeza estaríamos dando passo um à
frente na compreensão da autoridade do Concílio e do assentimento que devemos prestar a
ele.

Dividirei a crítica em três tópicos. O primeiro falará da alegada mentalidade liberal que o autor
imputa ao Magistério conciliar; o segundo demonstrará que sua tese traz consequências
gravíssimas para fé católica; o terceiro irá comprovar o entendimento errôneo do autor sobre a
infalibilidade passiva dos fiéis.

A autoridade sob a ótica liberal e Paulo VI

Como dito anteriormente, o Pe. Calderón rejeita a opinião amplamente sustentada pelos
tradicionalistas de que o Magistério ordinário pode ter erros graves e que assim cada fiel
poderá deixar de assentir no momento que concluir que há contradição entre o ensinamento
atual e o anterior, que goza de uma autoridade maior. Para ele só há uma maneira
verdadeiramente católica para recusar as heresias (sic!) do Concílio Vaticano II. É comprovar de
modo notório, antecedente e independente dos documentos, que o Concílio foi proposto
segundo uma mentalidade liberal e que em consequência disto suas doutrinas não participam
de nenhum grau de autoridade da Potestas Docendi. Neste caso o fiel deixaria de aceitar
doutrinas propostas não por um Magistério da Igreja, o tradicional, mas no lugar estaria se
defendendo de um magistério liberal, não isento de erros devido sua própria mentalidade. O
exercício liberal da autoridade difere-se do exercício da autoridade tradicional da Igreja.
Segundo o principal expoente dessa idéia modernista, Alfred Loisy: "as proposições que a Igreja
apresenta como dogmas revelados não são verdades que são caídas do céu e que a tradição
religiosa conserva na mesma forma em que apareceram pela primeira vez. O historiador vê
nelas a interpretação de acontecimentos religiosos devida a uma larga elaboração do
pensamento teológico» (L'Lvangile et l'Église, P 1902, 158). Como expõe São Pio X na encíclica
Pascendi Dominici Gregis para o modernista a autoridade “nasce da consciência religiosa, e por
esta razão fica dependente da mesma; e se faltar a essa dependência, torna-se tirânica.”
Segundo essa visão a autoridade da Igreja não veio de Cristo, mas é gerada pela “coletividade
das consciências”. Explica o teólogo Ludwig Ott que para os modernistas o fundamento do
dogma "é a experiência religiosa subjetiva, na qual Deus se revela ao homem (elemento
religioso). A experiência religiosa da coletividade é estruturada racionalmente pela ciência
teológica e expressada em fórmulas concretas (elemento intelectual). Tal formulação recebe
por fim a aprovação da autoridade eclesiástica sendo declarada como dogma (elemento
autoritativo)." (Manual de Teologia Dogmática, ano 1966, p. 31)

O Magistério estaria subordinado, desse modo, a opinião pública dos fiéis, representada
racionalmente pelos teólogos. É exercido, então, em nome do Povo de Deus e não em nome de
Cristo. Sua intenção ao invés de ser impor doutrinas, com sua autoridade assistida pelo Espírito
Santo, é regular e exprimir o entendimento geral para chegar à unidade, isto é, a autoridade
liberal é serva da unidade e não mais mestra da verdade. O Povo de Deus que é inspirado e
assistido pelo Espírito Santo e o Magistério não deve querer ser outra coisa senão veículo da

similares. Todos eles parecem afirmar que o Magistério ordinário é sempre seguro, não pode ter erro
grave e suas eventuais imprecisões estão nos detalhes.
expressão do acordo mútuo. Em suma: “a doutrina modernista subordina o magistério ao
sensus fidei, pondo a autoridade a serviço da unidade de expressão do sentir comum de toda a
comunidade eclesiástica.” Esse pensamento se opõe diretamente ao sentido de autoridade
católica, por isso o São Pio X no Decreto Lamentabili condena a seguinte proposição: "Na
definição de verdades, a Igreja discente e a docente colaboram de tal modo, que nada mais
resta à Igreja docente senão sancionar as conjecturas comuns da discente."

