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O DIREITO NA PERSPECTIVA FEMINISTA: PENSANDO O ENSINO E A PRATICA

JURIDICA A PARTIR DO DESAFIO DA TRANSVERSALIZAÇÃO DE GÊNERO NO


DIREITO

Salete Maria da Silva


saletemaria@oi.com.br
Universidade Regional do Cariri

1. Introdução

Para compreender a conexão entre gênero e Direito, e mais do que isto, para verificar como
o Direito (tal como foi e é ensinado e aplicado em nossa sociedade), se desenvolveu de forma
“generificada”1, convém destacar, ainda que in passant, o significado da categoria gênero e os
mecanismos de funcionamento dos elementos que o compõem, a fim de que, a partir desta
abordagem, possamos refletir sobre quando e como nós, juristas e “educadoras/es jurídicas/os”,
atuamos enquanto mantenedores ou transformadores de uma “ordem jurídica” que opera através de
teorias e práticas que reforçam valores e discursos marcadamente androcêntricos e, portanto,
arbitrários, parciais e injustos; todavia, expostos e defendidos como imparciais, neutros e, portanto,
científicos.
A categoria “gênero”, enquanto conceito analítico das relações sociais, surge,
academicamente, em 1980, em substituição ao termo “mulher”, e visa (graças às questões e
contribuições produzidas pelo movimento feminista), desnaturalizar a condição das mulheres na
sociedade, problematizando sua opressão e exploração, mediante investigações de caráter científico,
que, na atualidade, estão sendo desenvolvidas, abundantemente, nos mais variados ramos do saber
humano.
Gênero, portanto, conforme o contributo teórico da historiadora Joan Scott (1991:73), é
uma categoria analítica capaz de possibilitar a compreensão de que “as distinções baseadas no sexo”
têm um caráter fundamentalmente social (e não exclusiva e/ou meramente biológico) e que surgem
das relações construídas (assimetricamente, na maioria das vezes) entre homens e mulheres (ou
entre homens/homens ou mulheres/mulheres) e vão se legitimando e se reproduzindo através de

1
Isto é: baseado em relações sociais de gênero.
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“20 anos de Constituição. Parabéns! Por quê?”
ISBN 978-85-61681-00-5

