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ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES - ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS

T HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES -


ANPUH -Questões teoríco-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Brasileira de História das Religiões. Maringá(PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhi.uem.br/Qtrellalao/oub.html Disponível em htto://www.dhl.uem.br/otreHplao/pub.html

Assim sendo, entendemos que Zé Pelintra era (ou poderia ser)maisdo que um agente
ZÉ PELINTRA, "DOUTOR" DEUMBANDA: A SACRALIZAÇÀO PELA individualizado, correspondendo, em realidade, a uma categoria social7 que abarcava um
'TITULAÇÃO'1 contingente considerável de indivíduos. O termo genéricc^"Z5" TTcado a quase todos os
malandros, como homogeneização, oumassificação. É uma evidência de que a população
Pedro Guimarães Pimentel2 pobre e marginalizada se confunde por sua própria miséria. "Pelintra", da mesma maneira,
ProeperVUERJ
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abrange uma diversidade de situações, significando, desde o século XVIII, o indivíduo que
buscajegitimidade se fazendo passar poroutro de camada social maiselevada; "assume claras
feições de pobre que não conhece o seu lugar" e "acaba proclamando em vez da ascensão
Introdução social, a irremediável sina da ralé".8 Talvez, ainda hoje, não se identifiquem como classe -
Agente histórico das primeiras décadas do século XXr o mafanHrn é hoje, e já desde organizada e combativa - mas se espelham numamesma situação de desamparo e lutacontra
algum tempo, uma entidade espiritual do culto da Umbanda, e também do Catimbó. a opressãoeconômica ou racial. Todos são pobres, todos são 'Zés'.
Consideramos a traietójia.gue o transformou de personagem profano em sagrado como un Acompanhando o raciocínio anterior, que nos levou a identificar os significados
'processo de sacralização'. Sua dimensão profana, no entanto, não foi abandonada por sociais dos termos utilizados para nomear indivíduos em particular, ou grupos cm geral,
completo, mas altamente ressignificada para que pudesse participar do meio religioso. Para buscaremos, neste pequeno artigo, trazer à luz a relevância do 'atributo'"doutor"nos 'pontos
tanto, seus aspectos cotidianos e relacionais foram revistos, de maneira que fizessem sentido cantados' da categorial espiritual dos malandros (especialmente a figura do(s) espíritos(s) "Zé
no novo espaço em que se inserira. Ainda paracritérios de definição, o que entendemos por Pelintra"), principalmente no culto da Umbanda. Como orienta Foucault,
'sagrado', em oposição à 'profano' é expresso na concepção que Mircea Eliade denomina
como "hierofania", termo que "exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm
etimológico, asaber, que algo desagrado senos revela'*4. Tal 'revelação', noentanto, nocaso por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento
..que aqui nos debruçamos, deve ser acompanhada de um rito especificamente elaborado por aleatório, disfarçar a suapesada, temívelmaterialidade.9

um culto religioso,como os citados anteriormente.


