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SOBRE ASSOCIATIVISMO,

DESIGUALDADES E DEMOCRACIA*

Celia Lessa Kerstenetzky

Introdução osa a relação entre associativismo e democracia?


De que maneira, por exemplo, a presença de
Prima facie, uma sociedade rica em vida importantes e persistentes desigualdades na trama
associativa – por contraste com um agregado social interage com o ativismo associativo e afeta
indiferenciado de indivíduos que trocam bens e a condição de igualdade política?
serviços – evoca a imagem de uma comunidade O exame da literatura revela um conjunto de
que se autogoverna, que faz democracia “com as problemas, emergentes, sobretudo das relações
antigas e íntimas entre apatia política e desigual-
próprias mãos”. Mas, se a idéia de democracia
dades socioeconômicas. Esses problemas recomen-
envolve a condição, moralmente mais exigente,
dam cautela com relação à postulação de um vín-
de igualdade política, será necessariamente virtu-
culo automático entre densidade associativa e
democracia. Ou, mais propriamente, com relação a
* Devo a José Eisenberg a idéia de escrever este arti- uma imputada “benignidade política” da vida asso-
go, que apresentei em 2002, no GT 19: “República ciativa, reputação esta adquirida por conta de sua
e cidadania: teorias e debates contemporâneos”, da alegada qualidade de redutora de desigualdades
Anpocs, coordenado por ele e por Cícero Araújo.
Agradeço, ainda, os comentários, à época, de Gildo
políticas. A bem da verdade, esse ceticismo nutre-
Marçal Brandão, Rubem Barboza Filho e dos partic- se, em parte, da complicação introduzida pelas
ipantes da sessão, de Elisa Reis e do Comitê desigualdades socioeconômicas no cenário, de
Acadêmico desta revista. outro modo quase plácido, das relações entre asso-
Artigo recebido em outubro/2002 ciativismo e igualdade política; em parte, de limites
Aprovado em maio/2003 próprios ao associativismo.
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Tenho em mente dois problemas específi- Este artigo está organizado como uma
cos. Por um lado, quando as desigualdades coleção de argumentos que: 1) estabelecem, a
socioeconômicas são “duráveis” e elevadas é bem partir de uma breve revisão da literatura, a apatia
plausível que se repliquem no interior da vida política como uma das conseqüências plausíveis
associativa, bem como entre grupos organizados das desigualdades sociais, na primeira seção; 2)
e não organizados, enfraquecendo a habilidade problematizam, com auxílio de literatura específi-
de inclusão política da participação associativa. ca, aspectos das relações entre apatia política e
Além disso, não parece claro que a intensificação vida associativa, em especial o alegado potencial
da vida associativa conduza a uma redução das da vida associativa em neutralizar os efeitos da
desigualdades sobre as quais se plasma. Esse é o desigualdade social sobre a participação política,
tipo de interação entre associativismo, desigual- na segunda seção; e, 3) sugerem, na seção final,
dades e democracia que põe em dúvida sua sem demonstração adicional, a hipótese de que
relevância para incrementar a igualdade política. um ataque direto à distribuição pode tanto mitigar
Por outro lado, há evidências preocupantes a desigualdade política e estimular a participação,
de que a participação associativa seria compatível como infundir vida nova ao associativismo (via,
com a produção ativa de apatia política, por meio, por exemplo, a redução dos incentivos à incivili-
por exemplo, de uma etiqueta cívica apolítica, dade) e torná-lo mais equilibrado.
coletivamente elaborada. Aqui a sugestão é que Uma última palavra sobre o que quero (e o
“participação”, ainda que seja uma forma esclare-
que não quero) dizer. Exploro, aqui, alguns pon-
cida de cuidado para com o interesse do grupo,
tos de tensão entre participação associativa e par-
não é necessariamente uma virtude política,
ticipação política (e igualdade política), que com-
“republicana”. Em outras palavras, parece duvi-
põem a natureza problemática da ligação entre
doso que a participação associativa seja capaz de
essas duas militâncias, e entre associativismo e
neutralizar os efeitos negativos das desigualdades
democracia. Não quero com isso negar os méritos
socioeconômicas sobre a igualdade política, bem
próprios do associativismo, especialmente em ter-
como seja em si mesma uma incubadeira de dis-
mos de sociabilidade, dos quais, em última instân-
cursos politicamente abrangentes.
cia, se beneficia a democracia, muito embora
O problema da participação política, com seu
questione aspectos de legitimidade ligados à idéia
desiderato implícito de igualdade nessa dimensão,
não qualificada de autogoverno. O objetivo maior
pode bem requerer manejo político no sentido
tradicional: se há energia dispersa que pode ser é ensejar reflexão e pesquisa futura.
drenada para superar a inapetência associativa,
pode também ser canalizada na direção de uma
redefinição de nosso acordo distributivo, na medi- Desigualdade e apatia política
da em que este afeta inequivocamente a desigual-
dade política. Dito de outra forma, se parece haver Desigualdades socioeconômicas, sobretudo
benefícios próprios de uma vida associativa partic- quando intensas, estão associadas a várias conse-
ularmente rica, o potencial desta em reduzir qüências indesejadas: crescimento econômico
desigualdades socioeconômicas e, por extensão, insuficiente, ineficiência, pobreza, violência e
desigualdades políticas, não parece claro; um democracia de baixa qualidade, em termos, sobre-
ataque direto à distribuição pode ser mais produti- tudo, da efetividade de direitos civis, mas também
vo. E inversamente, se a redução de desigualdades da efetiva igualdade de direitos políticos
sociais contribui para melhorar o equilíbrio asso- (Kerstenetzky, 2002). A própria longevidade das
ciativo, este mais se aproximaria da imagem de democracias parece depender do nível das
uma comunidade que legitimamente se autogover- desigualdades. Em busca de fatores responsáveis
na, possibilitando, inclusive, a exploração de inter- pela duração das democracias, Przeworski et al.
ações virtuosas entre o sistema político e modali- (1997) chegaram à conclusão de que as democra-
dades mais diretas de participação. cias com nível de desigualdade declinante ao
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longo do tempo teriam uma maior propensão a do imobilismo político ou da apatia benigna é
sobreviver. defendida, entre outros próceres da teoria
