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para ler no escuro

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Caio Meira

Para ler no escuro

[megamini]

— 2016 —

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Existindo e insistindo
Em tempo real
SIMONE BRANTES

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PARA LER NO ESCURO

contam que ratos percorrem labirintos


em busca de recompensa ou para evitar
um eventual choque punitivo, contam que noutro
labirinto, o de dédalo, rapazes e moças, por
artimanhas dos reis, eram enviados para
serem devorados pelo que tem de touro no
homem, ou pelo que tem de homem no touro,
menos o herói teseu que cravou sua espada
no peito do homem-touro, guiado pelo amor
e pelo novelo de ariadne, então veio borges
contar que estamos todos desencaminhados
pelo tempo, cegos, como sou cego, ratos, como
sou o rato de mim, heróis, como sou o herói
de mim, tateando, teclando, jogando, em busca
de um fio, de uma mão, de uma bengala branca,
sem norte nem sul, sem oriente próximo ou
distante, sem a espada de egeu, de mãos nuas,
escuto o touro, o rato, o tigre, o cavalo de fogo,
o caranguejo, a tartaruga, o peixe nessa perseguição
infinita como sou, possivelmente, o infinito de mim

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PASÍFAE

estou presa a mim, ao meu andar, ao meu


sonho, à forma do meu corpo, à rigidez resoluta
dos meus mamilos nesta manhã, mesmo na zona
franca em que posso talhar meu abraço mais decidido,
de onde vem o desejo que me atravessa como
uma maldição, de onde, de quem, que deus me fez
amar a fera, pois eu me curvo sob seu peso e recebo
úmida sua semente repleta de escorpiões e cascavéis,
agora aqui dentro, aqui cativa em mim como me
enclausuro sob esse meu comando que, mesmo
claro, esconde tanta vingança, tanta guerra, o ódio
de uns e outros que em que mim germina para
amanhã arrebentar como arrebenta mais um conflito, e
outro, e outro, e assim prosseguir mesmo que alheia
e súplice do castigo que de braços abertos recebo, eu
que acreditei a tudo iluminar com meus olhos, eu que
pensei ser tão plena de luz quanto a própria lua,
me vejo oculta em seu lado escuro, ou de quatro, bovina,
sendo fecundada por minha vontade tão selvagem quanto
aberta

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COMO EU RIO

pedalo, pedalo, rua abaixo, pedalo, pela rua com


nome de rio, como rio abaixo, pedalo, alado,
triunfando com raios e aros, irradiando pedalo, rua
abaixo, a rua com nome de rio, de rio, escorro
por carros e gentes, tubos e metais e borrachas, os
pedais, as pernas, vibrando o sol, a grama, asfalto,
paralelepípedo, pneu jet-caju, tarja marrom, shimanos
nas mãos, e na boca, um riso, rio abaixo, a plenos
pulmões, rio, rio, alado, rua abaixo, e além do riso
na boca, um escarro, um cuspe, um catarro, expulso
do pulmão e cuspo, num passante, um menino, que
para e se planta, se enraíza, imóvel e pasmo, no
escarro, no momento que escorre verde por sua
camisa branca na rua com nome de rio, e eu rio, e
ele para sempre se planta no segundo, no dia, do
cuspe verde abacate que não para de correr pela
camisa branca, uma lagarta lenta descendo
vida abaixo no momento encravado em sua vida,
enquanto pedalo, pedalo pela rua com nome de
rio, e ele freia sua vida, um breque, o catarro
inenarrável por 30, 40 anos escorrendo gosmento

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e quente em seu peito, na camisa branca, enquanto
passo em frações de segundos, com todos os
meus relógios e mecanismos vibrando, pedalo,
enquanto ele se estanca, estagnado, por quantas
décadas, quando a rua já nem mais tiver nome
de rio, nem grama, e eu, e eu já estiver tão longe,
já tiver pedalado por tantos dias, já tiver dormido
e acordado e rido e passado e escarrado a plenos
pulmões e ele ainda estiver sendo percorrido
inenarravelmente pela rua com nome de rio, de
rio, de rio

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NA NOITE EM QUE O VENTO CHEGOU

foi na noite em que o vento chegou, destelhando,


derrubando, encharcando, com suas rajadas e
relâmpagos, com estrondos de portas e janelas, com
roupas despencadas do varal, com as persianas
enlouquecidas embaralhando fios e lâminas, e
os veios d’água estourando pelos canos, na noite
dos assobios e arrepios, e claques, clangues, splashes,
pous, crashes, biis, blings, tiques, trims, pams,
bams, pofts, buzes, cliques, blems, foms, bums,
pops, taques, whams, pufs, toings, cabrums, com
o rumor dos coturnos e o grito das sirenes, na
noite dos gatos, dos morcegos, dos pombos, na noite
eletrocutada em poças d’água, em que palavras
fugiam escorridas pelas paredes, entre penumbras e
clarões, antes do pesadelo sem rosto e sem nome, foi
nessa noite em que, distante de ruas, aviões, táxis,
metrôs, agarrado ao lençol como se fosse em seu
corpo, foi nessa noite que pensei em você.