Desta maneira, a leitura dos^pontos cantados' não pode ser feita de modo a supô-los
Zé Pelintra era também um desses malandros. Os relatos de sua vida, por ser um
unívocosem suatotalidade e isentos de uma intencionalidade que tem a ver, certamente, com
personagem de destaque em diversas localidades d,p pais, confundem-se um com os outros,
a oposição ou concordância àqueles outros discursos, que não são tão aparentes, mas que
colaborando para a elaboração e difusãode uma narrati) liluida, com certeza, em um
sabemos existir. Estes outros, por sua vez, têm fundamentações próprias, também não livres
sem número de literaturas5. Grosso modo, podemos resumir sua trajetória a partir doque nos
de recombinaçôes com os primeiros - ou com terceiros - e sua presença aparece implícita
contaZeca Ligiéro: vindo do Nordeste, especialmentede Recife, ou aindade Alagoas,
naqueles que nos propomos investigar. Especificamente, para efeitos da análise acerca da
sacralizaçãodos malandros, esses 'pontos cantados' "atestam um exercício vivo e constante
segundo relatodos seus devotos, Seu Zé tomou-se famoso malandroda zona
boêmia do Rio de Janeiro, nas primeiras três décadas do século XX (...) de mylhqppiesis, isto é, de criar o mito das entidades a que se referem através das letras dos
Nesse contexto Zé poderia ser qualquer habitante do morro. (...) Como
muitos deles, teria conseguido criar fama, por sua coragem e ousadia,
cânticos aelas dedicados"10, permitindo aobservação, portantoTda-trajetória que ressignificou
obtendoamplaaceitação... o cotidianodos agentes históricos e conferiu-lhes funções sagradas no culto da Umbanda.
Por sua dimensão oral, sem muitos registros específicos de autores, datas e locais de
criação, os 'pontos cantados' criam uma aparência de atcmpora!idade, transfigurando-a na
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ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES - ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTORIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES -
ANPUH -Questões teórlco-metodologlcas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
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longa duração deuma memória específica sobre tal ouqual indivíduo. É exatamente isto que O orgujho era uma das principais armas do malandro. Seele era vadio por resistência,
ocorrecom a idéiaque se tem sobre os personagens em questão. A permanência e a repetição ou simplesmente por tradição, é assunto que teremos que investigar. Seja como for, o
dos 'pontos cantados', espacial ou temporalmente, criam certa imobilidade no saber malandro era consciente enquanto ator numa cidade multipolarizada, excludente, e
constituído, fixando suas raízes. Michael Pollak já advertia que desagregadora. Roberto DaMatta o caracteriza comoherói à margem da ordem, mas que não
rompe com ela, porque se dá em seuinterior: "à medida quedeixamos essa posição dentro da
a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações ordem, ou melhor, a posição naqual somosdefinidos peloexterior, pormeiode regras gerais
do passadoque se quer salvaguardar, se integraem tentativas mais ou menos
conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e e plenamente visíveis, começamos a virar malandros."11
fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes." Wilson Batista, natural de Campos dos Goytacazes, região nortelitoral do estado, não
alcançou os mesmos louros de sucesso de outros sambistas famosos, masdeixou comolegado
Por este motivo, as marcas que advém de sua elaboraçãosão marcas de conflitos entre
umaimportante coleção de sambas quetratam (boa parte deles) datemática damalandragem.
indivíduos, entregrupos, entre classes. A configuração de uma categoria sagrada por parte de
Esplêndido compositor lança, em 1933, o conhecido samba apologético e identitário dos
um culto, porexemplo, é reflexo de uma tentativade salvaguardar a representatividade que se
malandros,"Lenço no Pescoço":
tem acerca daquela categoria social. É desta forma que os 'pontos cantados' se fazem como
,' Meu chapéu delado/ Tamanco arrastando/ Lenço nopescoço/ Uma navalha
produto, normalmente inacabado, do conflito poresta memória. | no bolso/ Eu passo gingando provoco edesafio/ Eu tenho orgulho de ser tão
Antes de investigarmos, com o devido cuidado, a significação do termo "doutor" para i vadio/ Sei que eles falam desse meu proceder/ Eu vejo quem trabalha andar
? no miserê/ Eu sou vadio porque tive inclinação/ No meu tempo de criança
o personagem em questão, para seus fiéis, e para o nicho socialmais amplo no qual se insere, tirava samba-cançâo/ (Comigo não/Quero ver quemtem razão)
é preciso rapidamente contextualizá-lo em sua dimensão profana, constantemente referida
Temos ai descritos a indumentária da malandragem, seu jeito de ser e portar-se - seu
pelaversão sagrada, sendomesmo a basede suaconfiguração imaginária.
"proceder" - e justificativas para tal. Wilson apresenta o meiodo caminho entre os pólos dos
malandros: ele usa navalha, mais ainda nãoé bandido. Revela, ainda, dois traços importantes
"Souvadio por que tive inclinação "
da malandragem e do samba: afirma claramente que é "vadio" porque teve "inclinação". Mas
O discurso presente nas letras de alguns sambas permite discriminar aspectos
que inclinação seria esta? O próprio samba. Wilson Batista canta, sem medo de se esconder -
importantes que compõem a singularidade psicossocial do malandro como personagem
o que para nós poderia soar ingenuidade - que'o samba é vadio'. Prato cheio para a resposta
histórico, dotado de vontades e atitudes, consciente, enfim, de sua presença no mundo. Tal
que Noel lhe dará, em "Rapaz Folgado",de 1933:
presença é formadora de uma identidade que caracteriza o "eu" em relação ao "outro". Assim
sendo, diferente do quese tem suposto, o malandro_e^labaleecjTOfnlas-4e-coDduta entre seus,
Deixa de arrastar o teu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ E tira do
pares, disciplinas da ação queorientam seu cotidiano e o destacam do restante da sociedade. pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ Joga fora esta navalha
O verso que dá título a esta seçãoexpressa,com desmedidaclareza, a concepção que o que te atrapalha/ Com chapéu do lado deste rata/ Da polícia quero que
escapes/ Fazendo um samba-cançâo/ Já te dei papel e lápis/ Arranja um
malandro tinha de si próprio e da sua relação com o trabalho formal. No ^projeto civilizador amor e um violão/ Malandro é palavra derrotista/ Que só serve pratirar/
Todo o valor do sambista/ Proponho ao povo civilizado/ Não te chamar de
das elites brasileiras, o malandro,- negr?» mal .yejtido, violento, capoeira defidafina-e malandro/ E sim de rapaz folgado
navalha no bolso - era objeto de repressão e disciplinarizaçáQ, No projeto de progresso, o
malandro vadio, boêmio, que não trabalhava, devia ser reeducado e se encaixar na idéia de A,"vadiagem", no entanto, tem uma explicação: quem trabalha "andano miserê",ou
desenvolvimento do pais - principalmente no Estado Novo. jseja, é pobre. Wilson Batista, mais do que Noel, pelo menos nesse momento, tinha um
entendimento mais aprofundado do que era a situação do trabalhador. A Abolição de 1888
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ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
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não havia significado a inserção justa dos negros ex-escravos na crescente lógica desguiasse/ um tira forte e aborrecido/ Me abotoou, e disse: - Tu és o nono!
Heim?/"Mas eu me chamo Francisco, trabalho como mouro/ Sou estivador -
"democrática" da produção capitalista, que davaseus primeiros passos concretos na sociedade Posso provar ao senhor."/ Nisso o moço de óculos 'Raibam',/ Me deu um
brasileira. Muito pelocontrário. ComoexplicaFlorestan Fernandes: pescoçfio: • bati com a cara no chão./E foi dizendo, "Eu só queria saber/
Quem disse que és trabalhador./ • Tu és salafra,achacador/Esta macaca ao
teu lado,é umaminamais forte/Que o Bancodo Brasil/• Eu manjoaolonge
este tiziu"/ E jogou umamelancia, pelaminhacalça adentro/ Que engasgou
a degradação pelaescravidão,a anomiasocial,a pauperização e a integração no funil/ - Eu bambeei, ele sorriu./ Apanhou uma tesoura, e o resultado/
deficiente combinam-se entre si para engendrar um padrão de isolamento
Desta operação: - É que a calça virou calção/ Na chefatura um barbeiro
econômico e sócio-cultural do negro e do mulato que é aberrante em uma
sorridente/ Estava à minha espera./ • Ele ordenou: "Raspa o cabelo desta
sociedade competitiva, aberta e democrática." fera"/ "Não está direito,seu Padilha, me deixar/Com o coco raspado/ - Eu
já apanhei um resfriado/ Isto não é brincadeira, pois o meu apelido era/
Éa partir disso que sejustifica a manutenção das relações tradicionalistas entre negros Chico Cabeleira." • Não volto mais à gafieira.// (Ele quer ver minhacaveira.
Eu, heim?/ Se eu não me desguio a tempo/ Ele me raspa até as axilas./ O
e brancos, que mesmo tempos após a libertação supunha uma condição de dominação entre homem é de morte...)16
tais grupos sociais. É nesse contexto também que setorna inteligível a aversão ao trabalho.
Este samba é revelador de inúmeras práticas repressivas que concatenam com
Emilia Viotti da Costa, referindo-se ao depoimento de um viajante em fins do século XIX,
preconceitos de classe e de cor. Mesmo que fosse verdade, não adiantaria o narrador provar
relata:
que era trabalhador, pois o policial - o Padilha -já deraseu veredicto: "Quem disse que és

