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RESUMO
introdução
M
ichel Foucault, no primeiro volume de História da Sexualidade, deu
um grande passo para a compreensão da dinâmica que envolve o
sexo e o poder nas sociedades ocidentais, ao mostrar que a categoria
sexo não é uma constante universal, mas sim um constructo discursivo marcado
historicamente. Em outras palavras, o discurso em torno do sexo tem uma
história, ou seja, é permeado pela historicidade. A cada momento histórico, ao
longo da história da humanidade, houve diferentes maneiras de se conceituar,
de se nomear e de se regular o sexo. Entretanto, ao longo deste fio descontínuo
de categorizações, há uma presença constante: a necessidade de se pôr o sexo em
discurso, ou ainda, uma demanda de discursivização do sexo: “para dominá-lo,
1
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 21.
2
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 59.
3
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 26.
4
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 27.
5
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 30.
6
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 47.
7
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. 7 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1994. p. 43-44.
Ainda que pensar a categoria gênero (ou mesmo a categoria desejo) como
um constructo social não cause espécie, refletir sobre sexo (o dado biológico)
e corpo (a instância material que é sujeito/objeto do desejo) pode causar certo
estranhamento. Quando se afirma que o sexo e o corpo são construções cul-
turais, não se quer em nenhum momento negar a materialidade dos corpos
ou a existência de uma diferença anatômica entre homens e mulheres. O que
se busca é a relativização do caráter naturalizado e essencializado do sexo e do
corpo. Ainda que “existam” na realidade e na natureza, é apenas nos inters-
tícios da cultura que o corpo e o sexo produzem sentidos e significados, ou
seja, tornam-se “compreensíveis” e “inteligíveis”. A partir do momento em
que se relativizam essas noções, as categorias gênero e sexualidade – bem como
as asseverações sobre a “normalidade” ou a “anormalidade” de determinadas
sexualidades – podem ser repensadas como constructos culturais, e não como
“verdades” ou “essências transcendentais” e inquestionáveis.
Cabe averiguar como as questões que envolvem sexo e corpo entram na
arena teórica de discussões envolvendo gênero e sexualidade como instâncias
identitárias politicamente significativas no universo simbólico. Jane Flax, em
artigo intitulado “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminis-
ta” afirma que:uma das metas básicas da teoria feminista é (e deve ser) analisar
as relações de gênero: como as relações de gênero são constituídas e como
nós pensamos ou, igualmente importante, não pensamos sobre elas”9. Nesse
sentido, a teoria feminista constitui-se como uma metateoria (ou ainda, um
“pensar sobre o pensar”), evidenciando Flax consonância com as reflexões de
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FLAX, Jane. “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista”. In: HOLLAN-
DA, Heloísa Buarque de (organização). Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco,
1992. p. 225-226.
9
FLAX, Jane. “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista”. In: HOLLAN-
DA, Heloísa Buarque de (organização). Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco,
1992, p. 218-219.
10
FLAX, Jane. “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista”. In: HOLLAN-
DA, Heloísa Buarque de (organização). Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco,
1992, p. 228.
11
FLAX, Jane. “Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista”. In: HOLLAN-
DA, Heloísa Buarque de (organização). Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco,
1992. p. 223.
12
DE LAURETIS, Teresa. Tecnologies of Gender. Bloomington: Indiana University Press,
1987. p. 3.
13
DE LAURETIS, Teresa. Tecnologies of Gender. Bloomington: Indiana University Press,
1987. p. 5.
Tida como uma das pensadoras clássicas dos queer studies, Judith Bu-
tler toma a psicanálise lacaniana, o pensamento feminista francês, a semiótica
14
Um exemplo clássico desse tipo de estratégia é o texto de Jonathan Culler, intitulado “Lendo
como Mulher”. In: CULLER, J. Sobre a Desconstrução: Teoria e Crítica do Pós-Estruturalismo.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: 1997. p. 52-76.
17
BUTLER, Judith. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. New York/London:
Routledge, 1993. p. 2.
18
LOURO, Guacira Lopes “Pedagogias da Sexualidade”. In: _____. O Corpo Educado: Peda-
gogias da Sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 12.
19
LOURO, Guacira Lopes “Pedagogias da Sexualidade”. In: _____. O Corpo Educado: Peda-
gogias da Sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 12.
“Seus eleitores sentem-se enganados e com o direito de anular sua escolha, pois
ele transgrediu uma fronteira considerada intransponível e proibida”20. Louro
lembra ainda que dificilmente se pensa na destituição de um governante que
troque de convicções políticas, ainda que esse tipo de mudança tenha efeitos
públicos muito mais amplos do que a transição de gênero. “A admissão de uma
nova identidade sexual ou de uma nova identidade de gênero é considerada
uma alteração essencial, uma alteração que atinge a ‘essência’ do sujeito”21.
O corpo é o primeiro registro, a primeira marca a partir da qual se de-
sencadeia o processo de subjetivação. Entretanto, é apenas na cultura que esse
mesmo corpo adquire significado. Mais do que produzir significados para o
corpo, a cultura pode inclusive alterar esse mesmo corpo. Cultura e tecnolo-
gia combinadas podem redirecionar, deslocar ou mesmo reinventar os corpos:
intervenções cirúrgicas não apenas alteram o perfil dos corpos, tornando-os
adequados aos padrões dominantes de beleza estética e de saúde, mas podem
inclusive alterar o próprio sexo (como no caso das cirurgias transexuais), de-
sestabilizando os arranjos naturalizados de gênero e de sexualidade. Rober-
ta Close seria um homem homossexual? Ou estaria ela mais próxima do que
compreendemos como uma mulher heterossexual? Não só os corpos deixam de
ser dados apriorísticos, mas a própria noção de identidade deixa de ser uma
decorrência direta desses corpos.
