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Caio Meira
[megamini]
— 2016 —
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Existindo e insistindo
Em tempo real
SIMONE BRANTES
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PARA LER NO ESCURO
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PASÍFAE
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COMO EU RIO
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e quente em seu peito, na camisa branca, enquanto
passo em frações de segundos, com todos os
meus relógios e mecanismos vibrando, pedalo,
enquanto ele se estanca, estagnado, por quantas
décadas, quando a rua já nem mais tiver nome
de rio, nem grama, e eu, e eu já estiver tão longe,
já tiver pedalado por tantos dias, já tiver dormido
e acordado e rido e passado e escarrado a plenos
pulmões e ele ainda estiver sendo percorrido
inenarravelmente pela rua com nome de rio, de
rio, de rio
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NA NOITE EM QUE O VENTO CHEGOU
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SOBRE PELOS E CABELOS
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disse que eu estava igual a um estudante de sociologia da
ufrj, ou outra amiga que me enviou mensagem inbox
dizendo que fico mais bonito sem barba, que era
melhor eu não viajar para o exterior nessas condições,
como também já me chamaram, justamente por causa
da barba e dos cabelos, de jesus cristo, de cubano,
argentino, português, talibã, árabe, turco, judeu,
esquerdista, terrorista, jihadista, sem-terra e, de todas a
pior comparação, ex-big brother, mas são tantas imagens no
meu rosto, tantas pessoas olhando por dentro dos meus
olhos, e em geral vivemos por tantos anos, vivemos
mais vidas dentro da própria vida do que esperamos viver,
meus traços viriam da síria como dizia minha avó, ou
de portugal-espanha na genealogia dos meira, da áfrica
certamente, como todos os humanos, da maravilhosa
lucy, a australopithecus afarensis ou da ardipithecus ramidus
ardi, peludas como só elas vagavam há milhões de
anos pelo triângulo de afar, na etiópia, para que hoje eu
pudesse também vagar pelas ruas do rio de janeiro, com
ou sem meus pelos e cabelos
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NA SUÍTE H
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partido, nem seita, não eram ateus ou crentes, não iriam
patrocinar o fim do mundo ou seu começo, na suíte h,
terrivelmente sós, de mãos dadas, com o coração, um
único coração, saindo por suas bocas
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SUPER-HERÓIS
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resgatavam do que morria em mim,
eu que por tanto tempo odiei meu pai,
que não soube como amá-lo, que não
pude amá-lo, que via nele, um vilão,
meu super-vilão, pelas surras e
humilhações, por ele tanto ter
me rebaixado, espancado, pisado,
castigado, me tendo dado o nome
de um herói, general e político
romano, mas que, numa manhã de
domingo, diante de toda a família
ele disse que eu não chegava nem
na unha dele, eu não tinha mais
do que seis, sete anos, e não chegava
nem na unha do grande general romano,
que eu era um bola-murcha, então eu nunca
tive força para ser para ele
um herói, algum herói, não pude
salvá-lo de seu alcoolismo, de
sua decadência, da morte que o corroía e o
levou tão cedo para o hades, não pude
resgatá-lo de sua morte tão
solitária, quando soube que ele
estava em coma ainda assim eu peguei
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um avião e fui vê-lo, mas ele não
recuperou a consciência, então eu
nada pude fazer, confirmei minha
impotência, a incapacidade de
qualquer heroísmo, assim como de qualquer
amor, e diante disso, depois de
vários dias de um estado inalterado
de coma, eu voltei ao rio, e ele faleceu
exatamente neste dia, e eu
decidi que não iria a seu enterro,
não tendo feito portanto o devido
luto, big mistake, pois ele permaneceu
sendo meu vilão já que não pude
ser seu herói, vilão a quem reiteradamente
culpei por meus fracassos, impotências,
medos, temores, repetindo, de
certa forma, talvez, sua própria
trajetória, de alguém que se afastou
de sua família, repetindo a vilania
transmitida há quantas gerações,
que se expressava numa incapacidade
de amar ou de demonstrar amor ao
próprio filho, como ele talvez não
tenha sido amado por seu próprio
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pai, não tendo sido ele quem sabe
capaz de ser herói para o pai, e assim
por diante (ou para trás), perpetuando a
vilania entre pais e filhos, a mortificação
herdada e repercutida pelas fibras
do genos, o genos em cujos vetores
trágicos me vi envolvido, por isso, mais
do que ser herói para meus filhos, eu
quis ver neles meus heróis, para que eles
pudessem, a seu modo, salvar o
genos, interromper o ódio, a punição
retransmitida de pai para filho,
dar fim à violência que possivelmente
vinha mortificando geração
após geração, ou pelo menos
não deixar que a raiva fosse o único elo
de ligação entre pai e filho, claro
que não posso dizer que fui salvo,
mas sei o quanto posso amá-los, agora
já adultos, ou quase, e sei também quantas
vezes eles já me resgataram de
momentos de raiva, de bile negra,
de pequenas (ou grandes) hamartías,
não permitindo, de algum modo,
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que a força preponderante entre nós
fosse negativa, por isso, a herança
maior que gostaria deixar para eles,
meus super-heróis sem capa ou espada, é
que, caso queiram ter filhos, que os
amem o quanto for possível
amá-los
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COISAS HUMANAS
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