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Da Missa Nova enquanto Lei Litúrgica e a Crise como um Todo

25/06/2023

Festa de S. Guilherme.

Luigi Falcon.

Racionalização da tese, motivações, história e propósito: A grosso modo, desejava que


esse meu artigo fosse incluído no nosso recente lançamento, A Verdadeira e a Falsa
Infalibilidade, de D. Fessler, como compreendo que uma é a questão do papa e outra -
mesmo que pareçam uma coisa só - é a questão litúrgica, que perpassa as difíceis
problemáticas da crise na qual estamos inseridos, a confusão diabólica por excelência.

Então, como a crise não deixa de ocorrer e o fato desse artigo não ter sido inserido no livro,
por vício da minha falta de conhecimento em diagramação e traquejo ao lidar com gráficas,
ficando inviável economicamente inserir essas poucas páginas no livro segundo o valor que
ele foi lançado na campanha [mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa], decidi, para retirar
minha indiferença quanto a uma questão tão importante e pela qual já fui solicitado a
responder diversas vezes, seja em público ou privado, enfim, para vosso proveito ou
sofrimento, como interpretem os leitores, acabar hoje com essa infeliz indiferença,
respondendo com (quase) todas as minhas capacidades uma tal questão, e assim espero,
estando assegurado do apoio de Nossa Senhora das Graças.

Início e fim [tal será a conclusão da minha tese, e tudo o que se der no contexto dela
será para endossar essa mesma conclusão]: O caso da missa nova é outro [em
comparação com todas as outras reformas litúrgicas do passado], uma vez que ela se
vendeu como uma reforma, e em toda a extensão de seu documento de publicação, não
houve menção à nenhuma dogmatização da mesma, o que nos dá direito, portanto, a
fazermos uma resistência lícita a um rito alienígena que 1) não foi promulgado 2) não é fruto
de um magistério real, como este além de não ser dogmático, como já dito, [infalível]
também não goza do seu caráter negativo, justamente por não ser um magistério
verdadeiro para viesse a possuir uma tal proteção, a saber, a de não conter erros; ou seja,
ela [e o magistério que a recomenda, privadamente] é tão contestável e evitável quanto
qualquer opinião de doutores privados e é um rito estranho à Igreja. - [Tese endossada
pelos reverendíssimos. Pe. Gregorius Hesse, Pierre-Marie e Louis-Marie O.P. e Álvaro
Calderón].

Meio-termo, se é que seja conveniente aos fins que pretendo atingir: Desde a tese
mais rebuscada até a mais grosseira dentro do sedevacantismo, todas, acabam por,
naturalmente, visando preservar a indefectibilidade da Igreja, se aproximar do conclavismo,
que, de fato, é a tese mais aceitável [por incrível que isso parecer de início]. - Análise rápida
de como o Frei Tiago “tem razão” - e como isso não faz com que ele a tenha de fato, senão
que apenas em aparência e não segundo a verdade dos fatos tal como eles são.

Meu quinhão de responsabilidade e culpa: Depois do primeiro mea culpa pela falta de
uma tal resposta no livro recém-lançado, aqui vem o próximo de quem sabe muitos, que
espero que somados não resultem num confiteor completo.
Não tenho tempo e interesse em ouvir conferências de ninguém me contrapondo, sobretudo
se durarem três ou quatro horas somadas, assim, meus argumentos se atualizam na
medida em que estudo e não na que sou contraposto, podendo vir sim a causar um certo
hiato culpável da minha parte no que diz respeito a solidez de minha posição, e digo isso
com bastante franqueza, já recorrendo a um adágio francês, justamente para que eu não
venha a cair nele durante a exposição da minha tese: “quem faz o anjo faz a besta” - algo
nitidamente perceptível na maioria dos meios tradicionais de hoje -, e sabendo de largada
que não sou um anjo, espero apenas não passar por uma besta.

A justificativa pela qual faço isso, e que é, em partes, o que me motivou a escrever esse
artigo todo, dedicando muito de tempo útil à uma atividade que não deixa de ser útil, como é
prestada ao serviço da Igreja, mas que não constitui meu dever de estado, é justamente
isso: não é uma obrigação, nem um dever, nem nada do tipo, e como esse é o caso da
maioria dos fiéis que são perturbados por argumentos sem contexto ou que, mesmo com
contexto, não possuem obrigação de responder a tais argumentos, como uma
contra-resposta exige tempo para pensar, e acrescentando ao meu raciocínio as palavras
do Pe. William MacGillivray, da FSSPX, de que: “eu não sou obrigado a responder a cada
citação de teólogos que se me apresentem; uma vez que é a Igreja que deve claramente
decidir a respeito de todas essas questões, não teólogos privados” [paráfrase extraída a
partir de uma das suas conferências sobre liturgia], e quando ela não pode fazê-lo, de
momento, segundo conclui o Pe. Pierre-Marie, O.P., acerca da questão do papa herético e
que fazemos valer para terminar nosso ponto: “O texto de João de Santo Tomás desenvolve
estes dois pontos: a necessidade de um julgamento da Igreja para a deposição de um papa
herético. Mas, ao mesmo tempo, ele mostra a dificuldade de tal julgamento nas
circunstâncias atuais da Igreja. Com efeito, é fácil constatar que a grande maioria dos
bispos comungam das ideias do papa sobre o falso ecumenismo, a falsa liberdade religiosa,
etc. É, então, impossível imaginar, nas circunstâncias atuais, um julgamento de um concílio
geral que declararia a heresia do Papa Francisco. Vê-se que humanamente falando a
situação é inextrincável. É preciso esperar que a Providência, de uma maneira ou de outra,
indique o caminho que nos permita sair deste impasse. Esperando, é mais prudente manter
a posição de Dom Lefebvre e rezar pelo papa, sem deixar de resistir às suas ‘heresias’..”, é
necessário que alguém venha a deliberar o seu tempo para auxiliar àqueles tradicionalistas
que dele carecem e que, nem por isso, deixam de estar com a razão, uma vez que
precisam antes de tudo cumprir com os seus deveres de estado e não viver no mundo das
disputas teológicas, mas antes, buscando salvarem suas almas.
A QUESTÃO DA MISSA NOVA

Parte 1: Apresentação do problema

"É necessário obedecer a um papa em tudo, contanto que não seja contra os
costumes universais da Igreja. Se ele acabar indo contra os costumes universais da Igreja,
ele não deve ser seguido”1 (Papa Inocêncio III).

Depois de passarmos pela questão do julgamento do Papa, na qual muitos


sedevacantistas, ditos totalistas e conclavistas [em partes] ainda estão inseridos, passamos
as vias de fato, ou seja, ao que realmente interessa: Como conciliar “duas igrejas”¹ [com
seu clero inserido implicitamente nessa concepção de Igreja, seja ela qual for] e dois
magistérios?

Resposta: Não é possível.

Razão Primeira [Referente a duplicidade da Igreja¹, o que é impossível]: Não


existem duas Igrejas, mas uma só, como é natural.

“A doutrina católica é que a Igreja é uma só, não duas” (S. Roberto Belarmino).2

“É por isso que, quando um Papa que não é bom reina na Igreja, o princípio da
unidade se desestabiliza mais ou menos intensamente e hoje se pode falar, em sentido
amplo ou não estritamente teológico, de homens de uma ’contra-igreja’... que tentam
implodir modernistamente a Igreja Católica por dentro” (cf. São Pio X, Encíclica Pascendi, 8
de setembro de 1907).

É impossível sustentar a indefectibilidade da Igreja, caso, como fazem


inconscientemente alguns tradicionalistas [pelos motivos mencionados, se
conscientemente, não tenho responsabilidade nisso, não sou alguém com alguma
obrigação de sanar as dúvidas teológicas de cada um que me conheça em particular, e nem
me disponho a isso, e espero que isso seja claro para todos que venham falar comigo a
esse respeito, tenho também eu minhas obrigações de estado] e talvez inconscientemente
ou conscientemente alguns sedevacantistas, sobretudo ou unicamente os ditos totalistas,
quando se possuí a falsa noção de que a Igreja pode vir a ser duas e não uma só. Tomadas
já de largada as palavras de S. Pio X, pessoa na qual D. Lefebvre se inspirou, fica evidente
que com as palavras “em um sentido amplo, não estritamente teológico”, e “implodir”, o que
implica que os ditos modernistas estejam apenas inseridos e não que constituam uma nova
igreja ou igreja à parte, conforme fala Santo Agostinho: “que às vezes pode acontecer que
um herege que está fora da Igreja não aja contra ela, enquanto um católico dentro da Igreja
possa agir contra ela”3, que já temos a nossa resposta para a questão: o que há, antes de
uma nova igreja, coisa essa que resultaria na defectibilidade da Esposa de Cristo, na sua

1
Papa Inocêncio III: De Consuetudine, citado por Torquemada. Conforme consta na Summa de
Ecclesia de Juan de Torquemada, página 774: “Unde Inno. in c.de consue. dicit: in omnibus
obediendum est papæ dum non veniat contra universalem statum ecclesiæ ,in eo enim casu dicit: non
est sustinendus sine cauta racionabili”.
2
São Roberto Belarmino, Sobre a Igreja Militante, De Controversiis, ed. Mediatrix Press 2016, cap. 2:
Sobre a Definição de Igreja, pág. 15.
3
São Roberto Belarmino, etc. cap. 4: Sobre hereges e apóstatas, pág. 20-21.
possibilidade de pecar, de ser incerta, de ser infiel ao seu Divino Esposo, se resume tão
somente em uma infiltração de homens de má intenção nos cargos de poder da Igreja.

Por interesse de brevidade, tanto meu quanto do leitor, vamos colocar agora tudo
em miúdos. Uma vez compreendido que 1) existe apenas uma Igreja com homens
infiltrados nela e que em nada repugnam sua indefectibilidade (questão das duas igrejas),
precisamos esclarecer um segundo ponto, neste que é o grande entrevero da crise atual: o
duplo magistério ou magistério esquizofrênico, que trataremos por explicar uma tal
significação pouco mais tarde.

Razão Segunda [Referente a duplicidade de magistérios², o que é, novamente,


impossível]: Ou se é magistério ou não se é, e se for, é de assentimento obrigatório - mas
mesmo não sendo, também pode vir a ser magistério, e por isso, goza do caráter negativo.

Primeiramente, termos mudam as regras do jogo porque lidam diretamente com o


conceitual da questão, então o manuseio de termos está sempre intimamente ligado à
técnica do ensaísta, por se tratar do formal na narrativa, passível de muitos cortes e
recortes, joguetes e dubiedades, e assim, é fácil provar-se certo jogando num campo
incerto, fazendo uso favorável de termos pouco conhecidos e de difícil entendimento.

Questão Litúrgica: Para contornarmos um argumento muito recorrente em nossos dias, e


que foi graças a ele que fiz a ressalva inicial quanto aos termos utilizados numa discussão,
ao tratarmos sobre a dita “infalibilidade negativa em âmbito disciplinar”, é necessário
considerarmos algumas coisas:

Para esclarecermos sobre a malícia da NO em primeiro lugar, convém tratarmos de


muitas coisas. Não só a propiciação pelos pecados, que é o seu principal alvo, mas também
outros dogmas de fé tais como a Presença Real, como assinalado por um grupo de
teólogos no Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, são mitigados e omitidos pela
missa nova:

"O próximo artigo da Instrução divide a Missa em uma 'Liturgia da Palavra' e uma
'Liturgia da Eucaristia', e acrescenta que a 'mesa da Palavra de Deus' e a 'mesa do Corpo
de Cristo' são preparadas na Missa para que os fiéis possam receber 'instrução e alimento'.
Como veremos mais tarde, esta afirmação une de forma imprópria e ilegítima as duas
partes da Missa, como se elas possuíssem o mesmo valor simbólico. (...) Da Oração
Eucarística II bem se disse que um padre que não acreditasse nem na
Transubstanciação nem no caráter sacrificial da Missa poderia recitá-la com a
consciência perfeitamente tranqüila, e que, além disso, um ministro protestante
também poderia usá-la em sua própria celebração. O novo missal foi apresentado em
Roma como “uma fonte abundante para o trabalho pastoral”, como “um texto mais pastoral
do que jurídico”, que a conferência nacional dos bispos poderia adaptar ao “espírito” de
diferentes povos. Além disso, a Seção Um da Nova Congregação para o Culto Divino será
agora responsável “pela publicação e constante revisão dos livros litúrgicos". É bem sabido
como o Vaticano II está agora sendo repudiado pelos mesmos homens que um dia
alcançaram a glória ao liderá-lo. Enquanto o Papa declarou ao fim do concílio que este
não havia alterado nada, estes homens saíram determinados a “explodir” os ensinamentos
conciliares no processo de sua aplicação. Infelizmente a Santa Sé, com inexplicável
rapidez, aprovou e aparentemente encorajou através do Consilium uma crescente
infidelidade ao concílio. Esta infidelidade foi de meras mudanças formais (Latim, Canto
Gregoriano, supressão dos ritos antigos etc.) até mudanças substanciais que a Novus Ordo
sanciona. Às consequências desastrosas que tentamos apontar aqui, devemos acrescentar
aquelas que afetarão, com um efeito psicológico ainda maior, a disciplina e os
ensinamentos da Igreja através do enfraquecimento do respeito e mansidão devidos à
Santa Sé.”4

Cabe aqui citar o Pe. Calmel discursando a esse respeito:

"Como consequência dessas alterações e manipulações, as riquezas inesgotáveis,


mas bem definidas, do rito consecratório não estão mais convenientemente explicitadas. As
disposições interiores requeridas para receber os frutos sobrenaturais do Santo Sacrifício
não estão mais favorecidas como convém. Como evitar que sacerdotes e fiéis, pouco a
pouco, cessem de perceber o significado da Missa e que a Missa católica caminhe em
direção à Ceia protestante?"5

Portanto, quando somos abordados por sedevacantistas com o apelo a uma dita
infalibilidade negativa, que necessariamente deveria impedir qualquer erro contra a fé, em
questão disciplinar na Igreja, temos de concluir que, considerando que a infalibilidade
definida tal como ela é, seja em fé, moral, disciplina ou governo, enfim, que todo tipo de
infalibilidade em si mesma é negativa, uma vez que é um carisma negativo no sentido de
estar isenta de erros, é um termo um tanto coringa. Toda infalibilidade, a princípio, é
negativa. Agora, quanto à questão disciplinar, como vimos exposta por Dom Fessler, ela
não foi matéria de definição por parte do Concílio Vaticano I. O que cabe enfim considerar é
o seguinte: De fato, é um consenso entre os teólogos e canonistas essa infalibilidade
negativa em âmbito disciplinar.

"Je n’avais pas vu la nécessité d’un changement, mais enfin, si la loi était changée,
elle était changée. Et alors il fallait bien s’en servir, car l’Église ne peut rien demander de
mauvais pour les fidèles.”6

Traduzindo:

"Eu não tinha visto a necessidade de uma mudança, mas, finalmente, se a lei foi
alterada, foi alterada. E então era necessário usá-lo bem, porque a Igreja não pode pedir
nada de ruim para os fiéis.”

Segue-se assim que, mesmo não sendo infalível (por definição), devemos tratá-la
como se fosse, por ser um consenso entre os teólogos e canonistas. Como poderemos,
portanto, conciliar a liturgia nova com a não defecção do Papa e dos demais prelados, dado
que a missa nova é intrinsecamente má?7 Em síntese, como poderemos compreender a
promulgação da missa nova sem incorrer no sedevacantismo ou no modernismo?

4
Cardeal Alfredo Ottaviani e outros teólogos, Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, página 9;
25; 29.
5
Roger-Thomas Calmel, O.P., 'Apologie pour le Canon romain', Itinéraires 157 (novembro de 1971),
pág. 38. Conforme citado pelo Padre Gaudron no Catecismo Católico da Crise da Igreja, página 152.
6
Mons. Marcel Lefebvre, La nouvelle Ecclésiologie, Droit Canon et Liturgie, Conférence à
Turin, 24 mars 1984.
7
Para uma explicação de um termo de tal magnitude e sobre a razoabilidade da nossa posição, de
reconhecer e resistir, consultar o apêndice I, ao final do estudo da questão da missa nova.
Parte 2:

Desenvolvimento do problema do magistério, sobretudo a questão litúrgica

O pior erro que circunda a NO, em questão de “doutrina”, seria a Institutio Generalis,
sobretudo em seu famoso inciso 7.

“A Ceia do Senhor, ou Missa, é a assembleia sagrada ou congregação do povo de


Deus, reunido sob a presidência do sacerdote para celebrar o memorial do Senhor. Daí ser
eminentemente válida, quando se fala da assembleia local da Santa Igreja, aquela
promessa de Cristo: ‘onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou eu
no meio deles’ (Mt 18,20)”.

Mas, e por isso deixamos entre aspas o termo acima mencionado “doutrina”,
segundo a Declaração da Congregação do Culto Divino de 19 de novembro de 1969:

“A Institutio (Instrução) não deve ser vista como um documento doutrinal, isto é
dogmático. Em vez disso, é uma instrução pastoral e ritual.”8

Ou seja, trata-se de um julgamento prudencial, dando instruções a respeito da


missa, não de definições ou de um julgamento doutrinal propriamente dito, que é o único
assegurado de infalibilidade. Para nos aprofundarmos mais no ponto, é necessário
compreender até onde se estende a tal infalibilidade negativa em âmbito disciplinar e o
magistério por trás da “promulgação” (recomendação) do NO.

“Observe que um Papa pode errar nos preceitos do culto, ou seja, nas questões
litúrgicas.

Em seu livro, ‘A Igreja de Cristo’, o Pe. Sylvester Berry dá dois exemplos concretos
de quando a infalibilidade se aplica a questões litúrgicas: a comunhão sob uma espécie e a
veneração de relíquias. A comunhão sob uma espécie reflete a doutrina da Igreja de que
Nosso Senhor está completa e substancialmente presente na Hóstia consagrada ou no
Sangue Precioso, enquanto a veneração das relíquias fornece a certeza infalível de que tal
veneração é lícita, de acordo com a mente da Igreja e a lei de Deus. O Pe. Berrry também
explica como a infalibilidade disciplinar se aplica às orações aprovadas pela Igreja para uso
universal no culto público. Ele não diz que as orações serão necessariamente as
melhores possíveis, mas apenas que não serão contrárias a nenhuma verdade
revelada – ou seja, não serão diretamente heréticas. Em suas próprias palavras:

‘Matéria Disciplinar: Sob este título estão incluídas as leis e preceitos estabelecidos
pela autoridade eclesiástica para a regulamentação do culto ou para a orientação dos fiéis
em todo o mundo. Tais leis e preceitos estão necessariamente sujeitos à autoridade infalível
da Igreja, por causa de sua íntima conexão com a fé e a moral. Por exemplo, a lei que
prescreve a Comunhão sob uma espécie pressupõe a doutrina de que Nosso Senhor está
presente inteiro e completamente sob qualquer forma, e as leis relativas à exposição de
relíquias também pressupõem que a veneração delas é lícita. (…)

8
Declaração da Congregação do Culto Divino de 19 de novembro de 1969, N. 5 (1969) 417-418.
Corolários. A) As orações prescritas ou aprovadas para uso universal no culto
público não podem ser opostas a nenhuma verdade revelada.”9

Paro um momento o raciocínio dos autores citados, dado que deles discordo em
partes e não concordo de todo - evidentemente. Concordo quanto ao fato de que “as
orações não serão necessariamente as melhores, e que apenas estão garantidas de não
conter heresias diretas, e discordo quanto a sua extensão à missa nova, dado que, fazer
uma tal colocação, me faria admitir que a missa nova é uma oração litúrgica da Igreja, coisa
que ela não é, de forma alguma, e será demonstrado. Mas agora, justificando minha pausa,
quero dissertar um pouco sobre a questão das reformas litúrgicas legítimas.

“Em todos estes assuntos os fiéis devem uma verdadeira obediência ao Papa”, e
entre eles está o magistério disciplinar, igualmente, como São Pio X realizou reformas
subjetivas na Missa de São Pio V, e da mesma forma Pio XII e João XXIII, é evidente que o
consenso dos Papas sobre a Bula Quo Primum, era de que a mesma havia canonizado a
essência do Santo Sacrifício, como a lex orandi (como se reza) não é diferente da lex
credendi (o que se crê), instituindo que o essencial da Missa enquanto um Sacrifício
(principalmente de caráter Propiciatório) e demais implicações disso, jamais seriam
passíveis de alteração (uma vez canonizada por São Pio V), mas que, suas particularidades
acidentais, como o acréscimo do nome de São José10 no Cânon, feito por João XXIII em
seu Missal, são alterações válidas, lícitas e de assentimento obrigatório (a não ser em caso

9
True or False Pope, capítulo 16: The New Mass and Infallibility, pág. 493-4; Sylvester Berry, The
Church of Christ, pág. 291.
10
"Enquanto duraram os sete anos preditos de fartura, poucos pensaram em José; e possivelmente
alguns podem ter zombado ao vê-lo tão empenhado em armazenar uma quantidade tão grande de
milho nos grandes armazéns do Egito. Mas assim que os anos de terrível escassez começaram,
todos se lembraram de José, e de todos os cantos os homens vieram ao Egito para comprar para si o
alimento necessário. E quando o povo clamou ao Faraó por pão, o rei disse-lhes que fossem a José
e fizessem tudo o que ele lhes dissesse; e José abriu em seu nome os vastos celeiros do Egito. Aqui
reconhecemos a grande facilidade e benignidade de nosso santo em ajudar aqueles que em tempos
prósperos o esqueceram ingratamente." (Edward Heally Thompson, The Life and Glories of St.
Joseph, Capítulo IV, página 21).

Assim, como podemos ver ao longo da história da Igreja, a devoção a São José cresce de
maneira análoga ao decaimento da fé. Uma das primeiras santas a propagar sua devoção foi Santa
Teresa d'Ávila, no século XVI, em pleno renascimento, no afrouxamento dos costumes, da fé e da
moral católica. De igual maneira, seguindo o piedoso autor inglês, que vê a prefiguração de São José
na pessoa de José do Egito, podemos concluir que com a famosa oração criada e indulgenciada por
Leão XIII, o mesmo Papa que teve revelações particulares sobre a crise que viria a se abater sobre a
Igreja, que o crescimento de tal devoção em um período tão particular quanto o dele, chegando
posteriormente ao ápice dela na inclusão de São José no Cânon da Missa por João XXIII, é um sinal
fortíssimo do remédio que a Divina Providência dispôs para os nossos dias. Tê-lo incluído, seguindo
o desejo de muitos teólogos, foi uma das grandes misericórdias de Deus para os tempos de fome, a
mesma predita por Oséias e aludida por São Pio X na introdução do seu catecismo: a falta de
doutrina. E, em última instância, crendo que Belém significa fábrica de pão, seguindo a interpretação
de São Jerônimo que considera Nosso Senhor como o mais essencial ao homem cremos que com a
falta de sacramentos válidos e lícitos, assim como da verdadeira fé e doutrina, que tudo isso se
encontraria à disposição de São José, ou seja, dos padres que decidiram permanecer do lado certo
nessa crise.