democrática pluralista, por Almond e Verba
[E]stas descobertas [observam os autores] con- (1963), Lipset (1963) e pelo próprio Dahl (1956).
tradizem qualquer noção de que pressões distribu-
Revisão posterior, sobretudo nos anos de
tivas ameaçam a sobrevivência da democracia: as
pessoas esperam que a democracia reduza a 1980 e 1990, conclui, a partir de uma reflexão
desigualdade de renda, e as democracias estão mais agora explicitamente normativa, que a apatia
propensas a sobreviver quando o fazem (p. 120). política tem sua razão de ser: ela seria uma reação,
nada idiossincrática, a condições objetivas vigentes
À lista de malefícios da desigualdade pode- em sociedades contemporâneas que influenciariam
se acrescentar, ainda, a apatia política dos grupos o estoque (limitado) e a distribuição (desigual) de
sociais menos favorecidos. O declínio, por exem- oportunidades de participação.
plo, nos Estados Unidos, da mais convencional Nesse caso, caberia a indagação, já devida-
das formas de participação política – o voto –, a mente impregnada da resposta: seria a apatia uma
partir dos anos de 1970, se não pode ser associa- benção ou uma ameaça à democracia? Se a
do ao crescimento da desigualdade (que ocorre democracia é, idealmente, um processo de
apenas a partir dos anos de 1980), é mais pro- decisão coletiva que respeita a autonomia dos
nunciado entre os mais pobres e menos educa- indivíduos, seria necessário examinar a hipótese
dos, e os afeta cada vez mais (Jencks, 2002). A de os processos decisórios reais estarem alienan-
influência política desse segmento tende a ser do cidadãos de fato interessados em assuntos
sempre menor, entre outras razões, pelo peso públicos e de governo, ao subtrair-lhes o acesso
crescente das contribuições pecuniárias nas cam- a oportunidades efetivas de participação. Seria
panhas políticas (Idem, ibidem). conveniente, portanto, captar a extensão dessa
De fato, particularmente em décadas demanda reprimida por democracia. Com efeito,
recentes, a associação entre desigualdades e não- trabalhos empíricos nos anos de 1980 (Bennett,
participação política, sobretudo dos segmentos 1986, por exemplo) atestam que enquanto o com-
sociais em desvantagem, torna-se corriqueira na parecimento para votar – indicador convencional
literatura sobre participação política e na teoria de participação política – cai, o mesmo não acon-
democrática. tece com a “atenção a assuntos públicos”, medida
Uma ligeira revisão da literatura sobre apa- por uma série de indicadores engenhosos,
tia/participação, entre os anos de 1960 e os dias reforçando a tese de que haveria alienação, não
de hoje, revela curiosas inflexões no tratamento apatia. Trata-se, portanto, de “exclusão” política,
do tema. Nos anos de 1960 e início da década de não desinteresse.
1970, na análise empírica da democracia, que de Em The two faces of political apathy (1995),
resto coincidia com a teoria democrática, domina De Luca resume a nova disposição na teorização
a cena a percepção da apatia política, então rev- sobre a apatia política, em termos da tendência
elada por uma série de estudos empíricos, como, em diferenciar a apatia como responsabilidade
na pior das hipóteses, uma benigna irracionali- individual, resultante da livre escolha de cidadãos
dade ou miopia. Amplos setores da população bem informados, daquela de responsabilidade
pelos mais variados motivos, todos de alguma não individual (elites, práticas institucionais,
forma relacionados com a saciedade da demanda estruturas sociais etc.). Essa nova configuração
por democracia, disfranchise themselves (Dahl, corresponderia à distinção sugerida acima entre
1956) contra um pano de fundo de grandes opor- apatia (responsabilidade individual) e alienação
tunidades de participação política. Isso, entretan- (“responsabilidade” de estruturas e práticas, e
to, se dá para benefício da democracia, que resul- relações de poder). E o próprio Dahl, que no
taria paralisada se todos os cidadãos fossem Preface (1956) enfatizara a apatia como uma
acometidos de compulsão participatória. A tese escolha, possivelmente míope mas não disfun-
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cional, de responsabilidade de indivíduos que influence over the state and, therefore, over the
disfranchise themselves, mais tarde, como em nature of democratic outcomes” (Held, 1996, p.
After the revolution (1990), aponta o dedo 216). A percepção dessa desproporção, é plausív-
acusatório para as assim chamadas causas el inferir, poderia estar causalmente relacionada
remediáveis da não-participação, todas passíveis ao declínio da participação de segmentos sociais
de eliminação em uma highly egalitarian society, em desvantagem.
onde “differences [in participation] would result Seria preciso notar, ainda, sugere Lukes
more from the exercise of personal choice over (1974), a influência exercida pela desigualdade
an array of opportunities and less from objective sobre o processo de formação de crenças e
differences in the opportunities available” (apud preferências, substrato de escolhas ditas de
De Luca, 1995, p. 93, grifo meu). responsabilidade individual. Na descrição de sua
Já no A preface to economic democracy terceira dimensão do poder (a primeira, a
(1985), em fase neo-pluralista, Dahl advertia para o coerção; a segunda, o poder de agenda), Lukes
risco de contração das liberdades democráticas, indaga:
indiretamente decorrente de acessos muito diferen-
[...] it is not the supreme and most insidious exer-
ciados a recursos econômicos que, por sua vez, afe- cise of power to prevent people, to whatever
tariam o acesso a recursos diretamente necessários degree, from having grievances by shaping their
à efetivação de liberdades políticas iguais:: perceptions, cognitions, and preferences in such
a way that they accept their role in the existing
Ownership and control contribute to the creation order of things, either because they can see or
of great differences among citizens in wealth, imagine no alternative to it, or because they see
income, status, skills, information, control over it as natural and unchangeable [...]? (1974, p. 24).
information and propaganda, access to political
leaders, and, on the average, predictable life Essa forma difusa de poder, gerador de dis-
chances, not only for mature adults but also for sonância cognitiva nos segmentos sociais mais
the unborn, infants, and children. After all due
vulneráveis, seria parasitária de estruturas sociais