Segundo o Pe. Calderón o Papa Paulo VI manifestou de forma solene sua intenção de aplicar a
opinião liberal na autoridade doutrinal do Concílio Vaticano II na encíclica Ecclesiam suam
(1964), traduzida na intenção de dialogar com o mundo. Um dos trechos citados na obra é
esse: "Ide, pois, ensinar todos os povos" (Mt 28,19). Foi a última ordem de Cristo aos seus
Apóstolos. Estes, já com o simples nome de Apóstolos, definem a própria missão indeclinável.
A este interior impulso da caridade, que tende a fazer-se dom exterior, daremos o nome, hoje
comum, de diálogo. A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se
palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio.” No final do tópico mostraremos alguns outros. O
Pe. Calderón considera que o diálogo com o mundo é justamente a opinião modernista, já
condenada por São Pio X, que teve o êxito de subir à mente da maior autoridade da Igreja para
ser investida no Concílio Ecumênico. O golpe de mestre de Satanás, segundo a expressão de
Mons. Lefebvre (que nem sonhava com a tese do padre argentino).

Mas será mesmo que o Papa Paulo VI pensava assim? Creio que não. Há muita razão para
rejeitar a hipótese do padre. O Papa Paulo VI, depois de São Pio X, provavelmente, foi o Papa
que mais condenou a visão liberal de autoridade. São vários os seus discursos que criticam
abertamente e explicitamente essa posição infeliz. Suas palavras apresentam um escopo
doutrinário plenamente ortodoxo sobre a função do Magistério Eclesiástico recebida de Cristo.
Baseados nas próximas menções podemos visualizar a evidente confrontação de seu
pensamento com a mentalidade liberal de autoridade.

A seguir apresentamos alguns dos seus ditos em ordem cronológica.

Na Audiência de 04 de novembro de 1964:

"A presença do Papa, da Cabeça visível da Igreja, acentua esta impressão recordando a todos
como existe na Igreja um poder maior, que é a prerrogativa pessoal, que tem autoridade sobre
toda a comunidade em nome de Cristo; poder não só puramente externo, mas capaz de criar
ou dissolver obrigação interna à consciência; e não já deixado à escolha opcional dos fiéis, mas
necessário à estrutura da Igreja; e não deriva dessa, mas de Cristo e de Deus. Será útil,
peregrinos ou visitantes que são vós, refletirdes sobre esse aspecto da Igreja Católica, o qual
adquire nesta sede a sua mais manifesta expressão (...)

Mas todos podem ver que se difundiu bastante em toda parte a mentalidade do
protestantismo e do modernismo, negadora da necessidade e existência legítima de uma
autoridade intermediária na relação da alma com Deus. "Quantos homens entre mim e
Deus!" (Rousseau) exclama a voz famosa de um seguidor dessa mentalidade. E se há falado
de religião de autoridade e de religião de espírito, em oposição um ao outro, por identificar na
religião da autoridade o catolicismo, e na religião do espírito as correntes do sentimento
religioso liberal e subjetivista do nosso tempo, e por concluir que a primeira, a religião
chamada da autoridade, não é autêntica e que a segunda deve proceder e realizar por si só,
sem vínculo exterior, arbitrário e sufocante. E assim o plausível progresso da cultura moderna,
sobre a personalidade humana, acerca da liberdade individual, acerca da primazia moral da
consciência muitas vezes conspiram para tal função, ou diminuir a competência, ou a mortificar
o prestígio da autoridade religiosa.

Se realmente a autoridade religiosa - falamos daquela constitutiva e diretiva da Igreja católica -


fosse um poder arbitrário, ou fosse contrário à vida espiritual, ou colocasse vínculos indevidos
à consciência, ou até mesmo se concebesse à mesma maneira da autoridade temporal, esta
desconfiança, este ressentimento, esta reivindicação de autonomia subjetiva teria razão de ser.
Mas vós sabeis que não é.