certos espaços e mecanismos, dentre os quais emergem as instituições de ensino e seus conceitos
normativos.
Para uma melhor compreensão desta categoria, a supra mencionada teórica aprimorou o
conceito de gênero a partir de alguns elementos que o compõem, conforme dispomos a seguir:
1- Os símbolos, disponíveis em dada cultura (ou dito de outra forma, os estereótipos e
representações sociais), que segundo Alfonsin (2007:20), “formam o imaginário simbólico sobre o
que é ser homem e o que é ser mulher”, e que, em regra, auxiliam na inclusão ou exclusão de
pessoas do convívio social, mediante a concessão ou privação de direitos, convertendo-os (ou não)
em titulares da chamada cidadania. Exemplo: as mulheres durante séculos, os homossexuais, etc;
2- Os conceitos normativos (ou valores e normas dominantes) produzidos
abundantemente pelas doutrinas religiosas, políticas, filosóficas, jurídicas, educacionais,
científicas, etc que servem para interpretar o significado dos símbolos, restringindo ou ampliando
suas possibilidades. Por exemplo: a “ideologia patriarcal, heterossexual e monogâmica” que se
alastra, sobretudo, pelo “sistema jurídico e legitima o sistema de gênero” em todos os demais
espaços sociais (ALFONSIN, 2007:20);
3- As instituições e organizações sociais – tais como família, escola, igreja, mercado de
trabalho, poderes constituídos, etc, que exercem um papel (re)produtor e mantenedor do sistema
assimétrico de gênero, através da implementação, em suas práticas cotidianas, dos conceitos
normativos que, por sua vez, se apóiam nos símbolos disponíveis;
4 - A identidade subjetiva que constitui o modo como o sujeito se constrói e/ou se
percebe na vida em sociedade e que vai definir sua reação em face das condições reais de
existência, quer insurgindo-se, quer adequando-se aos padrões criados pelos símbolos, reforçados
pelas normas, impostos pelas instituições e correspondentes ou não ao modo como se identifica.
Exemplo: as mulheres que assimilam o machismo e se vêem como seres inferiores ou, ao contrário,
que lutam contra o mesmo.
Vê-se, portanto, que enquanto relações sociais, as relações de gênero se constituem
historicamente como relações de poder e vão conferindo a homens e mulheres, de forma distinta (e,
no mais das vezes, desigual) o seu lugar na sociedade, ou seja, vão lhes outorgando (ou não) o
status da cidadania, a condição de titulares de bens juridicamente protegidos. Destarte, de logo,
evidencia-se que há uma relação entre as categorias gênero e direito e que as mesmas, para serem
mais bem compreendidas, precisam ser analisadas em conexão, pois possibilitam entender o
resultado de sua manifestação na existência de homens e mulheres.
2.Gênero , Docência e Práxis Jurídica
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No campo jurídico, mais especificamente na ciência do Direito, não obstante sua inserção
no ramo das Ciências Sociais, o termo gênero ainda é bastante desconhecido, não sendo sequer
mencionado nos compêndios que se ocupam de estudar as normas que regulam as relações humanas
em geral e, tampouco nas obras que se dedicam às análises das regras que visam regular
especificamente as condutas de homens e mulheres na vida social. O desconhecimento de tão
importante conceito, ou, mais do que isto, a indiferença para com esta questão, gera dificuldades no
desempenho da atividade docente na área jurídica. Porém, não apenas isto: gera problemas e
prejuízos de (e na) petição, interpretação e aplicação das leis haja vista que, muitas vezes, em lugar
de auxiliar na promoção da Justiça, a exegese androcentrada acaba por gerar ainda mais situações
injustas e iníquas para homens e mulheres, consoante passamos a observar.
Num minicurso ministrado por mim em meados de 2003, por ocasião da Semana de
Direito, na Universidade Regional do Cariri-URCA, da qual sou professora, ao abordar a categoria
gênero como sendo, consoante Scott(1991), uma categoria útil para a análise histórica (e, em se
tratando de nossa área, útil para a compreensão de manifestações machistas e sexistas no fenômeno
jurídico2), formulei algumas questões para as quais estudantes e pesquisadores presentes (muitos
deles/delas profundamente envolvidos com (e/ou interessados pelas) causas dos ditos
“hipossuficientes”, e por isto mesmo, segundo elas/eles, com a causa das mulheres), curiosamente
sempre me apresentavam respostas evasivas seguidas de um, ora titubeante ora generoso, “mais ou
menos”. Vou explicar.
Ao indagar se as mulheres por eles/elas acompanhadas judicialmente conheciam realmente
quais eram seus direitos ao buscarem a Justiça, a resposta dada, em uníssono, fora: “mais ou
menos”. Ao perguntar se aquelas mulheres vitimadas por violência ou privadas de direitos (seja
pelos próprios maridos ou pelo Estado), ao longo de suas vidas lutaram por aquilo que elas
julgavam lhes ser de direito, a resposta fora: “mais ou menos.” Ao questionar se as referidas
mulheres participaram ou participam da elaboração, interpretação e aplicação dos direitos que
reclamam e que orientam as políticas públicas por elas requeridas como meios de materializar seus
direitos, a resposta, igualmente, fora: “mais ou menos”. Ao inquirir se eles/elas, “operadores/as” do
Direito conheciam a realidade daquelas mulheres e se já haviam tido contato com alguma
informação acerca das lutas feministas ou se já ouviram falar na ou da categoria analítica gênero,
responderam tod@s: “mais ou menos.” Ao perquirir se eles/elas, enquanto estudios@s e
“operador@s” do Direito vislumbravam no Direito posto alguma condição de interpretação em