“Fazendo assim, com a graça de Deus, o socorro da Virgem Maria, de São José e de São
Pio X, estamos convictos de permanecer fiéis à Igreja Católica e Romana e a todos os sucessores de
Pedro, e de ser os ‘fideles dispensatores mysteriorum Domini Nostri Jesu Christi in Spiritu Sancto.
Amen’ (cf. I Cor. 4, 1 e ss)” (Declaração de 1974, Dom Marcel Lefebvre).
de dispensa). O mesmo caso se dá com a Semana Santa de Pio XII, um ato legítimo do seu
magistério disciplinar, que não garante que ela seja superior a que havia sido estabelecida
anteriormente por São Pio X - como explicado pelo Padre Sylvester Berry, nem que
expresse melhor os dogmas de nossa Fé, mas apenas, com relação a dita infalibilidade
negativa, que esta reforma não contém nenhum erro contra a Fé ou elemento heretizante, e
que, sendo magistério - como ninguém além de um grupo de sectários nega, tal como o
gênio que descobriu em 2023 que a reforma de Pio XII nunca foi promulgada corretamente,
afirmação essa que os sedeprivacionistas mais sérios rejeitam - é infalível,
independentemente de ser superior ou inferior, derivando sua obrigatoriedade no
assentimento justamente por se tratar de matéria disciplinar, salvo em caso de dispensa,
que sempre foi concedida recorrentemente desde que a mesma passou a existir, a exemplo
de João XXIII que morreu sem jamais tê-la celebrado (o Papa pode se auto dispensar), mas
o que não faz com que ela deixe de estar em vigor obrigatório antes de se obter a referida
1) dispensa com algum bispo tradicional pela jurisdição de suplência (o que é algo a ser
estudado) ou como fazem os 2) Ecclesia Dei, como as autoridades modernas, de fato e de
direito, possuem a jurisdição ordinária ou 3) estando na posse de um missal antigo e
podendo usá-lo até que o mesmo se desfaça em função da sua mesma fragilidade,
conforme é previsto pela Igreja.11

Continuando:

“Neste capítulo, demonstraremos que mesmo que alguém sustente que os aspectos
litúrgicos da Novus Ordo Missae são maus (devido a omissões e erros implícitos contra a
Fé), não se pode afirmar que Paulo VI violou a infalibilidade da Igreja ao publicar o novo
Missal. Isso porque a nova missa nunca foi imposta à Igreja universal por lei. Sem
dúvida, houve algum truque em ação, como mostraremos, mas o Espírito Santo não
permitiu que o Papa promulgasse legalmente a Nova Missa, nem permitiu que ele
revogasse legalmente a Missa Tradicional, que havia sido promulgada, em perpetuidade,
pelo Papa São Pio V na Bula Quo Primum Tempore.”12

“A liturgia da Igreja cai na categoria de uma disciplina universal e, portanto,


acredita-se que seja abrangida pela infalibilidade da Igreja. Como vimos, as leis
disciplinares contêm dois julgamentos, o juízo prudencial (se é uma boa disciplina conforme
os fatos e as circunstâncias) e o juízo doutrinário (se a disciplina se enquadra na doutrina
da Igreja). Apenas o juízo doutrinário de uma disciplina universal é coberto pela
infalibilidade da Igreja. Além disso, a lei deve ser promulgada com toda a autoridade
canônica ou legislativa da Igreja e ser ‘imposta’ à Igreja (ao exigir ou permitir
universalmente que os católicos façam algo). Somente quando essas duas condições são
satisfeitas é que as disciplinas da Igreja são infalíveis, ou ‘imaculadas’. Como explica o
Papa Pio XII: ‘Certamente a Mãe amorosa é imaculada nos Sacramentos, pelos quais ela
dá à luz e nutre seus filhos; na fé que ela sempre conservou inviolada; em suas leis
sagradas impostas a todos; nos conselhos evangélicos que recomenda; naqueles dons
celestiais e graças extraordinárias através das quais, com fecundidade inesgotável, ela gera
multidões de mártires, virgens e confessores’

Em seu livro de 1916, Illustrations for Sermons and Instructions, o Padre Charles
Callan, O.P., explica a infalibilidade no contexto de assuntos litúrgicos.

11
Por essa razão, curiosamente, já tivemos um padre na tradição que celebrava o Missal de São Pio
V, pré-São Pio X, por estar na posse de uma relíquia dessas, e a mesma, por um milagre
semelhante, não ter se desfeito até então, a saber, o Pe. Florry.
12
True or False Pope, capítulo 16: The New Mass and Infallibility, pág. 495.
‘Infalibilidade, então, não é a mesma coisa que inspiração… Não se aplica a todo e
qualquer ato do Papa ou da Igreja; mas ao ensino sobre fé e moral (...) não confere a ele [o
Papa], de quem é a prerrogativa, nem a impecabilidade nem a isenção de responsabilidade
de errar em tudo o que ele possa falar, nem em todas as ocasiões em que ele possa falar .
… A infalibilidade do Papa não significa que ele não possa pecar; isso não significa que ele
não possa errar em questões de ciência; não significa que ele não possa errar em questões
políticas; isso não significa que ele não possa errar em suas visões teológicas pessoais;
isso não significa que ele não possa errar em suas declarações teológicas privadas relativas
à fé ou à moral; não significa que ele não possa errar em suas decisões pessoais; não
significa que não possa errar nas suas medidas relativas à disciplina e prática da
Igreja, por exemplo: sancionar ou dissolver uma Ordem, preceitos de culto, regras
eclesiásticas etc’.”13

Paulo VI não disse que era o mais conforme à doutrina da Igreja, mas que ele
“desejava” e “esperava” que fosse bem aceita pelos fiéis, ou seja, é, no máximo, um
julgamento prudencial e não doutrinal - e como explicaremos e afirma o Pe. Hesse, no
documento oficial, só há uma única afirmação da parte de Paulo VI, “Eu gosto disso”.
1) Quanto à sua publicação nas Acta Apostolicae Sedis.

Não basta estar na AAS para um documento ser infalível. Os Atos da Santa Sé
incluem numerosos textos, alguns que emanam de congregações romanas que não se
beneficiam do carisma da infalibilidade, fato este que é admitido mesmo pelos
sedevacantistas.

Vejamos o que fala o Padre Matthias Gaudron em relação a essa questão:

"Afirma-se, às vezes, que a promulgação de um novo rito ou a publicação de uma lei


universal (por exemplo, uma lei litúrgica) estariam automaticamente no âmbito da
infalibilidade da Igreja. Mas não é verdade. É o mesmo com a Liturgia e com o ensinamento
do papa. Do mesmo modo que nem toda palavra do papa é infalível, mas que a
infalibilidade só lhe pertence em certas condições, igualmente nem toda ordenança litúrgica
é, em si mesma, infalível. Esta o será apenas se a autoridade eclesiástica a promulgar com
toda a sua autoridade e engajar a sua infalibilidade.

Já ocorreu, no passado, que a Santa Sé publicasse livros litúrgicos que


podiam favorecer o erro?

Sim, já ocorreu (embora excepcionalmente) que a Santa Sé publicasse livros


litúrgicos que podiam favorecer o erro.

Pode dar um exemplo?

O Pontifical Romano conteve, por muito tempo, uma rubrica recomendando ao bispo
bem velar, na hora da ordenação do sacerdote, para que este tocasse o cálice e a patena,
pois seria por meio disso que o caráter sacerdotal seria impresso. Essa rubrica foi suprimida
por Pio XII (Sacramentum ordinis 1947), precisando que somente a imposição das mãos é
matéria essencial da ordenação sacerdotal.

13
True or False Pope, capítulo 16: The New Mass and Infallibility, pág. 493-4; Papa Pio XII, Mystici
Corporis, nº 66, 29 de junho de 1943. Parênteses e grifos do autor; Callan, Illustrations for Sermons
and Instructions, (New York: Joseph Wagner, 1916), p.ág 146, 147. Imprimatur do Cardeal John
Farley, New York.
Pode dar outro exemplo?

O Pontifical Romano do século XIII continha um erro ainda mais surpreendente.


Afirmava que a Consagração do vinho no Sangue de Cristo poderia ser realizada mesmo
sem as palavras da Consagração, tão-só pelo contato do vinho com uma Hóstia
consagrada.

Como se pode explicar a presença de tais erros em livros litúrgicos aprovados


pela Santa Sé?

Esses erros são possíveis porque a Santa Sé, ao aprovar as rubricas, não entendia
lhes dar valor de definições dogmáticas. É óbvio para todo mundo. (Os teólogos discutiram
até Pio XII sobre a matéria do Sacramento da Ordem; não consideravam essas rubricas
suficientes para resolver a questão.)

O que se pode concluir desses exemplos?

Esses exemplos evidenciam que a Santa Sé não engaja sempre sua infalibilidade
em matéria litúrgica. Para saber em que medida a infalibilidade está engajada, é necessário
considerar atentamente a natureza, o conteúdo essencial, as circunstâncias e o grau de
autoridade das decisões tomadas.

Não é surpreendente que a Igreja não engaje sempre sua infalibilidade na


Liturgia?

Os próprios concílios, e os documentos pontifícios, ficam longe de engajar a


infalibilidade, em todas e em cada uma de suas partes, mesmo quando têm por objetivo
direto e primeiro ensinar a doutrina. É pois lógico que os ritos litúrgicos - que só a ensinam
de modo indireto - também não a engajem sempre.

Se não engaja sempre a infalibilidade, pode-se criticar livremente a Liturgia


estabelecida pela Igreja?

Embora não envolva sempre a infalibilidade (e possa excepcionalmente conter


erros), a Liturgia estabelecida pela Igreja deve ser venerada e respeitada. Seria temerário,
escandaloso e ímpio pretender submetê-la, por princípio, ao nosso julgamento particular.14

A disciplina e a Liturgia estabelecidas pela Santa Sé devem, então, ser sempre


aceitas, mesmo quando não engajam a infalibilidade?

Como geral geral, sim; a disciplina e a liturgia estabelecidas pela Santa Sé devem
sempre ser integralmente aceitas (do mesmo modo que é preciso aderir ao todo de seu
ensinamento, sem se limitar ao que é infalível). Em caso de crise excepcional, todavia, se
há a evidência de que uma decisão que não engaja a infalibilidade é perigosa para a Fé,
pode-se e deve-se mesmo resistir-lhe.

É possível que um papa tente promulgar uma Liturgia perigosa para a Fé?

14
O Papa Pio VI, em sua bula Auctorem fidei, assim condenou o sínodo jansenista de Pistoia (1786),
que havia declarado que na disciplina estabelecida e aprovada pela Igreja, era preciso fazer uma
triagem, distinguindo o que era necessário ou útil do que era inútil, pesado, perigoso ou nocivo. Pio
VI declarou que essa proposição era 'falsa, temerária, escandalosa' [DS 2678].
A situação presente indica - infelizmente - que não é impossível que um papa, em
tempo de crise excepcional, pretenda promulgar uma Liturgia que, sem ser propriamente
herética, seja perigosa para a Fé. Uma tal catástrofe é facilitada pela mentalidade liberal
dos papas pós-conciliares, que repugnam visivelmente engajar sua infalibilidade. Por outro
lado, é impossível que uma tal Liturgia seja aceita pacificamente por toda a Igreja (isso sim
significaria que 'portas do inferno teriam prevalecido').15 De fato, o caráter nocivo da nova
Liturgia foi solenemente denunciado, em Roma mesmo, por Cardeais (dentre os quais o
Cardeal Ottaviani, que havia sido Proprefeito do Santo Ofício - número dois do Vaticano -
sob três papas sucessivos). Em todo o orbe, bispos, padres e fiéis recusaram,
publicamente, celebrá-la ou se lhe associar.

Pode-se estar certo de que a nova Liturgia de Paulo VI não engaja a


infalibilidade pontifícia?

No que concerne à Missa nova, o Papa Paulo VI declarou que seus ritos podem
receber diversas qualificações teológicas: 'O rito e a correspondente rubrica não são, em si
mesmos, uma definição dogmática. Podem ter qualificações teológicas de valor
diverso, segundo o contexto litúrgico ao qual se refiram. São gestos e palavras
aplicados a uma ação religiosa vivida, vivendo de um Mistério inexprimível de presença
divina, e que não é sempre realizada sob uma forma unívoca. Somente a crítica teológica
pode analisar essa ação e exprimi-la em fórmulas doutrinais logicamente satisfatórias.'16

O que é necessário concluir?

A afirmação segundo a qual a Missa nova seria objeto da infalibilidade da Igreja é


insustentável."17

2) A missa nova foi promulgada?

"Por fim, ‘queremos dar força de lei’ a tudo que até aqui expusemos sobre o novo
Missal Romano. Nosso predecessor, São Pio V, promulgando a edição-príncipe do Missal
Romano, apresentou-o ao povo cristão como fator da unidade litúrgica e sinal da pureza do
culto da Igreja. Da mesma forma, nós, no novo Missal, embora deixando lugar para
‘legítimas variações e adaptações’, segundo as normas do Concílio Vaticano II, esperamos
que seja recebido pelos fiéis como um meio de testemunhar e afirmar a unidade de todos,
pois, entre tamanha diversidade de línguas, uma só e mesma oração, mais fragrante que o
incenso, subirá ao Pai celeste por nosso Sumo Sacerdote Jesus Cristo, no Espírito Santo.

O que prescrevemos por esta nossa Constituição entrará em vigor este ano, a partir
do dia 30 de novembro, primeiro domingo do Advento."

Vejamos o latim original:

15
Pio VI, na constituição Auctorem fidei, 28 de agosto de 1784, condenou os jansenistas que se
exprimam 'como se a Igreja, que é regida pelo Espírito Santo, pudesse estabelecer uma disciplina
[perigosa, nociva]' [DS 2678]. Esse texto, que não tem nem a autoridade nem a precisão de uma
definição dogmática, mostra bem que as autoridades eclesiásticas gozam de uma certa infalibilidade
em matéria litúrgica, mas não indica as condições, nem os limites exatos dessa infalibilidade.
Esperando que a Igreja resolva, os teólogos estão reduzidos, nessa questão, às hipóteses.
16
Paulo VI, Audiência Geral de 19 de novembro de 1969; DC nº 1552 (1969), pág 1056.
17
Catecismo da Crise na Igreja, Padre Matthias Gaudron, ed. Permanência 2011, páginas 158-160.
"Ad extremum, ex iis quae hactenus de novo Missali Romano exposuimus quiddam
nunc cogere et efficere placet. Cum Decessor Noster S. Pius V principem Missalis Romani
editionem promulgavit, illud veluti quoddam unitatis liturgicae instrumentum idemque
tamquam genuini religiοsique cultus in Ecclesia monumentum christiano populo
repraesentavit. Haud secus Nos, etsi, de praescripto Concilii Vaticani II, in novum Missale
legitimas varietates et aptationes."18

"Seria possível dedicar um livro inteiro à controvérsia que cerca o MR (Missale


Romanum). Adições foram feitas ao texto após a publicação, e mais uma vez foi o texto
corrigido que apareceu nos AAS, tornando-se, assim, a versão legal. Tenho a felicidade de
possuir uma cópia da primeira edição oficial do Novus Ordo Missae publicado pela Vatican
Press em 1969, que contém o texto original. É interessante notar que a coleção Flannery de
documentos contém uma tradução dessa versão original sem as adições. Houve também
um erro coordenado na tradução de uma passagem vital: 'Ad extremum, ex iis quare
hactenus de novo Missali Romano exposuimus quiddam nunc cogere et efficere placet.' Isso
foi traduzido pelo ICEL, e em várias outras línguas, como: 'Por fim, queremos dar força de
lei a tudo o que até aqui expusemos sobre o novo Missal Romano.' O trecho em itálico
deveria ser traduzido como 'resumir e concluir'. A tradução na coleção Flannery é
satisfatória: 'Por fim, apraz agora resumir e concluir alguma coisa de tudo que
expusemos até aqui sobre o novo Missal Romano.' O fato de que a falsificação tenha
ocorrido em várias línguas prova que foi feita uma tentativa coordenada de dar à
Constituição uma força legal que não possuía. Em todo caso, não há uma só palavra no
Missale Romanum proibindo o uso da Missa tradicional."19

Assim, com um erro de tradução, eles nos impõe uma confusão. As traduções
portuguesa, inglesa, francesa e creio que quase todas estão erradas. Para não dizerem que
isso é uma invenção, não é uma novidade histórica. Já ocorreu em outros momentos no
passado. Citamos o exemplo mais célebre para que fique claro:

No momento da consagração do vinho, as palavras da consagração, segundo a


tradução ao vernáculo feita de forma malévola, transtornou o significado original do texto,
saindo de "por muitos" para "por todos":

“Accipite et bibite ex eo omnes: hic est enim calix sanguinis mei novi et æterni
testamenti, qui pro vobis et pro multis [por muitos] effundetur in remissionem peccatorum.
Hoc facite in meam commemorationem.”

“Tomai todos e bebei: este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna
aliança, que será derramado por vós, [e por todos], para a remissão dos pecados. Fazei
isto em memória de mim.”

Conforme uma tradução fiel da Sagrada Escritura: "Porque isto é o meu sangue, o
sangue da nova aliança, que será derramado por muitos para remissão dos pecados."20

Segue-se a confissão do responsável:


18
CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Const. de sacra liturgia Sacrosanctum Concilium, nn.
38-40; AAS 56, 1964, p. 110.
19
Michael Davies, A Nova Missa de Paulo VI, ed. Permanência 2019, páginas 68-69. Louis Salleron,
no seu estudo, La nouvelle messe, cinquante ans après, aponta a mesma jogada quanto à dita
“promulgação da missa nova”, a saber: a indústria maligna dos tradutores.
20
(Padre Matos Soares, 1956, São Mateus 26, 28).
Sua intenção ao traduzir dessa maneira: "A Instrução Geral que encabeça o novo
Missal Romano consagra novas perspectivas, bem diversas daquelas que inspiraram o
antigo Corpo de Rubricas. Domina a linha mestra da flexibilidade, que confere com
frequência oportunidades de escolha ao celebrante. Este deixa de ser um mero executor
de rubricas para assumir com espontaneidade a presidência da assembleia
litúrgica."21

Como ele conseguiu que a tradução fosse aceita: “Apresentei em Roma, e a


Congregação para o Culto Divino aprovou nossa versão. Nossa sorte é que no momento
não havia na Congregação perito em língua portuguesa. Desta forma obtivemos
aprovação da simplificação do Cânon Romano, que tinha sido apresentada pelos
franceses e negada... Nós simplesmente havíamos copiado a proposta francesa."22

O mesmo erro acontece em quase todas as traduções, como na inglesa feita pela
ICEL, e com a única exceção presente na edição polonesa. Por isso, muitos canonistas
falam sobre a dubiedade da validade da consagração a partir de tais traduções. Assim, se
não pouparam a tradução errônea do próprio Cânon da Missa, o que os impede de traduzir
erroneamente um documento?

“Como o Missale Romanum foi uma Constituição Apostólica emitida pelo próprio
Papa (enquanto os pronunciamentos subsequentes sobre a Nova Missa vieram das
congregações do Vaticano e não do Papa), o Pe. Cekada apontou o Missale Romanum
como o documento que ele alegou violar a infalibilidade da Igreja (já que ele sabe que um
documento emitido por alguém que não seja um Papa não poderia tê-lo feito). Em seu artigo
de 2000, intitulado ‘Paulo VI «promulgou ilegalmente» o Novus Ordo? A Fraternidade de
São Pio X e um mito tradicionalista popular’, o padre Cekada argumenta que no Missale
Romanum, Paulo VI promulgou legalmente a Nova Missa, impôs-a aos fiéis como uma lei
universalmente obrigatória e revogou o Quo Primum no processo. Vamos dar uma olhada
nos argumentos de Pe. Cekada para determinar se ele está dizendo a verdade.

O Pe. Cekada começa seu artigo fornecendo a seguinte definição de ‘promulgação’.


Ele escreve: ’A essência da promulgação é a proposta pública de uma lei à comunidade
pelo próprio legislador, ou sob sua autoridade, de modo que a vontade do legislador de
impor uma obrigação possa se tornar conhecida por seus súditos’. Observe que Pe.
Cekada admite que uma lei ou disciplina da Igreja validamente promulgada ‘impõe uma
obrigação’ aos fiéis. Pe. Cekada afirmou o mesmo quando indagou: ‘Neste caso, Paulo VI
manifestou sua vontade de impor aos seus súditos uma obrigação (ou seja, a Nova Missa)?’

O Pe. Cekada então responde à sua própria pergunta dizendo: ‘Paulo VI deixa bem
claro que sua vontade é impor a obrigação de uma lei a seus súditos’. Como prova de sua
afirmação, o Pe. Cekada aponta para o anúncio da Constituição do novo missal, juntamente
com a introdução de três novos cânones (‘orações eucarísticas’) e as fórmulas de

21
Apresentação ao novo ―Ordo Missae – em ―Presbiteral, Vozes, Petrópolis, pág. 5; e ―Liturgia
da Missa, Edições Paulinas, São Paulo, 1969, pág. 3. Conforme citado por Arnaldo Xavier,
Considerações etc..., pág 99. Grifos nossos.
22
D. Clemente Isnard, Conferência pronunciada no “Encontro dos Liturgistas do Brasil. in A Sagrada
Liturgia — 40 anos depois", estudos da CNBB no. 87. Editora Paulus, São Paulo, 2003. - Por uma
engraçadíssima disposição da Divina Providência, D. Clemente Isnard foi o primeiro bispo da diocese
de Nova Friburgo, onde se situa o Mosteiro da Santa Cruz.
consagração a serem usadas em cada um dos novos cânones. Com base nessas
mudanças, o Pe. Cekada conclui que: ‘A Nova Missa foi promulgada e a lei é obrigatória’.