Vós que tendes, e quereis ter o "sentido da Igreja" sabeis muito bem de duas coisas, nesta
discussão muito importante. E sabeis, em primeiro lugar, que a autoridade na Igreja, e,
portanto, na religião, não se constitui por si só, mas ela foi instituída por Cristo; é o seu
pensamento, é sua vontade, é obra sua; e, portanto, antes da autoridade da Igreja, devemos
sentir a presença de Cristo. "Quem vos ouve, a mim ouve" (Luc. 10, 16), disse o Senhor. E todas
as vezes que se tenta impugnar esta instituição, que é o poder apostólico, tanto de santificação,
quanto de magistério e de governo na Igreja, se colide contra a palavra, contra o desejo, contra
o amor de Cristo. Sim, até contra o amor de Cristo.

Porque a autoridade na Igreja, para ser eficaz, mesmo quando ela é forte e severa, é um
instrumento da sua caridade. A autoridade na Igreja é o veículo do dom divino, é serviço de
caridade para a caridade; de fato instituída a fim de pôr em exercício a favor da salvação o
grande preceito do amor; não é expressão de orgulho, não está para realizar vantagem própria,
nem mesmo é uma cópia da autoridade civil, armada com uma espada e vestida de glória. É
uma função pastoral, direcionada para condução e para a prosperidade dos outros; e não só
não é contrária à dignidade a vitalidade espiritual da alma em que é exercido, mas é instituída
para conferir com precisão a sua dignidade e vitalidade espiritual e para garantir a sua luz da
verdade divina, para distribuir os seus dons do Espírito, e para assegurar-lhes o caminho certo
para Deus”

As palavras do Papa nessa fala são simplesmente uma clara censura à visão liberal de liberdade
individual ou mesmo de autoridade. Os pontos grifados no primeiro parágrafo e quarto
representam a visão católica de autoridade contrapondo-se explicitamente ao conceito liberal
que explicamos mais acima.

Na Audiência de 11 de junho de 1967 ele foi igualmente explícito:

“È importante esplorare l'impressione spirituale suscitata a questo riguardo nel visitatore del
Papa. L'impressione spirituale più comune - la vostra, Noi pensiamo - è quella caratteristica del
fedele cattolico rispetto al magistero della Chiesa, cioè quella d'una consolante fiducia. Il fedele
cattolico sa che il Signore ha dato agli Apostoli un mandato e una autorità d'insegnare ciò che
Lui stesso aveva insegnato; li ha incaricati d'essere i trasmettitori della sua Parola; egli sa che
questa Parola è collegata col piano della salvezza: l'accoglienza di tale Parola, cioè la fede, è
condizione fondamentale per essere ammessi alle fortune del regno di Dio; egli sa ancora che
questa trasmissione avviene mediante una misteriosa ed efficace assistenza dello Spirito
Santo, Colui che insegna agli Apostoli e alla Chiesa «ogni verità» (Jn 16,13) relativa ai nostri
rapporti soprannaturali con Dio; e sa che tale trasmissione si compie con quella fedeltà
rigorosa e garante dell'univoco e stabile senso del messaggio divino, che si chiama
tradizione(...)

Noi auguriamo che questa sia anche la vostra spirituale esperienza in questo incontro con la
sede principale del magistero ecclesiastico. È così per tutti? Purtroppo no. Oggi da qualcuno
dentro la Chiesa, da tanti che le sono sì e no fedeli, e da molti che le sono intorno, ma estranei,
si guarda con riserva, con diffidenza al magistero ecclesiastico. Al magistero ecclesiastico si
vorrebbe più che altro riconoscere oggi da alcuni l’ufficio di confermare la «credenza
infallibile della comunione dei fedeli»; ed a questi si vorrebbe da altri, seguaci delle dottrine
negatrici del magistero ecclesiastico, riconoscere la capacità d’interpretare liberamente,
secondo il proprio intuito, che facilmente si pretende ispirato, la Sacra Scrittura. La fede così
diventa apparentemente facile, perché ciascuno se la modella come meglio vuole, ma perde
la sua autenticità, la sua sicurezza, la sua vera verità, e perciò la sua urgenza d’essere ad altri
comunicata; diventa un’opinione personale.