2
Refiro-me não apenas à lei, mas ao Direito enquanto teoria e práxis, desde a elaboração da norma até a sua interpretação e
aplicação ao caso concreto, perpassando pelo estudo acadêmico.
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favor das demandas jurídicas daquelas mulheres, eles/elas responderam: “mais ou menos”! Ao
perguntar a mim mesma (Professora Salete Maria, frise-se, graduada em Direito, especialista e
mestre nesta área, auto intitulada feminista e advogada de mulheres em situação de violência e
vulnerabilidade) se eu me encontrava em condições de abordar, em tese de doutorado, a questão da
elaboração, interpretação e aplicação do Direito, mormente no que respeita aos chamados “direitos
das mulheres”, sem que para tanto tivesse que me debruçar sobre os estudos feministas, o
movimento de mulheres e, particularmente, sobre a categoria “gênero”, respondi-me, franca e
abismadamente: “mais ou menos.”
Diante deste crucial problema (principalmente para mim, participante tanto da (re)produção
científica quanto da práxis jurídica quotidiana), ocorreu-me o interesse por investigar, ainda que
precariamente, se, de fato, havia ou há (ou é preciso haver) alguma relação, ou intersecção entre a
histórica luta das mulheres por direitos e o Direito enquanto instrumento legitimador de exclusão
das mulheres, mas também enquanto veículo de transformação da vida de homens e mulheres com
vistas à igualdade/equidade de gênero.
Desde então, e ao longo destes anos, venho reunindo elementos teórico-metodológicos
capazes de (me) proporcionar alguma reflexão acerca dos limites e possibilidades do Direito
enquanto teoria e práxis capaz de contribuir com a transformação da sociedade, mormente numa
perspectiva feminista (e), mais do que isto, a partir da transversalização Gênero/Direito.

3. A (necessária) Transversalização de Gênero no Direito


A realidade tem sido pródiga em demonstrar que a conquista jurídica da cidadania pelas
mulheres, ainda que em nível constitucional, não obstante sua inegável importância, resta
insuficiente (e) não apenas no campo político. Mas, e, sobretudo, no próprio campo jurídico, onde,
muitas vezes, mesmo sendo a Lei Maior uma norma de observância obrigatória, caracterizada por
comandos imperativos, mesmo constando dela preceitos que ostensiva e inequivocamente indicam a
igualdade jurídica em termos de gênero, esta mesma Constituição tem sido invocada no sentido de
justificar a inaplicabilidade de alguns de seus dispositivos, bem como a inconstitucionalidade de
outras normas dela decorrentes em favor das mulheres, como é o caso, repita-se, da Lei
11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
Inúmeras têm sido as situações em que magistrados, ao se depararem com casos concretos
onde se reclamam a aplicabilidade da referida norma, esquivam-se de fazê-lo a pretexto de
considerá-la inconstitucional ou sob a pálida e muitas vezes irresponsável alegativa de que “o
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mundo pertece aos homens”.3 Tais manifestações denotam ausência de compreensão acerca do atual
e verdadeiro papel do Direito e da própria Justiça4, em cujas mãos a sociedade entrega seus
conflitos a fim de vê-los serem resolvidos longe dos vetustos princípios do “olho por olho e dente
por dente”. Assim, nem o Direito, seja enquanto ciência ou enquanto regra de conduta, nem o
Judiciário, em qualquer de suas instâncias, podem, portanto, desconhecer ou desprezar o fato de que
as relações de gênero em voga em nosso país são, em sua maioria, profundamente assimétricas e
injustas, merecedoras de reflexão e transformação, a fim de que, finalmente, a vida em sociedade
possa ser algo que tenha valor e prazer para homens e mulheres.
O próprio processo de elaboração da Constituição Federal, constituiu um momento de
aprendizado para todos os que operam com o poder em nosso Estado. A luta desenvolvida pelas
mulheres brasileiras por se verem reconhecer, em sede constitucional, como sujeitos de direitos é,
por si só, um argumento exemplar para que todos os que laboram no campo jurídico possam, em
definitivo, extirpar do âmbito de processos judiciais afirmações e sustentações de feições machistas
e sexistas que contribuam, ainda mais, para a manutenção e o aprofundamento dos preconceitos,
discriminações e desigualdade de gênero em nosso território.
Havendo, portanto, a previsão constitucional da igualdade de gênero, e estando todos,
inclusive juízes e demais profissionais do campo jurídico, obrigados à sua observância, impõe-se
que estes, o mais urgente que possa ser, assumam a defesa do Texto Constitucional e deixem de
julgar contra o mesmo, colocando em risco conquistas históricas não apenas em favor das mulheres,
mas, e, sobretudo, em favor da evolução da vida em sociedade.