a escravidão, dizia, não teve apenas a influência dissolvente sobre a trabalhador?/ - Tu és salafra, acachador". A violência vem logo em seguidacom "pescoção",
sociedadeinteira, mas corrompeu a noção do dever e do respeito, desonrou o e raspagem do cabelo. Moreira da Silva já advertira em outra música - "Cassino de
trabalho, enobreceu o ócio, abalou a hierarquia e destruiu a disciplina.
Segundo a opinião corrente, trabalhar - submeter-sea uma regra qualquer- Malandro"(1938) - que "a turma da Central/quando chega baixa o pau".Um 'ponto cantado'
é coisa de escravos.14
da categoria espiritual dos malandros resgata essa relação:

A libertação desamparada dos escravos insere a massa da população negra num duplo
É triste, é doloroso/ Serlevado pela policia/ Semsercriminoso/ Fui levado
jogo de participação nacidade pela via do trabalho - que deveria ser"remunerado" segundo a pelos popular/ Quando eu tava sentado/ Tomando cerveja/ Na mesa de um
bar" . — - -
lógica dó modo capitalista - e pela viada política - não aquela institucional, mas a cidadania
adquirida peloex-escravo deveria sercompensada com sua força de produção.
A correção pela prisãoe pela pancadaria era a maneira que o aparato do monopólio da
O que nos cabe ressaltar é que a crítica de Noel Rosa - oriundo da classe média,
força do Estado tinha de disciplinar os costumes. A repressão era dirigida para as classes
morador de Vila Isabel, quechegara a cursar alguns períodos da Faculdade de Medicina - era
pobres em suas práticasculturais como o samba, as macumbas e os candomblés. Todos estes
minimamente condizente com esta concepção elitista, e,decerto modo, respaldada pela Lei":
- atores e representações - eram englobadas no que se costumou chamar de "classes
o malandro era"vagabundo" ou "vadio", por não ter aceitado, ainda, o trabalho formal. Por
perigosas". Negros, brancos pobres, vadios, malandros, capoeiras, boêmios, imigrantes,
este fato, suarelação com a polícia eramuito particular. Moreira da Silva,um dos últimosde
anarquistas, prostitutas, crianças de ruaetc, todos faziam parte destaclasse.
sua 'estirpe',e que cantara sambas característicos da temática mais agressiva dos malandros,
Noel Rosa, com intuito de salvaguardar seu amigo Wilson Batista, já lhe sugerira a
expressa, em uma composição conjunta com Ferreira e Bruno Gomes, o medoquese tinha de
compra de "sapato e gravata" e que fizesse "samba-cançâo", de modo que, assim, pareceria
um delegado da época, o "Padilha":
incluir-se no 'verdadeiro' mundo do trabalho. O samba oferecia, à sua maneira, um mínimo
de oportunidade de trabalho honesto para os malandros: "numa palavra, ele atuavacomo fator
Prá se topar numaencrenca, basta andar distraído/ Que ela um dia aparece -
não adianta fazer prece./ Eu vinha anteontem, lá da gafieira/ com minha de afirmação e identificação sócio-cultural de grupos e classes sociais normalmente
nega Cecília./ - Quando gritaram • Olha o Padilha!// /Antes que eu me
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marginalizados na esfera da circulação de bens simbólicos".18 Em 1930, aquela aversão ao Catimbó. No primeiro participa tanto da"Linha das Almas", nas curas e conselhos, quanto do
trabalhoainda não havia sido totalmente superada, fato que verificaremos como uma tentativa "Povo de Rua", tendo forte ligação com a linha dos exus e pombo-giras, gerindo situações
de uma política de Estado, pela ideologia do trabalhismo de Vargas19: suas linhas de ação problemáticas mais 'mundanas' ou 'instintivas'.
visavam incorporar até mesmo o malandro na lógica do trabalho. É o que acontece, por
exemplo, com o próprio Wilson Batista, que após lançar o apologético"Lenço no Pescoço", Seu Zé, portanto, expande duplamente sua performance em dois sentidos:
ora atua como figura ancestral africana, conselheiro para as almas
'vira a casaca' e, "aconselhado" pelo DIP, compõe um samba-exaltação: angustiadas e curandeiro para toda sorte de enfermidades, ora distribui
diagnósticos e palpites diversos sobrequestões ligadas ao jogo, romances e
vingança, oferecendo também serviços de proteção contra inimigos e
Quem trabalha é que tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O fechamento docorpo.21
bonde São Januário / Leva mais um operário: / Sou eu que vou trabalhar./
Antigamente eu não tinha juízo, / Mas resolvi garantir meu futuro, / Vejam
vocês: / Sou feliz, vivo muito bem / A boêmia não dá camisa aninguém / É, Éamemória profana de malandro enquanto tipo social que aloca as características da
digo bem.20
categoria espiritual. Isto se dá exatamente pelo tipo de prática espiritual que verificamos na