A alegação do Pe. Cekada é patentemente falsa. Como se pode ver claramente ao


ler atentamente o documento, o Missale Romanum não ‘impõe uma obrigação’ à Igreja de
usar a Nova Missa, que é necessária mesmo de acordo com a própria definição do Pe.
Cekada. De fato, o Missale Romanum não decreta nada além do que o Pe. Cekada
realmente aponta em seu artigo: Paulo VI decretou a opção de usar três novas orações
eucarísticas e decretou que as mesmas fórmulas de consagração sejam usadas em cada
uma dessas orações. É isso. Como explica o Pe. Paul Kramer, ‘a Constituição contém
apenas dois decretos: 1. Decidimos acrescentar três novos cânones à oração eucarística e,
2. Ordenamos que as palavras do Senhor sejam idênticas em cada forma do cânon .’23 Em
outras palavras, enquanto o Missale Romanum anuncia a publicação do novo missal, ele
apenas fornece três novos cânones como opções e determina que todos os três usem as
mesmas fórmulas para a consagração. A constituição nada mais legisla sobre a Missa. O
Pe. Paul Kramer observa habilmente que:

‘A mera publicação de um novo Missal não implica a revogação da legislação


anterior – não existe legislação implícita. Não se deve esquecer que pertence à própria
essência da lei que 1) deve ser preceptiva em sua redação se vai tornar algo obrigatório, 2)
deve especificar quem são os objetos da lei e deve especificar onde e quando a lei entrará
em vigor, 3) a lei deverá ser promulgada publicamente na forma da lei, pela autoridade
competente;’2425

O Missale Romanum de Paulo VI não promulgou o Novo Missal (o Novus Ordo


Missae), como o Pe. Cekada queria que seus leitores acreditassem. De fato, até mesmo
alguns dos companheiros sedevacantistas do Pe. Cekada reconhecem isso. Por exemplo,
comentando o artigo acima mencionado do Pe. Laisney (que demonstrou que a Nova Missa
não foi promulgada legalmente) e o artigo do Pe. Cekada (que argumenta o contrário), o
apologista sedevacantista, John Lane, escreve:

‘Estes textos e comentários demonstram perfeitamente o que venho dizendo: Paulo


VI não fez nenhuma lei que permitisse ou obrigasse alguém a usar o novo missal. Pe.
Cekada não pode apontar para o texto necessário - ele destaca a promulgação e a
terminologia preceptiva, mas falha notavelmente em apontar para a parte que diz 'Pessoas
X são permitidas ou obrigadas a fazer Y.'

Em vez disso, o Missale Romanum expressa a ‘esperança’ e o ‘desejo’ de Paulo VI


de que a Nova Missa fosse recebida com alegria pelos fiéis (o que, aliás, não foi!). Paulo VI
disse: ‘esperamos (confidimus), no entanto, que o Missal seja recebido pelos fiéis como um
instrumento que testemunha e afirma a unidade comum de todos’; e, ‘Desejamos (volumus)
que estes ‘Nossos decretos e prescrições sejam firmes e efetivos agora e no futuro…’

23
The Suicide of Altering the Church’s Faith in the Liturgy, (Terryville, Connecticut: The Missionary
Association, 2006), pág. 134.
24
Idem. pág. 135.
25
Para confirmar o Pe. Krammer, citamos D. Fessler citando por sua vez Perrone: “Aqui temos um
caso como Perrone expressamente fala acima, na pág. 50, chamando-o de omissio definitionis, que
ele diz não poder constituir um enunciado ex cathedra; assim, a extensão positiva de uma definição
deve ser medida, não pelo que não é dito, mas por aquilo que é dito.” (Dom Fessler, A Verdadeira e a
Falsa Infalibilidade, etc… pág. 77).
Longe de ‘impor’ a Nova Missa como uma ‘obrigação’ da Igreja como Pe. Cekada afirma, o
Missale Romanum faz pouco mais do que expressar os sentimentos pessoais [por isso a
afirmação do canonista Pe. Gregorius Hesse: neste documento só há uma afirmação, ‘eu
gosto disso’] de Paulo VI em relação à recepção dos fiéis à Nova Missa e sua esperança
por uma maior unidade dentro da Igreja

Como o Pe. Laisney observa corretamente em seu artigo:

‘O Papa Paulo VI não obrigava o uso de sua missa, mas apenas o permitia. A
palavra 'permitido' nem sequer é usada na constituição Missale Romanum. Ele apenas
diz... 'que está confiante de que [seu missal] será aceito...' Não há nenhuma ordem,
comando ou preceito claro que o imponha a qualquer sacerdote!’.”26

“(...) Em terceiro lugar, não só o Missale Romanum de Paulo VI não promulgou


oficialmente a Nova Missa, como também não há futura legislação papal publicada na
Acta Apostolice Sedis que ‘imponha como uma obrigação’ o novo missal à Igreja. De
acordo com o cânon 9 do Código de 1917 (que estava em vigor quando foi introduzida a
Nova Missa): ‘As leis promulgadas pela Santa Sé são promulgadas por sua publicação no
comentário oficial Acta Apostolicae Sedis, a menos que em casos particulares outro modo
de promulgação seja prescrito.’ Comentando sobre este ponto, Pe. Laisney escreve:

‘Um decreto da Sagrada Congregação dos Ritos impondo a Nova Missa não está
nas Acta Apostolicae Sedis. Um decreto da Sagrada Congregação dos Ritos (datado de 6
de abril de 1969) está apenas no início da primeira edição do próprio Novus Ordo Missae,
não na Acta Apostolicae Sedis, onde deveria aparecer. Em edições posteriores da Nova
Missa é substituído por um segundo decreto (26 de março de 1970) permitindo apenas o
uso da Nova Missa. Este segundo decreto que apenas permite – não ordena – seu uso,
está nas Acta Apostolicae Sedis. Não há um único teólogo vivo que diria que o primeiro ou o
segundo decreto está coberto pela infalibilidade do Papa’.

Como mencionamos no início do capítulo, o decreto de 26 de março de 1970,


Celebrationis Eucharistiae, que “promulgou” a Nova Missa, foi emitido pela Congregação
para o Culto Divino, e não pelo Papa. Além disso, este ato de ‘promulgação’ meramente
permite a Nova Missa; não impõe a Nova Missa como legislação obrigatória sobre a Igreja.

O que tudo isso demonstra é que Paulo VI não promulgou legalmente a Nova Missa,
muito menos a ‘impôs como uma obrigação’ à Igreja como uma lei universalmente
obrigatória. Portanto, Paulo VI de forma alguma violou a infalibilidade disciplinar em
conexão com a publicação da Nova Missa. Embora a Nova Missa e os muitos abusos que
ela gerou tenham causado danos ao Corpo de Cristo, Deus quis permitir isso sem
comprometer a infalibilidade da Igreja.”27

Concluindo rapidamente, o que concerne à obrigatoriedade vinculante no


documento, que é uma das quatro condições necessárias para engajar a infalibilidade, a
imposição como força de lei, não existe no documento em latim na Acta Apostolicae Sedis,
o único assinado por Paulo VI, e portanto, não torna vinculante e consequentemente não
faz com que seja um decreto infalível. Assim, o argumento de que foi publicado na Acta não

26
True or False Pope, capítulo 16: The New Mass and Infallibility, Pág. 502-5.
27
Idem. pág. 523-24.
é válido, e uma coação contra o Papa, como vimos ter ocorrido mais de uma vez28, ou uma
alteração maliciosa da parte de algum membro da hierarquia vaticana, não possui valor,
uma vez que apenas o que foi exatamente declarado e assinado pelo Papa, em pleno livre
arbítrio, é digno de nota e que uma falsificação não poderia possuir tal força vinculante nem
infalibilidade (o que é mais do que evidente).

Se fosse uma reforma infalível, jamais a Santa Sé aceitaria as inúmeras dúbias que
foram enviadas a seu respeito e a missa normativa não teria sido recusada pelos bispos e
cardeais, para depois ser "imposta" pelo Papa (lembrando que os atos exteriores do
pontífice em suas ações consequentes a um documento, como exemplificado pelo caso da
Unam Sanctam e da relação de Bonifácio VIII e Filipe o Belo, nada acrescentam a
infalibilidade de um documento).

3) Do defeito de intenção

Em primeiro lugar, se, como afirmam alguns sedeprivacionistas, não é conveniente


nem possível supor um defeito na intenção do papa quanto ao seu magistério, eu digo que,
se formos seguir essa linha, vocês também não serão capazes de se adequar a tais
proporções estreitas. Afinal, se não é possível supor um defeito na intenção quanto ao
magistério do papa, muito menos possível seria inferir a possibilidade de uma defecção na
sua função por causa de um mesmo defeito de intenção.

Continuando, é necessário considerar o defeito de intenção manifesto e instituído


por Paulo VI na sua Carta Encíclica Ecclesiam Suam (AAS 56 (l964), pp. 609-659)

"Opinamur quidem Concilium Oecumenicum, quaestiones pertractans ad Ecclesiam


pertinentes quatenus in humana consortione nostrorum temporum operatur, magisterio suo
nonnullas traditurum esse normas, sive quoad doctrinam sive quoad usum, aptas ad recte
serendum colloquium cum hominibus huius aetatis".

Um magistério que vise a todos os homens de sua idade, que vise não só aos fiéis,
mas também aos infiéis, que vise toda a humanidade, não é magistério. Ora, a Igreja não
possui jurisdição sobre os infiéis, logo, não possui magistério sobre eles, pelo que o
magistério que dialoga com os infiéis não pode ser magistério eclesiástico, dado que não
participa do poder de jurisdição.

“42. É preciso que tenhamos sempre presente esta inefável e realíssima relação de
diálogo, que Deus Pai nos propõe e estabelece conosco por meio de Cristo no Espírito

28
O padre Ralph M. Wiltgen, S.V.D. reporta que a publicação do SL (Sacram Liturgiam) causou um
pandemônio. Protestos indignados surgiram dos progressistas. Talvez a maior crítica que se fazia ao
Motu Proprio era que este não autorizava a introdução da língua vulgar na liturgia a partir de 16 de
fevereiro de 1964. Os jornais não tardaram a relatar que, sem levar isso em conta, a hierarquia
francesa se adiantava. A hierarquia alemã enviou imediatamente a Roma um de seus principais
liturgistas, o monsenhor Wagner, para ver o que tinha acontecido. O cardeal Lercaro, arcebispo de
Bolonha, não escondeu seu descontentamento e anunciou que viria a Roma para ver o Papa. (...) e
assim o Motu Proprio foi corrigido para garantir que a hierarquia francesa, e qualquer outra hierarquia
que decidisse introduzir o vernáculo imediatamente, não estivesse desobedecendo à lei. (Obra já
citada, pág 46).
Santo, para entendermos a relação que nós, isto é a Igreja, devemos procurar
restabelecer e promover com a humanidade. [...]

60. Depois, vemos desenhar-se a nossa volta outro círculo também imenso, contudo
mais próximo de nós. Ocupam-no primeiramente os homens que adoram o mesmo Deus
único e supremo que nós adoramos, aludimos aos filhos do povo hebraico, dignos do nosso
respeito afetuoso, fiéis à religião que nós chamamos do Antigo Testamento. E depois os
adoradores de Deus segundo o conceito da religião monoteísta, especialmente da
muçulmana, dignos de admiração pelo que há de verdadeiro e de bom no culto que prestam
a Deus. Seguem-se os adeptos das grandes religiões afro-asiáticas. Não podemos, é claro,
compartilhar essas várias expressões religiosas, nem podemos diante delas ficar
indiferentes, como se todas, equivalendo-se mais ou menos, dispensassem os seus fiéis de
investigar se Deus revelou a forma, infalível, perfeita e definitiva, como quer ser conhecido,
amado e servido. E, por dever de lealdade, devemos manifestar que estamos certíssimos
que uma só é a religião verdadeira, a cristã; alimentamos a esperança de que a venham a
reconhecer como tal, todos os que procuram e adoram a Deus.”

Segundo o Padre Pierre-Marie:

“Por que o Espírito Santo não pode ajudar a Igreja a trabalhar para a unidade
da humanidade?

A Igreja foi fundada para salvar almas e uni-las a Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao
fazer isso, a Igreja trabalha indiretamente pela paz, propagando a caridade nas almas:
‘Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e sua justiça [a união com Nosso Senhor
Jesus Cristo pela graça], e todas estas coisas [incluindo a paz] vos serão dadas por
acréscimo’ (Mt 6, 33) [versão Pe. Matos Soares].

Mas hoje a Maçonaria procura remodelar a unidade da humanidade (‘globalismo’)


por meios humanos e excluindo positivamente Nosso Senhor Jesus Cristo em virtude do
‘secularismo’. Como foi visto especialmente após o Concílio (com a secularização dos
Estados e reuniões inter-religiosas), os homens da Igreja colaboram neste trabalho através
da liberdade religiosa, do ecumenismo e do diálogo inter-religioso. O Espírito Santo não
pode ajudar a Igreja a trabalhar para um fim que não é o Seu.

Na medida em que os papas e bispos falaram no Concílio, não se deve então


obedecer e aceitar o Vaticano II?

Os Padres do Concílio decidiram adotar ‘formas de investigação e formulação


literária do pensamento moderno’29, ou seja, a ‘nova teologia’30 fundamentada na filosofia
moderna. Ora, esta filosofia é subjetiva: a verdade não vem de fora; ela vem, pelo menos

29
João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 11 de outubro de 1962 (do texto italiano [tradução
Komonchak]). O mesmo texto em: João XXIII- Paulo VI, Discours au Concile, Paris, le Centurion,
1966, pág. 64.
30
Esta expressão significa a teologia neo-modernista dos anos 40. Ver Pe. Réginald
Garrigou-Lagrange, O.P., “La nouvelle Théologie où va t–elle?”, Angelicum 23 (1946), pág. 126-145,
traduzido em Réginald Garrigou-Lagrange, “Where is the New Theology Leading Us?”, trad. por
Suzanne M. Rini, Catholic Family News Reprint Series #309.
em parte, do sujeito conhecedor. Mas se a verdade não vem de fora, a hierarquia não
pode impô-la: assim, o Concílio inaugurou um novo tipo de magistério, um magistério
vivo e ‘dialogal’ que perdeu seu aspecto vinculante.

Por que os Padres do Concílio adotaram esta nova teologia?

Como eles queriam adaptar o ensinamento da Igreja ao mundo moderno, tinham


que encontrar uma maneira de modificar este ensinamento. A solução foi adotar uma
filosofia subjetivista moderna, segundo a qual, como dissemos, a verdade vem, pelo menos
em parte, do sujeito conhecedor. E, consequentemente, evolui com ele. O que era verdade
ontem (por exemplo, que a Igreja não pode adotar a liberdade religiosa), não é verdade
hoje.

Assim, graças a esta nova teologia, pode-se fazer uma atualização da Igreja e
reconciliá-la com o mundo moderno [perdendo assim seu caráter mesmo de pretenso
magistério]”.31

Prosseguindo:

"Iamvero Ecclesiae in colloquium veniendum est cum hominum societate, in qua


vivit; ex quo fit, ut eadem veluti speciem et verbi, et nuntii, et colloquii induat."

Aqui, Paulo VI reafirma o mesmo que na citação pretérita, e em ambas, Paulo VI


dispõe o Concílio e a Igreja, portanto, todos os bispos, a um magistério dialógico, distinto
do magistério eclesiástico que parte do poder de jurisdição - de cima para baixo, vertical e
não horizontal, como é o “magistério conciliar”.

"Itaque colloquium quasi ratio quaedam est putandum apostolici obeundi muneris,
atque animorum iungendorum veluti instrumentum."

Aqui, Paulo VI se impõe, e impõe a todos os bispos, um exercício coloquial e


dialógico do magistério, portanto, não impositivo, sendo então essencialmente distinto
daquele magistério reclamado pelos papas anteriores, como Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII
ou Pio XII.

“38. A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se
palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio.

Este aspecto capital da vida hodierna da Igreja será objeto de estudo especial e
amplo do Concílio Ecumênico, como todos sabem. Nós não queremos entrar no exame
concreto dos temas que esse estudo apresenta, para deixarmos aos Padres conciliares a
missão de os tratar com toda a liberdade. Queremos só convidar-vos, Veneráveis Irmãos, a
antepor a esse estudo algumas considerações, para ficarmos a conhecer mais claramente
os motivos que levam a Igreja ao diálogo, os métodos mais aconselháveis e os objetivos em
vista. Queremos dispor os ânimos, não tratar as matérias."

31
Padre Pierre-Marie, Pequeno Catecismo do Vaticano II, ed. Para que Ele reine, 2023, pág.13-14.
Colchetes nossos.
Paulo VI é claro na afirmação de que a Igreja se fez colóquio, e ele mesmo deu as
propriedades de tal colóquio, que são incompatíveis com o exercício do magistério, e ele
mesmo dispõe todos os bispos, como representantes da Igreja, a reproduzirem o novo
modo coloquial de magistério.

"39. Nem podemos desinteressar-nos deste assunto, convencidos como estamos


que o diálogo deve caracterizar o nosso cargo apostólico."

Aí, Paulo VI coloca como imperativo que o diálogo caracterize o papado desde o seu
pontificado, afetando o magistério de todos os papas pós-conciliares que buscam no CVII o
ensejo para os seus discursos e documentos.

"47. O colóquio é, portanto, modo de exercer a missão apostólica, arte de


comunicação espiritual. Os seus caracteres são os seguintes: [...] 2) Outro caráter é a
mansidão, aprendida na escola de Cristo, como Ele nos recomendou: "aprendei de mim que
sou manso e humilde de coração" (Mt 11,29). O diálogo não é orgulhoso, não é pungente,
não é ofensivo. A autoridade vem-lhe da verdade que expõe, da caridade que difunde,
do exemplo que propõe; não é comando, não é imposição."

Paulo VI chega ao ponto de negar ao seu magistério coloquial, e ao de todos os que


o seguiram, o que inclui os papas e bispos conciliares, uma autoridade externa e extrínseca,
atribuindo ao mesmo somente a autoridade intrínseca da verdade pregada, a mesma
autoridade que todo e qualquer ente inteligente possui! Mas Paulo VI segue afirmando que
sua autoridade coloquial não faz exigências, de modo que não reclama assentimento, não
podendo ser exercício do magistério eclesiástico.

Antes de darmos nossa conclusão, para dar maior fundamento a ela, nos
recomendamos à explicação do Padre Calderón: “Quem busca alcançar a verdade pelo
diálogo não pretende ensinar como mestre, porque o diálogo propriamente dito se opõe ao
magistério como a seu contrário.32 Mas o liberalismo dos Papas conciliares os levou a
pôr-se diante dos bispos em atitude de diálogo e a pôr o Concílio em diálogo com a Igreja,
com as religiões e com o mundo. Não houve, portanto, exercício do magistério formal e
explícito.

Mais ainda, como a versão neomodernista do ‘sensus fidei’ ensina que a voz do
Povo é a voz de Deus e que esta voz fala pela boca dos neoteólogos, a dinâmica liberal
impressa ao Concílio estabeleceu os ‘peritos’ como ‘mestres dos bispos’ - isso não é uma
suspeita, mas um fato patente que foi então denunciado e que nos Estudos dos Simpósios
da Fraternidade em Paris foi comprovado até à saciedade, vendo-se como os documentos
conciliares são animados por uma doutrina que, às vésperas do Concílio, só era conhecida
nos círculos antes fechados na nova teologia. Ora, o Espírito Santo não assiste os teólogos,
mas a hierarquia. Portanto, se esta não se apoia na autoridade de seu próprio carisma,

32
O diálogo socrático ou catequístico, em que um só pergunta e o outro só responde, não é diálogo
propriamente dito, mas pedagogia de bom mestre. Não era isso o que propunha Paulo VI: ‘A dialética
deste exercício de pensamento e de paciência nos fará descobrir elementos de verdade também nas
opiniões alheias” (Ecclesiam suam, n. 77).
mas, invertendo a ordem, se torna discípula da nova ciência, o magistério que resulta de tal
assembleia pouco tem de divino.

Esse vício que afetou o Concílio - e segue afetando o magistério posterior - implica,
então, um defeito essencial que destrói as quatro notas de discernimento, por efeito dominó,
da última para a primeira.

● Quanto à intenção, porque o Concílio não quis impor um magistério, mas propor um
diálogo.

● Quanto aos ouvintes, porque no diálogo devia intervir toda a humanidade, e por isso
dirigiu a voz não só aos fiéis católicos, ‘mas a todos os homens’ (Gaudium et spes,
n.2).

● Quanto à matéria, porque em sua vontade de diálogo o Concílio aceitou opiniões


modernas que não procedem da Revelação, mas da Revolução.

● Quanto ao sujeito, porque, submissos ao diálogo, os Papas não confirmaram o


Concílio subordinando-o a seu carisma pessoal, in persona Christi, mas
subordinado-se eles ao ‘sensus fidei’, atuando então in persona Populi Dei e, de
certa maneira, in persona Humanitatis.

O magistério conciliar não só carece de autoridade, mas é reprovável (artigo


terceiro). Na medida em que o magistério simplesmente autêntico não é assistido pelo
Espírito Santo, nessa mesma medida deve ser julgado segundo os critérios com que se
julgam os doutores privados. Pio XIII, por exemplo, mereceu grande autoridade científica
como teólogo privado, e seus discursos ocasionais valem mais por sua autoridade pessoal
que pela autoridade assistida, que é ínfima. Dando, então, que o vício liberal tira do Concílio
a segurança da assistência divina, deve-se julgá-lo como se julgam as conclusões de
qualquer congresso de teólogos. Mas, como dissemos, é claro que a doutrina que anima os
documentos conciliares corresponde à da nova teologia, condenada repetidas vezes pelos
Papas anteriores de maneira geral por seu intrínseco subjetivismo. Portanto, a doutrina
conciliar não só carece de valor como magistério simplesmente autêntico, não somente é
carente de autoridade simplesmente teológica, mas é em seu conjunto reprovável, ao
menos por estar impregnada do relativismo do pensamento moderno, evidenciado na
deliberada ambiguidade de sua linguagem.

Como corolário imediato, deve-se dizer que as declarações conciliares não podem
contribuir em nada para o modo ordinário do magistério, pois o vício que as afeta impede de
vinculá-las às declarações do magistério autêntico anterior. Se há uma página, para dar um
exemplo, que parece reafirmar e fazer progredir o ensinamento tradicional, é, justamente, a
que trata da autoridade do magistério hierárquico, no n. 25 da Lumen Gentium. Podemos
resgatar pelo menos este texto? Não, por certo, porque no capítulo anterior este mesmo
documento subordinou o ofício hierárquico ao ‘sensu fidei’, do que foi ensinado pelo
Vaticano I. Além disso, a própria noção de infalibilidade se desvanece quando se defende
que as fórmulas dogmáticas são sempre inadequadas para expressar o mistério revelado,
permitindo sempre certo pluralismo.”33

Portanto, concluindo nosso ponto, nem os documentos conciliares, nem os novos


sacramentos, nem o magistério e a disciplina conciliares, possuem qualquer autoridade ou
título vinculativo, mas seu valor canônico é absolutamente nulo e completamente inválido,
embora, secundum quid et per accidens, possam haver coisas que se aceitem nos
elementos citados, por exemplo, a nova legislação quanto ao grau de consanguinidade
necessário para invalidar o matrimônio apresentada no Código de Direito Canônico de João
Paulo II, ou a criação de novas circunscrições eclesiásticas, coisas essas aceitas pelos
sedeprivacionistas.