3
Matéria veiculada pelo Jornal Folha de São Paulo, disponível no site
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u338430.shtml, e acessada em 18/12/2007, registra manifestação do
juiz de direito Edilson Rumbelsperger Rodrigues, titular da Comarca de Sete Lagoas MG), onde o mesmo, ao rejeitar
pedido de medida protetiva suplicado por vítima de violência doméstica com base na da Lei 11.340/2006, assim se
manifestou: "Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em
virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...) O mundo é masculino! A idéia que temos
de Deus é masculina! Jesus foi homem!" O jornal informa que teve acesso a uma das sentenças prolatadas pelo juiz, a
qual foi encaminhada ao Conselho Nacional de Justiça, onde o mesmo, em 12 de fevereiro, afirma que o controle da
violência contra a mulher "tornará o homem um tolo".

4
“Se há uma sociedade na qual a cidadania se realiza é aquela em que se tem amplo acesso aos direitos, significa
afirmar que estes direitos são realizados ou respeitados, e também que, quando são violados, aos mesmos é atribuída a
devida proteção e garantia jurisdicional, o que torna a questão do papel do Judiciário um ponto central das discussões
sobre o tema dos direitos humanos e, ainda mais, da eficácia dos direitos humanos.” Cf. BITTAR, Eduardo. C. B. O
direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p 306.
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A questão da transversalização de gênero no Direito, desde os estudos acadêmicos de


graduação até os de níveis mais elevados, incluindo-se os cursos de atualização e capacitação5,
constitui, portanto, uma importante ferramenta (diria até uma necessidade) para a compreensão de
situações em que os juristas necessitem manifestar-se em demandas cujas questões postas envolvam
discussões acerca das relações de gênero.
Todavia, no nosso entender, não se faz suficiente apenas que o Direito, enquanto norma ou
enquanto ciência, adote a categoria gênero como categoria de análise e realize a sua intersecção
pura e simples. Teóricas feministas que militam no campo do Direito apresentam uma discussão
acerca da necessidade de se desenvolver um pensamento jurídico feminista e quiçá até uma Teoria
Feminista do Direito6. Para Alda Facio e Lorena Fries7, “el pensamiento feminista es desconocido
por la gran mayoría de los y las juristas latinoamericanos, por lo que no es de extrañar que esté
ausente em la enseñanza del derecho.” (1999:25).
Se partirmos do pressuposto de que, nas múltiplas relações sociais, homens e mulheres são
tratados de forma distinta, e de que esta distinção, na maioria das vezes, tem sempre significado
uma interpretação que justifique uma postura em desfavor da mulher, então estaremos constatando
que todas as situações da vida em sociedade, bem como todos os saberes dela decorrentes, inclusive
o saber jurídico, estão profundamente marcados pela transversalidade de gênero. Assim pensando,
não é difícil concluir que o gênero, enquanto categoria de análise, possibilita a compreensão e a
transformação destas múltiplas formas de relacionamento humano, bem como o modo de refletir
sobre as mesmas. Porém, a transversalidade não significa a transversalização. A transversalidade é a