Menos de uma década depois, Wilson ficaria famoso pela sua conversão. A memória
Umbanda: o culto aos ancestrais. Esta tradição advinda seja das práticas bantas, das
macumbas cariocas ou do candomblé com seus "eguns" tem preponderância no culto
que tem de si mesmo era de que "não tinha juízo". Agora resolvera "garantir seu futuro":
umbandista e é configuradora da totalidade dos espíritos que compõem o segundo nível do
provavelmente seguiu não só os conselhos do DIP, mas também aqueles de Noel. O malandro
panteão sagrado - o primeiro é composto pelos Orixás. O espírito de um malandro é na
deslizaria, em si, numa polaridade que vai da marginalização à aceitação social e riqueza. A
verdade um "egun": espírito desencarnado que ainda está preso ao plano terrestre e retorna
resposta que este personagem dá, seja em qual pólo for, é singular. Nem ordeiro, nem
ritualisticamente para operar a caridade. No entanto, não tem a carga - de certa forma
revolucionário, o malandro ginga e dá rasteiras na miséria, se fazendo passar de rico, de gente
negativa - que o "egun" em si teria no Candomblé, ou atémesmo naprópria Umbanda. É já
boa, de gente má, de amigo, de inimigo, de apaixonado, de cafetâo, de sambista, de
um espírito em processo de evolução e que adquiriu uma forma, ou seja, faz parte de uma
assassino...
categoria espiritual bem definida. O caso de Zé Pelintra é o mais evidente de todos,. Existem
Sua performance e escolha que faz peranteo mundo lhe são próprias, e já não podem
inúmeros relatos de suaexistência; míticos ou verdadeiros, o que interessa é que se confirma,
ser mais atribuídas a ninguém. Vivera em sua particularidade enquanto categoriasocial, numa
seja pelos seus 'pontos', seja pela conversa com os fiéis, ou mesmocom a própria entidade,
determinada condição, estágio de um processo mais amplo. Hoje, subsiste enquanto memória
sua existênciaterrena. Eraum espírito encarnado, era um malandro em Terra. Assim como o
e enquanto categoria espiritual, que retorna 'eternamente' - resgatando um passado já
eram os outros malandros da categoria. Mesmo que não o fossem, assumem a
mitificado - tentando encaminhar seus filhos-de-fé num atalho mais curto para a felicidade,
representatividade de 'um malandro'. Deste modotorna-se compreensível que a memória e a
baseadonas noções 'eternas e universais' da malandragem.
prática sagrada são, quase queporcompleto, baseadas namemória dacategoria social.