4) Doutrina X Disciplina

Agora que constatamos que não houve nenhuma promulgação nem imposição, no
documento "Missale Romanum" (1969), e que além disso, o Papa Paulo VI depôs sua
autoridade vinculativa pela Encíclica Ecclesiam Suam (1964) e demais documentos
conciliares34, pelo que não se aplica a tal reforma infalibilidade alguma, por carecer de
qualquer doutrina que a fundamente e dado que seu ato não foi vinculativo, de modo que
não possamos tratá-lo nem mesmo como ato de jurisdição, mas como sugestão de um
doutor privado, como sugestão passível de ser encarada e contestada de maneira humana,
como provado pelo Padre Calderón na Candeia debaixo do Alqueire e que logo será
exposto aqui, uma vez que a redução contínua do magistério meramente autêntico, pelas
inúmeras irregularidades que se passaram no decurso do mesmo Concílio e pelas diversas
abdicações de autoridade já mencionadas, tornaram cada vez menos infalíveis suas
proposições, e que toda a lei disciplinar e de governo só ganha a sua autoridade na
medida em que é auxiliada pelo magistério doutrinal, ou seja, pelas definições de fé e
moral, como apenas o julgamento doutrinário de uma disciplina universal é coberto pela
infalibilidade da Igreja.

Além disso, a lei deve ser promulgada com toda a autoridade canônica ou legislativa
da Igreja e ‘imposta’ à Igreja, a exemplo do Papa São Pio X que somente poderia impor o
juramento anti-modernista após ter condenado o modernismo e definido, senão ele outro
Papa ou Concílio anterior ou o M.O.U, as verdades de Fé que ele nos exige a professar

33
Padre Calderón, A Candeia debaixo do Alqueire, 2ª ed. Castela 2020, pág 297-299.
34
“Mas convém notar uma coisa: o magistério da Igreja, embora não tenha querido pronunciar-se
com sentenças dogmáticas extraordinárias…” Paulo VI, Discurso de encerramento do Concílio
Vaticano II, 7 de dezembro de 1965. “Devemos ter cuidado: os ensinamentos do Concílio não
constituem um sistema orgânico e completo da doutrina católica; (...) Há quem se pergunte qual a
autoridade, a qualificação teológica, que o Concílio quis atribuir aos seus ensinamentos, sabendo
que evitava dar definições dogmáticas solenes, comprometendo a infalibilidade do magistério
eclesiástico. E a resposta é conhecida por aqueles que se lembram da declaração conciliar de 6 de
março de 1964, repetida em 16 de novembro de 1964: dada a natureza pastoral do Concílio, ele
evitou pronunciar de forma extraordinária dogmas dotados de nota de infalibilidade; mas dotou
seus ensinamentos com a autoridade do supremo magistério ordinário, magistério ordinário tão
manifestamente autêntico que deve ser aceito mansa e sinceramente por todos os fiéis, de acordo
com a mente do Concílio sobre a natureza e os propósitos de cada documento.” Paulo VI, Audiência
Geral, 12 de janeiro de 1966 [quanto a este magistério ordinário, como dito pelo Padre Calderón,
sendo apenas o magistério de um doutor privado, pelas razões supracitadas, pode ser tão criticado
quanto o de qualquer conferência de teólogos, e sem dúvidas, podemos dizer que Billuart ou Billot
possuem mais infalibilidade em seus escritos do que estes documentos].
neste mesmo juramento, podemos concluir que, o “magistério” conciliar, quando se vale de
seu “magistério disciplinar” ou de “governo” - lembrando que não se vale-, como não está
baseado em verdadeiras definições de fé e moral, mas antes, que seus documentos de
suposta disciplina e governo não são baseados no magistério anterior, como tentam nos
fazer crer enganosamente, comparando a clareza dos antigos documentos com a falta de
definição e dubiedade dos novos, e que por isso mesmo caem em contradição, no dito
"magistério" mesmo do Concílio Vaticano II, que é um anti-magistério, seus atos são ,
portanto, tirânicos e inválidos, sendo viciados desde a sua origem.

Assim explica o Prof. Carlos Nougué, comentando o Padre Calderón: "Deve dizer-se
que, quando se põe que os atos de magistério meramente autêntico, ainda que não
assegurados pela infalibilidade, também gozam da assistência do Espírito Santo, razão por
que exigem ‘religiosa obediência do intelecto e da vontade’, se supõe que o sujeito do
magistério comprometa neles, em algum grau, sua mesma autoridade delegada por Cristo.
Supõe, em outras palavras, que fale in persona Christi. Com efeito, como diz o Padre Álvaro
Calderón, ‘a hierarquia eclesiástica pode propor seu magistério de várias maneiras,
implicando cada uma vários graus de autoridade. Pois bem, a atitude liberal adotada pela
hierarquia conciliar leva-a a propor seu magistério à maneira de diálogo público - do Povo
de Deus -, o que implica grau zero de autoridade’. Fala, pois, como dito, in persona Populi
Dei, e seu magistério, conquanto se deva dizer meramente autêntico, só o é, todavia,
secundum quid, ou seja, enquanto não se pode dizer estritamente pessoal, mas não
simpliciter, porque de fato, como sugerido numa nota acima, magistério autêntico implica
autoridade, que por sua vez implica verdade. Com efeito, uma autoridade não fundada
na verdade só se pode dizer tal muito impropriamente, ao passo que seu exercício pode
dizer-se propriamente tirânico".35

Leão XIII o confirma: “A única razão a qual os homens têm para não obedecer é
quando algo demandado por eles repugna abertamente ao direito natural ou ao
direito divino; porquanto não podem ser mandadas e nem executadas todas aquelas
coisas que violam a lei natural ou a vontade de Deus. Se, pois, suceder que o homem se
veja obrigado a fazer uma das duas coisas, ou seja, ou desprezar os mandamentos de
Deus ou desprezar a ordem dos príncipes, ele deve obedecer a Jesus Cristo, que nos
manda dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus [Mt 22, 21], e, a exemplo
dos Apóstolos, responder vigorosamente: ‘Importa obedecer mais a Deus do que aos
homens’ [Atos 5, 29]. E também não há razão para serem acusados de recusar a
obediência devida aqueles que assim procedem, pois se a vontade dos governantes
contradiz a vontade e as leis de Deus, os governantes excedem os limites do seu poder e
pervertem a justiça. Então, nem a autoridade deles pode ser válida, pois onde não há
justiça a autoridade é nula.”36

Para acentuar essa falta de definições dogmáticas enquanto impõem reformas


disciplinares, basta compararmos com o Concílio de Trento, que teve como primeiro objetivo
a publicação do seu Catecismo, enquanto que, por outro lado, a última coisa a sair do
Concílio Vaticano II foi o novo catecismo de João Paulo II.

Repetindo o que foi dito pelo Padre Sylvester Berry: “(...) Por exemplo, a lei
(disciplinar) que prescreve a Comunhão sob uma espécie pressupõe a doutrina (definição
35
Do Papa Herético, etc… pág. 282
36
Papa Leão XIII, Encíclica Diuturnum Illud de 19 de junho de 1881.
doutrinal de Fé ou Moral) de que Nosso Senhor está presente inteiro e completamente sob
qualquer forma, e as leis relativas à exposição de relíquias também pressupõem que a
veneração delas é lícita (para possuir a sua infalibilidade e poder vinculante).”37

Retomando assim a questão da dita infalibilidade negativa em âmbito disciplinar


(que é uma falsidade terminológica, ao menos, enquanto expressam a situação dessa
maneira), se consideramos que o magistério do concílio se reduz ao magistério de um
doutor privado, e que Paulo VI não impôs a missa nova mas apenas a recomendou,
limitando também sua recomendação a opinião de um doutor, a dita negatividade (que
impede o magistério de conter erros danosos a fé), que só está assegurada ao magistério
de fato, uma vez considerado que não se trata de magistério de verdade mas apenas da
opinião de um doutor, tal infalibilidade não está garantida para a NO. Como explicado pelo
Padre Callan: “(...) [a infalibilidade papal] não significa que ele não possa errar em suas
decisões pessoais; não significa que não possa errar nas suas medidas relativas à
disciplina e prática da Igreja.”38

Caso fique subentendido, implícito, que a intenção do Papa é proclamar o pluralismo


religioso, o ecumenismo, em documentos como a Gaudio Spes e demais, isso não importa.
O que fica subentendido não foi definido (omissio definitionis), e indo em contradição com o
magistério infalível, sendo uma mera opinião dos papas em questão, não possuindo, não
importa por quantos anos seja repetida, sua infalibilidade assegurada em tal doutrina, é
apenas, em poucos termos, uma opinião privada sem o caráter infalível, sem passado na
tradição (e, pelo contrário, apenas uma oposição à ela), e portanto, como podemos rejeitar
um falso profeta, mas não depô-lo, podemos apontar para o erro, reconhecê-lo e resisti-lo.
Tal, na prática e na teoria, foi a posição de Dom Lefebvre.

Para esclarecer ainda mais os limites do magistério do Sumo Pontífice, tratarei de


recorrer ao Pe. Louis-Marie, O.P., em seu artigo “Saint François de Sales, le pape et
l’énigme Bellarmin: A propos de l’infaillibilité et du pape hérétique”, presente na última
edição do Le Sel de la Terre, de nº 123:
37
Pe. Sylvester Berry, The Church of Christ, pág. 291. Parênteses extraídos do livro “True or False
Pope”, pág. 494.
38
"Apontamos mais um erro cometido pelo Padre Ricossa. No final de seu estudo, ele cita o Papa
Gregório XVI em sua encíclica Quo Graviora (EPS-Égl., n 173) como prova de que um verdadeiro
papa não poderia "conceder ou permitir nada que viesse a prejudicar a salvação dos almas, em
desacato e em detrimento de um sacramento instituído por Cristo". Consequentemente, uma vez que
os atuais papas concedem ou permitem muitas coisas que vão "em detrimento da salvação das
almas ou em detrimento dos sacramentos instituídos por Cristo", isso seria uma prova de que eles
não podem ser verdadeiros papas (pelo menos formalmente). Mas, quando olhamos para o contexto
desta citação, vemos que o padre Ricossa interpreta mal o texto papal. De fato, o Papa Gregório XVI
fala nesta carta das ações de certos supostos reformadores que exigiam reformas inaceitáveis
​(constituições das Igrejas nacionais, abolição do celibato para os padres) e o papa conclui dizendo
que não poderia [no sentido de : <não lhe é permitido> [moralmente] <conceder ou permitir qualquer
coisa que venha a ser prejudicial à salvação das almas>. Portanto, saberíamos como interpretar esse
<poderia> no sentido de <é impossível que um verdadeiro papa o fizesse> [ou seja, que ele não
poderia impô-lo com força moral: não pode fazer isso e não que seria impossível que ele fizesse isso
]. Afirmar que um papa nunca permitirá nada que possa ser prejudicial à salvação das almas é um
exagero. O próprio São Pedro teve, em Antioquia uma atitude "censurável" e levou os outros à
"dissimulação" (Ga 2, 11-14). Por outro lado, é bem verdade (e é isso que Gregório XVI quer dizer)
que o Papa não tem o direito de permitir algo que possa resultar em detrimento das almas: ele não
tem poder moral para isso. E precisamente esta é a razão da resistência dos católicos às ações
desastrosas dos últimos papas, como foi a razão da resistência <oposta> de São Paulo a São Pedro
em Antioquia." (Dominicanos de Avrillé, Pequeno Catecismo contra o Sedevacantismo, pág. 38).
“Sobre a infalibilidade do papa

O papa é infalível apenas em certas circunstâncias

Antes de demonstrar aos protestantes a necessidade de uma autoridade infalível na


Igreja, é necessário dissipar mal-entendidos. São Francisco de Sales, portanto, usa boa
parte de sua apresentação para especificar a natureza, o alcance e os limites desse
privilégio.39

Para deixar claro que o papa nem sempre é infalível, ele compara suas definições ex
cathedra aos oráculos proferidos pelo sumo sacerdote hebreu do Antigo Testamento, nas
circunstâncias muito solenes em que, usando o peitoral40, consultava a Deus por meio do
Urim e Thummim.41

“Na Antiga Lei, o sumo sacerdote não usava o peitoral, exceto quando estava
vestido com as vestes pontifícias e se apresentava diante do Senhor [312]

Da mesma forma, o soberano pontífice da nova Aliança só aciona sua infalibilidade


em casos muito específicos, fora dos quais pode se enganar.

Assim, não dizemos que o papa em suas opiniões particulares não pode errar, como
João XXII fez, ou ser herético, como Honório talvez tenha sido. [312]”

É difícil pensar na infalibilidade sem esbarrar no caso destes dois papas: João XXII
(1316-1334) defendeu durante o seu pontificado um erro teológico sobre a visão beatífica,
que abandonou antes de morrer.42 Honório I (625-638) foi suspeito de heresia e condenado
postumamente pelo Concílio de Constantinopla III (681); parece estabelecido hoje que ele
não era realmente um herege e que apenas favoreceu a heresia monotelista por

39
A edição de referência das Controvérsias é fornecida pelo primeiro volume das Obras de São
Francisco de Sales publicado pelas freiras da Visitação (Annecy, Niérat, 1892). Os números entre
colchetes ao final das citações referem-se às páginas deste volume. Você encontrará o texto original,
aqui, ligeiramente modernizado.
40
O peitoral (racional em latim na Vulgata) é a vestimenta de linho adornada com doze pedras
preciosas usada pelo sumo sacerdote hebreu em grandes solenidades. Está descrito no livro do
Êxodo (28, 15-30), com a instrução: "Assim, Arão, ao entrar no santuário, levará no coração os
nomes dos filhos de Israel, gravados no peitoral, em perpétua memória diante de Yawheh” (Ex 28,
29).
41
O Urim e Thummim são mencionados várias vezes na Sagrada Escritura como meio de consultar a
Deus para obter o seu julgamento (Ex 28, 30; Lv 8, 8; Nb 27, 21; Dt 33, 8; 1 S 14, 41 e 28.6; Esd
2.63; Ne 7.65). A Bíblia não descreve com precisão nem esse cerimonial nem mesmo esses dois
objetos (urim significa “luzes”; thummim “perfeições” ou “verdade”), mas indica que Aarão – o
primeiro sumo sacerdote – os levava no peito.
42
Cf. Le Sel de la terre 91, pág. 174-175.
negligência.43 Mas pouco importa. Continuando: Talvez, São Francisco de Sales mostre que
não pretende fazer um juízo de ordem histórica, mas teológico.

Quer isso tenha acontecido na história ou não, pode acontecer que um papa erre em
suas opiniões particulares; pode acontecer que ele favoreça a heresia e até que ele próprio
seja um herege. Não é nesse nível que ele goza do privilégio da infalibilidade.

O caso do papa herético

Tendo admitido a possibilidade de um papa cair em heresia, São Francisco de Sales


deve, logicamente, indicar o rumo a ser tomado neste caso. Ele o faz muito brevemente, em
algumas linhas que serão citadas e comentadas mais adiante.

Vejamos primeiro sua explicação geral da infalibilidade papal, comparando-a com a


definição do Vaticano I.

As condições da infalibilidade papal

Depois de ter mostrado o que NÃO É, São Francisco começa a explicar o que é a
infalibilidade do papa. E se a sua apresentação é menos ordenada que a do Concílio, não é
menos completa. O Vaticano I não definiu a infalibilidade das definições solenes do papa
sem especificar suas características.

A constituição Pastor æternus as designa cuidadosamente:

● > O SUJEITO capaz de assim engajar a infalibilidade da Igreja, a saber: o soberano


pontífice agindo em virtude de sua suprema autoridade apostólica;44

● A NATUREZA ESPECÍFICA do ato protegido pela infalibilidade: a definição de uma


doutrina a ser sustentada – isto é, acreditada firme e infalivelmente;45 o verbo definir
aqui tem o significado de julgar em último recurso (finaliter judicare), encerrar o
debate (finem imponere), emitir uma sentença final e definitiva (definitiva ac
terminativa sententia)46

● O OBJETO (ou assunto) deste ato: uma doutrina sobre fé ou moral;47


43
Cf. Le Sel de la terre 112-113, pág. 174-196.
44
Pro SUPREMA sua apostolica AUCTORITATE (VATICAN I, Pastor æternus, DS 3074).
45
Doctrinam tenendam DEFINIT (ibid.).
46
Sobre este sentido preciso do verbo definir, ver as explicações de Mons. GASSER (relator oficial
deste texto durante o Concílio) e de Mons. MANNING (grande defensor da infalibilidade) citadas em
Le Sel de la terre 112-113, pág. 355, 358 e 382. São Tomás usou a expressão "finaliter determinare"
(II-II, q. 1, a. 10).
47
De FIDE vel MORIBUS (DS 3074).
● Finalmente, o ÂMBITO da obrigação, que deve ser universal: ao definir que uma
doutrina deve ser mantida por toda a Igreja48, o soberano pontífice manifesta com
efeito que quem a recusa está fora da Igreja (o que pode ser especificado por um
anátema contra eles: um sinal particularmente claro de uma obrigação absoluta e
universal).

Agora, São Francisco de Sales já dizia tudo isso. E, sem medo de repetição, ele até
expôs duas vezes seguidas.

Primeira Explicação

Numa primeira explicação, o Doutor retoma sua comparação com o sumo sacerdote
do Antigo Testamento, que vestia a couraça, com o Urim e o Thummim (traduzido: doutrina
e verdade) para consultar o Senhor.

Tendo indicado que o papa está longe de ser infalível em todas as suas ações ou em
todas as suas operações, São Francisco acrescenta:

‘Mas quando ele está vestido com as vestes pontifícias, quero dizer, QUANDO
ENSINA TODA A IGREJA como pastor em ASSUNTOS DE FÉ E MORAL, então há
apenas doutrina e verdade"

E, na verdade, tudo o que um rei diz não é lei nem édito, mas apenas o que o rei diz
como rei e determina juridicamente; assim, tudo o que o papa diz não é lei canônica ou lei,
ele deve QUERER DETERMINAR e IMPOR LEI às ovelhas, e que mantenha ali a ordem e
a forma exigidas.

Assim, dizemos que devemos recorrer a ele não como um homem instruído, pois
nisso ele geralmente é precedido por vários outros, mas COMO CABEÇA E PASTOR
UNIVERSAL DA IGREJA, e, como tal, para honrar, seguir e firmemente abraçar sua
doutrina, pois então ele carrega em seu seio o Urim e Thummim, doutrina e verdade
[312-313].’

Notemos primeiro que esse desenvolvimento sobre a infalibilidade diz respeito ao


papa QUANDO ELE ENSINA. A precisão não é, portanto, inútil; pois o papa goza do tríplice
poder de ensino (magistério), ordem (sacerdócio) e governo (jurisdição), e esses três
poderes são distintos. O Vaticano I também limitará sua definição de infalibilidade papal à
função de ensino.”49

48
Ab UNIVERSA Ecclesia doctrinam tenendam (ibid.)
49
Este é o sentido da precisão: “quando exerce o seu ofício de pastor e doutor de todos os cristãos
— omnium christianorum pastoris et doctoris munere fungens” (DS 3074). — Sobre esta expressão –
que deliberadamente omite o que o Papa pode fazer nas competências do seu poder de ordem como
sumo sacerdote e segundo o seu poder de governo como legislador supremo e juiz supremo dos
assuntos eclesiásticos – ver a explicação de Mons. FESSLER (Secretário Geral do Concílio), citado
em Le Sel de la terre 112-113, pág. 376.
Agora, diante do presente, não é de se impressionar que, aquilo que não é infalível,
e dado todos os fatos elencados à crise, como a própria confissão dos arquitetos da nova
missa, a saber: “Em seus doze anos de existência a comissão realizou oitenta e dois
encontros e trabalhou em segredo absoluto. Tão secreto, de fato, era seu trabalho que (...)
pegou até mesmo os oficiais da Congregação dos Ritos de surpresa.”50, nos dê motivos
para efetuarmos nossa resistência. Não é estranho, portanto, que tal “magistério”, possa
sim conter erros. E o fato de ser repetido por todos os teólogos modernistas, novamente, é
necessário repetir que, somar zero com zero, sempre será zero.51

50
Annibale Bugnini; The Reform of the Liturgy (1949-1975), Library of Congress, 1990, pág. 9.
51
NT: A propósito do Ritus Servandus de 1965 e o Ordo Missae, “promulgados” em 27 de Janeiro de
1965, sob a autoridade conjunta do Conselho para a Aplicação da Constituição Litúrgica e da
Congregação dos Ritos, devemos esclarecer que tais não são ações papais, e uma vez que se saiba
que estes vieram apenas para abrir o caminho para o NO de 1969, e que foram elaborados pelo
órgão Consilium, embasados na “autoridade” do motu proprio Sacram Liturgiam, isso é, no magistério
dialógico conforme a Encíclica Ecclesiam Suam, criando rascunhos e fazendo experimentos para
tentar tornar aceitável a reforma que viria, fica patente que tal não está e nunca esteve em vigor
sendo apenas um rito experimental e que, pelas diversas similaridades com o já citado Novus Ordo e
pela carência de uma doutrina ou autoridade o fundamentando, pode ser rejeitado por razões
legítimas. A mesma lógica se aplica ao de 1964 e de 1967. Entretanto, conforme explicado e como
provém de uma mudança disciplinar papal explícita e promulgada como eram promulgadas todas as
reformas, a prudência de D. Lefebvre nos guia sabiamente a permanecer em 62, pelas razões já
supracitadas, a última reforma corretamente promulgada.
Vejamos o comentário de um liturgista moderno a esse respeito:
“À luz da Instrução Inter Œcumenici de 26 de setembro de 1964 sobre a implementação da
Sacrosanctum Concilium, um decreto conjunto assinado pelo presidente do Consilium e o prefeito da
Congregação dos Ritos, em 27 de janeiro de 1965, promulgou uma nova edição do Ordo Missæ, a
qual declarou “típica” e ordenou que fosse incluída em todas as novas edições do Missale Romanum.
Notemos que, falando estritamente, não existe algo como um “Missal de 1965” no sentido de
uma editio typica romana, embora, é claro, várias editoras tenham devidamente incorporado este
Ordo em suas edições do Missale Romanum publicado naquele ano”.
“(...) O Ordo Missæ de 1965 foi dissimulado, especialmente em seu decreto de promulgação que
afirma que Paulo VI o tinha declarado como “edição típica”. Edições típicas do Missal aparecem
raramente, normalmente no passar de décadas. A frase editio typica, portanto, sugeria permanência.
Por isso o povo “desinformado” o considerou como a reforma visada no parágrafo 48 da Inter
Œcumenici, dando não só a forma mas também o detalhe atual do Ordo Missæ reformado, ainda que
se pensasse em modificações sutis que pudessem ser feitas no futuro. Este é certamente o sentido
dado publicamente pelo Pe. Frederick McManus, um consultor do Consilium, na Worship de março
de 1965” (Pe. Alcuin Reid, A Sacrosanctum Concilium e a Reforma do Ordo Missæ). Conclusão: Uma
lei sem clareza não é lei e portanto não é obrigatória, etc, e como tal reforma vem com o Concílio,
que não possui autoridade magisterial alguma, e após a defecção que apontamos na Ecclesiam
Suam (65), as rejeitamos por não serem frutos de uma reforma litúrgica de fato e de direito.
Parte 3:

O Magistério Ordinário Universal (M.O.U.)