qualifications have been made, differences like
these help in turn to generate significant inequal- muito desiguais. A alquimia do conformismo em
ities among citizens in their capacities and oppor- desejo, e simulacro de autonomia, é o próximo
tunities for participating as political equals in passo: os mecanismos endógenos pelos quais os
governing the state. (Dahl, 1985, p. 55, apud indivíduos ajustariam seus desejos e identidades à
Held, 1996, p. 214). sua impotência, e se ensinariam a love one’s fate,
são desnudados por Bourdieu (1990). E aqui, de
Outro mecanismo que conecta desigual- novo, estruturas sociais, com desigualdades ossi-
dades econômicas e desigualdades de partici- ficadas, teriam parte substancial da responsabili-
pação política é indiretamente sugerido por dade pela peculiar vulnerabilidade dos segmentos
Lindblom (1977). Na medida em que em uma menos favorecidos ao exercício dessa terceira
economia de mercado, funções públicas como dimensão de poder.
geração de empregos, decisões de produção e de Em suma, a nova agenda de pesquisa viria
investimento, fixação de preços, crescimento e impor ao esforço de teorização a necessidade de
padrões de vida são “exercidas” privadamente por abarcar a alienação política – ou apatia que não
“homens de negócios”, ocorreria uma contami- seja de responsabilidade individual –, as duas faces
nação natural da agenda política, estando as da apatia e a terceira dimensão lukesiana e bour-
políticas públicas significativamente limitadas dieuana do poder, no que elas iluminam a ges-
pelos interesses das comunidades de negócios tação de crenças e preferências. Trata-se de purgar
(empresas privadas e poder corporativo). As o tema de resíduos psicologizantes e reinstalá-lo
implicações em termos da igualdade política são no território da sociologia e da ciência política. Há
evidentes, conforme observa Held (1996): “the razões estruturais, políticas e sociais a serem
business corporation wields disproportionate escrutinadas (desigualdades, instituições viesadas);
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há estruturas de cognição e de formação de prefer- manifestações ainda políticas, mesmo que mal
ências, cujos determinantes estão em território comportadas, dos que não podem ou conseguem
sociológica e politicamente mapeável. se expressar pelos canais convencionais de par-
Na realidade, em vista dessa reconstrução, o ticipação. A não-participação no sentido conven-
veredito de apatia como desinteresse político cional (como o não exercício do voto e da delib-
puro e simples seria no mínimo precipitado, e eração “bem comportada”) seria, positivamente,
certamente opaco. A apatia como escolha “não uma forma de dissenso: a desigualdade social
racional” só poderia ser adequadamente aprecia- inibiria a participação cidadã convencional – na
da depois que se procedesse a um desconto das medida, por exemplo, em que o dissenso desa-
condições objetivas e cognitivas que desconectam pareceria da visão pública por meio da supressão
os indivíduos de sua cidadania. E uma seqüência de agendas e perspectivas –, mas o dissenso rea-
de revelações descortinar-se-ia, pois uma vez pareceria travestido em formas menos abonado-
descontadas aquelas condições, a apatia se reve- ras de expressão, numa espécie de “retorno do
laria, então, menor do que aparece, por exemplo, recalcado”.
nas evidências de queda do comparecimento E, enquanto uma interpretação “conven-
eleitoral nos anos de 1980, nos Estados Unidos: cional” sugere que, uma vez que o discurso políti-
não votando, os indivíduos, em vez de se reve- co bem comportado seria negado aos partici-
larem não racionais, estariam de fato enviando pantes, estes se tornariam dependentes,
um feedback negativo ao sistema político. ignorantes, impotentes e mistificados, em uma
Na mesma direção de “despatologização” da outra chave de leitura, privilegiada por Patterson,
não-participação política, nos anos de 1990, liter- o dissenso jamais seria erradicado, e se precipi-
atura pós-modernista sugere, ainda mais radical- taria em um conjunto heterogêneo de arts of
mente, que a apatia política é na realidade um resistance. Só então a real dimensão da apatia
erro de percepção dos discursos sobre partici- poderia ser vislumbrada, isto é, uma vez levados
pação: ela seria efetivamente reveladora de uma na devida conta o discurso leigo, impolido, indi-
escolha libertária, não míope, nada apática ainda reto ou meramente expressivo, e reconhecida,
que apolítica, que deveria ser reconhecida como portanto, a maior variedade de sujeitos discur-
um direito, uma vez que “to leave people with sivos, estilos e intenções of resistance. Segundo
their apathy is to recognize their liberty or their Patterson, “[d]iscourse will not require sincerity
preoccupation with other matters” (Fox e Miller, and appropriateness in advance of any serious
1996, apud Patterson, 2000, p. 227). effort toward social equality” (2000, p. 246).
Finalmente, ainda na seqüência de idéias Em síntese, a despeito da diversidade de
que afirmam ser “a apatia menor do que parece”, apropriações normativas do ideal de participação
textos como o de Patterson, sugerem que a aqui descritas, e das simpatias ou antipatias que
porção política da expressividade humana é sub- possam inspirar, as desigualdades sociais se apre-
apreciada caso se tome como participação políti- sentam como essenciais na geração de desigual-
ca apenas o referencial de virtude incorporado dades na participação política (convencional).
nas personagens da interação comunicativa ideal Corrigidas as condições objetivas – sobretudo as
de Habermas. Haveria todo um conjunto de com- desigualdades sociais que alimentam a desigual-
portamentos e práticas não convencionais, que dade política – a apatia (como não-participação
mesmo não seguindo os ditames do ideal virtuoso convencional) tenderia a desaparecer, ou a se
de participação seriam ainda políticos; “não-vir- confinar à dimensão legítima da escolha (ou,
tude não é apatia”, afirma Patterson, mas pos- finalmente, a se precipitar em resíduo indomável
sivelmente o resultado da inexistência de que de todo modo as teorias social e política não
condições como a igualdade social para a igual- tem como nem por que lidar).
dade política efetiva. Essa circunstância creden-
ciaria a ironia, a insinceridade e o humor como
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Apatia política e vida associativa A expectativa, pois, é que o associativismo