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SOBRE PELOS E CABELOS

há algum tempo, depois de ter lido um poema


num evento, uma professora e crítica literária,
a quem eu dera, por ocasião do primeiro concurso
que fiz, meu terceiro livro de poesia, comentou que,
quando fez a leitura desse livro, ela havia achado
que meus poemas eram cheios de pelos e cabelos, e que,
era curioso, o poema que eu acabara de ler nesse evento,
um texto bem mais recente, muito posterior ao livro,
também era cheio de pelos e cabelos, e que eu passara
a usar barba e tinha os cabelos mais longos, que não
apenas minhas palavras continuavam cheias de pelos
e cabelos, mas que meu rosto e minha cabeça de
certa forma confirmavam essa tendência, então, ao
chegar em casa reli meus livros para me certificar,
pois já intuía essa presença de pelos e cabelos,
além de pentelhos, vigorosos, e eles de fato estavam lá,
em profusão nos poemas, crescendo entre palavras,
como crescem no meu rosto, para desgosto de minha
mãe, que me ofereceu 200 reais para cortar os cabelos
e raspar a barba, que eu parecia o che guevara, ou o
fidel, ou essa amiga a quem encontrei na rua, que me

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disse que eu estava igual a um estudante de sociologia da
ufrj, ou outra amiga que me enviou mensagem inbox
dizendo que fico mais bonito sem barba, que era
melhor eu não viajar para o exterior nessas condições,
como também já me chamaram, justamente por causa
da barba e dos cabelos, de jesus cristo, de cubano,
argentino, português, talibã, árabe, turco, judeu,
esquerdista, terrorista, jihadista, sem-terra e, de todas a
pior comparação, ex-big brother, mas são tantas imagens no
meu rosto, tantas pessoas olhando por dentro dos meus
olhos, e em geral vivemos por tantos anos, vivemos
mais vidas dentro da própria vida do que esperamos viver,
meus traços viriam da síria como dizia minha avó, ou
de portugal-espanha na genealogia dos meira, da áfrica
certamente, como todos os humanos, da maravilhosa
lucy, a australopithecus afarensis ou da ardipithecus ramidus
ardi, peludas como só elas vagavam há milhões de
anos pelo triângulo de afar, na etiópia, para que hoje eu
pudesse também vagar pelas ruas do rio de janeiro, com
ou sem meus pelos e cabelos

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NA SUÍTE H

subiram, os dois, para o momento mais íntimo, para


celebrar o que em ambos era primordial, entregando
suas vidas à continuidade da vida, à porção que cada um
tem de animal dentro do humano, subiram, como que
rastejando, para o ato plural, por mais que lhes
parecesse tão singular, subiram, na leveza dos seus 17
anos, mas com o peso dos nomes falsos no bolso do
casaco, subiram como se cada um pudesse ser
proprietário de si mesmo, ou fosse gritar a plenos
pulmões, em praça pública, seu amor, seu amor, para
que isso fosse sabido em cada sala de estar, subiram, e já
dentro do quarto, em vez de lançar as roupas aos ares,
e dar origem ao ritual há tanto antecipado, ou mesmo
prefixado em seus dnas, nos cinco dedos de cada mão,
no menor e no maior sonho, em vez de se precipitarem
um sobre o outro, sentaram-se na beirada da cama, em
silêncio, ele sabia que tinha de se orientar por seu corpo
delgado, por sua brancura, por seus receios, ela sabia
que devia navegar por seus músculos, por seu vigor,
mas, de fato, nada sabiam, não tinham escola, nem

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partido, nem seita, não eram ateus ou crentes, não iriam
patrocinar o fim do mundo ou seu começo, na suíte h,
terrivelmente sós, de mãos dadas, com o coração, um
único coração, saindo por suas bocas