Butler afirma que “certainly, I do not mean to claim that forms of sexual
practise produce certain genders, but only that under conditions of norma-
tive heterosexuality, policing gender is sometimes used as a way of securing
heterosexuality”22. A hierarquia sexual produz e consolida o gênero. Logo, se-
gundo tal raciocínio, não é a heterossexualidade enquanto norma que conso-
lida e legitima o gênero, mas é a própria hierarquia de gênero que subscreve a
manutenção da heterossexualidade como norma. Ainda que gênero e sexuali-
dade estejam extremamente imbricados (a ponto de levarem Teresa de Lauretis
a falar de um sistema sexo-gênero), essas duas categorias não podem em mo-
20
LOURO, Guacira Lopes “Pedagogias da Sexualidade”. In: _____. O Corpo Educado: Peda-
gogias da Sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 13.
21
LOURO, Guacira Lopes “Pedagogias da Sexualidade”. In: _____. O Corpo Educado: Peda-
gogias da Sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 13.
22
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. 10th Anniversary
Edition. New York and London: Routledge, 1999. p. XII.
23
Do grego kybernetes (literalmente “o homem que dirige”), a cibernética é uma das tecnolo-
gias de informação que parte do pressuposto de que a interação entre homem e máquina é
regida basicamente pela informação: “a imagem do clássico piloto, com as mãos no timão
de um barco a velas, capta perfeitamente a essência [da ideia de interação cibernética]. Pa-
linuros, aproximando-se das rochas, obtém informação visual sobre a posição do barco e
ajusta o curso de acordo com essa informação. Esse não é um evento singular, mas um
fluxo constante de informação” (KUNZRU, Hari. “Você é um Ciborgue: Um Encontro com
Donna Haraway”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. p. 136).
24
HARAWAY, Donna. “Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no
Final do Século XX”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 40.
25
HARAWAY, Donna. “Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no
Final do Século XX”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 40.
subjetividade, o cyborg surge como proposta ontológica: é ele o mito que de-
termina estratégias políticas. Na contramão das narrativas edípicas de origem,
o cyborg não tem qualquer identificação com a natureza ou a nostalgia da ori-
gem biológica. “O cyborg pula o estágio da unidade original, da identificação
com a natureza, no sentido ocidental”26. Dado não obedecer à lógica edípica,
na qual a origem do sujeito está ligada à falta que leva ao desejo, o desejo-
cyborg é análogo à figura do polimorfismo perverso, obedecendo a uma lógica
do desejo e do prazer que não busca uma finalidade, mas apenas o gozo:
26
HARAWAY, Donna. “Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no
Final do Século XX”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 43.
27
HARAWAY, Donna. “Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no
Final do Século XX”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 42.
28
HARAWAY, Donna. “Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no
Final do Século XX”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 50.
29
HARAWAY, Donna. “Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista no
Final do Século XX”. In: SILVA, Tomás Tadeu da (organização). Antropologia do Ciborgue.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 57.
de escrita literária que tem por objetivo último a mimesis do real. Desconstruir
as convenções da narrativa de fundo realista – e questionar mesmo os próprios
limites e suportes do objeto literário – são interesses indissociáveis do pro-
jeto político de se criar novas narrativas auto-conscientes da provisoriedade
das construções e representações da realidade social por elas sustentadas. No
romance do escritor argentino Manuel Puig, intitulado El beso de la mujer
araña30, a ação transcorre dentro de um presídio. A narrativa rompe com as
próprias convenções romanescas, já que traz toda a diegese estruturada dra-
maticamente (em falas alternadas, tal como ocorre no teatro), o que reitera o
caráter perfomativo da linguagem literária. Manuel Puig emprega uma série
de narrativas fílmicas como substrato para o diálogo entre Valentín – militante
esquerdista revolucionário – e Molina, um homossexual acusado de abuso de
menores. O ambiente carcerário, ao mesmo tempo em que serve para a reclu-
são, afasta os personagens dos regimes sexuais repressivos, permite uma inte-
ração entre ambos a partir das histórias holywoodianas que Molina conta para
Valentín. Molina declina-se no feminino, seja pelos trejeitos, pelas vestimentas
ou mesmo pela sua própria fala: “Si, perdoname, pero cuando hablo de él yo
no puedo hablar como hombre, porque no me siento hombre”31. Ao final do
romance, Valentin finda por reconhecer em Molina nem um homem nem
uma mulher, mas uma mulher-aranha: “Vos sos la mujer araña, que atrapa a
los hombres en su tela”32.
Outro romance escrito em consonância com a problematização do gêne-
ro e da sexualidade sob uma perspectiva queer é Onde andará Dulce Veiga? 33,
do brasileiro Caio Fernando Abreu, romance que mistura elementos do ro-
mance policial, do cinema noir (explícita presença assinalada no subtítulo,
“um romance B”), versando sobre a errância do sujeito nos cenários urbanos.
A construção de um sujeito-cyborg se dá na medida em que todos os perso-
nagens configuram-se como parciais, múltiplos e inacabados. O personagem-
narrador do romance – um jornalista – ao mesmo tempo em que coleciona
aventuras eróticas com prostitutas pela cidade e desenvolve uma afetividade
30
PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. New York: Vintage Books, 1994. A primeira
edição do romance é de 1976.
31
PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. New York: Vintage Books. 1994. p. 69.
32
PUIG, Manuel. El beso de la mujer araña. New York: Vintage Books, 1994. p. 265.
33
ABREU, Caio Fernando. Onde Andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
34
ABREU, Caio Fernando. Onde Andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 203-204.
ABSTRACT