possa reduzir desigualdades políticas, quer direta-
A leitura de Tocqueville, e de tocquevil- mente via redução do privatismo e da opacidade
lianos contemporâneos como Robert Putnam, dos processos decisórios, característicos da
sugere que a participação política é tributária do “sociedade política”, quer indiretamente via com-
ativismo associativo. Em momento de grande pressão das desigualdades sociais. Chama a
entusiasmo pela experiência norte-americana, atenção aqui, em primeiro lugar, a não problema-
Tocqueville proclamara, em Democracy in tizada conflução de participação associativa e par-
America, o sucesso da democracia norte-ameri- ticipação política, que seria atualmente reforçada
cana o melhor fruto de sua exuberante vida asso- por características do “novo” associativismo – tais
ciativa, responsável quer pelo cimento social quer como a pluralização temática e a heterogeneidade
pela prática de uma peculiar concepção de auto- de atores. Sob o ângulo da cultura política estim-
governo. ulada pela participação associativa, algumas
Quase dois séculos mais tarde, em solitárias evidências preocupantes emergem, entretanto, da
partidas de boliche precedidas por refeições literatura.
igualmente solitárias, Putnam (2000) concluiria Estudos recentes, como a cuidadosa etno-
que a democracia norte-americana elanguesce grafia de Eliasoph (1998), por exemplo, sugerem
precisamente em virtude do refluxo generalizado que a atividade novo-associativa pode ser, em um
das associações. Com a retração da atividade cívi- sentido importante, “despolitizante”.
ca, encolheria também a participação política, e Tendo freqüentado reuniões e participado
com ela, o componente genuinamente democráti- de atividades de um conjunto variado de associ-
co da democracia norte-americana. Se é a quali- ações, com filiação e temáticas bastante het-
dade da democracia que se quer restaurar, tratar- erogêneas (grupos de voluntários, grupos de
se-ia de estimular a vida associativa, seja mediante recreação e grupos de ativistas), durante dois
a esfera pública informal de modo a afetar a cul- anos e meio, Eliasoph observou que o discurso
tura pública, seja diretamente, por um refinado propriamente político “evaporou” da vida das
desenho institucional que fortalecesse as associ- associações voluntárias, num processo que reúne
ações de modo a formalizar sua presença na intensa atividade associativa, para a provisão de
esfera pública. um bem coletivo específico, e produção ativa de
Pode-se inferir que o fortalecimento desse apatia política.
espaço societário de deliberação e decisão con- Para além das razões estruturais ou subjeti-
tribuiria, entre outras vantagens, para compensar vas da apatia política, normalmente enfatizadas
ou reduzir certas deficiências da sociedade políti- pela literatura, Eliasoph identifica o espaço das
ca, que afetariam negativamente a igualdade associações voluntárias que estudou como tam-
política, incluindo o privatismo, a relativa opaci- bém relevante na produção ativa – antes que na
dade dos processos decisórios e, finalmente, o prevenção – de apatia política, negociada em
próprio desequilíbrio societário (Avritzer, 1997). troca da coesão do grupo. Essa coesão seria obti-
da às custas da observância estrita de uma eti-
queta cívica, isto é, uma linguagem pública com-
Cenário pós-tocquevilliano partilhada pelo grupo, que exerceria a função de
Associativismo censura intersubjetiva, por meio da eliminação de
temários e representações mais gerais, e mais
polêmicos “políticos” nesse sentido.
Essa evaporação do político refletir-se-ia na
Redução das Redução das recusa sistemática dos grupos em articular o local
desigualdades desigualdades
com o abrangente, ou ainda na extensão do dis-
políticas sociais
curso do “auto-interesse” às questões de interesse
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público. O localismo e o momism – expresso, por hantes quanto à relação entre participação cívica e
exemplo, na alegada preocupação exclusiva com o política. As cozinhas comunais de Lima, as coop-
“futuro de nossas crianças” – desses grupos rejeitam erativas da água em Cochabamba, os pré-vestibu-
conversas, potencialmente disruptivas, sobre insti- lares para negros e carentes no Rio de Janeiro ou
tuições políticas e políticas mais abrangentes. em Salvador afirmam-se como estratégias associati-
Nas palavras de Eliasoph, em que ela vas de sobrevivência que proliferam como e com
esclarece o tipo de conversação política que tem as crises fiscais das duas últimas décadas em sub-
em mente, stituição ou complementação à provisão pública,
sem necessariamente exercer impactos mais signi-
[...] the farther the voice from a whisper and the ficativos na arena política nacional, onde a dis-
larger the audience, the less eager were speakers
tribuição de recursos públicos é decidida, e
to ponder issues of justice and the common good,
to criticize institutions, to invite debate; to speak reforçando a clivagem local/abrangente.
in a publicly minded way. Common sense con- A essa altura, ainda não é clara a resultante
sidered the public sphere to be a place for dra- desse movimento de inclusive cities, e a leitura
matically airing self- interest [momism] into short- ambígua pode acomodar tanto a percepção de
sighted public policies; this folk definition of the
auto-suficiência, como a de dependência desses
public sphere kept most interesting debate out of
public circulation (p. 255, grifo meu). grupos organizados em relação a instituições e
políticas mais abrangentes, às quais se acomodari-
A conversação política – nessa acepção, por am de modo acrítico e complementar. Ou seja,
assim dizer, vertical –, cuidadosamente evitada parece importante apreciar adequadamente o grau
por meio de uma refinada etiqueta cívica, retraiu de “conformismo” associado à atividade novo-
para a esfera privada, enquanto a esfera pública associativista, sobretudo em contexto de desigual-
passou a acomodar apenas os temas locais e o dades sociais significativas. Embora a associação
“momismo”, aparentemente sancionados como pareça aumentar a capacidade de autoproteção de
mais autênticos. grupos organizados, e nesse sentido acomodar
Analisando criticamente os self-confessional uma certa visão de política, não é claro em que
shows freqüentes na TV norte-americana, medida isso representaria um avanço qualitativo
Eliasoph encontra ressonâncias nas crenças e para a democracia. Se a ambição aqui é resgatar o
práticas dos grupos que acompanhou: princípio da igualdade política, parece importante
levar em consideração outros sentidos relevantes
They are (the self-confessional shows) like Cathy de política que estariam sendo descurados, tais
of the Buffalo Club who described to me, in great como participação na formulação da agenda mais
detail, her ex-husband’s drug problem and his
abrangente, na decisão quanto aos modos de
failed efforts of quitting, and her unhappy child-
hood, and more, but said that disclosing how she enfrentamento das crises fiscais, na distribuição de
voted for president or disclosing her party affilia- seus custos e oportunidades. Justamente, a fragili-
tion was too private (1998, p. 260). dade de algumas soluções locais encontradas
remete à ausência de participação política no nível
Uma redefinição da clivagem entre intimi- das macroquestões. Nesse particular, é preciso
dade e espaço público, ativamente construída e estar atento para os conhecidos problemas de dis-
reforçada no interior desses grupos, parece surgir sonância cognitiva apontados por Lukes e
dessa rejeição do discurso político no espaço Bourdieu (cf. seção precedente).
público e sua substituição pelo aparentemente Quanto à capacidade de uma vida associati-
menos disruptivo discurso momista ou localista. va intensa de neutralizar o privatismo e aumentar
Ao fim e ao cabo, a “despolitização” do discurso a visibilidade da esfera pública, parece parasitar
seria o preço a ser pago pela coesão associativa. ligações controversas, por exemplo, entre asso-
Outro conjunto de iniciativas associativas, ciativismo e universalismo, ou transparência e
reportadas em Beall (2000), levanta dúvidas semel- inteligibilidade.
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O potencial universalizante da competição recursos, de modo, por exemplo, a tornar mais