UN’AUTORITÀ ESERCITATA NEL NOME DI GESÙ CRISTO

«Il soggettivismo dei moderni - scrive un teologo contemporaneo - ha obbligato a insistere


sul fatto che questa obiettività del dato rivelato e tradizionale si troverebbe ridotta a niente,
se fosse in potere di chi che sia di attribuirle il senso ch’egli giudica buono, e non in potere
del corpo stesso (la Chiesa) al quale e per il quale la Parola divina è stata data, e
specialmente, nell’interno di esso, ai membri responsabili del tutto, in virtù del loro mandato
apostolico» (Bouyer).

Il Concilio ecumenico ha nuovamente proferito una autorevole parola, antica quanto la


Chiesa, a questo proposito: «L’ufficio d’interpretare autenticamente la Parola di Dio scritta, o
trasmessa, è affidato al solo magistero vivo della Chiesa, la cui autorità è esercitata nel nome
di Gesù Cristo»."

Podemos ver que essas palavras não são menos explícitas.

Sua explicação na Audiência Geral de 15 de Abril de 1970:

“Hoje fazemos esta pergunta: como se chega à fé ? Não apenas a um sentimento religioso, a
um vago conhecimento de Deus e do Evangelho, mas a uma adesão da mente e do coração à
Palavra divina, à verdade revelada por Cristo e ensinada pela Igreja. É uma pergunta fácil e
igualmente importante. Foi São Paulo quem primeiro a formulou, dando-lhe imediatamente
uma resposta. Na carta que escreveu aos romanos, interroga: «como hão-de acreditar n'Aquele
que não ouviram ? E como ouvirão se ninguém lhes prega ? E como pregarão, se não forem
enviados ? » (Rom 10, 14-15). E acrescenta: fides ex auditu (Ibid 17) — a fé depende da
pregação, e a pregação, da Palavra de Cristo. Mas a pregação, por sua vez, exige um
mandato, uma investidura, uma missão (cfr. Cornely, Lagrange, h. 1, I).

Deste modo, compreendem-se o conceito e a importância da evangelização, da actividade


pastoral e da actividade missionária. São conceitos familiares, também no nosso tempo.
Considerados em relação ao nascimento perene dos membros da Igreja, adquirem toda a sua
grandeza e função específica. A Igreja nasce da Igreja docente, e não de si mesma como tal.
Melhor, a Igreja nasce de Cristo, que envia os seus apóstolos, com a missão de salvar os
homens por meio da sua palavra e da sua graça. Eles foram as primeiras testemunhas directas
oculares: « O que vimos e ouvimos, isso vos anunciámos » (1 Jo 1, 3).

Deve-se notar que o canal da verdade da fé é o Apóstolo, digno de respeito pela sua
experiência pessoal, e autorizado pela sua investitura missionária. Depois dele, vêm, um atrás
do outro, os que propagam pela terra e transmitem à história o mesmo testemunho, que já
não é imediato, mas mediato (cfr. Santo Agostinho, In Ep. Joannis ad Parthos, 1, 2, 3, em: PL 35,
1979-1980). Deste facto deduzem-se duas características essenciais do desígnio de Cristo,
relativo ao anúncio do seu Evangelho de salvação : a ciosa fidelidade textual do anúncio e o
encargo distintivo e qualificativo, conferido à sucessão apostólica, de o guardar, propagar,
defender, explicar e, numa palavra, ensinar.