Quanto ao argumento de que, passados mais de 50 anos, a missa nova já faria


parte do magistério ordinário da Igreja, e que portanto, para não contradizer as palavras de
Cristo: “As portas do inferno não prevalecerão”, teríamos que, obrigatoriamente, conceder a
perda do pontificado dos papas conciliares e/ou a defecção da Igreja, podemos dizer,
quanto à isso, que se trata de uma piada. Somar 0 com 0 por 50 anos ou por 1000 anos,
jamais fará com que se torne 1. A partir do momento em que, como provamos, todo o
magistério conciliar é falso, não é possível que o assentimento da Igreja implique em algum
acréscimo de autoridade a ele, uma vez que, “ (...) e não apenas se tornam irreversíveis
quando recebem subsequentemente o assentimento da Igreja. Não se quer dizer com isso
que o Papa alguma vez decida algo contrário à tradição da Igreja, ou que ele ficaria sozinho
em oposição a todos os outros Bispos, mas apenas que a infalibilidade de sua definição
não depende da aceitação do Igreja, e repousa sobre a especial assistência divina
prometida e concedida a ele na pessoa de São Pedro para o exercício do seu magistério
supremo “. E, para acrescentarmos uma grande autoridade, convém mencionarmos as
conclusões a que chegamos, a partir da leitura do relatório de Dom Gasser, nas palavras do
seu tradutor inglês: “2) O Magistério Ordinário só é exercido infalivelmente, quando o Papa
e os Bispos, em comunhão recíproca, exprimem um juízo comum sobre matéria de fé ou
moral, como um juízo que deva ser mantido de forma definitiva.”52 Segundo o Padre
Matthias Gaudron:

“(...) Os bispos são igualmente infalíveis quando, dispersos por toda a Terra, são
unânimes em ensinar uma Verdade como pertencendo ao Depósito de Fé. É o caso dos
Artigos de Fé gerais que são, há muito tempo, ensinados por toda parte, na Igreja, sem
terem sido colocados em dúvida.

(...) A transmissão infalível da Fé pelos bispos dispersos chama-se, ao contrário,


Magistério Ordinário Universal (por vezes abreviado M.O.U).

Num tempo normal, o ensinamento comum dos bispos (M.O.U) é suficiente para
conhecer com certeza as Verdades de Fé. Mas em tempos de crise, quando os bispos se
opõem entre si, ou são negligentes em utilizar sua autoridade para lembrar a Verdade
Revelada, não se pode mais recorrer a esse critério. Para resolver a crise é necessário um
ato do Magistério Extraordinário, isto é, um julgamento solene pronunciado por um Concílio
ou por um Papa.

52
The gift of infallibility: the official relatio on infallibility of Bishop Vincent Gasser at Vatican Council I”,
página 104.
Exemplo:

Todos os cristãos criam com certeza na Presença Real do Corpo e do Sangue de


Nosso Senhor no Sacramento da Eucaristia muito antes que isso fosse solenemente
definido. Isso era ensinado na Igreja inteira, como uma Verdade de Fé. No entanto, a
negação dessa Verdade pelos protestantes tornou necessária a definição solene pelo
Concílio de Trento. De fato, os ataques dos hereges são, com frequência, para a Igreja
ocasião de definir solenemente uma Verdade.

(...) Pio IX dá a seguinte definição: “O Magistério Ordinário Universal é o que o


Magistério Ordinário de toda a Igreja dispersa pelo mundo inteiro transmite como
divinamente revelado e que, por conseguinte, é guardado por um consenso unânime dos
teólogos católicos como pertencente à Fé.53

Para que um ponto de doutrina seja infalivelmente certo, em virtude do M.O.U,


não basta que todos os bispos do mundo estejam, num dado momento, concordes
em aceitá-lo?

Não. Não basta que todos os bispos adotem simultaneamente uma nova teoria
qualquer para que ela se torne infalível. A infalibilidade do M.O.U. apenas se aplica a:

● uma Verdade no tocante à Fé ou à Moral.


● que os bispos ensinem com autoridade (é o próprio do Magistério);
● de modo universalmente unânime.
● como divinamente revelado aos Apóstolos, ou necessário para guardar o Depósito
da Fé, portanto, imutável e obrigatório;

Se essas condições não são preenchidas, não há infalibilidade.”54

Portanto, quando Paulo VI afirma que o Vaticano II: “(..) dotou seus ensinamentos
com a autoridade do supremo magistério ordinário, magistério ordinário tão
manifestamente autêntico que deve ser aceito mansa e sinceramente por todos os fiéis, de
acordo com a mente do Concílio sobre a natureza e os propósitos de cada documento.”55,
tendo afirmado anteriormente: “Há quem se pergunte qual a autoridade, a qualificação
teológica, que o Concílio quis atribuir aos seus ensinamentos, sabendo que evitou dar
definições dogmáticas solenes, comprometendo a infalibilidade do magistério
eclesiástico. E a resposta é conhecida por aqueles que se lembram da declaração conciliar
de 6 de março de 1964, repetida em 16 de novembro de 1964: dada a natureza pastoral
do Concílio, ele evitou pronunciar de forma extraordinária dogmas dotados de nota de
infalibilidade”, concluímos que, não há um verdadeiro magistério ordinário, uma vez que,
ele não se propôs a ensinar nada quanto à Fé à Moral, “como um juízo que deva ser
mantido de forma definitiva.”

Conforme o que ensina Dom Williamson: “A marca do Magistério ordinário e


universal não é a solenidade, mas sua correspondência com a Tradição” (Comentários
Eleison 357). ”Universal” significa esta conexão do Magistério com o passado, [não sua
solenidade]” (CE 342).

53
Carta do Papa Pio IX ao Arcebispo de Munique em 21 de dezembro de 1863. DS 2880.
54
Gaudron, Matthias, Catecismo da Crise na Igreja, páginas 36-37.
55
Audiência geral de 12 de janeiro de 1966.
Apêndice I : Nossa Posição (R&R)

Primeiramente, para compreender o significado de tais termos, ditos por Dom


Lefebvre, é necessário saber distinguir a sua verdadeira opinião dos demais exageros.

“Outra coisa que deve ficar clara desde o início é que o arcebispo Marcel Lefebvre
não ensinou que a Novus Ordo Missae é 'intrinsecamente’ má porque é necessariamente
inválida ou porque contém heresia explícita. Em vez disso, a Novus Ordo Missae é
‘intrinsecamente má’ por causa de suas omissões em expressar inequivocamente o
ensinamento da Igreja Católica em relação ao Santo Sacrifício da Missa. A própria
definição de mal é ‘a privação de um bem devido’.”56

Ou seja, ele não disse que ela é absolutamente má, contendo algo de herético em
si, mas que conduz a heresia, tal como afirmou o Padre Calmel. A dita infalibilidade em
âmbito negativo, apenas impediria a publicação de algo diretamente contrário à Fé (mais
adiante vamos tratar de ir um pouco além disso).

Agora, quanto às ações mais práticas, e consequentemente incisivas de Dom


Marcel, como sua fala ao interpretar um documento de Paulo VI, “deve-se levar em conta o
que não é dito e não aquilo que é dito”, são colocações de teor meramente prático e não
dogmático. Tais documentos, sem qualquer valor dogmático, são os nortes para o combate
da fé, visando nos fundar na prática da virtude oposta ao vício, expondo os vícios de
discurso e de doutrina contidos neles. Ele não desejou dizer que segundo o direito canônico
ocorreu formalmente uma queda do pontificado, mas apenas expressar seu manifesto para
os combatentes da tradição católica. Afinal, como Dom Fessler já fez o favor de dizer por
nós, para a sã teologia, não convém considerar o que um Papa pensa, “Estamos obrigados
a considerar as partes particulares desta passagem como declarações papais ex cathedra,
mesmo quando o próprio Papa diz ‘como pensamos’ (ut arbitramur)?” e “Aqui temos um
caso como Perrone expressamente fala acima, na pág. 32, chamando-o de ‘omissio
definitionis’, que ele diz não poder constituir um enunciado ex cathedra; assim, a extensão
positiva de uma definição deve ser medida, não pelo que não é dito, mas por aquilo que
é dito.” - aparentemente contra a concepção de omissio definitionis, mas apenas
aparentemente. Como já foi dito por São Roberto, “os fiéis podem certamente distinguir um
verdadeiro profeta de um falso pela regra que estabelecemos, mas, para isso, se o pastor
é um bispo, eles não podem depô-lo e colocar outro em seu lugar.” Dom Marcel
apontava o que estava implícito, atacava a doutrina, fazia conferências para o bem dos fiéis,
como fizeram Santo Atanásio e São Cirilo, mas não se punha a depor o Papa, nem os
bispos, nem a proclamar a Sé como estando vacante. Ele fez o que nos é permitido fazer,
sem se estender aquilo que, segundo Santo Tomás, seria uma usurpação de autoridade.

De igual maneira, quando ele deu continuidade ao costume do segundo confiteor,


abolido por João XXIII, ele não desejou se antepor à autoridade de Roma, mas fazer uso de
56
The Recusant, 29 de setembro de 2015, pág 17.
uma dispensa, em que, no caso de um costume contrário, “A partir disso, vemos a
sabedoria da ação da Igreja, que por um lado todas as suas definições de fé devem ser
inalteráveis, e que, por outro lado, deve ser lícito aos bispos fazer representações sobre
as leis disciplinares papais, mesmo quando elas foram emitidas para toda a Igreja, isto é,
eles têm motivos para temer que tais e tais leis tenham um efeito prejudicial sobre
seus súditos de uma forma ou de outra, para que alterações especiais, exceções em
favor de países ou regiões, flexibilizações de penalidades, etc, possam ser concedidas.
Além disso, admite-se que essas leis possam ser totalmente anuladas, sob certas
condições, depois de decorrido um período de tempo adequado, por um costume contrário
legítimo.” Assim, mantendo um costume que vem desde São Pedro ou muito próximo dele,
um costume apostólico na Igreja e seguindo o desejo dos fiéis de mantê-lo, todos os padres
formados pela Fraternidade São Pio X e pela Resistência, apenas mantêm um costume
próprio, que já dura há muito tempo, e que não vai de encontro a nenhuma norma da Santa
Igreja. Logo, como nenhuma fala em matéria de doutrina do Arcebispo, e também nenhum
de seus atos, de qualquer maneira, se antepôs ao magistério, naquilo que segundo os
próprios teólogos (e não segunda a falácia de um pretenso galicanismo), não seria lícito
resisti-lo, tal como a imposição de um bispo à uma diocese, usurpando um direito de Roma
(coisa que não se deu), temos provado que a prudência consumada de Lefebvre, o impediu
de fazer qualquer coisa contrária às prerrogativas da Igreja enquanto tal, sem contudo,
mitigar sua forte resistência, lícita e necessária, perante a crise atual. E, dado que uma
excomunhão não é infalível, como provará Dom Fessler, citando para exemplo a
excomunhão de Lutero e de Henrique VIII57, “Agora o Concílio de Trento diz expressamente
que a excomunhão é 'o nervo da disciplina da Igreja'. Então, se assim for, as bulas de
excomunhão devem pertencer à disciplina da Igreja.“, sendo matéria de disciplina, como foi
a excomunhão emitida por Libério contra Santo Atanásio58, temos a excomunhão sem efeito
de João Paulo II, como um grande meio de proteção aos verdadeiros defensores da
tradição, surgindo como um divisor de águas, nos afastando do falso magistério conciliar, da
infiltração de homens mal intencionados na Igreja com a sua consequente ocupação de
seus postos, aproximando-nos da posição percorrida por Santo Atanásio e seus

57
NT: É necessário lembrar que, não engajar infalibilidade não implica que de nada valeram. Ocorre
que, no caso de Dom Marcel, os motivos alegados para a excomunhão (requer uma ofensa real,
como algo contra a fé ou contrário à obediência, mas segundo São Roberto Belarmino, o Papa
Adriano II e outros, a heresia é o único caso em que é lícito resistir à autoridade, e portanto, a ofensa
alegada é invaĺida, (c. 1321, §1, 1983 CIC) o estado de necessidade, que o fez sagrar os bispos na
operação sobrevivência, juntamente com seu câncer e morte iminentes, concedem segundo o próprio
direito canônico (c. 1323, §4, 1983 CIC), uma licença para tal, mesmo se o estado de necessidade
fosse apenas imaginário e não existisse realmente (c. 1323, §7, 1983 CIC), para além da consciência
do consagrante. Além disso, o reitor de direito canônico do Instituto Católico de Paris, em 4 de junho
de 1988 (ano das sagrações, 26 dias antes), afirmou que, o que constitui um cisma não é um bispo
ser consagrado sem permissão, mas ser conferida a ele uma missão apostólica (diocese ou
atribuição do gênero). [citamos de momento o CDC de 83 para provar o ponto, mas logo mais
explicaremos o estado de necessidade pelo CDC de 17].
58
“Com isso porém [ter assinado o credo semiariano], não se pretende justificar a falha de Libério,
pelo menos por ter condenado Santo Atanásio e comungado com os arianos.” Santo Afonso Maria
de Ligório, História das Heresias e suas Refutações, Tomo I, Cap: IV: Heresias do Século IV, ed.
Ecclesiae, pág. 75;82. Libério estava já havia cerca de três anos exilado em Beréia, abatido pelas
violências e pela solidão e particularmente aflito por ver o papa Félix, seu diácono, ocupar a sé
romana; e, assim, se deixou corromper e subscrever a dita fórmula, condenado ao mesmo tempo
Santo Atanásio e comungando com os bispos arianos.” Idem, pág. 80. Colchetes nossos.
companheiros. Para lembrar do caso de Lúcifer de Cagliari que, “Cortou com St. Atanásio,
com os seus amigos, e, afinal, com a própria Igreja”, temos este maravilhoso divisor de
águas. Infelizmente, porém, a Fraternidade, desejosa de uma proximidade com este mesmo
falso magistério, se desfez deste caráter de guerra59, que era um dos símbolos máximos de
nossa boa fé perante a crise, apenas por questões diplomáticas. Permaneçamos, com ele e
como ele (Santo Atanásio), aguardando o fim deste período de crise, com a dissolução
oficial do Concílio Vaticano II, tal como se deu com o Sínodo de Pistóia e o Sínodo de
Pisa60, através das autoridades da Igreja tornadas novamente à fé, e não nós, por nossa
própria conta, nos debilitando, em vista de salvar a estrutura visível, mas antes,
aguardemos a consumação de nossas esperanças pela conversão real da estrutura
romana. Enquanto isso, ousemos dizer com Santo Atanásio:

"Que Deus vos conforte. Sei ainda que isso não apenas vos entristece, mas também
o fato de que enquanto outras pessoas obtiveram as igrejas através da violência, nesse
ínterim vós fostes expulsos de vossos lugares. Eles possuem os edifícios, mas vós a Fé
Apostólica. É bem verdade que eles estão nas igrejas, mas fora da verdadeira Fé;
enquanto vós estais fora dos edifícios, sem dúvida, mas a Fé está dentro de vós.
Consideremos o que é maior, o edifício ou a Fé. Claramente a Fé verdadeira. Quem então
perdeu mais, ou quem possui mais? Aquele que detém o edifício ou aquele que detém a
Fé? Sem dúvida o edifício é bom, se a Fé Apostólica é pregada lá, ele é santo se o Santo
habita lá. (...) Porém, benditos são aqueles que pela fé estão na Igreja, habitam sobre
os fundamentos da Fé e têm plena satisfação, mesmo o grau mais elevado da fé, que
entre vós permanece inabalável. Porque ela lhes chegou da tradição Apostólica, e
frequentemente a execrável inveja desejou destruí-la, mas não foi capaz. Pelo
contrário, eles é que se alijaram [da Fé] ao tentar destruí-la. Por isso é que foi escrito, “’Vós
sois o Filho do Deus vivo’, Pedro confessou isso por revelação do Pai, e ouviu, ‘Feliz és,
Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu
Pai que está nos céus’.” Portanto, ninguém jamais prevalecerá contra a vossa Fé, meus
queridíssimos irmãos. Porque se algum dia Deus vos devolver as igrejas (e pensamos
que Ele o fará) ainda sem essa restauração das igrejas a Fé nos basta. E, falando sem
as Escrituras, devo falar com muita veemência, é bom trazê-los para o testemunho das
Escrituras, lembrem-se de que o Templo sem dúvida estava em Jerusalém; o Templo não
estava deserto, forasteiros o invadiram, daí também o Templo estando em Jerusalém,
aqueles exilados desceram para a Babilônia por decisão de Deus, que os estava provando,
ou melhor, corrigindo; enquanto lhes manifestava em sua ignorância punição [através] de
inimigos sanguinários. E os forasteiros sem dúvida tinham a posse do Templo, mas não
conheciam o Senhor do Templo, ao passo que Ele não respondeu nem falou; eles foram
abandonados pela verdade. Que proveito então eles tiraram do Templo?
59
“Mas em Roma mesma se tem claro que é uma excomunhão 'política', que existe e não existe
segundo o caso.” e “ Coisas estranhas destes tempos: no ‘cisma lefebvrista’ se deu o caso inverso,
pois a feia casca em que nos envolveram serviu para proteger a polpa do corrosivo ambiente
conciliar.” Página e nota de rodapé n. 457 na página 288 do livro “A Candeia debaixo do Alqueire”, 2ª
ed. Castela 2020, Padre Calderón.
60
"Quando em 1510 vários cardeais se rebelaram contra o Papa Júlio II, ambos os lados tentaram
tomá-lo para seus planos. Bakócz manteve uma atitude de espera, até que o papa, em 1511,
condenou o cismático Concílio de Pisa e anunciou que um sínodo geral seria realizado em Latrão no
ano de 1512, e anunciou que um sínodo geral seria realizado em Latrão em 1512. Bakócz foi
convidado para este concílio e sem mais hesitação viajou a bordo de um navio veneziano para
Ancona e chegou a Roma em janeiro de 1512, onde foi recebido pelo Papa com muita pompa e
esplendor." (The Catholic Encyclopedia, 1907, página 214).
Pois vejam que aqueles que detêm o Templo são acusados pelos que amam a
Deus, de torná-lo um covil de ladrões, e por transformar loucamente o Lugar Santo em uma
casa de comércio e uma casa de negócios judiciais para si mesmos, a quem era ilegal
adentrá-la. Amados, são essas coisas e outras piores ainda que ouvimos daqueles
que vieram de lá. Entretanto, realmente, eles parecem possuir a igreja, mas estão fora
dela. E eles se julgam dentro da verdade, mas estão exilados e cativos, e não obtêm
vantagem da igreja somente. Porque a verdade das coisas é julgada…"61

Então, como vemos, toda ação de aproximação com a estrutura romana invadida,
implica numa perda gradual da consciência deste mesmo estado de necessidade e,
consequentemente, na mitigação da tese mesma de Dom Lefebvre. Casamentos,
confissões, ordenações, serem aprovadas, ou, a remoção das “excomunhões”, nada disso
era necessário à Dom Marcel, e tampouco é para nós. O estado de necessidade, até uma
verdadeira conversão do clero romano, basta para a indefectibilidade da santidade e a
segurança dos fiéis.

E, para testemunhar uma tal perda desse caráter de combate contra o modernismo,
basta citarmos as citações de Dom Lefebvre feitas pelo Pe. Simoulin no Le Seignadou, o
boletim informativo do convento da FSSPX da escola Saint Joseph des Carmes, em
Montreal de l'Aude, França (lembrando que o padre acima mencionado já foi diretor do
Seminário de Ecône):

“O leitor julgará por si mesmo. Para melhor visualizar as frases de Dom Lefebvre
omitidas pelo padre Simoulin, as colocamos em vermelho no lugar que deveriam ter
ocupado no texto de Seignadou . Para ler o Pe. Simoulin, você deve ler apenas o texto
preto. Para entender o pensamento do Arcebispo Lefebvre, que o Seignadou esconde,
basta ler tudo:

'Romanismo' não é uma palavra vazia . A língua latina é um exemplo importante.


Levou a expressão da fé e do culto católico até os confins da terra. E os povos convertidos
orgulhavam-se de cantar a sua fé nesta língua, verdadeiro símbolo da unidade da fé
católica. Cismas e heresias muitas vezes começaram com uma ruptura com a romanidade,
uma ruptura com a liturgia romana, com o latim, com a teologia dos padres e teólogos
latinos e romanos. É esta força da fé católica enraizada na Romanidade, que a Maçonaria
quis fazer desaparecer ocupando os Estados Pontifícios e encerrando a Roma católica na
Cidade do Vaticano. Esta ocupação de Roma pelos maçons permitiu a infiltração do
modernismo na Igreja e a destruição da Roma católica pelos clérigos e papas
modernistas que se apressam a destruir qualquer vestígio do ‘romanismo’: a língua
latina, a liturgia romana . O Papa eslavo é o mais determinado a mudar o pouco que o
Tratado de Latrão e a Concordata mantiveram. Roma não é mais uma cidade sagrada.
Ele encorajou o estabelecimento de falsas religiões em Roma, realizou reuniões
ecumênicas escandalosas, impulsionou por toda parte a inculturação da liturgia,
destruindo os últimos vestígios da liturgia romana. Mudou na prática o estatuto do
Estado do Vaticano. Ele renunciou à coroação, recusando-se assim a ser chefe de
estado. Essa implacabilidade contra a ‘romanidade’ é um sinal infalível de ruptura com a
fé católica, que ele não mais defende. As Universidades Pontifícias Romanas
tornaram-se púlpitos da pestilência modernista. A diversidade do gregoriano é um
escândalo perpétuo. Tudo deve ser restaurado em ‘Christo Domino’, Roma como em outros
lugares. Gostaríamos de esquadrinhar como passam por Roma os caminhos da Providência
e da Sabedoria divina e concluiremos que não se pode ser católico sem ser romano. Isto
também se aplica aos católicos que não têm nem a língua latina nem a liturgia romana; se
permanecem católicos, é porque permanecem romanos – como os maronitas, por exemplo,

61
Coll. Selecta SS.Eccl.Patrum, Caillau and Guillou Vol. 32, pp. 411-412.
pelos laços da cultura católica francesa e romana que os formou. Além disso, é um erro, em
conexão com a cultura romana, falar da cultura ocidental. Os judeus católicos trouxeram do
Oriente tudo o que era cristão, tudo o que no Antigo Testamento era uma preparação e
devia ser uma contribuição para o cristianismo, tudo o que Nosso Senhor assumiu e que o
Espírito Santo inspirou os Apóstolos a usar. Quantas vezes as epístolas de São Paulo nos
informam sobre esse assunto! Deus quis que o cristianismo, moldado de alguma forma no
molde romano, recebesse dele vigor e expansão excepcionais. Tudo é graça no desígnio
divino e o Nosso divino Salvador dispôs tudo, como se diz dos romanos, ‘cum consilio et
Patientia’ ou ‘suaviter et fortiter! A nós cabe também manter esta Tradição Romana
desejada por Nosso Senhor, pois Ele quis que tivéssemos Maria como nossa Mãe.”62

62
Vide. “L’abbé Simoulin : un esprit romain ou un simple plaisantin?”
Apêndice II: O Estado de Necessidade

Cân. 209 de 1917 - “No erro comum ou na dúvida positiva e provável, seja de direito
ou de fato, a Igreja fornece jurisdição tanto para o foro externo quanto para o interno.”

