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AULA 3 – LITERATURA, GRAMÁTICA E INTERPRETAÇÃO

IRACEMA DE JOSÉ DE ALENCAR


Nasceu o dia e expirou. Araquém; e ele quer que o sono já feche suas pálpebras, e o
Já brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da sonho o leve à terra de seus irmãos!
noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas, — O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o
filhas da lua, que esperam a volta de sua mãe ausente. sonho a alegria d’alma. O estrangeiro não quer levar consigo
Martim se embala docemente; e como a alva rede que a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de
vai e vem, sua vontade oscila de um a outro pensamento. Lá Iracema!
o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorri a A virgem ficou imóvel.
virgem morena dos ardentes amores. — Vai, e torna com o vinho de Tupã.
Iracema recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos Quando Iracema foi de volta, já o pajé não estava na
negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob
estrangeiro, e lhe entram n’alma. O cristão sorri; a virgem a carioba de algodão entretecida de penas. Martim lho
palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai declinando arrebatou das mãos, e libou as poucas gotas do verde e
o lascivo talhe, que se prostra sobre o peito do guerreiro. amargo licor. Não tardou que a rede recebesse seu corpo
Já o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca o desfalecido.
lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d’alma, o Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios
himeneu do amor. o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola
No recanto escuro o velho pajé, imerso em sua da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume,
contemplação e alheio às cousas deste mundo, soltou um sem deixar veneno no seio da virgem.
gemido doloroso. Pressentira o coração o que não viram os O gozo era vida, pois o sentia mais vivo e intenso; o mal
olhos? Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus era sonho e ilusão, que da virgem ele não possuía mais que
filhos, que assim ecoou n’alma de Araquém? a imagem.
Ninguém o soube. Iracema se afastara opressa e suspirosa.
O cristão repeliu do seio a virgem indiana. Ele não deixará Abriram-se os braços do guerreiro e seus lábios; o nome
o rastro da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos da virgem ressoou docemente.
para não ver; e enche sua alma com o nome e a veneração A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do
do seu Deus: companheiro; bate as asas, e voa para conchegar-se ao
— Cristo!... Cristo!... tépido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos
A serenidade volta ao seio do guerreiro branco, mas braços do guerreiro.
todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali
ele sente correr-lhe pelas veias uma centelha de ardente debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso
chama. Assim, quando a criança imprudente revolve o cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores;
brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do
lhe queimam o corpo. sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da
Fecha os olhos o cristão, mas na sombra de seu esposa, aurora de fruído amor.
pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bela. Martim vendo a virgem unida ao seu coração, cuidou que
Embalde chama ele o sono às pálpebras fatigadas; elas se o sonho continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir.
abrem, malgrado seu. A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou
Desce-lhe do céu ao atribulado pensamento uma ao doce engano: sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua
inspiração: mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se
— Virgem formosa do sertão, esta é a última noite que espanejava.
teu hóspede dorme na cabana de Araquém, onde nunca — Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro
viera, para teu bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e branco encheu deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem
feliz. de Tupã, amargam e doem como o espinho da jurema.
— Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua A filha de Araquém escondeu no coração a sua alegria.
alegria? Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca
O cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.
pajé: As águas do rio depuraram o corpo casto da recente
— A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são esposa.
doces e saborosos! A jandaia não tornou à cabana.
Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema: Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.
— O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da
virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de José de Alencar. Iracema. Capítulo 15.
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