Isto mostra que a Igreja possui em si mesma um órgão que a instrui, que lhe garante a
genuinidade de pregação da Palavra de Deus, um magistério hierárquico que gera o Povo
cristão (do qual ele também faz parte, mas com uma função providencial de poder, como os
olhos em relação ao corpo). São Paulo, comparando a sua função geradora e vivificadora de
mestre com a de todas as outras vozes da cultura cristã e profana e sobrepondo-a a estas
vozes, afirmava, ao escrever aos coríntios : « Porque, ainda que tenhais dez mil pedagogos em
Cristo, não tendes, todavia, muitos pais, pois fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, por meio do
Evangelho » (1 Cor 4, 15). E aos gálatas dizia: « De novo sinto as dores de parto, até que Cristo
seja formado em vós » (Gál 4, 19). E, como para sublinhar a causalidade eficiente, embora
ministerial, da sua missão de mestre, não chama « irmãos », como fazia habitualmente, os seus
interlocutores, mas « filhos meus caríssimos » (1 Cor 4, 14) ou « filhinhos meus » (Gál 4, 19).
Entre Cristo e os cristãos insere-se um poder docente: o magistério hierárquico.

A consciência, por si mesma, é incapaz de nos levar ao conhecimento da realidade das coisas
e da moralidade das ações. Além disso, no campo da fé, ou por outras palavras, no das
verdades reveladas, a consciência, sozinha (salvo no caso de especialíssimos carismas
místicos), não pode orientar a mente do fiel. A fé objetiva não é uma opinião pessoal, mas
uma doutrina estável e delicada, que se funda, como dissemos, no rigoroso testemunho de
um órgão qualificado, o magistério eclesiástico, intérprete e transmissor, não arbitrário, mas
escrupoloso, da fé. Por este motivo, Santo Agostinho — citemo-lo mais uma vez — escreveu : «
Eu não teria fé no Evangelho se para tanto não me movesse a autoridade da Igreja » (Contra
Manicheos, V, em: PL 42, 176; cfr. Lumen Gentium, n. 25). Faz eco a estas palavras a seguinte
afirmação de um teólogo contemporâneo : « A consciência do fiel recebe da autoridade do
magistério eclesiástico, como o mais precioso dos dons, uma segurança infalível nas verdades
morais fundamentais »

Mais uma vez, palavras dignas de São Pio X.

Temos também a Audiência Geral de 25 de Agosto de 1971:

“Há quem deseje que a autoridade eclesiástica, como acontece hoje em muitas sociedades
civis, provenha da base, de modo que a hierarquia já não encontre a sua explicação e o seu
poder na ordem estabelecida por Cristo, mas no mandato da comunidade, como se a
hierarquia, tendo por finalidade o serviço do povo cristão, estivesse também, por origem, ao
seu serviço, e fosse buscar no mesmo povo a sua autoridade, como acontece nas
democracias modernas. Há até quem pretenda contestar a necessidade e a legitimidade de
uma hierarquia, de um ministério humano revestido de poder divino, como se a relação com
Cristo não tivesse necessidade de uma mediação canónica pastoral (cfr. 1 Cor 4, 1 ss.; Ef 3, 7
ss.). A autoridade, que, de per si, é sempre difícil, tornou-se hoje, para muitos, um « sinal de
contradição » (Lc 2, 34). Não pretendemos, agora, principalmente nós, fazer a apologia da
autoridade, da hierarquia e da estruturação comunitária orgânica. Vós conheceis,
certamente, os seus títulos de origem divina e o seu coerente desenvolvimento tradicional.
Quem desejasse confirmar o próprio pensamento com uma boa cultura histórica, ainda válida,
poderia encontrar um óptimo alimento na famosa obra de Pierre Batiffol, traduzida também
em italiano, e, agora, reeditada e atualizada com um belo prefácio do Cardeal Jean Daniélou.
Tem por título «A Igreja nascente e o catolicismo» (Valsecchi, Firenze 1971).”