"Os escritores concordam universalmente que até o Código [de Direito


Canônico] entrar em vigor em 1918, nunca houve qualquer legislação expressa em qualquer
código de direito, civil ou canônico, sobre a doutrina do fornecimento de jurisdição como é
conhecida pelos canonistas hoje. Ao mesmo tempo, concorda-se igualmente que a presente
lei, como se encontra no cânon 209, não é uma inovação, mas sim o fruto e o resultado
natural de um crescimento e desenvolvimento na doutrina jurisprudencial que tem séculos
de idade."63

“O princípio da epikeia e a missão da Igreja indicam claramente que a Igreja


inevitavelmente fornecerá jurisdição em circunstâncias extraordinárias e inevitáveis porque,
sem tal jurisdição a perda não intencional de almas certamente aconteceria. Assim, na atual
crise de absoluta necessidade, a Igreja fornece jurisdição aos padres tradicionais que agem
de boa vontade e cumprem o melhor que podem com a lei da Igreja.

Epikeia conforme definida pelo Dicionário Católico Conciso é:

«Uma interpretação de uma lei pela qual é considerada não obrigatória em um caso
particular devido a algumas circunstâncias especiais; uma interpretação da lei em um
caso particular contra a letra da lei, mas de acordo com seu espírito; Uma interpretação
da mente do legislador que motiva que ele, conhecendo as condições, não gostaria que sua
lei fosse vinculada neste caso particular.»

(...) Usar epikeia em uma situação é como estar ‘entre o diabo e o mar azul
profundo’, como diz o ditado. Se Santo Atanásio tivesse seguido a norma e se oposto aos
ensinamentos tradicionais da Igreja, ele teria sido um ‘sujeito certo’ aos olhos de seu
mundo. Mas aos olhos de Deus, sem dúvida, ele teria sido severamente julgado se tivesse
seguido o mundo contra os ensinamentos tradicionais da Igreja.

Então, vemos hoje que, ao se opor aos modernistas que estão no controle da Igreja,
pode ser necessário parecer um cismático para praticar a única fé verdadeira. A linha é
muito tênue e difícil de definir.”64

“Salvador, ‘Error communis et iurisdictionis suppletio ab ecclesia,’ - BE, XVII (1939),


85: ‘Realmente, as 6 disposições deste cânon podem e devem ser muito bem aplicadas ao
nosso ordenamento jurídico, porque ainda que não se tratava de lei escrita, esse cânon
não fala exclusivo de tal direito, especialmente nos n. 2, 3 e 4, onde a lei deve ser
tomada com maior extensão, nomeadamente não só para a lei escrita, mas também para a
lei não escrita. Isso também fica evidente pelo fato de que nos números acima
mencionados o legislador não usa a palavra 'lei', mas a palavra 'direito', que pode ser

63
Francis Sigismund Miaskiewicz, J.C.L, Doutor em direito canônico, Supplied Jurisdiction according
to Canon 209, 1940. pág. 30.
64
Artigo de Richard Cure, “É o sedevacantismo católico?” vide. Angelus Press, edição de março de
1998, pág. 24-25.
corretamente entendida e interpretada como ambos os direitos. Cfr. também Kearney, Os
princípios da delegação, pág. 136; Wilches, Sobre o erro comum, pág. 203; Blatt,
Comentário, I, n. 55, 2°.’”65

"Mas, embora cada um desses fatores seja por si só suficiente para justificar essa
concessão extraordinária de poder jurisdicional, embora, é claro, uma força cumulativa
possa resultar de sua junção em um determinado caso, observe-se que, no caso de erro
comum, a Igreja fornece jurisdição que está certamente ausente, enquanto em caso de
dúvida o fornecimento é meramente hipotético. Além disso, é universalmente admitido que a
Igreja supre em caso de erro comum apenas para proteger o bem comum. Pela própria
natureza e circunstâncias das dúvidas, pelo próprio fato de poderem surgir nas condições
mais particulares, como, e. g., no confessionário, fica bastante claro que, embora esta parte
do cânon não pretenda prejudicar o bem comum, ela foi formulada especialmente em favor
do padre, para tornar mais remota a possibilidade de ansiedades e escrúpulos, e
dar-lhe um princípio reflexivo seguro pelo qual a certeza prática pode ser alcançada
quando ele é confrontado com dúvidas decorrentes da interpretação teórica ou da
aplicação prática de uma lei."66

Os padres tradicionais se valem da probabilidade da Igreja conceder a eles tal


jurisdição, em vista da crise gritante e desesperadora em que nos encontramos. E mesmo
se não estivéssemos em crise, caso um fiel pedisse a um padre a confissão, sem saber que
este não possui jurisdição em determinada diocese, como se trata do caso de erro comum,
dado que o fiel desconhece tais minúcias, o padre poderia absolvê-lo válida e licitamente,
sabendo que o propósito pelo qual tal lei foi instituída foi para a salvação das almas e não
para o cumprimento estrito da lei como um fim em si mesma.

“O Direito canônico... é direcionado para a salvação das almas; e o propósito de


todos os seus regulamentos e leis é que os homens possam viver e morrer na santidade
que lhes foi dada pela graça de Deus”67

“As leis deixam de obrigar principalmente de três maneiras: (a) pela cessação de
seu fim, de modo que não mais atingem, ainda que parcialmente, o propósito para o qual
foram promulgadas e se tornaram inúteis, se não prejudiciais, para o bem comum... ”68

Este é o princípio no qual nos fundamos: “As leis universais... são estabelecidas
para o bem de todos. Portanto, ao estabelecê-las, o legislador tem em mente o que ocorre
ordinariamente e na maioria dos casos.”69

"Em poucas palavras, o cânon 209 dá aprovação oficial e irrefutável à alegação


daqueles que sustentam que a Igreja supre dúvidas positivas e prováveis de direito e de
fato. Assim, todas as controvérsias foram banidas a esse respeito. Tal como no caso do erro
comum, também aqui no caso da dúvida, o Código elevou o antigo princípio supletivo
doutrinário à dignidade de lei codificada."70

Alguns exemplos prático do uso de tal jurisdição na Igreja:

65
Idem. pág. 138.
66
Idem. pág. 178.
67
Papa Pio XII, “Discurso aos Estudantes Clericais de Roma”, 24 de junho de 1939.
68
Henry Amans Ayrinhac, General legislation in the new code of canon law, 1933, pág. 127.
69
Summa Theologica, II-II, Q. 147, A. 4.
70
Supplied Jurisdiction according to Canon 209, etc. pág. 177.
"Nesse ínterim (séc. XII e XVI), surgiu um costume universal por parte dos
confessores de absolver com jurisdição apenas provável, isto é, agir com a convicção de
que, ao fazê-lo, a validade do sacramento ainda estava suficientemente salvaguardada."71

“Anteriormente, João XXII tinha, por bula, concedido aos franciscanos, em missões,
o uso de jurisdição quasi-episcopal, em lugares onde não houvessem bispos católicos. Este
privilégio foi reconhecido pela Congregação dos Ritos, em 5 de abril de 1704, como
demonstra Lambertini.”72

Para exemplificar ainda mais contemporaneamente, citamos o caso de Wojtyla, o


futuro Papa João Paulo II, enquanto Arcebispo da Cracóvia, sob o pontificado de Paulo VI.
A política que imperava nos países do leste europeu, a chamada ‘Ostpolitik’, ou seja, a de
atuar como os comunistas desejavam que a Igreja Romana atuasse, impedia que se
fizessem ordenações e consagrações em determinados países. Segue o caso:

“O Cardeal Wojtyła nunca duvidou das boas intenções de Paulo VI em sua


Ostpolitik, e certamente sabia do tormento pessoal do Papa, dividido entre o instinto de seu
coração de defender a Igreja perseguida e o julgamento de sua mente de que ele deveria
seguir a política de salvare il salvabile [ “salvar o que poderia ser salvo”] – o que, como
ele disse certa vez ao arcebispo Casaroli, não era uma ‘política de glória”. O arcebispo de
Cracóvia também acreditava ter a obrigação de manter a solidariedade com uma vizinha
perseguida e profundamente ferida, a Igreja na Tchecoslováquia, onde a situação se
deteriorou durante os anos da nova Ostpolitik vaticana.

Assim, o cardeal Wojtyła e um de seus bispos auxiliares, Juliusz Groblicki,


ordenaram padres clandestinamente para o serviço na Tchecoslováquia, apesar (ou
talvez por causa) do fato de a Santa Sé ter proibido bispos clandestinos naquele país
de realizar tais ordenações. As ordenações clandestinas em Cracóvia eram sempre
realizadas com a autorização expressa do superior do candidato a ser ordenado – o seu
bispo ou, no caso de membros de ordens religiosas, o seu provincial. Sistemas de
segurança tiveram que ser planejados. No caso dos Padres Salesianos, foi utilizado o
sistema de cartão rasgado. O certificado que autorizava a ordenação foi rasgado ao meio. O
candidato, que teve de passar clandestinamente pela fronteira, levou metade consigo para
Cracóvia, enquanto a outra metade foi enviada por correio clandestino ao superior salesiano
de Cracóvia. As duas metades foram então combinadas e a ordenação pôde prosseguir na
capela do arcebispo em Franciszkańska.

O cardeal Wojtyła não informou a Santa Sé sobre essas ordenações. Ele não as
considerava como atos que desafiavam a política do Vaticano, mas como um dever para
com os crentes sofredores. E ele presumivelmente não queria levantar uma questão que
não poderia ser resolvida sem dor de todos os lados. Ele também pode ter acreditado que a
Santa Sé e o Papa sabiam que tais coisas estavam acontecendo na Cracóvia, confiado em
seu julgamento e discrição, e pode ter recebido uma espécie de válvula de escape no que
estava se tornando uma situação cada vez mais desesperadora.”73

“Em 1976, o chefe da UGCC, o cardeal Josef Slipyj, que vivia exilado em Roma
após 18 anos no gulag soviético, temia pelo futuro da UGCC. Teria bispos para liderá-la,
visto que o próprio Slipyj agora tinha mais de 80 anos? Por isso ele consagrou três
bispos clandestinamente, sem a permissão do Santo Padre, o “Beato” Paulo VI. Na
época, a Santa Sé seguia uma política de não assertividade em relação ao bloco comunista;

71
Idem. pág. 88-89.
72
Catholic Encyclopedia, pág. 704.
73
George Weigel, Witness to Hope: The Biography of John Paul II, rev. ed. (New York: Harper
Perennial, 2020, pág. 233.
Paulo VI não daria permissão para os novos bispos por medo de perturbar os soviéticos. A
consagração de bispos sem mandato papal é um crime canônico gravíssimo, cuja pena é a
excomunhão. O “Beato” Paulo VI - que provavelmente sabia, não oficialmente, o que Slipyj
havia feito - não administrou nenhuma penalidade. - Texto original do autor, aspas
nossas.”74

Um dos bispos secretamente ordenados foi Lubomyr Husar. Futuramente, João


Paulo II reconheceu oficialmente sua consagração, nomeou-o arcebispo-mor da Igreja
Greco-Católica Ucraniana e o fez cardeal em 2001.75 Em suma, não há lei maior que a
salvação das almas, e quem “excomungou” Dom Marcel, sabia disso: Salus animarum
suprema lex e Salus populi suprema lex esto.

E, para que este assunto não permaneça intocado, cabe mencionar algumas das
irregularidades lógicas no acordo.

"[A intenção de Bento XVI] era ajudar aqueles que simplesmente encontraram um lar
na missa antiga a encontrar a paz, a encontrar a paz litúrgica, a afastá-los também de
Lefebvre.”76

"É hoje a Operação Sobrevivência. E, se eu tivesse feito tal operação com Roma,
continuando com os acordos que havíamos assinado e seguindo com essa prática
desses acordos, eu estaria fazendo uma Operação Suicídio."77

"Nós não podemos, apesar de todo o desejo que temos, de estar em plena
comunhão convosco; em vista deste espírito que agora reina sobre Roma e que vocês nos
querem passar; nós preferimos continuar com a Tradição, guardar a Tradição, esperando
que essa Tradição reencontre seu lugar em Roma, esperando que esta Tradição reencontre
seu lugar entre as autoridades romanas, no espírito das autoridades romanas."78

"[...] A Igreja Católica é uma Igreja de padres católicos. Sem padres católicos, não
há mais Igreja Católica. E não pode haver padres católicos sem bispos católicos.

Poderíamos talvez, como vocês sabem, ter tido, depois das tratativas com Roma,
um bispo. Mas quem teria sido esse bispo? Desde que nos perguntaram se ele teria o perfil
desejado pelo Vaticano? O que isso significa ? Se não que este bispo seria um bispo
conciliar; um bispo que teria o espírito do Concílio, o espírito do Vaticano II.”79

Apesar de, como já dissemos, se tratar antes de uma fraqueza moral do que de um
erro doutrinal, pela dificuldade de se fundar na pureza da Fé, em oposição a busca por uma
aceitação dentro da estrutura visível, uma situação análoga àquela descrita por Santo
Atanásio: “É bem verdade que eles estão nas igrejas, mas fora da verdadeira Fé;
enquanto vós estais fora dos edifícios, sem dúvida, mas a Fé está dentro de vós.”,
estamos avançando rumo aos limites de tais irregularidades lógicas. Em primeiro lugar,
como explica Santo Afonso Maria de Ligório em sua teologia moral, nós não podemos,
jamais, recorrer a sacramentos dúbios. Uma vez que, sabemos das várias irregularidades
74
CItação extraída do artigo, ‘Ukrainian Cardinals Husar and Slipyj are heroes to Church community’,
do Padre Raymond de Souza, de 22 de junho de 2017.
75
Vide. Dr. Peter Kwasniewski, PhD, artigo “Clandestine Ordinations Against Church Law: Lessons
from Cardinal Wojtyła and Cardinal Slipyj”, de 13 de outubro de 2021.
76
Dom Gänswein, secretário de Bento XVI, em entrevista ao jornal católico alemão Die Tagespost.
77
Dom Lefebvre, Sermão das Consagrações de 30 de junho de 1988.
78
Dom Lefebvre, Carta enviada ao Papa Paulo VI, mencionada por Dom Marcel no discurso das
sagrações de 30 de junho de 1988.
79
Dom Lefebvre, Sermão de Comemoração de seu Jubileu Sacerdotal de 60 anos, 19 de novembro
de 1989.
dentro das ordenações e sagrações novas, mas, considerando a situação com a devida
prudência, temos porém que, fora de tais circunstâncias, sempre devemos buscar pela
certeza do sacramento. E, o que fazem os acordistas, na prática?

Muitos celebram o rito de São Pio X, por rejeitarem a liturgia de João XXIII e de Pio
XII, enquanto são ordenados por bispos consagrados no rito novo. É sabido que, no caso
recente, surgido pela dúbia feita a respeito do documento Traditiones Custodes, que, uma
vez negados ao direito de utilizar o pontifical (crismas e ordenações), apareceram bispos,
ordenados e sagrados no rito novo, se dispondo a ordenarem os padres de tais institutos,
no rito antigo. Se, considerarmos, que não importa o quão belo seja o cano, se o rio está
poluído, a água sempre sairá suja; da mesma maneira, todo o seu trabalho de “salvar a
tradição”, se reduz a uma traição, enganando por meio das aparências, enquanto
conservam uma aceitação oficial de todos os documentos do Vaticano II, junto a uma
submissão a toda a estrutura ocupada pelos modernistas, que ocasiona em uma diminuição
imediata da Fé. Temos inúmeros casos e circunstâncias a mencionar, de como, ao se
submeterem ao domínio da estrutura, deixam de confessar os fiéis, em meio a maior crise
da história da Igreja, pela falta da jurisdição ordinária (esquecendo da extraordinária e do
erro comum que os habilitaria a isso mesmo em tempos normais), de como conservam tal
liturgia, mas por outro lado, permanecem mancos em sua defesa da Fé, e que, não o
bastante, são utilizados como bastão pelos modernistas, que sempre concedem a eles
capelas, dispensas e coisas análogas, quando sabem do surgimento de uma nova missão
ou capela dos padres de Dom Lefebvre em qualquer lugar do globo. Assim, como falava o
já mencionado Padre Hesse: “Se a Fraternidade de São Pedro, e se o Instituto Cristo-Rei,
não dizem que o Novus Ordo é contra a Lei Divina80, então porque eles celebram a missa
antiga? Porque é mais bela? Está bem! Estão cuidando de um museu!”. Outra ótima
colocação de um escritor francês: “Este indulto é reservado exclusivamente àqueles que
não têm nenhuma razão para pedi-lo”.

Não limitaremos nossa resistência conforme o gosto dos inimigos da Fé. Como
alude Arsenius, no sétimo ponto onde expõe os perigos de um acordo prático com Roma,
“7) Que em tempo de guerra preocupar-se em seguir as leis positivas81 pode constituir-se
numa imprudência, a qual pode equivaler em certos casos ao suicídio", assim que, caso
percamos a noção do estado de necessidade, seria o mesmo que, enquanto conduzindo
uma ambulância para a salvação de uma vítima, ela, por sua vez, protestasse contra o
motorista, alegando que está bem e que na realidade não está morrendo; nossa dispensa,
onde o magistério extraordinário supre o ordinário, a exemplo da confissão sem a
permissão do bispo e demais sacramentos, depende dessa consciência da gravidade da
crise. Portanto, agir como se não estivéssemos numa crise, se submeter a estrutura
conciliar, é uma falta de fé e uma extrema falta de caridade para com os fiéis. Como isso
pode ser?

Arsenius continua: “7) Que seria um erro restringirmos nosso campo de ação aos
lugares que nos designassem as autoridades romanas ou permitissem os bispos
diocesanos e não irmos atender aos fiéis que nos chamam, pelo fato de aí não termos
permissão oficial de exercer o ministério sacerdotal, pois isso seria desconsiderar o
estado de necessidade geral e grave.”

Para que a situação possa ser visualizada facilmente, busquemos exemplos na


prática. No Brasil, é sabido que a maioria dos institutos acordistas, concentram-se em
regiões específicas do país. Por exemplo, raros são os casos no Sul e no Nordeste, em que
os bispos modernistas, mais apegados à teologia da libertação ou a demais doutrinas sui

80
NT: Por ter a capacidade de conduzir à heresia, torna-se um direito assegurado pela Lei Divina
rejeitá-la.
81
NT: Como a lei de trânsito no caso de um ambulância com um paciente em risco de morte.
generis pós-conciliares, por desavença pessoal com padres de institutos tradicionais, enfim,
por qualquer outra razão, acabam sempre por restringir e proibir ao máximo tais padres e
institutos. Logo, podemos ver com o Priorado da Fraternidade em Santa Maria no Rio
Grande do Sul e o Mosteiro do Padre Jahir Britto na Bahia, os poucos exemplos de uma
resistência em tais regiões, justamente por jamais sequer notificarem o bispo sobre a sua
intenção de estabelecer um Priorado ou um Mosteiro, ou qualquer missão para a
celebração da Santa Missa, dado que, essa, canonizada por São Pio V, e levando em
consideração o atual estado de coisas, não precisa de tal autorização e que, por
conseguinte, pedi-la seria uma fraqueza e uma covardia com os fiéis de tais regiões,
restringindo seu acesso à Missa, por uma mera questão de formalidade.

Por fim, seguindo o relato já citado de São João da Cruz, quando estes se decidem
por não admoestar diretamente os seus superiores, como nas situações em que os monges
não seguem as constituições de sua Ordem, como muito denunciou, recorrendo ao direito
canônico, o Frei Eugène de Villeurbanne, dentro do claustro capuchinho, acaba-se
invariavelmente nesta situação, agora estendida para toda a Igreja, gerando um tal
comportamento onde: "ninguém replica, antes, concorda-se com tudo, passando por
cima e visando cada qual apenas defender o seu bocado; com essa atitude, lesa-se
gravemente o bem comum", e o mesmo santo doutor, menciona como um dos motivos
para uma tal atitude, a ambição. Podemos observar no cenário atual que, não repreendendo
as autoridades corrompidas, as mesmas, por sua vez, aproveitam da espiral do silêncio a
que aceitam se sujeitar e promovem tais homens, dão cargos, capelas e todo o tipo de
benefício material, enquanto que, uma resistência legítima, mas não acordada em limites
humanos, sofre por grandes e constantes dificuldades financeiras, provando assim um
desejo maior pela Fé do que pela estrutura. Dizia Dom Gérard Calvet: "Roma dá tudo e não
pede nada", e o que acontece na prática, conforme relatado por um dos próprios
conspiradores, "Mons. Georg Gänswein, que foi secretário de Bento XVI, disse que o Papa
Emérito leu o motu proprio Traditionis Custodes, que restringe a celebração da missa
tradicional em latim, 'com dor no coração'. 'Isso o atingiu muito forte. Acho que o Papa
Bento XVI leu o novo motu proprio com o coração pesado, porque sua intenção era ajudar
aqueles que simplesmente encontraram um lar na antiga missa a encontrar a paz, a
encontrar a paz litúrgica, a afastá-los também de Lefebvre'”, é a divisão das forças por
cisões internas, que só podem nos conduzir, invariavelmente, a uma derrota neste combate.

Para não dizer que exageramos, analisemos as inúmeras tentativas frustradas dos
acordistas ou católicos de linha média na Argentina, confessada por um deles (Sebastián
Randle):

“Um desastre desta magnitude não poderia permanecer sem haver reações.
Castellani inspirou uma delas. A do solitário. Sua prudência política foi infalível em ser
equívoca.

Os grupos nacionalistas produziram «movimentos» baseados principalmente na


formação, que foi essencial e muito boa. A questão litúrgica incomodava, mas não era um
«assunto», o que é mais ou menos normal entre os leigos e era bastante normal entre os
padres.

(...) Um monsenhor francês havia começado algo realmente louco, uma «fábrica de
padres» fora de todas aquelas influências destrutivas que frustraram todas as tentativas de
subordinação diocesana. Sem «oficiais» não haveria reação e o que tinha que ser feito
eram «curas» com profundidade espiritual, isso foi caindo de maduro, o catolicismo é
sacerdotal. Outros - por exemplo o Padre Buela - iniciaram tarefas semelhantes à procura
de quadros jurídicos de maior independência, mas, mesmo conseguindo-o, não afrouxou os
laços com Roma e a sua fortuna dependia do patrocínio de algum Cardeal que piscava
para ambos os lados, ou do humor do Bispo da diocese em que se encontravam, que
apoiaria ou sabotaria a tarefa. A jurisdição tem uma força enorme na ordem eclesial.