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SUPER-HERÓIS

“he was my hero” disse o comediante


norte-americano ao saber que seu
filho tinha sido assassinado, essa
frase, ele era meu herói, dita por
um pai diante da perda de seu filho
tanto me emocionou por seu eu, na
época, um pai recente, meus filhos
não tinham ainda completado nem
um ano, eram bebês que dormiam
nos meus braços, eu queria mais do que
protegê-los, confortá-los, amá-los,
queria ser para eles um herói, como herói
é ser híbrido de deus e humano,
mortal, mas divino, eu, um pai, encontrei
na filiação, na capacidade de
gerar vida, como faz um deus, um ato
heroico e via, por outro lado, um pai
que perdera seu filho localizar
nele, na cria, o heroísmo, então,
para mim eu descobria naqueles
pequenos caras os heróis que me

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resgatavam do que morria em mim,
eu que por tanto tempo odiei meu pai,
que não soube como amá-lo, que não
pude amá-lo, que via nele, um vilão,
meu super-vilão, pelas surras e
humilhações, por ele tanto ter
me rebaixado, espancado, pisado,
castigado, me tendo dado o nome
de um herói, general e político
romano, mas que, numa manhã de
domingo, diante de toda a família
ele disse que eu não chegava nem
na unha dele, eu não tinha mais
do que seis, sete anos, e não chegava
nem na unha do grande general romano,
que eu era um bola-murcha, então eu nunca
tive força para ser para ele
um herói, algum herói, não pude
salvá-lo de seu alcoolismo, de
sua decadência, da morte que o corroía e o
levou tão cedo para o hades, não pude
resgatá-lo de sua morte tão
solitária, quando soube que ele
estava em coma ainda assim eu peguei

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um avião e fui vê-lo, mas ele não
recuperou a consciência, então eu
nada pude fazer, confirmei minha
impotência, a incapacidade de
qualquer heroísmo, assim como de qualquer
amor, e diante disso, depois de
vários dias de um estado inalterado
de coma, eu voltei ao rio, e ele faleceu
exatamente neste dia, e eu
decidi que não iria a seu enterro,
não tendo feito portanto o devido
luto, big mistake, pois ele permaneceu
sendo meu vilão já que não pude
ser seu herói, vilão a quem reiteradamente
culpei por meus fracassos, impotências,
medos, temores, repetindo, de
certa forma, talvez, sua própria
trajetória, de alguém que se afastou
de sua família, repetindo a vilania
transmitida há quantas gerações,
que se expressava numa incapacidade
de amar ou de demonstrar amor ao
próprio filho, como ele talvez não
tenha sido amado por seu próprio

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pai, não tendo sido ele quem sabe
capaz de ser herói para o pai, e assim
por diante (ou para trás), perpetuando a
vilania entre pais e filhos, a mortificação
herdada e repercutida pelas fibras
do genos, o genos em cujos vetores
trágicos me vi envolvido, por isso, mais
do que ser herói para meus filhos, eu
quis ver neles meus heróis, para que eles
pudessem, a seu modo, salvar o
genos, interromper o ódio, a punição
retransmitida de pai para filho,
dar fim à violência que possivelmente
vinha mortificando geração
após geração, ou pelo menos
não deixar que a raiva fosse o único elo
de ligação entre pai e filho, claro
que não posso dizer que fui salvo,
mas sei o quanto posso amá-los, agora
já adultos, ou quase, e sei também quantas
vezes eles já me resgataram de
momentos de raiva, de bile negra,
de pequenas (ou grandes) hamartías,
não permitindo, de algum modo,

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que a força preponderante entre nós
fosse negativa, por isso, a herança
maior que gostaria deixar para eles,
meus super-heróis sem capa ou espada, é
que, caso queiram ter filhos, que os
amem o quanto for possível
amá-los

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COISAS HUMANAS

quase toda a tarde debaixo do sofá, o homem


deitado ali, a mão no chinelo, exala aguardente,
ressona, os filhos virados pra parede, o rosto
colado na parede, por vezes espiam por sobre
os ombros, por que não fogem, não pulam o
muro, por que não estão lá fora, correndo,
correndo, correndo, como eu corro, como
salto entre suas pernas quando o sol lá fora
vibra no meu dorso, lá fora, lá fora, com o sol,
com o vento e não aqui, virados pra parede, parados
como se tivessem criado raízes no chão
duro, apenas espiando por sobre os ombros,
será que dorme, o homem sobre o sofá,
o copo de aguardente emborcado no
chão, ao lado do cinzeiro cheio, e no ar
ressoando a cinza e a cachaça, sem
vento, sem sol, sem corrida, sem grama
só esse chão duro, debaixo do sofá, onde
aguardo, o homem, os meninos, o sol,
o vento, o chinelo, o dia lá fora e o dia aqui
dentro, as coisas humanas

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