"Quando chegana Umbanda, é chamado de doutor"


Zé Pelintra, como é do conhecimento de muitos Irmãos de Fé, é um Egum
Os malandros e, em especial, Zé Pelintra, para ascenderem à condição de categoria (espírito de morto), pessoaque já viveu neste Planeta (...) viveu como todos
espiritual, ou seja, um tipo sagrado que atua de maneira ritual num culto religioso nós, sendo que se dedicou mais na vida da 'malandragem'; jogando e
bebendo sempre nos pontos maisconhecidos do seutempo,desempenhando
estabelecido, sofreram um processo que ressignificou sua dimensão profana, possibilitando a sempre o papel de autêntico malandro, pois foium boêmio pornatureza...22
assunção das funções sagradas. Zé Pelintra, em particular, é um espírito que atua em dois
cultos distintos, mas que se assemelham por serem, ambos, assistencialistas: a Umbanda e o

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No segundo, é um mestre catimbozeiro. O Catimbó, similarmente a Umbanda, é um como sagrado. A pergunta 'quando' fica respondida pela prática do ritual que é própria do
culto aos ancestrais. Encontramos nele, caboclos, mestres e mesmo pretos-velhos. Na Catimbó e queconta com a presença do espírito queumavez fora "profano". Jáa pergunta do
categoria dos"mestres", o espirito que retorna é exatamente o de um indivíduo que,em vida, 'por meio de que' resolvemos apontando que é o ato da sacralização do Catimbó, não
foi um Mestre catimbozeiro, ou seja, um comandante das mesas de Catimbó. revelado pelo 'ponto cantado', mas que sabemos ser a da "iluminação" de um catimbozeiro,
mestre, que retoma como tal. Paradoxalmente, portanto, e visualizamos isso através da
De forma geral, os mestres são descritos como espíritos curadores de memória sacra, Zé Pelintra já vinha sendo um doutor, pelo fato de que sua manifestação
descendência escrava ou mestiça (índio com negro ou branco com uma das
duas outras raças). Dizem os juremeiros que os mestres foram pessoas que, sagrada nãoera novidade, realizando-se algumas vezes. Entendemos isto pela expectativa de
quando em vida, trabalharam nas lavouras e possuíam conhecimento de um futuro que estará presente, ou seja, seu retorno ritual que se dará toda vez, enquanto
ervase plantascurativas. Por outro lado, algo trágicoteria acontecidoe eles
teriam 'se passado' (morrido), se encantando, podendo assim voltar para prática religiosa de abrir a mesa, implicitado pelo termo "quando" que remete ao modo
'acudir' os que ficaram'neste vale de lágrimas'.
gramatical do futuro subjuntivo. Espera-se então que ele retorne, pelo menos enquanto as
Apesar de suas diferenças, a atuação de Zé Pelintra tanto nas mesas do Catimbó mesas forem abertas (talvez ad eternum). E sempre que isso ocorrer ele será doutor, será
quanto nasgiras de Umbanda (principalmente na Linhadas Almas) se dão de forma parecida: sagradoe terá uma funcionalidade: praticara cura.

pela cura. Esta é uma prerrogativa que permeia os dois cultos. E este será um dos novos Enquanto seu retorno não se dá, aguardando a próxima sessão do Catimbó, ele é uma

trabalhosdo famoso malandro, agora espírito que vem "para ajudar", Zé Pelintra. Os 'pontos memória. O 'ponto cantado' cumpriu uma função, qual seja a de transformar a memória

cantados' expressam essa características: acerca do personagem. O pontoé, neste caso, instrumentodo ritual,da prática do retorno, e da
transformação da memória; a suasacralização também atende a este últimoquesito.
Zé Pelintra, no Catimbó Desta forma, confrontando e mediando o entendimento que se tinha sobre o
É tratadode doutor personagem, o ponto (ou o retorno, a prática) revela o novo saber acerca do mesmo. Antes
Quando abre sua mesa
Tem fama de rezador24 desprezado e marginalizado pelasociedade, ele tornou-se "doutor". Ser doutor na época tanto
da vida de Zé Pelintra, quanto na contemporânea de seu retorno, tem um alto significado
Neste ponto verificamosque Zé Pelintra é sagrado por ser doutor("é doutor"), porter
associado com a detenção de conhecimentos que o elevam na posição social, diferenciando
fama de rezador("tem famade rezador"), por estar"no Catimbó" e por abrira mesa ("abre a
daqueles que não sabem lerou escrever, e "por issosãopobres ou coisa e tal..." Aqui,doutor
mesa).Tornou-sesagrado portornar-se doutor,já que antes nãoo era. Continuará sagrado por assume a forma de "médico", ou melhor, de detentor de conhecimentos similares aos de um
que a cada vez que abrir a suamesa,e vier no (ao)Catimbó, será tratado como doutor e terá médico que permitem praticar a cura. Esta cura, no entanto, não é pormeio de intervenções
fama de rezador.
cirúrgicasou medicamentosas, mas pela reza.
Seu retorno espiritual se dá pela prática religiosa, contextualizada no Catimbó que é a Com efeito, "doutor", no nosso caso, é um 'atributo'. É uma formalidade, uma
de abrir a mesa e cadavez que o fizer terásuas"regalias" de sagrado: 'ser' doutor e 'ter' fama respeitosidade atribuída àqueles que estão 'um degrau acima' no extrato social. Um patrão
de rezador. No entanto, sua memória profana, revela que ele não era doutor, mas tornou-se.
podeserum doutor, assimcomo um letrado, um político, ou o indivíduo que acabara de entrar
Na memória do processo de sacralização encontramos aresposta. Ele 'está no'Catimbó. Éum num restaurante caro, independentes de suas formações acadêmicas. Ser "doutor" é o que
mestre, além de um espirito de um mestre. E cada vez que o retorno ritual se der, através da
separa o indivíduo da pessoa, como aponta DaMatta. Estar falando com um doutor é saber
prática religiosa, ele será um "doutor". Este é um futuro presente. Ou seja, sua hierofania com quem se fala. Um doutor não é qualquer um.
precisa aguardar até o momento da repetição do ritual. Somente assim poderá manifestar-se