A fórmula lefebvrista de invocar um ‘estado de necessidade’ que os colocasse acima


do direito canônico positivo, da jurisdição e de suas sanções injustas, era a única que
permitia o progresso sem a constante sabotagem de homens desonestos e ficando
fora do alcance das dioceses. Deve-se reconhecer que o grito de advertência sobre a
questão litúrgica foi mais mérito do místico Calmel do que influência do prudente
Lefebvre.”82

82
Sebastián Randle, Biografía: Castellani, 1899-1949. Ed. Vortex, pág. 843.
Apêndice III: A Incognoscibilidade da Igreja Sedevacantista

Dando continuidade ao raciocínio anterior e me apoiando em um belo trabalho do


distrito italiano da Fraternidade:

"A simples 'observação', a partir do momento em que chega a esta conclusão (que o
Papa não é Papa), comporta necessariamente um 'julgamento' real e verdadeiro, ainda que
fora de qualquer enquadramento estritamente canônico. Em outras palavras, a tese de
Cassiacum manifesta o uso inadmissível de procedimentos que, em seus fundamentos, são
equivalentes aos de outros sedevacantistas que a própria tese pretende refutar. Se isso não
fosse verdade, então a mesma simples 'observação' ocorreria espontânea e
simultaneamente em todo católico que rejeita o Concílio, ao perceber (como ele realmente
faz) a inconciliabilidade entre o magistério tradicional e os ensinamentos atuais.

O fato de que isso não aconteça é um primeiro indício de que a 'observação' da


vacância formal da Sé Apostólica é, de fato, um verdadeiro juízo sobre a pessoa de João
Paulo II, fruto de uma odisséia teológica precisa e articulada. Demorou cerca de quinze
anos para o próprio Pe. Guérard, um teólogo distinto que havia rejeitado o Concílio e o
Novus Ordo com uma lucidez louvável, 'perceber' a vacância formal da Sé Apostólica e
entender que tal fato deveria ser declarado publicamente como elemento fundamental da
profissão de fé.

A perspectiva subjacente a esta abordagem é uma forma de legalismo (ou


positivismo jurídico), que equivale à dissociação do direito da realidade. Muitas vezes
acontece que a aplicação de normas jurídicas acaba tendo um efeito metafísico,
determinando e condicionando a realidade (pelo menos na mente do sujeito) em vez de
operar objetivamente. Em outras palavras, o que vemos aqui é a inversão da prioridade
metafísica: a prioridade do ser sobre a lei. Esta inversão permite tranquilizar a consciência,
esquivando-se de determinadas normas jurídicas (ou melhor, interpretando-as de acordo
com as próprias necessidades), uma vez que o direito não é mais concebido como
tendo uma conexão direta com a realidade.

Por consequência, do ponto de vista da tese de Cassiciacum, a realidade da Igreja


está sempre se tornando menos cognoscível em si mesma. Ela está aprisionada e
depende diretamente da aplicação de normas jurídicas. Ao examinar atentamente a Tese de
Cassiacum, tem-se a impressão de que a Igreja continua a existir simplesmente pelo fato de
que a vacância total não pode ser declarada.”83

“É notável como o valor de um ato de autoridade eclesiástica - que tem um valor


jurídico e normativo intrínseco - é assim assimilado ao simples exercício da fé por parte dos
fiéis. É verdade que também a profissão de fé tem um valor público perante a Igreja; do
ponto de vista da tese de Cassiciacum, porém, esta profissão inclui a rejeição da autoridade
de João Paulo II.

Mesmo assim, o fato de os Guérardianos apresentarem seu próprio julgamento


como, pelo menos teoricamente, privado, significa que eles não podem ser canonicamente

83
Sedevacantism: A false solution to a real problem, 2003, pág. 15-16.
assimilados aos outros sedevacantistas (embora possam ser associados com base em suas
conclusões compartilhadas, conforme descrito acima), e eles não correm o risco de eleger
um novo papa por conta própria. No entanto, esse esclarecimento, por mais necessário e
caro a seus expoentes, os prende em uma armadilha da qual eles não podem escapar. Eles
simplesmente nunca saberão com absoluta certeza (isto é, certeza que não se funda num
simples juízo privado) quando teremos um verdadeiro papa [atacando assim a
indefectibilidade da Igreja]."84

Sobre este mesmo juízo privado: “A Sé Suprema não é julgada por ninguém.”85

Aos que tentam fugir ao fato de sim estarem fazendo um juízo ao afirmarem que a
eleição foi inválida desde o princípio ou que o papa em questão perdeu a formalidade
(jurisdição) - coisa que será melhor abordada depois -,trago João de Santo Tomás à baila
para esclarecer o ponto, “pois, por conseguinte, como a Igreja o proclama juridicamente
eleito elegendo-o juridicamente diante de todos, é preciso igualmente que ela o deponha
declarando-o e proclamando-o como herege a ser evitado”86, e Suárez me confirma:

“Nenhuma lei humana pode fazer com que o Pontífice caia ipso facto de sua
dignidade, pois a lei teria sido aprovada ou por um inferior (isto é, um Concílio) ou por um
igual (isto é, um Papa anterior), mas nenhum destes pode ter força coercitiva, para poder
punir o Pontífice, que é igual ou superior, portanto, etc.

Mas você dirá que pode haver uma lei que é interpretativa da Lei Divina. Mas isto é
mera imaginação — pois tal Lei Divina não foi trazida à luz [por uma autoridade com poder
público que possa assim passar a exigir uma tal adesão dos fiéis e obrigatoriedade], e até
agora nenhuma lei foi aprovada pelos Concílios ou pelos Pontífices que interpretariam
essa Lei Divina. Isto é confirmado pelo fato de que tal lei colocaria a Igreja em perigo, pelo
que não é credível que Cristo a tivesse instituído, e o precedente é assim provado: Se o
Papa fosse um herege oculto e caísse ipso jure de sua dignidade, todos os seus atos
seriam inválidos.”87

Leão XIII condena essa concepção de Igreja fantasmagórica: “…aqueles que


arbitrariamente conjuram e retratam para si mesmos uma Igreja oculta e invisível estão em
erro grave e pernicioso…”88

“A perda da fé por heresia meramente interna não acarreta a perda do poder de


jurisdição [...] Isso se mostra, antes de tudo, pelo fato de que o governo eclesiástico seria
muito incerto se o poder dependesse de pecados e pensamentos internos. Outra prova:
sendo a Igreja visível, é necessário que o seu poder de governar seja ele próprio visível e,
portanto, dependente de actos externos e não de meras conjecturas mentais.”89

Não esquecendo também da influência de Hutton Gibson, pai de Mel Gibson, que
após se separar da Fraternidade aderindo ao sedevacantismo, fez questão de criar e
difundir, através do jornal, a infame tese “Liénart”; que possui as mesmas noções
perenialistas a respeito do Sacramento da Ordem. E, para não deixar essa questão em
branco, antes de dar continuidade ao assunto, vejamos um caso no passado da Igreja:
Talleyrand e os padres e bispos “jurões”.
84
Sedevacantism: A false solution to a real problem, 2003, pág. 19-20.
85
Can. 1556.
86
João de São Tomás, Cursus Theologici II-II De Auctoritate Summi Pontificis, Disp. II, Art. III, De
Depositione Papae, pág.139; conforme a tradução do Padre Pierre-Marie, O.P., Sobre a Deposição
do Papa, Le Sel de la terre 90, p. 112 a 134, 2014.
87
Francisco Suárez, Décima Disputa sobre o Sumo Pontífice. Colchetes nossos.
88
Leão XIII, Encíclica Satis Cognitum de 29 de junho de 1896.
89
Suarez, De Legibus, lib. IV, ch. VII, n. 7, pág. 360.
Quando padres e bispos que haviam aceito a Constituição Civil do Clero precisavam
de alguém disposto a ordená-los e consagrá-los, o único que se dispôs foi Talleyrand
(maçom, amasiado com filhos e netos e que jamais usava batina, exceto para abusar de
sua dignidade episcopal visando obter favores políticos e para ser causa de escândalo aos
fiéis). Dois homens foram consagrados por ele, a saber: Claude Eustache François Marolles
e Louis-Alexandre Expilly de La Poipe. Ambos consagraram, logo em seguida,
Jean-Baptiste Pierre Saurine, que futuramente viria a se reconciliar com a Igreja. Saurine é
aceito por Pio VII e é incardinado na diocese de Estrasburgo, na França, em 1802, sem
necessidade de nenhuma consagração sob-condição ou coisa semelhante. Para além deste
caso isolado, 13 bispos ao todo da linha de Talleyrand, são aceitos pela Igreja na
concordata assinada entre Pio VII e Napoleão. Assim, se Liènart foi supostamente um
maçom oculto, temos um caso bem pior, para provar que a verdadeira noção para realizar
um sacramento (fazer o que a Igreja manda, realizar corretamente o que pede o ritual), já
demonstra suficientemente a intenção de quem o faz e elimina toda a dúvida a esse
respeito, não deixando espaço para delírios perenialistas.

Podemos reconhecer boa parte dessa influência na deficiência da tese


sedevacantista em sustentar a visibilidade da Igreja em meio a sua teoria. "Como diz Pio
XII ainda na Mystici Corporis (14), (O Corpo Místico) não pode ser algo ‘que não se possa
tocar nem ver, como se fosse uma coisa pneumática (como dizem) pela qual muitas
comunidades de cristãos, ainda que mutuamente separadas pela fé, todavia se conjuntam
entre si com um vínculo invisível. Retenha-se destas palavras, no entanto, o essencial:
ainda que não separados pela fé, o que une os cristãos não é um vínculo invisível
propiciado por uma Igreja pneumática - conquanto, como visto, o vínculo último que os une
seja o mesmo Espírito Santo. (...) que estão em grave erro os que arbitrariamente imaginam
uma Igreja como que escondida e invisível; e não menos os que a consideram como
simples instituição humana com determinadas leis e ritos externos, mas sem comunicação
de vida sobrenatural. Ao contrário, assim como Cristo, cabeça e exemplar da Igreja, não é
todo se nele se considera só a natureza humana visível [...] ou só a natureza divina invisível
[...], senão que é uno das duas e nas duas naturezas [...], assim seu Corpo Místico: porque
o Verbo de Deus assumiu a natureza humana passível, para que, uma vez fundada e
consagrada com seu Sangue a sociedade visível, o homem fosse reconduzido pelo governo
visível às realidades invisíveis’”. E prossegue o Papa: Por isso lamentamos também e
reprovamos o erro funesto dos que sonham uma Igreja ideal, uma sociedade formada e
alimentada pela caridade, à qual, com certo desprezo, opõem outra que chamam
jurídica. Enganam-se grandemente os que introduzem tal distinção, porque se vê que o
divino Redentor, pela mesma razão por que ordenou que a sociedade humana por ele
fundada fosse perfeita em seu gênero e dotada de todos os elementos jurídicos e sociais, a
saber, para prosseguir na terra a obra salutífera da Redenção, por essa mesma razão e
para conseguir o mesmo fim quis que fosse enriquecida de dons e graças celestes pelo
Espírito Paráclito. O Eterno Pai quis que ela fosse ‘o reino do seu Filho muito amado’ (Col.
1, 13); mas de fato um reino em que todos os fiéis prestassem homenagem plena de
entendimento e de vontade, e com humildade e obediência se conformassem àquele que
por nós “se fez obediente até à morte’ (Fil. 2, 8). Portanto, nenhuma oposição ou
contradição pode haver entre a missão invisível do Espírito Santo e o múnus jurídico dos
pastores e doutores recebido de Cristo, pois que as duas coisas, como em nós o corpo e a
alma, mutuamente se completam e se aperfeiçoam e provêm igualmente do único Salvador
nosso, que não só disse ao emitir o sopro divino: “Recebei o Espírito Santo” (Jo. 20, 22),
mas em voz alta e clara acrescentou: “Como o Pai me enviou a mim, assim eu vos envio a
vós” (Jo. 20, 21), e ainda: ‘Quem vos ouve a mim me ouve’ (Lc. 10, 16). Tem-se assim que
é necessário que a Igreja seja visível, assim como foi visível o Redentor enquanto esteve
no mundo, e que, segundo o modo mesmo como ele a instituiu, tenha perpetuamente, até
ao fim do século, uma cabeça visível e outros órgãos visíveis - em ordem ao fim
mesmo que Ele lhe atribuiu. Uma Igreja invisível, ou “pneumática”, ou de pura caridade
não é pois possível em tempo algum nem por razão alguma - até ao fim dos tempos.”90

Caso assumíssemos a possibilidade da menção do nome do Papa tornar a Missa


ilícita, ou mesmo inválida, como supõem alguns sedevacantistas, as portas do inferno
teriam prevalecido contra a Igreja. "Se, ao contrário, o Oblatio Munda [O oferecimento do
Sacrifício da Missa] cessasse, ainda que por um único dia [antes do Anticristo, conforme
predito em Daniel 9,27: “fará cessar o sacrifício e a oblação,"] a Igreja fundada por Nosso
Senhor se dissolveria no nada. Mas a fé católica ensina que isso não pode acontecer. Mas
todas as missas celebradas entre 1965 e 1973, incluindo aquelas de hipotéticos
criptosedvacantistas, teriam sido sacrílegas. O mesmo se aplica ao Padre Pio91, falecido
em 1968, que teria sido um grande impostor por ter enganado as multidões com a
celebração pseudo-mística de uma missa objetivamente sacrílega e cismática [segundo
alguns sedevacantistas].”92

Continuemos com o que é dito pelo Padre Chazal: “Depois, há a Propriedade da


Visibilidade: “Deus estabeleceu uma Igreja por meio de Seu Filho unigênito e a dotou de
marcas manifestas de sua instituição para que ela pudesse ser conhecida por todos...”
Como pode qualquer subgrupo sede ser conhecido por todos os homens, se eles afirmam
ser o que resta da Igreja Católica? O Concílio definiu a Igreja como externamente
identificável e necessariamente visível (DS3300). Onde está o “reino visível de Cristo na
terra” para usar a expressão de Pio IX em Vix Dum, (1874)?”93

Como poderia ser possível exigir, para se manter uma fé ortodoxa, a necessária
deposição de um Papa? Somente um sensus fidei absurdo poderia realizar tal identificação
de que X indivíduo não é mais o Papa e a Igreja jamais poderia exigir algo desse tipo para a
integridade da Fé. Não trago minhas palavras somente como auxílio nesta questão, mas as
palavras mesmas de Dom Fessler, onde seu adversário, o Dr. Schulte, exige que todos os
fiéis façam um livre-exame, com base nas Sagradas Escrituras e na Tradição, para saber se
algo é um dogma de Fé ou não. O que Dom Fessler responde basta para elucidar essa
questão: “Quão totalmente irreal, quão completamente impossível na prática, tal
sugestão é, meus leitores o verão facilmente, se assim o considerarem, supondo que cada
um deles fosse obrigado a examinar a Sagrada Escritura, os Padres e os antigos
registros da Igreja, a fim de saber no que eles devem acreditar, no que concerne ao
magistério infalível do Romano Pontífice; e se, tendo feito tal investigação, eles são
obrigados a aceitar esta doutrina como uma doutrina da fé católica, e sob quais limitações.”
Esperar que os fiéis tenham toda essa bagagem teológica para continuarem católicos é
uma loucura! Se assim o fosse, a indefectibilidade da Igreja teria acabado
momentaneamente em 1965 ou em alguma data semelhante, até que o primeiro
sedevacantista surgisse em 1973 (o que é um absurdo evidente). Para provar a
necessidade de todo esse conhecimento para sustentar tal tese, tomemos este pequeno
exemplo: "A esse respeito, o conselho que o Bispo Sanborn, um defensor da tese do
Cassiciacum, dá àqueles que tentam entendê-la parece especialmente pertinente. Este
bispo pode ser creditado por tentar tornar a tese mais amplamente compreensível em sua
obra 'De Papatu Materiali.' Na última parte desta obra, notável por sua clareza, ele responde
90
Prof. Carlos Nougué, Do Papa Herético, ed. Santo Tomás 2017, pág. 248; 252.
91
“Eles teriam que chegar ao Padre Pio, que, ciente da influência da Maçonaria dentro da Igreja -
para a qual ele mesmo encarregou o próprio Dom Luigi Villa de combatê-la-, tinha um retrato de
Paulo VI em sua cela e o chamava de Papa. Estranho, não? Alguém com sua clarividência, a quem
Deus havia revelado o interior das consciências dos homens, que fez tantas profecias, que não sabia
que à frente de Roma havia um falso papa. Que raro." - Vide. Artigo, Sedevacantistas, Syllabus
Errorum, 24 de outubro de 2013.
92
Sedevacantism: A false solution to a real problem, 2003, pág. 48. Comentários em colchetes
nossos.
93
Padre Chazal, Contra Cekadam, pág. 61.
a uma série de objeções hipotéticas que poderiam ser levantadas pelos fiéis. Citamos a
objeção XI: 'A tese é absurda porque afirma que alguém é e não é o papa ao mesmo tempo.
Resposta: Aqueles que objetam dessa maneira não entendem a distinção real entre ato e
potência, nem a distinção entre não-ser simpliciter e ser em potência. Que eles consultem
manuais de filosofia aristotélico-tomista'.94 O conselho é muito oportuno, de fato necessário.
De fato, as distinções metafísicas às quais faz referência são necessárias para a
compreensão do abc da tese. No entanto, essa mesma necessidade demonstra que o
sensus fidei não é suficiente para rejeitar a autoridade de João Paulo II e tentar
resolver as dificuldades que tal ato acarreta. Portanto, esta questão não pode ser uma
questão de fé, precisamente porque não pode ser resolvida com um ato de 'simples fé', com
o simples 'exercício da fé' (ao contrário de como, provavelmente reconhecendo a natureza
da objeção, o sedevacantismo em outros lugares tenta demonstrar). - Cf. Belmont,
L'Ezercizio Quotidiano della Fede)."95

“40. Em erro perigoso estão, pois, aqueles que julgam poder unir-se a Cristo, cabeça
da Igreja, sem aderirem fielmente ao seu vigário na terra. Suprimida a cabeça visível e
rompidos os vínculos visíveis da unidade, obscurecem e deformam de tal maneira o
corpo místico do Redentor, que não pode ser visto nem encontrado de quantos demandam
o porto da eterna salvação.”96

Ponderando a situação de tal maneira, não será por uma compreensão melhor ou
pior da situação que a crise se solucionará. É um erro tremendo se apressar em coisas que
não convém a nossa insignificância, como mencionado o caso de Bakócz, é melhor
esperarmos a decisão da Igreja para assim sermos recompensados por nossos esforços.
Quem escolhe por decretar que tal ou tal Papa foi herético e que por isso deixou de ser
Papa, incorre em consequências evidentes. Primeiramente, quem lhe outorgou tal direito de
juízo e em segundo lugar, a partir de qual Papa isso começou a ocorrer? O CMRI reza João
XXIII, considerando Paulo VI como o primeiro a ter caído do pontificado, alguns celebram
Pio XII, apesar de sua reforma ter alguma influência de Bugnini, dado que ela foi uma
alteração disciplinar e por isso seria de assentimento obrigatório, negando assim João XXIII,
e outros rezam somente a de São Pio X, por diversas razões. Alguns negam papas desde a
idade média, outros negam apenas o Papa Francisco.

Foi em João XXIII, Paulo VI, João Paulo II? Qual missal rezar? O de Pio XII ou o de
São Pio X? Afinal, a reforma de Pio XII, de toda forma, seria de assentimento obrigatório,
mas, se se dispensam dela, por motivos humanos, tais como investigar essa ou aquela
estória sobre a sua elaboração, no fim, concluímos que há muito deixou de se tratar sobre
Fé e se tornou uma questão de mera opinião. Não esqueçamos também do Ofício Divino,
considerando que se dispensam do de João XXIII, esperamos que ao menos cumpram o
que dizem professar e rezem algum Ofício.97

Se eles são capazes de depor o Papa, o que os impede de eleger outro? O princípio
mais fatal não se difere tanto das teses mais rebuscadas. Em segundo lugar, não é fácil
compreender como um papa somente materialmente poderia continuar a nomear uma
hierarquia, igualmente sem jurisdição e assim, dar continuidade à visibilidade da Igreja,
considerando que é necessário que eles possuam jurisdição para que possam participar do
colégio cardinalício e, consequentemente, para que possam haver Papas, cardeais, bispos,
padres e toda a hierarquia da Igreja.

94
Reverendo Donald J. Sanborn, On Being Pope Materially [manuscrito, s.d.], pg 25. Publicado em
Sodalitium, nº 49, pág. 48.
95
Sedevacantism: a false solution to a real problem, etc…, pág. 50.
96
Pio XII, Encíclica Mystici Corporis de 29 de junho de 1943.
97
NT: Caso um subdiácono, sem dispensa, deixe de rezar uma hora menor (Prima, Terça, etc…)
sequer do Ofício, ele comete um pecado mortal.
Por outro lado, esconder-se na estrutura conciliar, por não sei que ilusão de que o
Papa, como tentavam inculcar homens como Dom Gérard, Jean Madiran, Michael Davies e
outros, por um otimismo descabido como falava Gustavo Corção, não poderia de forma
alguma estar inserido nessa conspiração contra a Tradição e que por isso era necessária a
obediência, rezando por sua conversão, enquanto seus padres deixavam de atender os fiéis
caso eles não obtivessem licença para isso, resumindo sua operação à um combate
controlado e por isso à uma oposição controlada, onde toda a sua defesa da Fé de sempre
seria necessariamente controlada pelos limites impostos pelos inimigos dessa mesma Fé, é
tentar a Deus, crendo que se não agirmos, Ele fará tudo por nós. Tanto os últimos quanto os
primeiros são frutos da crise, infelizmente, por tentativa de virtude ou fraqueza, se
refugiando em meios ilusórios e imaginários, para abafar a crise em que estamos. Somente
um homem fez o óbvio. Ele reconheceu a crise e a resistiu. Até que esse vício cársico e
cíclico seja eliminado de nosso meio, nossa defesa da Fé jamais será eficiente o suficiente
para nos adequarmos aos abismos que o mundo moderno nos expõe, para sermos o sal da
terra e a luz do mundo. "Todo o reino, dividido contra si mesmo, será destruído" (São
Mateus 12, 25), esse é o plano em que teimam em colaborar aqueles que continuam
atrapalhando a difusão da obra de Dom Lefebvre.