5
Medidas de capacitação já se encontram previstas no Plano Nacional de Política para as Mulheres. Todavia, no que
respeita aos profissionais da área jurídica, não há sinalização específica. Fazem-se referências a servidores públicos em
geral e com especial destaque para os profissionais da segurança pública, saúde, educação e assistência psicossocial,
que, indiscutivelmente, também precisam e devem ser capacitados. No que respeita aos “operadores do direito”, a
questão abordada neste artigo sobre a transversalização vai além da capacitação, perpassa a própria produção
doutrinária, implicando na problematização do arcabouço teórico-metodológico dos conteúdos dos cursos e,
naturalmente, exigindo a criação de projetos e planos institucionais que orientem as faculdades jurídicas bem como
cursos de preparação para magistrados e demais profissionais. Requer, portanto, uma ação que opere com elementos
conceituais, pedagógicos e metodológicos capazes de incluir a transversalização de gênero, bem como de outras
categorias como raça e etnia nas atividades de formação e qualificação destes profissionais. Órgãos como o Conselho
Nacional de Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil, as Escolas Superiores, enfim, os espaços de discussão como
simpósios, seminários e congressos podem realizar, a princípio, tais provocações, mas somente a formação sistemática,
planejada e comprometida poderá estabelecer a crítica problematizadora e a reflexão da práxis laboral tendente a
modificar condutas a partir da percepção da inegável intersecção gênero/direito.

6
Ver: DAHL. Tove Stang. Direito das Mulheres – uma introdução a teoria feminista do Direito. Lisboa, Fundação
Calouste Gulberkian, 1998.

7
Juristas constarriquenha e chilena, respectivamente.
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característica da presença do componente “gênero” em todas as relações. A transversalização é a


escolha político-pedagógica de abordagem do fenômeno.
Portanto, a este modo de perceber a vida em sociedade, caracterizado por uma postura que
não nega, mas que afirma, estuda e propõe mudanças nas relações de gênero em prol do bem estar
de homens e mulheres, dá-se o nome de transversalização de gênero8. No entanto, para que a
transversalização de gênero aconteça, mormente no mundo jurídico, não basta que constatemos que
o gênero entrecruza todos os espaços, relações e saberes sociais dele decorrentes. É importante
apontar para a necessidade do estudo e da mudança destas relações de gênero em campos científicos
historicamente auto-apresentados como neutros, imparciais e impermeáveis às influencias externas,
como é o caso do Direito.
Acerca desta questão, Alda Facio (1999:201) assinala que: “las criticas del movimento
feminista al derecho, pueden ser catalizadoras de transformaciones democratizantes dentro del
mismo.”, uma vez que, ainda segundo a autora, conceitos em abstrato de justiça, igualdade,
liberdade, solidariedade, dentre outros, não são, em si mesmos, androcêntricos, o problema reside
no significado e aplicação que os homens, principalmente, têm dado historicamente a estes valores.
A questão supra colocada pela teórica costarriquenha, fica mais bem compreendida a partir
do conceito de gênero sistematizado por Scott (1995:13), para quem, consoante já expusemos, o
gênero é concebido como um “elemento constitutivo das relações sociais, baseado em diferenças
percebidas entre os sexos” e, por isto mesmo, é a maneira primordial de significar relações de
poder.
A categoria gênero, portanto, tomada como parâmetro de análise em questões postas no
mundo jurídico, possibilita a explosão do discurso da neutralidade e impõe a adoção de uma postura
crítico-transformadora em face de leis ou discursos que visem manter as mulheres em situação de
prejuízo ou discriminação injustificada, a pretexto de cumprir os rigores da forma legal em
detrimento das mudanças sociais em voga no mundo real.
Nesse sentido, pensar em termos de relação social de gênero, no campo jurídico, permite
superar algumas visões justificadoras da manutenção da dominação masculina, como nos casos de
processos em que a mulher vitimada por grave violência, mormente sexual, ainda continua sendo
vista como a provocadora do evento criminoso, mesmo estando o país sob a égide de uma