Tudo isso parece suficiente para excluir a hipótese levantada pelo padre e destruir, em
consequência, sua conclusão. Mas acredito que seria importante refutar os fundamentos dele
no sentido contrário para que nosso estudo possa ser muito mais perfeito pela nitidez e eficaz
na intenção. Segundo o padre Calderón o magistério dialogado, conforme exposto na encíclica
Ecclesiam suam, contrastaria o exercício de ensino ou de autoridade. O padre nesse sentido
diz: “quando alguém sempre pergunta e o outro sempre responde, como nos catecismos, há
conversas entre mestre e discípulo, mas não há verdadeiro diálogo; o diálogo pressupõe
comunicação de idéias de ambas as partes para que, da confrontação mútua, se alcance a
verdade sob a garantia do critério comum (...) O médico, por exemplo, pode dialogar com outro
médico sobre o diagnóstico do doente, e até com um estudante avançado em medicina; mas
não pode dialogar com o doente, pois este carece de critério médico que lhe permita formar
uma opinião válida acerca de sua doença.” (p. 126-127) E daí se poderia concluir que na
intenção de Paulo VI o magistério é subordinado ao sensusfidei, pondo a autoridade a serviço
da unidade de expressão do sentir comum de toda a comunidade eclesiástica.

Gostaríamos de respondê-lo usando a autoridade do Padre Julio Meinvielle, tomista e


combatente intrépido dos progressistas, pois refuta sua objeção com muitas décadas de
antecedência.

“Alguém pode pensar que tal atitude não corresponde. Porque o médico não dialogo com o
enfermo. O diálogo supõe de alguma maneira certa igualdade entre os interlocutores. E entre
o médico, como médico, e o enfermo, enquanto enfermo, as distâncias tendem a alargar-se
quanto mais infeccioso e grave o estado do enfermo. Daqui que se a Igreja se aproxima à
humanidade em um momento em que esta se acha em gravíssimo estado de infecção parece
que possa ser menos indicado o diálogo. Alguém pode pensar que haveria que proceder como
Tiago e João, quando disseram: “Senhor, queres que digamos que baixe fogo do céu para que
os consuma” (Lucas, 9, 54).

Gravíssimo erro este último. Se a Igreja tem entranhas de misericórdia e quer a saúde do
mundo, e se o mundo se acha em um estado tal de soberba que não aceita nenhuma
superioridade por parte da Igreja, será conveniente que esta adote uma “atitude de diálogo”,
se isso pode ser conveniente para que exerça sua influência salvífica sobre o mundo. Porque
justamente quando um enfermo se acha pior, mais difícil e relutante se faz para aplicar os
remédios que lhe podem curar. Então, mais terá que aproximar-se o médico ao enfermo, cuja
cura sobretudo interessa. Daqui, a bondade da Igreja nesta hora gravíssima do mundo. Porque
o estado do mundo é de extrema gravidade, porque o mundo em sua soberba se sente seguro
de si mesmo, e quando se acha a ponto de desfazer-se em sua própria ruína, a Igreja se
aproxima a ele, trata-lhe com grande atenção, abre diálogo, para ver se por ali pode produzir-
se o começo da saúde.”3

Se é verdade que o diálogo supõe a comunicação de idéias de ambas as partes, não significa
que sob o mesmo aspecto haja igualdade de situação ou conhecimento. O mundo pode
apresentar à Igreja uma situação de enfermidade gravíssima que exija remédios específicos do
Magistério. Aqui, é verdade, há uma comunicação, mas da parte do homem moderno está
somente sua linguagem e inteligência atual, esta bastante enferma, enquanto do Magistério
estão os remédios eficazes da doutrina católica postos a aplicar de maneira conveniente. O
Para Paulo VI diz que o diálogo nada mais é do que a elaboração da doutrina “com o intento
amoroso e clarividente de unir o pensamento divino ao pensamento humano, este
considerado não em abstrato mas na linguagem concreta do homem moderno”. Ou seja, o
diálogo é apenas a apresentação da doutrina de modo que seja mais bem percebida pelos
homens modernos. O ensino normativo sobre o assunto “establishes precise limits to the
definition and the practice of dialogue and, if for gotten, runs the riskofentering a view of
dialogue that is different from that of those who introduced it in the ecclesial vocabulary.” 4