Em termos práticos, é evidente que os problemas com que nos deparamos nesta
crise surgem do não cumprimento das mensagens de Nossa Senhora em Fátima; e, no
entanto, qual sedevacantista propaga a devoção dos 5 Primeiros Sábados, a devoção
reparadora? Se não há Papa, quem consagrará a Rússia? Assim, parafraseando um autor
argentino: “Nós, católicos da Tradição, não somos daqueles que disputam ferozmente o
acesso a um bote em meio ao Titanic, mas sim daqueles que gritam que o navio está
afundando para uma multidão que prefere continuar se divertindo no salão.”98 Convido todos
os bons operários, que desejem verdadeiramente sofrer e trabalhar pelo bem da Igreja e
que anseiam por participar de Sua Paixão, espelhada na Igreja, a se unirem à nossa
Resistência, ao nosso combate e às nossas orações pelo fim mesmo dessa crise.

98
Flavio Mateos, Nuevos Aforismos Reacionarios, ed. Reacción 2022, página 56.
Conclusão: Um Apelo à Caridade

"A caridade fraterna que faz visível esse Espírito invisível manifesta-o aos homens,
abre-lhes as portas do imenso mistério e revela a caridade que ali reina. A caridade fraterna
reproduz aqui embaixo a caridade lá de cima; tem o traço característico da fisionomia
divina, expressa-a, é o movimento do Verbo de Deus que, acolhido por uma alma, reproduz
nela e por meio dela o que faz no seio do Pai e o que veio fazer entre nós. A caridade é o
sinal característico do Verbo Encarnado... e de todos aqueles a quem ele se comunica. O
mandamento novo do Mestre é antigo (S. Jo 2,7). Este reinvindica a ordem essencial que
sustenta a criação inteira e que o Criador inscreveu nas profundezas do coração humano.
[...]

A caridade fraterna é o cume consciente desse movimento que anima esse mundo
inferior, mas do qual não é consciente. O homem reassume em si todos esses seres que lhe
são confiados e que se dão uns aos outros, a fim de que Ele ofereça consigo a todos
Àquele que tudo fez.[...] Eis aqui a meta gloriosa a que chega o Mestre e onde os apóstolos
ainda, por um momento, não podem alcançá-lo (S. Jo 13,36)."99

Estamos em meio ao mesmo naufrágio, e essa é a única certeza que posso vos
garantir até o fim da crise. Escrevi tudo isso, e desejo que fique clara a minha intenção,
“primeiras coisas primeiro”, por desejar satisfazer certas insatisfações e questionamentos,
verdadeiramente legítimos, de alguns sedevacantistas, muitos entre os quais tenho um
lugar especial reservado em meu coração, pessoas, de fato, excepcionalmente católicas,
mas, muitas das vezes, senão todas, perdidas em sua práxis.

Se, por acaso, supormos que um pequeno grupo de pessoas é capaz de, por meio
de uma comunicação privada, anular a autoridade do chefe público da Igreja, a opinião
deles, na realidade, é a opinião pública, logo, se substituem pela Igreja e emitem juízos
usurpados:

“O juízo é justo na medida em que é um ato de justiça. Ora, como do sobredito


resulta, três condições se exigem para que um juízo seja um ato de justiça: primeiro, que
proceda de uma inclinação justa; segundo, que proceda da autoridade do chefe; terceiro,
que seja proferido pela razão reta da prudência. A falta de qualquer delas torna o juízo
vicioso e ilícito. - De um modo quando vai contra a retidão da justiça. E, então, o juízo se
chama pervertido ou injusto. - De outro modo, quando julgamos daquilo para o que não
temos autoridade. E, então, o juízo se chama usurpado.”100

“O juízo, devendo ser pronunciado de acordo com as leis escritas, quem o


pronuncia interpreta, de certo modo, a letra da lei, aplicando-a a um caso particular. Ora,
pertencendo à mesma autoridade interpretar e fazer as leis, assim como ela não pode
fazê-las, senão como autoridade pública, assim também, só nessa mesma qualidade é
que pode pronunciar um juízo, estendendo-se essa autoridade aos membros da
comunidade que lhe estão sujeitos. Portanto, assim como seria injusto obrigarmos alguém a

99
Augustin Guillerand, Écrits spirituels, t. 1, pp. 414-416.
100
Suma Teológica, tradução do Dr. Alexandre Correia, pág. 2118, Secunda Secundae, q. 60, art. 2.
observar uma lei não sancionada pela autoridade pública, assim também sê-lo-ia o
compelíssimos a pronunciar um juízo não fundado nessa autoridade.”101

e não apenas isso, como também caem na seguinte consequência: aquele que depõe,
possui, logicamente, a obrigação de reeleger, justamente em vista de manter a continuidade
da hierarquia e da jurisdição e demais marcas da Igreja; assim, desde as teses mais
refinadas até as mais grosseiras do sedevacantismo, segundo a minha percepção, não
escapam muito do curso natural das coisas, tendendo de vez em quando, por oscilação, ao
conclavismo.- e que daí decorrem em inúmeros vícios e problemas graves, como foi o caso
evidente das consagrações, que Deus somente sabe acerca da validade, de homens da
linha liènarista ligados a um influenciador muito famoso na internet, e que já foi citado e que
vocês sabem quem é.

Enfim, colocando os últimos pingos nos is, na medida das minhas forças, há um
tempo me citaram indiretamente algo de S. Vicente Ferrer, acerca da necessidade absoluta
da escolha de um papa ortodoxo em vista a manter a Igreja em ordem. E bem, eu nunca
neguei isso, nem creio que algum tradicionalista negue e, pelo contrário, creio que a maioria
o deseje, mas ocorre a seguinte situação - já vista no discorrer deste estudo: falta de
proporcionalidade ou adequação a realidade. Nunca houve uma situação análoga e
qualquer paralelo é, no mínimo, insuficiente e não conforme essa mesma realidade, afinal,
S. Vicente tinha de fato uma confusão material quanto aos papas, saber exatamente qual
deles havia sido eleito, e nós não temos senão uma confusão formal, muito mais difícil de
se resolver e que necessita da intervenção da Igreja, tanto quanto foi necessária a
intervenção das autoridades, dos prelados legítimos, cardeais, etc, para a situação acima
mencionada, tanto mais não será necessária uma tal intervenção numa situação
infinitamente mais difícil como é a nossa, não? E, precisamente por isso, optamos pela
prudência de D. Lefebvre em aguardar por esse mesmo juízo.

“É por isso que, quando um Papa que não é bom reina na Igreja, o princípio da
unidade se desestabiliza mais ou menos intensamente e hoje se pode falar, em sentido
amplo ou não estritamente teológico, de homens de uma ’contra-igreja’... que tentam
implodir modernistamente a Igreja Católica por dentro” (cf. São Pio X, Encíclica Pascendi, 8
de setembro de 1907).

Em suma, se brincássemos de colocar a força dessas palavras contra o ar da


realidade, elas acabariam jogando estilhaços tanto para cá quanto para lá, afinal, se fosse a
ferro e fogo a questão do papa, teríamos de chegar uma hora na realidade dos fatos, ou
seja, que o próprio S. Vicente escolheu o papa errado! Assim, o papa é a regra da fé e
justamente por ser a regra, como explicado pelo Pe. Simoulin, não é possível que ele seja
escolhido, mas apenas aceito - como provado pela infalibilidade de uma tal adesão pelo
Card. Billot: “Que seja dito de passagem contra aqueles que, tentando justificar certas
tentativas de cisma feitas na época de Alexandre VI, alegam que seu promotor (Savonarola)
divulgou que ele tinha as provas mais certas da heresia de Alexandre que ele revelaria a um
Concílio Geral. Deixando de lado aqui outras razões com as quais se poderia facilmente
refutar tal opinião, basta lembrar o seguinte: é certo que, quando Savonarola estava
escrevendo suas cartas aos príncipes, toda a cristandade aderia a Alexandre VI e o

101
Suma Teológica, tradução do Dr. Alexandre Correia, pág. 2122, Secunda Secundae, q. 60, art. 6
obedecia como o verdadeiro Pontífice. Por isso mesmo, Alexandre VI não era um papa
falso, mas um legítimo.”102, e sendo as coisas de tal forma, vale recordar que:

"Um ato de fé não basta e não é infalível, senão somente segundo a adesão que
concede ao ensinamento da Igreja: ‘Com efeito, a proposição magisterial é como a causa
eficiente e a causa formal da profissão de fé, ao passo que a virtude de fé da Igreja
universal não é de si infalível em seu ato externo, senão que é 'indefectível na santidade
de sua docilidade ao Magistério’, como diz ainda o Padre Calderón. ‘Há portanto um único
princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: aquele concedido por
Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos’”

(...) B. De todo o dito, portanto, já se vê como se conjugam o atendimento do rogo


de Cristo porque não falecesse a fé de Pedro e a promessa de que as portas do inferno não
prevaleceríam contra a Igreja: não é que a fé singular de Pedro não faleça nunca (porque,
com efeito, já vimos e voltaremos a ver que de algum modo e alguma vez pode falecer),
senão que, pela assegurada assistência indefectível do Espírito Santo - dada em condições
que já se verão -, Pedro sozinho ou em união com os bispos é a própria regra próxima da
infalibilidade in credendo de toda a Igreja, infalibilidade sem a qual, por sua vez, as portas
do inferno prevaleceríam contra esta. Insista-se: a fé singular de Pedro pode falecer, mas
não sua proposição de fé assistida pelo Espírito. E tanto é assim que, ainda que a fé de
um papa lhe falte interiormente de todo, ainda assim, se fala in persona Christi (nos
modos de que já falaremos), sua proposição, por indefectivelmente assistida, será não só
infalível, mas causa eficiente e causa formal da profissão de fé de toda a Igreja. É
analogamente o que se dá com um sacerdote que não creia na transubstanciação: se
cumpre com a matéria, com a forma e com a intenção que fazem válida a Eucaristia,
dar-se-á a transubstanciação, porque, com efeito, 'sacramenta operantur ex opere
operato'. (...) Como vimos, com efeito, Pedro é a causa eficiente e a formal da profissão de
fé de toda a Igreja. Mas, para que ele e seus sucessores o pudessem ser, Cristo terá então
rogado que não lhe falecesse ou faltasse a assistência do Espírito Santo em seu ato
externo como pastor universal da Igreja. - De outro modo, dado o rogo de Cristo - que,
lembre se, não podia não ser atendido -, não parece possível explicar que algum papa se
tenha desviado da fé ou que ao menos seja possível que tal suceda. Mas vimos que isto
mesmo se pôs ou admitiu, de algum modo, em uma multidão de atos do magistério. A
conclusão impõe-se. (...) Não se confunda porém a fé de Pedro em seu ato interno ou
externo com sua firmeza ou fortaleza na fé. E isso é patente pelo que sucede em seguida
ao anúncio de Cristo de que rogara que a Pedro não lhe falecesse a fé: o mesmo Cristo
prediz que Pedro o negará três vezes.”103

Para guisa de conclusão, simplesmente não faz sentido, segundo a economia da


salvação, que a Providência tenha destinado a opinião de um doutor privado e que,
portanto, não possui poder vinculante para obrigar as consciências, e que pela mesma sorte
jamais poderia ser a solução para uma querela que abrange a mesma Igreja, como a
solução para essa confusão generalizada. Mesmo a repetição de doutores é uma perda de
tempo aqui, justamente porque a questão não foi suficientemente e claramente
estabelecida, como afirma Suarez e torno a repetir, “pois tal Lei Divina não foi trazida à luz,
e até agora nenhuma lei foi aprovada pelos Concílios ou pelos Pontífices que
interpretariam essa Lei Divina”, e quando não há clareza, não é possível haver vinculação
das consciências e obrigatoriedade e, portanto, não há erro em não aderir a uma distinção
criada por um teólogo, e a simples demonstração de que há opiniões contrárias na Igreja já
coloca ao sol a fragilidade de tais ditos e repetidos consensos de teólogos selecionados,

102
Padre Chazal, Contra Cekadam, pág. 80.
103
Do Papa Herético, etc… pág. 265-267.
“um Papa é constituído Papa pelo poder da jurisdição apenas”104, e nos mantém tranquilos
quanto a nossa posição, até que algum pontífice com autoridade dê finalmente um basta a
toda essa confusão e, além disso, é fácil de perceber como que, sugerindo que apenas um
clero material basta, desprezando a sua formalidade, poder-se-iá, sem dificuldades, afirmar
que os cismáticos ditos ortodoxos seriam o suficiente para manter a indefectibilidade da
Igreja, quando, na realidade, sabemos que não é assim.

Encerrando, com uma aproximação na questão da consciência, coisa tão sensível


na maioria dos homens, com respeito à liberdade que a posição lefebvrista nos concede, o
Padre Royo Marín (Teologia Moral para Seculares, BAC, 1964; Tomo. I, p. 140) diz que
esses princípios reflexos ou indiretos são “certas normas gerais de moralidade que não
recaem direta e por si mesmas sobre a própria coisa que é preciso descobrir, mas que
refletem sobre ela sua própria luz, a ponto de nos conduzir a uma certeza moral de
ordem prática, embora não dissipem completamente as trevas especulativas”, e creio
eu que, seguindo tais princípios firmes e irredutíveis, lembrando que Deus nunca deixará de
dar os meios para a nossa salvação em todos os tempos da Igreja, o que é um apelo que
vos faço à esperança e à confiança num Deus todo amoroso, é necessário ter em mente
que a Igreja não julga o que pensamos (ut arbitramur), mas apenas aquilo que fazemos, se
é papa ou não, isso é uma questão de opinião, mas o que fazemos em decorrência de uma
opinião é o que contará para o nosso juízo. Conforme o que pregou D. Lefebvre, se são
papas ou não, um futuro Concílio e um papa ortodoxo o decidirá! Alguém com autoridade
para isso.

Na Suma vemos que “Una cum” é apenas uma maneira estilizada de se rezar pelo
Papa105. Garrigou-Lagrange106, por exemplo, concede a possibilidade de se rezar por um
papa herético.107 Mas, todas essas questões, são um assunto estritamente teológico e que
só terão a sua resolução junto com o fim mesmo da crise, numa definição futura de algum
concílio, convocado por um papa plenamente ortodoxo. Não seremos julgados por saber se

104
Cardeal Caetano, De Comparatione Auctoritatis Papae et Concilii, tradução inglesa, Conciliarism &
Papalism, página 76. Citação retirada do livro “True or False Pope?”, de John Salza e Robert Siscoe,
pág. 310.
105
Em seu comentário sobre as orações da Missa (III, q. 83, a. 4), ele escreve:

“Deinde sacerdos secreto comemore, primo quidem, illos pro quibus hoc sacrificium offertur, scilicet
pro universali Ecclesia, ET PRO his qui “in sublimitate sunt constituti” (I Timóteo 2, 2); et specialiliter
quosdam qui offerunt vel pro quibus offertur. (O sacerdote, em voz baixa, comemora aqueles por
quem este sacrifício é oferecido, ou seja, pela Igreja universal­, E POR aqueles que, segundo São
Paulo, "estão estabelecidos em dignidade", e especialmente aqueles que oferecem ou por quem se
oferece.)”

Assim, para Santo Tomás de Aquino, “ una cum” nesta oração equivale a ‘et pro (e por)’.
Para mais, consultar: www.mosteirodasantacruz.org/post/dom-lefebvre-e-o-una-cum.
106
“Esta condição é bastante anormal, portanto, não é de admirar que algo anormal resulte dela, a
saber, que o papa que se torna secretamente um herege não seja mais um membro real da Igreja, de
acordo com o ensinamento explicado no corpo do artigo, mas ainda manteria sua jurisdição pela
qual ele influenciaria a Igreja ao governá-la. Assim, ele ainda seria nominalmente a cabeça da Igreja,
que ele ainda governaria como cabeça, embora não fosse mais um membro de Cristo, porque não
receberia aquele influxo vital de fé de Cristo, a cabeça invisível e primária. Assim, de maneira
bastante anormal, ele seria o chefe da Igreja em termos de jurisdição, embora não sendo membro
dela.” (De Christo Salvatore, ed. Inglesa, pág. 540).
107
A esse propósito o Padre Chazal comenta que: “A Revolução Francesa compara-se bem com o
cisma anglicano e o cisma oriental: a diferença entre católicos e cismáticos foi identificada na época
pela omissão do nome do Papa no Cânon da Missa. Não trataremos de elaborar a semântica das
palavras “una cum”, nem o fato de um bispo rezar una cum para si mesmo.” Contra Cekadam, pág.
80.
são papas ou não. Entretanto, somos obrigados a rezar pelo Papa. Não há, pela lógica
mesma das coisas estabelecidas na Igreja em seu passado, qualquer fundamento para
deixar de fazer o que sempre foi feito, para buscarmos uma solução abrupta para um
mistério que está se desenrolando em nossos dias. A crise se pauta antes de tudo na
salvação de almas, e não em discernir entre questões difíceis e disputadas da teologia,
assim, para nós, basta saber que Deus assegura os meios de salvação em todas as épocas
da Igreja.

“Se alguém, por um motivo razoável, suspeitar da pessoa do Papa e recusar sua
presença, mesmo sua jurisdição, ele não comete nenhum delito de cisma, nem qualquer
outro delito, desde que esteja pronto para aceitar o Papa se ele não fosse realmente
suspeito. É óbvio que temos o direito de evitar o que está causando danos e prevenir os
perigos." Caetano não diz que seja obrigatório recusar a jurisdição do suspeito Pontífice,
mas que alguém poderia fazê-lo, caso tivesse boas razões para isso. Ele discordou de
Belarmino sobre a questão do Papa herético, mas compreendeu, quase profeticamente, o
que poderia acontecer em nossos anos de sofrimento”.108

Não podemos dizer que seja diretamente um pecado a questão da missa non una
cum, mas o que se dá objetivamente é um cisma ao rejeitar uma jurisdição válida,
entretanto, como explicado por Caetano, é uma resistência que pode vir a ser legítima na
medida em que a culpa é jogada em cima do pontífice, que por seus erros se torna suspeito
aos olhos do clero e dos fiéis. Tratando a questão como um cisma objetivo, há também de
analisar a tangente da consciência, pois só peca aquele que vai contra a sua própria
consciência, ou seja, o que há (e não pouco) de subjetivo nessa questão. Por essa mesma
razão, muito provavelmente, podemos encontrar alguns padres bons, normalmente com
tendência ao escrúpulo, no meio sedevacantista. Entretanto, não achamos seguro confiar
apenas numa opinião para basear nossa práxis, como é a de Caetano, na resolução de um
enigma tão delicado. Em síntese, na posição lefebvrista, não há qualquer perigo, uma vez
que não somos obrigados a saber quem é o papa, mas apenas de rezar por ele. Um caso
semelhante ao que se deu com São Vicente de Ferrer e a dúvida a respeito de qual era o
papa verdadeiro durante a chamada crise do Ocidente, com o porém de São Vicente ao
menos rezar por um dos “papas” (anti-papa) da época, ou seja, de rezar pelo papa, mesmo
pairando uma dúvida a seu respeito - e ainda por cima tendo errado na escolha,
inicialmente. Uma situação como a nossa, pelo contrário, jamais ocorreu na história da
Igreja nos mesmos termos e proporções. Além disso, teólogos antes propõem, que para o
bem comum da Igreja, tais papas nessa época de dúvida, tiveram, com certas limitações,
uma jurisdição válida, somente para o bem da mesma Igreja; assim sendo, a Igreja é antes
partidária da moderação e pelo sim do que pelo não e quem ocupa pacificamente um cargo,
muito provavelmente possui os poderes que lhe são próprios.
Podemos nos afastar materialmente, como explica Dom Cipriano O.S.B., no caso de
uma esposa que se afasta de um marido abusivo. Tal ato de afastar-se, para a defesa da
própria vida, que é um direito garantido pela Lei Divina, não implica que ela tenha uma
autoridade superior aquele de quem se afasta e não faz cessar os vínculos legítimos entre
ambos, como seria o caso de um afastamento formal, tal como o divórcio segundo essa
analogia, por exemplo.

“Vê-se que humanamente falando a situação é inextrincável. É preciso esperar que


a Providência, de uma maneira ou de outra, indique o caminho que nos permita sair deste
impasse. Esperando, é mais prudente manter a posição de Dom Lefebvre e rezar pelo
papa, sem deixar de resistir às suas ‘heresias’” (Pe. Pierre-Marie, O.P.).

108
Contra Cekadam, pág. 98.
“Guido de Vienne (futuro Calixto II), São Godofredo de Amiens, Santo Hugo de
Grenoble e outros Bispos reunidos no Sínodo de Vienne (1112) enviaram ao papa Pascoal II
as decisões que adotaram, escrevendo-lhe ainda: ‘Se, como absolutamente não cremos,
escolhermos uma outria via, e vos negardes a confirmar as decisões de nossa paternidade,
valha-nos Deus, pois assim nos estarei afastando de vossa obediência’”109

“Quando o pastor se transforma em lobo, é ao rebanho que, em primeiro lugar, cabe


defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos para o povo fiel, e os
súditos, no domínio da Fé, não devem julgar seus chefes. Mas há, no tesouro da
Revelação, pontos essenciais, que todo cristão, em vista de seu próprio título de cristão,
necessariamente conhece e obrigatoriamente há de defender”110

Luigi Falcon.111

109
Citação extraída do compilado “A Missa Nova: Um caso de Consciência”, realizado pelos Padres
de Campos, conforme citado por Bouix, “Tract. De Papa, tom. II, pág. 650”.
110
Dom Guéranger, Sermão dado muito a propósito na festa de São Cirilo de Alexandria, L'Année
Liturgique, pág. 340-341.
111
NT: O julgamento do Papa, como expliquei logo no início, não foi e nem será tratado
detalhadamente neste artigoo, já fizemos muito conteúdo a esse respeito e cremos que,
imediatamente falando, a conferência do Pe. Salenave baste para esse propósito, é necessário
repetir, mas o grande objetivo deste estudo foi a questão litúrgica. Da mesma maneira que muito
certamente não responderei nenhuma réplica direcionada a este trabalho, também não gostaria que
algum ataque, nascido de uma razão pessoal, surgisse em decorrência deste estudo, e digo mais,
prefiro e buscarei seguir à risca uma tal preferência, a de não entrar em mérito pessoal de Chico nem
de Francisco, evitando assim todo juízo temerário e carga adicional no portugatório, recomendando a
todos que façam o mesmo. Salve Maria.
ÍNDICE DO CONTEÚDO

Da Missa Nova enquanto Lei Litúrgica e a Crise como um


Todo

● Explicações iniciais - pág. 1

● Parte 1: Apresentação do problema - pág. 3

● Parte 2: Desenvolvimento do problema do magistério, sobretudo


a questão litúrgica. - pág. 6

● Parte 3: O Magistério Ordinário Universal (M.O.U.) - pág. 28

● Apêndice I: Nossa Posição (R&R) - pág. 30

● Apêndice II: O Estado de Necessidade - pág. 35

● Apêndice III: A Incognoscibilidade da Igreja Sedevacantista -


pág. 42

● Conclusão: Um Apelo à Caridade - pág. 48

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