8
“El processo de integración o transversalizacion es um ejercicio por demás desafiante, ya que genera un cambio de
180 grados en el marco institucional, académico e discursivo prevaleciente. La transversalización conlleva no solo la
incorporación del analises de género em las estructuras existentes, sino la necesidad de constituirse como na
consideración permanente y sostenible em la longo plazo dentro de las instituiciones, sean estas publicas o privadas. El
objetivo consiste en impedir que la inevitable interpretación social de las funciones atribuibles al hecho de ser hombre o
mujer, de pie a um prejuicio discriminatório que subordine a las mujeres o que las coloque em uma posicion inferior”
(Manual para transversalizar la perspecitiva de género em la Secretaria de Relaciones Exteriores do México. México:
Secretaria de Relações Exteriores. UNIFEM: PNUD, 2006, p. 8)
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Constituição Federal das mais avançadas e que tem como propósito, dentre outros, construir a
igualdade de gênero.
Sabe-se que a luta do feminismo não é uma luta que se restrinja somente à conquista de
direitos para as mulheres. Trata-se de um movimento que questiona profundamente, e sob uma
perspectiva nova, todas as estruturas de poder, utilizando a categoria gênero, dentre outras, para sua
melhor compreensão, mas não reduzindo tudo a gênero, haja vista ser do conhecimento das
feministas que o gênero perpassa todas as relações sociais, não sendo, contudo, o único problema de
todas as relações.
No entanto, ao evidenciar a transversalidade de gênero em todos os aspectos da vida em
sociedade, o feminismo contribuiu para o progresso de muitas áreas do saber humano. Teóricas
feministas discutem os fundamentos epistemológicos de áreas como a História, a Literatura, a
Saúde, dentre outras, para quem o sujeito universal homem era o paradigma a partir do qual se
realizava e se disseminava o saber (FARGANIS, 1997). No campo jurídico, ainda que
incipientemente, nos últimos anos do século passado esta preocupação passou a ser mais presente.
Por ser o Direito uma ciência e também um instrumento a quem compete fazer o disciplinamento
das relações sociais, com poderes para prescrever, normatizar e regular a ação de homens e
mulheres; fazendo-o, historicamente, de forma diferenciada, e muitas vezes desigual; legitimando,
portanto, a submissão da mulher ao homem, não é mais possível que se possa ser ensinado,
interpretado e aplicado sem uma discussão que interesse diretamente ao feminismo, às mulheres e
aos novos estudos que operam a categoria gênero e sua transversalização.
A questão a ser colocada, portanto, no ensino e na interpretação das diversas disciplinas do
direito, mormente no Direito Constitucional - pedra angular de todo o sistema jurídico de uma
nação – e área na qual exercito minha experiência docente, é: mesmo diante de avanços obtidos na
letra da lei, como é o caso do Brasil, ainda estamos a indagar sobre “como é possível utilizar o
direito para melhorar a situação das mulheres, para transformar um campo jurídico dominador num
direito cooperador da convivência entre homens e mulheres?” (FACIO, 1999:60).
A atual lógica jurídica, sua estrutura e seu discurso, desde sua manifestação docente, e
mesmo considerando os avanços da Lei Maior, não possibilita a efetivação da verdadeira igualdade
de gênero previstas constitucionalmente. Apesar de serem necessárias, por parte dos governos
federal, estadual e local, a adoção e o acompanhamento permanente de um conjunto de políticas
públicas capazes de auxiliar na efetivação dos direitos das mulheres, previstos na Lei Magna,
também se faz urgente uma mudança no sistema jurídico brasileiro, desde a formação de juristas em
nível acadêmico, consoante já explicitado, até o quotidiano onde os mesmos realizam a aplicação
das leis que possibilitam (ou não) a emancipação das mulheres. Afinal, somente o progresso
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legislativo e algumas medidas governamentais, por mais importantes que sejam, não são suficientes
para que em nosso país, finalmente, as mulheres possam ver cumprir e se materializar no seu
quotidiano a chamada igualdade de gênero.
4. Considerações Finais
Leituras e experiências, tanto no campo da docência como na militância jurídica, revelam o
importante papel que o Direito cumpriu (e ainda cumpre), como mantenedor do status quo
masculino e reprodutor de um sistema de subjugação da mulher e de outras categorias
historicamente oprimidas, exploradas e excluídas na dinâmica social.
Diante disto, é nossa preocupação demonstrar, com âncora em categorias analíticas
contemporâneas, que os velhos paradigmas que orientaram e sacralizaram o mundo jurídico (leia-se
o Direito enquanto ciência, sua transmissão por meio da docência e a práxis jurídica), assim como
ocorre com outros ramos do saber humano, estão colocados em cheque; e, diante disto, faz-se
necessário vislumbrar e tentar contribuir para um outro modo de se conceber, de se elaborar e de se
concretizar o Direito. Destarte, enquanto professora deste campo, como mulher e pesquisadora,
creio que o momento é privilegiado para aprofundar o questionamento e também acenar com algum
contributo que possibilite problematizar e repensar o modo como o Direito opera, ora conservando,
ora negando as iniqüidades das relações de gênero.
Por tudo que se expôs acima, penso que a transversalização da categoria gênero no campo
jurídico, assim como classe, raça/etnia, dentre outras que obrigue o direito a sair da sua falsa
neutralidade, constitui uma proposta capaz de possibilitar, na seara do direito, pouco a pouco, e
efetivamente, a tão sonhada abordagem de caráter inter/trans e multidisciplinar. No entanto,
defendo-o com consciência do desafio que isto representa, uma vez que não se trata apenas de uma
questão de ordem pedagógico-metodológica, o que por si só, já seria de grande valia neste campo de
práticas tão herméticas e linguagem tão parnasiana. Contudo, trata-se (e disto não se pode olvidar)
de um desafio político-epistemológico devastador, posto que exige toda uma mudança de
paradigma no pensar e no realizar o direito que, conforme já expusemos, precisar ter seu início
desde a prática de ensino até sua ulterior manifestação. Ademais disto, impõe um permanente
diálogo entre áreas e sujeitos historicamente apartados. Requer, tanto de feministas antipáticas ao
Direito quanto de operadores jurídicos avessos ao feminismo, um exercício de aprendizado, de
contato com o novo, de abertura e de transformação possivelmente nunca imaginado antes. Impõe a
ruptura com a velha “certeza absoluta”, de que “não há lugar no Feminismo para as questões de
Direito e nem há lugar no Direito para as questões do Feminismo”.
Assim, embalada pela necessária utopia que deve animar uma professora de Direito,
interessada nas questões feministas e advogada militante deste campo, mas principalmente, movida
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pela urgência em colaborar, cientificamente, com a aproximação de duas áreas que se