associativa não pode ser tomado como garantido. competitiva (menos hierarquizada) a distribuição
Ainda que, por exemplo, a lógica de interesses de recursos que afetam a igualdade política. De
privados seja superada, na competição associati- outra parte, o sucesso da ação coletiva de grupos
va, por outra de interesses mais abrangentes menos favorecidos, se não necessariamente mel-
(Avritzer, 1997), há pelo menos dois problemas, hora sua posição relativa aos mais favorecidos na
em certo sentido simétricos, a dificultar o vínculo distribuição de recursos políticos, engendra novas
entre associação e universalismo, nesse caso. São desigualdades que mais deprimem as expectativas
eles o localismo (como em Eliasoph), que não dos não-organizados quanto à sua localização
exclui atividades “altruístas”, mas afasta o diálogo nessa mesma distribuição. Exemplo importante
político que relacionaria o local com o aqui é o das redes de imigrantes, e seus efeitos
abrangente, e o sectarismo ou facciosismo. Este sobre o mercado de trabalho local nos Estados
último estaria representado pela disputa, no caso Unidos, estudadas por Charles Tilly (1998). O
em que tenha havido superação do localismo, desequilíbrio societário muito provavelmente
entre distintas visões abrangentes, “comunitárias”, contagia a vida associativa.
que, somada à distribuição desigual de recursos Em contrapartida, a abordagem de
associativos, poderia engendrar uma forma de Whitehead (1999) sugere um critério de avaliação
privatismo sectário – de apropriação por parte da vida associativa (“sociedade civil”) que diverge
dos grupos organizados de uma parcela dos da sugestão de que haveria uma necessária con-
recursos públicos para implementação de seu gruência entre participação associativa e política:
repertório favorito de políticas públicas, não con-
trolada por critérios genuinamente públicos. Um [...] qualquer que tenha sido o caminho histórico
seguido, os padrões resultantes de vida associati-
exemplo natural aqui é o das políticas de segre-
va e comunicação social serão altamente estrutu-
gação racial norte-americanas, e, mais próximo de rados, com setores tradicionalmente mais favore-
nós, a legislação do trabalho na transição do tra- cidos e centrais e outros marginais ou excluídos.
balho escravo para o livre, no Brasil. Dependendo da localização de cada pessoa nessa
Do ponto de vista do ganho em transparên- estrutura de privilégios e oportunidades, e do
cia e inteligibilidade, Schmitter (1995, apud grau de abertura e flexibilidade do sistema, é
possível considerar a sociedade civil resultante
Whitehead, 1999) prevê que a complexidade tanto como a expressão mais autêntica e a garan-
pode ser um problema também para o novo-asso- tia durável de uma democracia política, quanto
ciativismo, na medida em que a miríade de asso- como a mais flagrante negação de sua promessa
ciações temáticas pode exercer pressões cuja universalista (p. 21).
resultante é tudo menos previsível, transparente
ou inteligível, a despeito de boas intenções, resul- Observa ele que, enquanto a “relevância
tando, por exemplo, em políticas com as quais moral” da sociedade civil é assim indeterminada –
ninguém se identifica ou deseja. em termos, pode-se acrescentar, de sua capaci-
Finalmente, a capacidade do associativismo dade de produzir comunidades políticas menos
de reduzir desigualdades sociais, e por esse meio, desiguais, mais transparentes e universalizantes –,
operar seus efeitos benignos sobre a desigual- sua importância parece mais clara no embate
dade política parece também pouco clara. É frágil entre a sociedade civil e o que chama de “inter-
postular, por exemplo, que desigualdades sociais stícios incivis”, que se situariam no espaço inter-
não se repliquem em desigualdades associativas – mediário entre a sociedade civil e a comunidade
entre associações com acessos diferenciados a política mais abrangente. A presença desses inter-
recursos, entre grupos organizados e não-organi- stícios seria característica (ainda que não exclu-
zados. Aqui, é de se indagar em que medida o sividade) de democracias recentes, onde, por um
acúmulo de “capital social” seria significativa- lado, direitos civis e políticos são universalizados
mente independente da distribuição de outros mas, por outro, haveria ainda um número consid-
SOBRE ASSOCIATIVISMO, DESIGUALDADES E DEMOCRACIA 139