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ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GTHISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES - ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES -
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No caso do Brasil, tudo indica que a expressão permite passarde um estado da conversão, do pensamento ruim para o bom pensamento, no que concerne à totalidade dos
a outro: do anonimato (que revela a igualdade e o individualismo) a uma
posição bem definida e conhecida (que expressa a hierarquia e a indivíduos, e à sacralização, no quediz respeito àsentidades queestarão presentes no culto. É
pessoalização); de uma situação ambíguae, em princípio,igualitária, a uma somentea partir destesentimento que o espírito se identifica como um ser que precisa trilhar
situação hierarquizada, onde uma pessoa deve ter precedênciasobre a outra.
Em outras palavras, o 'sabe com quem estáfalando?" permite estabelecer a um caminho em direção à perfeição, ao Amor. A novidade, pois, que se apresenta a este
pessoa onde antes sóhavia o indivíduo.71
espirito é que, por diversos fatores, lhe permitem a possibilidade de ir cumprindo asetapas
Zé Pelintra deixou de ser qualquerum. O ponto analisado refere-se, exclusivamente, antes do restante dos seres humanos. É como se fosse um prolongamento da vida de
encarnado.
(textualmente falando) ao seu lado transformado, a sua dimensão boa (ou para o bem). O
discurso do ponto assumiu, não sem certaironia- que possibilitaa avaliação da cumplicidade Enfim, a evolução espiritual funciona como um conjunto maior, um conceito
de outras vozes sociais - a necessidade de encarar o personagem pela dimensão ordeira, universal; o arrependimento é o sentimento necessário para desencadear o processo, e seu
permitida somente pela prática religiosa. Caracterizar de irônica essa 'aceitação da realidade primeiro estágio; e a caridade é o meio pelo qual a categoria espiritual pode por em prática
da ordem' suscita que as vozes compositoras do discurso sagrado relativizam a importância todas astarefas conscientizadas pelo pensamento sagrado. E é através daquilo que o espírito
do tratamento de "doutor", impondo aos que assistem ao culto que assumam essa carrega como lembrança própria e como memória coletiva de seus fiéis, que se dará sua
respeitosidade para com o Zé Pelintra. Se, em vida, ele poderia ser questionado porquem quer transformação. A eficácia daatividade religiosa da categoria espiritual é tal que precisa ser
que fosse, agora o leque de tipos sociais que freqüentam o Catimbó (e a Umbanda) - mesmo referenciada e mesmo balizada pela dimensão profana queos personagens possuem, pois é a
aqueles representantes da ordem, moralistas e puritanos - tem a 'obrigação' de tratar Zé partir dela queos fiéis irão se consultar, sabendo diferenciar quecategoria atende a qual tipo
Pelintra como "doutor".
de"demanda". Comefeito, o conjunto de cantigas rituais - chamamento, louvação e 'partida'
Como indicado no inicio do trabalho, Zé Pelintra e os malandros em geral não - é um todo discursivo que dá contornos específicos às entidades presentes no culto,
abandonaram por completo suas memórias profanas, apenas a ressignificaram. Tal processo configurando-se como parte da atividade e da própria persona do espirito. Por este motivosão
foradesencadeado por uma consciência adquirida pelos agentes históricos de que tinham que mantenedores da memória profana dos malandros:

praticar o Bem e evoluir. No caso do Catimbó, entendemos que esta mesma mentalidade
vinha se formandojá nas atividades enquanto mestre catimbozeiro encarnado. Na Umbanda, Chapéu amarelo/ Lánomeu gongá/ É senhor José Pelintra, aimeu Deus/ Na
mesa arriá/ Olhe para o céue vejauma luz/ É José Pelintra, ai meuDeus/
desenhada como um culto onde a manifestaçãoespiritualtem preponderância, é permitido aos Quem vem receber a luz.../ QueDeus lhe de maior poder/ E da maior força
que há...!/ Quem foi que viu Zé Pelintra/ Brincando neste saião/ Com sua
espíritos que retornem mediunicamente a Terra para trabalharem. Isto significa que, antes de garrafa de pinga/ E seucharuto namão/ Dentro daviladocabo/ Foi primeiro
serdesignada a próxima encarnação, existe uma maneira de ir compensando as falhas terrenas semsegundo/ Na boca dequemnão presta/ Zé Pelintra é vagabundo/ Dentro
davilado Cabo/ Setevendas se fechou/ Foicom a fumaça contrária/ QueZé
e que é o cerne do cultoumbandista: o mecanismo da 'evoluçãoespiritual - arrependimento - Pelintra mandou/ Eunão gosto de cachaça/ E nem meumano gosta dela/ Eu
bebo setegarrafas/ E meumano, setetigelas26
caridade'. A tarefa do espirito no terreiro de Umbanda é ajustada à Caridade. Ou seja, o
instrumentode trabalho para a compensaçãodos pecadosé a praticado bem, da caridade. Esta Neste 'ponto' vemos como o malandro responde ao orgulho ferido por ter sido
prática se dá de várias formas, entre elas, podemos citar como mais aparente o auxilio chamado de"vagabundo". Agora, partícipe de um culto, o personagem dotou-se de "poderes
psicológico, por meio das conversas, e a cura dos males espirituais e orgânicos, através de mágicos" que transformam suareação em algotalvez mais perigos do que 'em vida'. Em um
inúmeros processos mágicos. ÉaCaridade o contorno dado àtarefa religiosa doespirito. 'ponto cantado' de autoria de N. A. Molina, observamos este feto com mais clareza:
Quanto ao arrependimento, ele é o primeiro estágio da conscientizaçãoda necessidade
de evoluir e se redimir das mazelas cometidas. Tal consciência levará, posteriormente, à fase Me chamo Zé Pelintra
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ANAIS DO in ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES - ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES -
ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859. Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhl.uem.br/atreliolao/Pub.html Disponível em http://www.dhl.uem.br/qtrellolao/pub.html

Como exu eu sou doutor magias e mirongas/ Dando forças ao terreiro/ Sarava Seu Zé Pelintra/ O
Meu planetaé Mercúrio amigo verdadeiro27
Tanto mato como curo

As palavras "doutor" e "mestre" classificam o tipo de título concedido aos


A negatividade, antes expressa no caráter profano do personagem, representado na
personagens que, a partir, deagora, não expressam somente sua dimensão sagrada; oumelhor,
integração em outroespaço social, é entãosuperada na transformação dada pelasacralização.
a memória que se configura acerca do agente histórico terá que conjugar o profano com o
Zé Pelintra ocupa, desta feita, um espaço sagrado que impõe uma série de relações
sagrado, mediando seus limites e possibilidades.
interpessoais diferentes daquelas que se operavam na sua existência profana. Este novo
O imaginário social dos praticantes da Umbanda e/ou do Catimbó foi também
espaço, para este novo homem, ou melhor,este novo homem 'neste' novo espaço, subvertera
reorientado, ganhando contornos que identifica-se, indivíduo por indivíduo, na permissão
a ordem imposta por uma parcela da sociedade, e estabelecera uma nova aproximação com o
concedida à categoria espiritual, e, especialmente, na espera do seu próximo retorno sagrado.
personagem, que enfim, contribui para a reatualização do mito de Zé Pelintra, e de modo
Em relação a esta capacidade imaginativa, como propõe Castoriadis28, ela não deve ser
análogo, para a dos malandros. Contribui aindapara a transformação que a realidade pretérita
encarada exaustivamente como fantasia ou alienação. É,emverdade, constitutiva darealidade
do tipo social do malandro sofre,criando um nicho confuso,antagonizado poruma gama de
humana. O ponto de partida, pelo qual se 'realizam' os objetos. Em suma,é formuladora da
indivíduos que tem impressões particulares acerca do impacto social protagonizado pelos
psique, dasociedade e da história, sem termos a possibilidade dedesmembrá-las. Portanto, o
diversos segmentos polares dos malandros, impedindo que se tenhauma referência hermética
malandro - seja ele profano ou sagrado, seja a visão quetem de si, ou queo alter faz dele -
acercado agente histórico.
não é umaalucinação produzida por si mesmo, ou por seuscontemporâneos (hoje, fiéis), mas
uma resposta, corporal e cultural, das vicissitudes que se lhe apresentam: "Assim, o
Conclusão
imaginário toma corpo, isto é, passa atera 'aparência necessária': adissimulação readquire o
A simples transformação sacralizante do personagem não surtiria efeito se não
sentido original de, literalmente, simulação que se perde, para se reencontrar em novos
coadunasse com a aceitação por parte dos fiéis. Zé Pelintra - e os malandros a reboque -
signos, desta vez desejados".29 Omalandro foi 'reinventado', não como abstração, mas sim
completaram sua transformação e estão prestes a assumir o sagrado através de sua
como parecer diantefdò julgamento dapTópriâ trajetória do(sj indivíduo(s) e da sociedade.
manifestação espiritual nos cultos. É aconsciência dotérmino desua jornada que implica aos
fiéis (aosque entendeme repassam seu mito) dotar o personagem de um caráter sagrado que
Notas
se dá, basicamente, pela fé, pela crença. Para aqueles que o cultuam, essa reordenaçâo e
ressignificação dapersona do malandro, aquiindicada como sendo fruto de uma modificação Este trabalho é umaadaptação de temas relacionados com a monografia de conclusão de curso, intitulada "A
Sacralização do Malandro - tempo, memória e discurso", apresentada aoDepartamento de História daUERJ em
do comportamento, capitaneada pela"Lei de Umbanda", ou pelos mecanismos do Catimbó, agosto de 2010.