Esta forma de pensar pode ser atribuída também ao Papa Pio XII na audiência que concedeu
ao Exmo. Bispo de Nancy, onde relata-se:

"O Santo Padre - escreveu este - exorta-nos a ficar agarrados à verdade cristã, a única que
pode salvar os valores humanos. Essa verdade, urge adaptá-la às necessidades das
almas do nosso tempo. Nisto, porém, não há "nova teologia" - disse o Papa - já o
declaramos duas vezes e cremos tê-lo feito com clareza. Quando falamos de adaptação
às ideias modernas - continua o Santo Padre - entendemos a conveniência de
proceder a explicações para colocar as verdades dogmáticas, as certezas teológicas
ao alcance dos espíritos que não mais as compreendem. Mas os princípios não se
modificam. A verdade é imutável.”5

Outro ponto da mesma encíclica também impugnada pelo padre é a seguinte: "A autoridade
vem-lhe da verdade que expõe, da caridade que difunde, do exemplo que propõe; não é
comando, não é imposição." (Ecclesia Suam)

A isto respondo:

O ensinamento do Magistério da Igreja não é uma imposição de violência ou constrangimento.


A fé6 por sua natureza é um ato livre, não pode ser imposta no sentido que coaja a liberdade

3
A Igreja e o mundo moderno, o progressismo em Congar e outros teólogos recentes, ano 1965, pp. 83-
84.
4
(WithIlariaMorali: Zenit - 14 JAN. 2005
5
Texto publicado na SemaineReligieuse de Nancy, e reproduzido na France Catholique de 11
de Julho de 1947.
6
O assentimento de ordem religiosa não é de fé, mas abrangido pela virtude da fé (cf. Choupin,
Valeur des décisions doctrinales et disciplinaires du Saint-Siège, Paris, ano 1913, p. 53).
física (libertatem physica) do homem. Em outras palavras: a Igreja não nos obriga pela força a
assentir. Isso sempre foi regra do Direito da Igreja para o trato com os infiéis. O Papa Bento XVI
explicando sobre a liberdade religiosa passa idéia semelhante ao tratá-la "como uma
consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas deve ser
apropriada pelo próprio homem somente mediante o processo do convencimento" (Discurso à
Cúria Romana de dezembro de 2005).

Que a palavra do Papa Paulo VI seja no sentido de coação é só ver a frase subsequente que diz:
"O diálogo é pacífico, evita os modos violentos, é paciente e é generoso."

Agora, quando se diz que a Igreja impõe uma doutrina é no sentido de que ela impõe uma
obrigação à consciência. Esta obrigação é de acatar o ensinamento dado. Não é imposição
física ou psicológica. O que o homem neste caso não possui é liberdade moral (libertatem
morem) de acreditar no que quiser e fazer o que bem desejar, como os liberais acreditavam.

A Declaração sobre a Liberdade Religiosa em uma só frase conseguiu distinguir tudo isso:

"O sagrado Concílio declara igualmente que tais deveres atingem e obrigam a consciência
humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria forca, que
penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte." (DH)

Basta-nos fazer o paralelo das duas frases que, claramente, querem expor a mesma doutrina.

Ou seja, uma coisa é a imposição de uma obrigação à consciência e outra, completamente


diversa, é uma imposição que seja violenta, que constranja. Ademais, a palavra utilizada pelo
Papa Paulo VI em latim é iniungo (e não impositum) que em um sentido primário quer dizer
"infligir".

Pensamos que não é preciso ir além daqui. Se o padre Calderón relembrar que sua tese não se
refere a qualquer erro, mas de modernismo e que os modernistas são deliberadamente
contraditórios, ele que nos apresente mais provas dessa suposta intenção subordinar-se ao
sensus fidei, mas de modo antecedente e independente dos documentos conciliares, pois foi
assim que ele disse ser a atitude correta do súdito.

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