erável de indivíduos e grupos à margem das nor- modar uma certa “criatividade” conformista, ou,
mas informais da sociedade civil. talvez pior, a política de facções.
Seguindo a conceituação de Schmitter, a
sociedade civil seria, segundo Whitehead Associativismo

[...] um conjunto ou sistema de grupos inter- ?


mediários auto-organizados que (a) são relativa-
mente independentes tanto das autoridades
Redução da Redução das
públicas quanto das unidades privadas de pro-
dução e reprodução, isso é, firmas e famílias; (b)
incivilidade desigualdade
são capazes de deliberar sobre e realizar ações política
coletivas na defesa/promoção de seus interesses
ou paixões; (c) não tentam substituir nem os
agentes estatais nem os (re)produtores privados
ou aceitar responsabilidades de governar a comu-
Apatia e redistribuição
nidade política como um todo; (d) não aceitam
agir sob regras preestabelecidas de natureza Se o que nos ocupa aqui (e preocupa) é a
“civil” ou legal (p. 19). desigualdade política, uma das expressões da
qual é a relativamente baixa participação política
Basicamente, a virtude da sociedade civil, dos menos favorecidos, e se não há como garan-
assim definida, seria precisamente sua “civilidade” tir que um estímulo ao associativismo se traduza
(tolerância interpessoal) – que não se confunde em maior participação e menor desigualdade
com “legalidade” – em contraposição à incivili- políticas, quer diretamente quer por meio de seu
dade, seja majoritária (tipo poder incivil exercido impacto sobre as desigualdades socioeconômicas,
por grandes grupos econômicos que, por restaria examinar a eficácia de um ataque direto à
hipótese, controlam a mídia) ou de grupos mar- distribuição em termos de mitigar aquela
ginais (tipo “máfia” ou crime organizado). Esses desigualdade.
grupos não respeitariam princípios como autono- Essa, pode-se dizer, é essencialmente a
mia dual (em relação ao Estado e à esfera priva- aposta de John Rawls (1971, 2001). A desigual-
da de produção), não-usurpação (em relação à dade política resultaria da desigualdade econômi-
esfera pública legítima), deliberação (que precede ca, e a contaminação poderia ser minimizada seja
a ação coletiva) e tolerância (respeito à autono- via isolamento do sistema político por intermédio
mia dos indivíduos). de uma reforma pontual (por exemplo, legislação
Do ponto de vista de nossa discussão, que específica regulando o financiamento de campan-
privilegia as relações entre desigualdades sociais has políticas, regulamentação da mídia), seja via
e políticas, uma sociedade civil densa, formada instituições e políticas redistributivas incidindo
por associações que respeitam aqueles princípios, principalmente sobre a concentração de riqueza
funcionaria como um amortecedor das pressões e, em particular, sobre a perpetuação dessa con-
exercidas por grupos incivis que visam a “coop- centração.
tação ou o controle político de amplos setores da Dessa forma, a apatia política remediável, no
população”, justamente os estratos socialmente sentido da seqüência de idéias desenvolvida na
mais vulneráveis, aumentando a efetividade do segunda seção, seria relativamente contornada, e
sistema legal. De todo modo, se é plausível que teríamos, finalmente, o resíduo de irracionalidade
uma sociedade civil particularmente ativa reduza humana (na versão escolha racional) ou de escol-
os incentivos à incivilidade, uma vez que protege ha bem informada e autônoma (na versão pós-
moderna) a dar conta do desinteresse pela políti-
indivíduos e grupos da cooptação e do controle,
ca, sem necessariamente passar um juízo de
seu impacto sobre o equilíbrio na participação
irracionalidade sobre o sistema político. É possív-
política, não obstante, permanece indeterminado.
el ainda que a redistribuição exerça um impacto
Ela poderia, como indicado anteriormente, aco-
140 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