interdependem, mas historicamente se repelem, afirmo a necessidade de uma intersecção e, mais do
que isto, de uma urgente transversalização entre gênero e direito, pois esta ausência ou
afastabilidade pode continuar nos custando muito caro, mesmo com o advento de leis como a Maria
da Penha e outras decorrentes das diretrizes insculpidas na Constituição Federal, de cuja elaboração
as mulheres brasileiras participaram efetivamente e, sem as quais, não seria possível obter
conquistas que possibilitassem a exigência de políticas públicas com vistas à igualdade e,
posteriormente, à equidade de gênero no país.
Concluo afirmando que somente convencidas/os do papel transformador que o Direito
pode e deve desempenhar (malgrado os seus limites no âmbito de uma sociedade ainda
marcadamente androcêntrica), seremos, a partir da transversalização gênero/direito, tanto nos
estudos como na práxis jurídica, capazes de responder àquelas velhas questões por mim formuladas
na anteriormente referida Semana de Direito ocorrida no interior do Ceará. Sendo assim, espero que
da próxima vez, sem vacilo ou titubeio, possamos, finalmente, advogar “para os homens, nenhum
direito a mais e, para as mulheres, nenhum direito a menos!”

5. Referências bibliográficas

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FOLHA DE SÃO PAULO. Juiz considera lei Maria da Penha inconstitucional e “diabólica”.
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