são as possibilitadoras de crédito ao personagem. O malandro, em vida, poderia até ser 2Graduando emHistória pela UERJ.
3Programa de Pesquisas e Estudos das Religiões, coordenado pela Prof*. Dr*. Edna Maria dos Santos.
desacreditado, mas tendo, finalmente, completado sua jornada de sacralização, tornou-se JELIADE. Mircea. OSagrado eoProfano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p13.
merecedorde confiança, respeito e admiração. Essa confiança parte, exatamente, do atributo 5ALKMIN, Zaydaa Zé Pelintra: dono na noite, rei da magia. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 1992; FARELLI,
Maria Helena. Zé Pelintra, o rei da malandragem. Rio de Janeiro: Cátedra, 1987; MOLINA, N. A. Sarava,
queo malandro sagrado adquire após sua façanha de superação da morte. Seu Zé Pelintra. Rio de Janeiro: EditoraEspiritualista, s.d.
*LIGIÉRO, Zeca. Malandro Divino: avida ealenda de Zé Pelintra, personagem mítico da Lapa carioca.
Rio de Janeiro: Record,2004, p.33.
Zé Pelintra, Zé Pelintra/ Boêmio da madrugada/ Vem na linha das Almas/ E Mais doque "tipo social", preferimos autilização doconceito "categoria social", por concordarmos com o que
também na Encruzilhada/ Amigo Zé Pelintra/ Que nasceu lá no sertão/ expõe Durkheim: "Categorias são conceitos eminentes que desempenham no conhecimento, um marco
Enfrentou a boêmia/ Com seresta e violão/ Hoje na Lei de Umbanda/ importante. Com efeito, elas têm por função dominar e envolver todos os outros conceitos; são marcos
Acredito no Senhor/ Pois sou seu filho de fé/ Pois tem fama de doutor/ Com
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ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES -
ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhl.uem.br/QtrellQlao/Dub.html

permanentes davida mental." DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo, Ed. Martin
Claret, 2002. p. 194.
*AUGRAS, Monique. Imaginário da Magia: magia do imaginário. Riode Janeiro.Ed. PUC-Rio, 2009,p.56.
9 FOUCAULT, Michel.A Ordem do Discurso. Aula Inauguraldo Collègcde France,em 1971,Disponível em:
htro://vsiles.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/oTdem.html. Acessado cm 30/09/2008. p.2.
10 CARVALHO, JoséJorge de.A Tradição Mística Afro-brasileira. In: Religião e Sociedade, Vol. 18,No. 2,
1998. p.4.
" POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. 1989, vol.2.
n.3, p II.
12 DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Riode
Janeiro: Ed. Rocco, 1997. p.270. (grifos do autor).
13 FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Vol.l "O Legado da 'Raça
Branca'". São Paulo: Ed. da USP, 196S,p.192. (grifos do autor).
14 COSTA, Emilia Viotti da. DaSenzalaà Colônia. SãoPaulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p.336.
15 OsCódigos Civis de 1890 e de 1916 dispunham acerca doscrimes de vadiagem, nosquais, incluía-sc atéa
capoeira. Sobre este caso, será somente com Getúlio que o jogo passará a ser encarado como esporte nacional e
respeitado como tal.
14 "Olha o Padilha"-1952.
17 Disponível em: http://www.scribd.eom/doc/7117217/Umbanda-Pontos-Letras-de-Pontos-de-Exu-01. Acessado
em 03/05/2010.
" PARANHOS, Adalberto. A invenção do Brasilcomoterra dosamba: os sambistas e sua afirmação social. In:
Revista História, São Paulo. 22 (1) pp.81-113,2003, p.105.
19 GOMES, Ângela deCastro. AInvenção doTrabalhismo. SãoPaulo: Vértice/Iuperj. 1988.
20 "Bonde de São Januário" - Wilson Batista - 1941.
21 LIGIÉRO, Op.Cit.p.38.
22 MOLINA, N. A.Op.Cit.p.13.
23 BRANDÃO, Mariado CarmoTinoco& NASCIMENTO, Luis FelipeRiosdo. O CatimbòJurema. In: Revista
Clio - série arqueológica. Recife, v. 1, n. 13, 1998, p. 71-94. p.79. (grifo dos autores)
24 Centro Espirita Umbandista São Sebastião - Nova Friburgo/RJ. Disponível em:
http://www.umbandadeamor.com.br/site/pontosze,htm. Acessadoem 23/04/2010.Sendo possívelencontrarem
outros sítios eletrônicosque possuemcoleções de 'pontos cantados*.
35 DAMATTA. Op.Cit.p.220. (grifos do autor).
26 AGO Associação Guerreiros de Oxalá - Disponível em:
htto://aBoeuerreirosdeoxala.com.br/modules/tinvcontent/index.php7id°97. Acessado em 07/07/2010.
" "Amigo ZéPelintra". José deAloiá. Apud LIGIÉRO, 2004. p.37.
n Apud AUGRAS, Op. Cit. pp. 231-5.
29 NOVAES, Adauto. Cenários, pp.8-20. In: . (org.) Ética: vários autores. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2006. pp. 19-20.

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