propulsor sobre o associativismo, desde que este ser pensados, entre os quais se poderia incluir o
tenha sido previamente inibido pela desigual- monitoramento direto da distribuição via tribu-
dade, além de possivelmente torná-lo mais equi- tação, ou ainda a implementação de uma renda
librado. Outro benefício plausível para o associa- básica incondicional a maior possível (Van Parijs,
tivismo adviria dos efeitos que uma redução da 1995), que atasse o sucesso dos inovadores e as
desigualdade exerceria sobre os interstícios expectativas de realização de todos os demais. A
incivis, reduzindo os incentivos à incivilidade via discussão destes últimos problemas, entretanto,
redução da vulnerabilidade dos grupos sociais não pode nos ocupar aqui.
menos favorecidos.

NOTAS
CENÁRIO PÓS-RAWLSIANO
1 Ver, por exemplo, Berelson et al. (1954) e
Redução das desigualdades sociais Campbell et al. (1960).
Redução da 2 Oportunidades, tais como, liberdade de organi-
incivilidade zação/associação, liberdade para pressionar demandas
do grupo de interesse e direito de voto, o qual implica,
entre outras coisas, a possibilidade de destituir gover-
Redução da nantes que se revelam insatisfatórios. Ver Held (1996).
desigualdade Associativismo
política 3 A definição implícita de apatia seria desinter-
esse por assuntos públicos e de governo, na presença
de oportunidades de participação, enquanto a de alien-
Esses resultados alvissareiros certamente ação envolveria a exclusão dos cidadãos das oportu-
dependeriam da capacidade de tal esquema de nidades de participação. Optei por não propor, de
justiça distributiva de mitigar desigualdades exces- antemão, um conceito “preciso” de apatia/partici-
sivas. É honesto reconhecer, entretanto, que tam- pação/alienação justamente porque me interessa recu-
bém o igualitarismo rawlsiano encontra-se sob perar os deslocamentos semânticos que esses conceitos
pressão em virtude precisamente de sua resiliência sofreram ao longo do tempo, no interior das diversas
a desigualdades que, não obstante venham em perspectivas, em reação a evidências e argumentos.
benefício dos menos favorecidos, seriam ainda
excessivas e contaminariam de modo indesejado a 4 Poderia ser aqui sugerida a relação causal simétri-
igualdade política. A aposta implícita de Rawls ca, isto é, das desigualdades na participação para as
(Cohen, 2002) é que a sua justiça procedimental desigualdades socioeconômicas, e creio ser natural pen-
seria capaz, ao longo do tempo, de engendrar as sar essa associação. O que me parece mais problemático
condições de sua sustentabilidade, especialmente é postular que quanto maior a igualdade política, neces-
por estimular a emergência de um ethos solidarista. sariamente menor a desigualdade socioeconômica, con-
Resta saber se a máquina de inovações (e siderando-se que o determinante “oportunidades eqüita-
geração de riqueza sem precedentes) em que se tivas de exercício das liberdades políticas” é apenas um
converteu o capitalismo contemporâneo, movida a dos fatores causais que movimentam as desigualdades
rendas e novas desigualdades, seria compatível sociais. Se outros fatores intervierem com força consid-
com uma eventual inapetência, agora, econômica, erável – por exemplo, o ethos social à la G. A. Cohen,
por parte dos proprietários de inovações. Se esse ações coletivas variadas, ou ainda problemas de infor-
não for o caso, a institucionalidade rawlsiana pode mação –, a própria sustentabilidade do cenário inicial de
se mostrar ainda insuficiente para conter desigual- igualdade política pode achar-se ameaçada.
dades econômicas promotoras de desigualdade
5 Os grupos estudados, bem como suas inter-
política. Outros desenhos institucionais teriam de
ações com instituições mais abrangentes (imprensa,
SOBRE ASSOCIATIVISMO, DESIGUALDADES E DEMOCRACIA 141

escolas, agências de serviço social, representantes tivistas como para advogados do novo associativismo.
políticos eleitos, entre outras) foram os seguintes: Cabe, entretanto, o registro da reviravolta que a
Grupos de voluntários – dois grupos anti-drogas, um questão distributiva sofreu no Brasil no arco de um
grupo de pais de estudantes do ensino médio, um cen- ano, em 2001, quando deixa de ser uma “não-agenda”
tro de reciclagem e uma liga de mulheres eleitoras; gru- e torna-se o item principal da agenda de virtualmente
pos recreativos – um clube de dança country-western e todos os partidos políticos. Algo que possivelmente
uma classe de dança country-western; e grupos de resultou de uma combinação complexa de informação,
ativistas – um grupo contra a instalação de um inciner- intervenção midiática e calendário eleitoral.
ador tóxico na cidade e um grupo de pacifistas (vigi-
lantes permanentes com a intenção de evitar o envio de
armas norte-americanas a outros países).
BIBLIOGRAFIA
6 Esse parece ter sido o caso da provisão de água
em Cochabamba que, após solucionado por meio de
AGHION, Philippe & WILLIAMSON, Jeffrey.
iniciativas comunitárias, foi administrado pelo governo
(1998), Growth, inequality, and global-
federal em arranjo com empresa multinacional e em
ization: theory, history and policy.
detrimento dos interesses locais. Mas, é também,
Cambridge, Cambridge University Press.
importante considerar o grau de impregnação das
soluções locais no sistema político mais abrangente, ALMOND, Gabriel & VERBA, Sidney. (1963), The
como parece estar ocorrendo com os cursos civic culture. Princeton, Princeton
preparatórios para o ensino superior no Brasil. As University Press.
relações entre ativismo associativo e sistema político,
AVRITZER, Leonardo. (1997), “Um desenho insti-
parece-me, requerem atenção específica.
tucional para o novo associativismo”,
7 De fato, o próprio Putnam menciona dois tipos Lua Nova, 39, São Paulo, Cedec.
de capital social, o bonding e o bridging, reunindo
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semelhantes e diferentes, aptos a acomodar, respecti-
inclusive cities: re-framing urban policy
vamente, os valores de “comunidade” e “tolerância”. O
and politics”. Journal of International
segundo tipo seria mais benéfico à democracia. Mas é
Development, 12.
fácil perceber que, em alguma dimensão, qualquer
forma viável de capital social é bonding, e, em combi- BENNETT, Stephen Earl. (1986), Apathy in
nação com as desigualdades societárias, pode reforçar, America – 1960/1984 – causes and con-
antes que aliviar, a desigualdade política. sequences of citizen political indiffer-
ence. Nova York, Transnational
8 De resto, o facciosismo fantasmagoriza a teoria
Publishers, Inc.
democrática desde Madison, democrata recalcitrante
(nas palavras de Held, 1996) que via no voto (e no sis- BERELSON, B.; LAZARFELD, P. F. & McPHEE, W.
tema representativo) e nos arranjos constitucionais antí- (1954), Voting. Chicago, University of
dotos eficazes na defesa de maiorias e minorias, umas Chicago Press.
das outras. Antes dele, Hume (1994) ensinara que a
BOURDIEU, Pierre. (1990), The logic of practice.
lógica dos interesse privados é moralmente superior à
Cambridge, Ma, MIT, Press.
das facções, como grupos exclusivos e excludentes,
baseados em opiniões compartilhadas, e cuja afirmação CAMPBELL, A.; CONOERSE, P.; MILLER, W. &
freqüentemente demanda a negação da alteridade, STOKES, D. (1960), The American
além da dissolução da própria individualidade. Voter. Nova York, John Wiley.
9 Ver Kerstenetzky (2002). Evidentemente, tam- COHEN, Josh. (2001), “Taking people as they
bém a “política concreta” desse processo não é o tema are?”. Philosophy and Public Affairs, 30
deste artigo, problema espinhoso tanto para redistribu- (4).
142 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

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SOBRE ASSOCIATIVISMO, ABOUT ASSOCIATIVISM, À PROPOS DE L’ASSOCIA-


DESIGUALDADES E DEMOC- INEQUALITY, AND TIONNISME, DES INÉGALITÉS
RACIA DEMOCRACY ET DE LA DÉMOCRATIE

Celia Lessa Kerstenetzky Celia Lessa Kerstenetzky Celia Lessa Kerstenetzky

Palavras-chave Key words Mots-clés


Desigualdades sociais; Igualdade Social inequality; Political equality; Inégalités sociales, Égalité politique;
política; Apatia política; Associa- Political apathy; Associativism; De- Apathie politique; Associationnisme;
tivismo; Democracia. mocracy Démocratie.

Este artigo trata das relações entre This paper approaches the relation- Cet article aborde les relations entre
associativismo e democracia na pre- ship between associativism and l’associationnisme et la démocratie
sença de desigualdades sociais signi- democracy in the presence of signif- dans la présence des inégalités
ficativas, por meio de um percurso icant social inequality. Relying on sociales significatives, par un
na literatura especializada. Obser- specialized literature, it suggests that précurseur dans la littérature spécial-
vando que essas relações são turbu- such relationship is boisterous be- isée En observant que ces relations
lentas por razões ligadas à resiliência cause of social inequalities resi- sont turbulentes pour des raisons
das desigualdades sociais, assim lience, as well as limitations peculiar liées à la résistance des inégalités
como a limites peculiares ao ativis- to associational practices. A safer sociales ainsi qu’à des limites propres
mo associativo, o autor sugere que o way to cope with political inequali- à l’activisme associatif, l’auteur sug-
mais seguro para a redução de ty, thus enhancing democratic legiti- gère que le plus sûr pour la réduction
desigualdades políticas – e ampli- macy, seems to be the straight line des inégalités politiques – et l’élar-
ação da legitimidade democrática – that goes from the reduction of gissement de la légitimité démocra-
parece ser o caminho direto da social inequality to a lesser political tique – semble être le chemin direct
redução de desigualdades sociais via inequality. de la réduction des inégalités sociales
políticas redistributivas. par des politiques redistributives.

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